Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
29/17.0PESTB-A.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
MANDADO DE BUSCA
NULIDADE
NOITE
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) a al. a) do nº 2 do artigo 177º do Código de Processo Penal só pode ser interpretada na sequência lógica e substancial do nº 1 do preceito como a possibilidade de o juiz que determina a emissão dos mandados de busca domiciliária escolher – com os elementos que lhe são trazidos pelos autos e pela promoção do Ministério Público – que a busca se não efectue nos termos do nº 1 do preceito (entre as 7 e as 21 h) mas segundo o disposto nessa alínea a) do nº 2 (entre as 21 e as 7 h) em função das características de facto do caso concreto.

ii) fora do condicionalismo de perigo na demora previsto na al. a), do nº 5 do artigo 174º a al. a) do nº 2 do artigo 177º do C.P.P. não permite a busca domiciliária sem mandado judicial.

iii) é nula a busca realizada em horário nocturno quando os mandados apenas a permitiam em horário diurno. (sumário do relator)

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Inquérito supra numerados, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo de Instrução Criminal, J1 - a Srª JIC lavrou despacho, com data de 11-03-2019 que indeferiu a arguição de nulidade da busca realizada na residência do arguido T… suspeito da prática de um crime de tráfico de droga.


*

Inconformado o arguido interpôs recurso do despacho da Mmª Juíza, com as seguintes conclusões:

I- O Douto Despacho recorrido considerou que a busca domiciliária efetuada pelos órgãos de polícia criminal em 09/03/2019 é válida e legal, apesar desta ter sido efetuada às 22h15m e 23h25m, em flagrante afronta ao que foi determinado no despacho de 25-02-2019 ao abrigo dos artigos 174.º, n.º 2, 3 e 4, 176.º, 177.º, n.º 1, 178.º e 269.º, n.º 1, alínea c), todos do código de Processo Penal.

II- O Recorrente suscitou à nulidade das buscas no 1.º interrogatório judicial de detido, na medida que, na Conclusão de 25/02/2019, havia sido determinado, e bem, pela autoridade judiciária competente, ao abrigo do disposto nos artigos 174.º, n.º 2, 3 e 4, 176.º, 177.º, n.º 1, 178.º e 269.º, n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, que procedessem a busca à residência; bem como a todos os seus logradouros, anexos, arrecadações e/ou garagens, entre as 7h e as 21h, sob pena de nulidade.

III- Consta expressamente, quer na decisão de 25/02/2019, bem como no mandado de busca e apreensão da lavra do Mmo. Juiz de Direito, Dr. Nelson Escórcio, determinação de que a busca fosse efetuada entre as 7h e as 21h, sob pena de nulidade, conforme artigo 177.º, n.º 1, do CPP.

IV- Todavia, mesmo diante de tais elementos, foi proferido despacho judicial dando como validamente realizada a busca, decidindo-se pela improcedência da nulidade invocada pelo recorrente, com o qual este não concorda.

V- Nem tão pouco concorda o recorrente com o argumento dado no despacho recorrido quando afirma e dar a entender genericamente que, todo e qualquer crime de tráfico de estupefaciente, é em abstrato, considerado criminalidade altamente organizada, quando factualmente investiga-se nos autos com relação ao recorrente, fatos suscetíveis de consubstanciarem a prática, de 1 (um) crime de tráfico de estupefaciente.

VI- Saliente-se que, o próprio Ministério Público e o Juiz recorrido concluíram, ainda que indiciariamente, “(…)que a predominância da actividade é exercida pelos arguidos F… e A…, não se tendo o modus operandi do mesmo como sofisticado ou muito organizado(..)”, e que “(…)Os arguidos estão relativamente inseridos familiar, social e profissionalmente não se dedicando exclusivamente a actividade ilícita.(…)”

VII- Assim, está eivado de ilegalidade o Douto Despacho recorrido, na parte que refere que a busca domiciliária efetuada pelos órgãos de polícia criminal é válida e legal, visto que foi realizada, sem autorização judicial, na forma excecional do preceituado no artigo 177, n.º 2, a) do Código de Processo Penal.

VIII- Salvo o devido respeito, não pode o recorrente concordar com os fundamentos apresentados no Douto Despacho, visto que, uma busca domiciliária noturna (entre as 21h e as 7h) só poderia ser realizada pela polícia, caso tivesse autorização judicial excecional e expressa, e quando muito, se fosse verificado uma situação grave que implicasse a necessidade urgente de tal diligência, como por exemplo, no caso do flagrante delito.

IX- Não sendo esse o caso dos autos, uma vez que o arguido foi detido no interior de sua residência, quando se encontrava a dormir junto de sua família, entre às 22h15 e às 23h15m, e sem o devido consentimento do arguido e de seus familiares.

X- Na realidade a busca a casa do mesmo, havia sido autorizada pelo Juiz nos termos dos artigos 174, n.º 2, 3 e 4, 176.º, 177.º, n.º 1, 178.º e 269.º, n.º 1 alínea c), todos do CPP, sendo de uma clareza solar a nulidade da busca na casa que no momento era habitada pelo recorrente e sua família.

XI- Assim, não pode o recorrente concordar nem aceitar a decisão do despacho recorrido que considera que a busca domiciliária foi realizada em plenas condições de legalidade, utilizando-se equivocadamente o disposto no Art.º 177, nºs. 2, al. a) do Cód. de Proc. Penal, que é regra excecional, quando na verdade o que consta no despacho de 25/02/2019 que determinou a busca, é a regra do Art.º 177, n.º. 1, do Cód. de Proc. Penal. (Art. 176/1 do CPP)

XII- O art.º 177/2 do CPP, permite de forma excecional, para além dos casos de detenção em flagrante, consentimento do visado, que nos casos criminalidade altamente organizada, à autoridade policial, prévia e devidamente autorizada pelo juiz, efetue a busca domiciliária noturna (entre as 21 e as 7h).

XIII- O motivo para tanto cuidado é que a busca domiciliária noturna policial põe em causa, de um modo particularmente grave, os direitos fundamentais da inviolabilidade do domicílio (art.º 34 da CRP) e da reserva da intimidade da vida privada e familiar (art.º 26, n.º 1 da CRP).

XIV- A interpretação da norma que a possibilita terá sempre que partir do seu carácter excecional e a realização de uma busca tem assim [por ter de respeitar as exigências constantes do art.º 18/2 da CRP), como regra fundamental, o cumprimento dos princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, que foram violados no despacho recorrido.

XV- Por isso, a exceção da proibição de buscas domiciliárias noturnas só vale para casos especialmente graves, e salvo melhor juízo, o despacho de 25/02/2019 que determinou a busca, foi claro e específico que esta deveria ser efetuada entre às 7h e as 21h, sob pena de nulidade, na medida que não foi demonstrado qualquer elemento de fatos suscetíveis de consubstanciarem a prática de criminalidade altamente organizada.

XVI- Pelo que terá de aceitar-se, desde logo, que uma busca noturna realizada por uma OPC, que tinha por fim a procura de “objetos e instrumentos relacionados com a prática delituosa indiciada nos autos”, teria que ser, pelo menos, em extremo necessária e urgente e para uma situação grave, para justificar a violação do domicílio e da reserva da intimidade da vida privada e familiar, do recorrente.

XVII- Ora, no caso dos autos, nada há que aponte para essa extrema necessidade e urgência na procura de objetos, tanto que, na decisão de 25/02/2019, o Juiz subscritor, a requerimento do Ministério Público, deixou claro que a regra a ser utilizada naquela busca, era aquela prevista no n.º 1, do artigo 177 do CPP, e não a regra excecional de busca domiciliária noturna invocada no despacho recorrido no n.º 2 do mesmo artigo.

XVIII- Em suma, a busca policial domiciliária noturna foi feita sem que o pudesse ser, concretizando-se assim num método proibido de prova, pelo que as provas por ela obtidas (no caso: os objetos apreendidos) não podem ser utilizadas (art.º 126.º, n.º 3 do CPP), e na parte que é possível, deve ser devolvida ao recorrente.

XIX- Desta feita, já que a nulidade foi invocada pelo arguido durante o 1.º interrogatório judicial e ratificada neste recurso, tal nulidade da busca é causa da nulidade consequente da apreensão feita durante a busca. (arts. 126/3 e 122/1 do CPP)

XX- A impossibilidade de utilização da prova obtida ou a nulidade desta prejudica o despacho que determinou a medida de coação, vez que a prova proibida/nula foi utilizada na fundamentação da decisão, bastando para o efeito que ela seja um dos meios de prova invocados, mesmo que não seja o elemento preponderante para a fundamentação da decisão do tribunal, o que efetivamente aconteceu.

XXI- O despacho que determina uma medida de coação fundado em prova obtida por método proibido/em prova nula é, também ele, nulo. [art. 122/1 do CPP). (Ac. STJ de 20-02-2008 – Processo: 07P4553)

XXII- Conforme art.º 194.º, n.º 7 do CPP, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação de qualquer medida de coação, os factos e os elementos do processo que não tenham sido comunicados.

XXIII- O que no caso quer dizer que estamos perante uma medida de proibição de contatos e apresentações periódicas semanais aplicada, sem que de todo se saiba quais os fatos criminosos imputados e os elementos do processo que os indiciam, e que por isso não pode subsistir.

XXIV- Para além desta consequência – da impossibilidade da consideração de qualquer facto criminoso ou elemento indiciário obtido da busca ilegal de 09 de março de 2019 - e se não fosse ela, a falta de referência a quaisquer factos concretos que preenchessem os pressupostos de aplicação da medida, implicaria a nulidade do despacho, conforme art.º 194.º, n.º 6, a, b, c, d CPP.

XXV- Não há um único facto em concreto que tenha sido referido como fundamento da afirmação de que existe perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, de que o Recorrido continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

XXVI- E quanto ao invocado, pela decisão recorrida, risco de alarme social atenta a natureza do crime de tráfico de estupefaciente, por um lado, não se concretiza, dizendo quais os factos em concreto que o fundamentam; e, por outro lado, o alarme social não é pressuposto da aplicação da medida, sendo certo que, o TIR já prestado pelo Recorrente nos autos, e o segredo de justiça decretado, é mais do que suficiente, nesta fase processual.

XXVII- Esta nulidade traduz-se simultaneamente na falta de fundamentação da aplicação da medida de coação: não se diz porque é que em concreto existe qualquer perigo de perturbação do inquérito ou de continuação da atividade criminosa. Pelo que o despacho recorrido não poderá ser confirmado por falta de fundamentação também nesta parte.

XXVIII- A nulidade da prova proibida (os bens apreendidos na busca ilegal) prejudica o despacho que determinou a medida de coação, tornando-o nulo, já que este despacho utilizou tais provas na sua fundamentação. (art.º 122.º, n.º 1 do CPP)

XXIX- Deve então ser declarado a nulidade do despacho - até porque, como já se viu, perante a total ausência de factos imputáveis e de elementos do processo que os indiciem que possam ser tomados em consideração, não tem qualquer fundamento que lhe possa permitir considerar necessária a aplicação de qualquer medida de coação, nem para determinar (ao abrigo do art. 122.º, n.º 2 do CPP) que o tribunal recorrido a aplique depois de fazer as diligências legais e necessárias para o efeito.

XXX- Razão pela qual se impõe uma decisão diversa da recorrida declarando-se, necessariamente, a nulidade da busca domiciliária efetuada na residência de J… e onde o Arguido pernoita regularmente e declarar-se a consequente nulidade da prova obtida com a mesma, bem como todos os atos que dele dependerem e aquelas que puderem afetar.

XXXI- Houve, no entender do recorrente, uma errada interpretação das normas constantes nos art.ºs 177º, nº 2, al. b) com referência ao Art.º 1º, al. m) e consequente violação na aplicação do Art.º 177.º, nº 1, do Código de Processo Penal, pondo ainda em causa, de um modo particularmente grave, os direitos fundamentais da inviolabilidade do domicílio (art.º 34 da CRP) e da reserva da intimidade da vida privada e familiar (art.º 26, n.º 1 da CRP) do recorrente e de sua família.

XXXII- A interpretação da norma prevista no art.ºs 177º, nº 2, al. b) terá sempre que partir do seu carácter excecional e a realização de uma busca tem assim [por ter de respeitar as exigências constantes do art. 18/2 da CRP], como regra fundamental, o cumprimento dos princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade.

XXXIII- Nesse sentido, o Tribunal a quo deveria ter feito uma interpretação diferente da norma processual e, assim, ter declarado a nulidade da busca domiciliária na residência do arguido e, consequentemente, considerar as provas aí obtidas como ilegais e ilícitas e, por isso, nulas, não podendo as mesmas serem utilizadas como provas, nos termos dos Art.ºs 126º, nº 3 e 122º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal.

XXXIV- Por isso, entende o recorrente ter havido uma aplicação e interpretação errada da al. a) do n.º 2 do Art.º 177º, com a consequente violação do nº 1 do Art.º 177º com referência aos nºs. 2, 3 e 4 do Art.º 174º, todos do Código de Processo Penal, constantes expressamente na decisão de 25/02/2019, determinando que a busca domiciliária fosse realizada entre as 7h e as 21h, sob pena de nulidade.

XXXV- Entende o recorrente, salvo melhor opinião, que a busca domiciliária noturna efetuada pelo órgão de polícia criminal, violou o despacho de autorização de 25/02/2019, que expressamente referiu o artigo 177.º, n.º 1, do CPP, não fazendo qualquer menção a regra excecional, sendo, por isso, ilegal.

XXXVI- Esta ilegalidade da busca conduz a que a mesma se torne um meio proibido de prova, por violação do direito à privacidade e do domicilio e, consequentemente, à nulidade da prova obtida com a mesma.

XXXVII- Entende, assim, o recorrente que não pode esse Tribunal ad quem esquecer que o legislador constitucional ao consagrar, excecionalmente, a busca domiciliária noturna o faz balizando expressamente o seu âmbito de modo a comprimir ao mínimo indispensável os direitos fundamentais para salvaguarda de outros direitos – Segurança, Realização da Justiça – em cumprimento do Art.º 18º da C.R.P.

XXXVIII- Parece que a argumentação tida pelo Tribunal a quo não poderá proceder porque violadoras dos Art.ºs 177º, nº 1; 174º, nº 2, 3 e 4, nº 1, al. d); 118º, nº 1; 119º, al. c); 122º, nº1 e 126º, nº1, todos do Código de Processo Penal.

XXXIX- Mal andou o Tribunal a quo que, na ânsia de encontrar justificação para a validade e legalidade da busca domiciliária, acabou por interpretar e aplicar a lei de forma errada, violando, desse modo, as normas processuais e constitucionais, garantes dos direitos dos arguidos, visados e cidadãos.

XL- Razão pela qual se pede a intervenção desse Tribunal Superior, designadamente no que se refere à reposição da legalidade, dando dessa forma como nula a busca domiciliária, por não ter sido respeitada a norma constante no Art.º 177.º, nº 1, do Cód. de Proc. Penal, por quanto foi nestes moldes que mandou proceder a busca à residência do Recorrente.

XLI- Podemos assim concluir que, na aplicação das medidas de coação, ora em causa, não foram observados os princípios e regras que lhe estão subjacentes, designadamente, os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, o que torna a mesma ilegal, por violação, entre outros, dos artigos 34.º; 26.º, n.º 1; 18, n.º 2 todos da CRP e dos artigos 126, n.º 3; 122.º, n.º 1; 174.º, n.º 2, 3 e 4; 176.º; 177.º, n.º 1; 178.º; art.º 194.º, n.º 6, a, b, c, d, n.º 7 e 269.º, n.º1, alínea c), todos do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, Aprova o Código de Processo Penal.

Termos em que deve o despacho recorrido ser substituído por outro que declare nula a busca policial efetuada à residência do arguido, bem como a apreensão subsequente dos bens e revogue o despacho recorrido que se baseou em tais provas, determinando-se a imediata cessação das medidas de coação impostas ao Recorrente, bem como a devolução dos bens apreendido, um telefone Huawei, com o IMEI 863047031304436.

Requer o recorrente que, caso o presente recurso seja admitido, o respetivo Apenso a enviar para o Tribunal da Relação de Évora, seja instruído com todos os elementos necessários à boa decisão da causa, designadamente:

a) Certidão da Ata do Primeiro Interrogatório Judicial do arguido;

b) Certificado de Registo Criminal do recorrente.

c) Certidão da Promoção de folhas 1098 e seguintes

d) Certidão do Despacho de fls. 1101, que determinou a emissão de mandados de busca à residência do Recorrente;

e) Certidão dos autos de busca e apreensão efetuados nas residências do Recorrente;


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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta concluindo:

A) As buscas domiciliárias representam sempre e em qualquer circunstância a compressão de direitos individuais dos cidadãos e por isso, como regra geral prevista no Artº 177º, nº 1 do Código de Processo Penal, as mesmas só podem ser autorizadas por Juiz e executadas entre as 7h e as 21H;

B) Os nºs 2 e 3 da referida norma prevêem excepções a essa regra geral permitindo a busca sem ordem ou autorização judicial e/ou a qualquer momento em situações em que a Lei considerou que o interesse da sociedade enquanto colectividade na perseguição criminal prevalece sobre os direitos individuais;

C) Trata-se de uma norma imperativa que não se encontra na disponibilidade do aplicador;

D) Nesse sentido depõe a letra do nº 2 ao dizer que as buscas podem ser “realizadas” entre as 21h e as 7h ao passo que o nº 1 determina que a busca “só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7h e as 21h”.

E) A diferença de entre os dois números, conjugada com as razões que subjazem ao regime delineado, impõe a conclusão que o Juiz de Instrução Criminal pode, fundamentadamente, autorizar ou rejeitar a realização das buscas mas não pode limitar o horário em que as mesmas são feitas, afastando a aplicação do nº 2.

Face ao exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso


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Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo os que constam do relatório que antecede, os que se indicam de seguida, bem como o teor do despacho recorrido:

1 - A busca foi ordenada por despacho de 25-02-2019 (fls. 4 e 5, 1109 dos autos principais) nos termos do nº 1 do artigo 174º do C.P.P. e dos mandados de busca constava que o era emitido nos termos do artigo 177º, nº 1 do C.P.P.

2 - O auto de busca de fls. 5 e 6 (1204 e 1205 dos sutos principais) com data de 09-03-2019 foi subscrito pelo agente de matrícula 150937 e refere que a busca foi realizada entre as 22.15 h e as 23.10 h., nada sendo assinalado de relevante para além da apreensão de um telemóvel e 20,72 gr de haxixe.

3 - Na certidão de fls. 13 (1212 dos autos principais) afirma que a diligência terminou pelas 23.40 h com a declaração “não tendo sido apreendido nada de ilícito”.

4 - O Ministério Público e a Srª juíza de instrução consideraram imputados aos vários arguidos:

«Desde data não concretamente apurada, o arguido A… vem-se dedicando à venda de estupefaciente, concretamente, canábis.
Para o efeito o arguido utiliza o telefone, cujo número altera frequentemente, para estabelecer contacto, quer com os compradores, quer com a pessoa junto da qual se abastece.
Assim, o arguido utilizou vários números de telefone, designadamente …, …, …, …, …, …, …, … e ….
O arguido A… entrega estupefaciente a várias pessoas, entre quais se conta os arguidos T… e V…, com quem estabelece vários contactos telefónicos.
No dia 16 de Novembro de 2018, o arguido A… recebeu em sua casa, sita na …, a quem entregou 131,41g de folhas de canábis.
No dia 25 de Janeiro de 2019, cerca das 19h13m, o arguido A… recebeu em sua casa o arguido T…, aquém entregou seis placas de resina de canábis, com o peso total de 576,68g. Estas placas destinavam-se a ser vendidas pelo arguido T….
Efectivamente o arguido T… entrega estupefaciente a várias pessoas, entre as quais se conta L… e o arguido V….
O arguido mantém contactos com as pessoas a quem entrega o estupefaciente através do telefone, utilizando para o efeito o número ….
Após a sua detenção, no dia 25 de Janeiro, na posse das seis placas de resina de canábis, o arguido manteve a sua actividade e os contactos em cima mencionados.
O arguido A… adquire, pelo menos em parte o estupefaciente que entrega, ao arguido F….
O arguido F… utilizava para os contactos que efectuava, pelo menos os telefones com os números … e ….
Assim, no dia 9 de Março de 2019, cerca das 16h, o arguido A…, ao volante do veículo com a matrícula …,, deslocou-se a casa do arguido F…, sita no …, onde lhe foram entregues pelo último nove placas de uma substância que reagiu positivo a haxixe, com o peso total de 902,26g.
O arguido V… recebe a canábis que depois distribui a vários consumidores directamente do arguido A… ou através do arguido T…, depois de este o receber de A….
O arguido H…, pelo menos desde Setembro de 2018, vem-se dedicando à venda de estupefaciente, concretamente cocaína.
Para o efeito, o arguido utiliza o telefone para estabelecer contacto com os compradores assim combinando os encontros destinados às transacções, deslocando-se no automóvel com a matrícula ….
Assim o arguido utilizou vários números de telefone, designadamente o … e ….
No dia 15 de Dezembro de 2018, o arguido encontrou-se com F…, perto do restaurante “…”, e entregou-lhe 1,34g de cocaína. Para o efeito, F… dirigiu-se ao automóvel em cima mencionado, onde já se encontrava o arguido, e falar com o mesmo através da janela do condutor assim recebendo o estupefaciente.
No dia 17 de Janeiro de 2019 o arguido dirigiu-se ao Largo José Afonso ao volante do automóvel com a matrícula …, onde se encontrou com N… a quem entregou 1,89g de cocaína.
No dia 9 de Março de 2019, o arguido A… circulava na Rua da Velha Alfândega em Setúbal ao volante do automóvel com a matrícula … e tinha consigo €135 em dinheiro, um Iphone com o IMEI … no qual estava inserido o cartão com o nº … e um telefone Huawei com o IMEI … no qual estava inserido o cartão com o nº ….
Na bagageira do referido automóvel o arguido transportava um saco contendo as nove placas que reagiram positivo a haxixe, com o peso total de 902,26g e nas quais se encontra gravada a palavra “MOROCCO”.
Em casa, sita na …, o arguido guardava €2.500 em notas e €107 em moedas.
No mesmo dia, o arguido F… tinha em sua casa, sita no …, uma placa de uma substância que reagiu positivo a haxixe, com o peso de 99,54g e na qual estava gravada a palavra “MOROCCO”.
Para além disso, o arguido tinha ainda em casa, em cima da mesa da cozinha dois pedaços de uma substância que também reagiu positivo a haxixe, com o peso total de 40,30g. Dentro de uma gaveta da cozinha o arguido guardava ainda u m pedaço de idêntica substância com o peso de 51,87g.
Em cima da mesa da sala da habitação o arguido tinha um pacote contendo 2,03g de uma substância que reagiu positivo a cocaína.
Consigo o arguido tinha um Iphone com o IMEI … e um Samsung Dual Sim com os IMEI … e ….
O arguido guardava ainda em casa €5770 em dinheiro.
No mesmo dia, o arguido T… tinha em sua casa, na Rua … 20,72g de uma substância que reagiu positivo a haxixe bem como um telefone Huawei, com o IMEI ….
O arguido V…, também no mesmo dia, tinha em sua casa, sita na Rua …, no interior de um armário na cozinha, uma placa de uma substância que reagiu positivo a haxixe com o peso de 91,07g e um outro pedaço de idêntica substância com o peso de 77,85g, sendo que só esta última lhe pertencia.
Na cozinha o arguido tinha duas facas, ambas apresentando vestígios de haxixe na lâmina.
O arguido guardava, escondidos numa meia dentro do roupeiro, €1290 em dinheiro e na carteira €180 em dinheiro.
Ainda no dia 9 de Março, o arguido H…, guardava em casa, sita na …, €1380 em dinheiro, um telefone Xiaomi com os IMEI … e …, um Iphone com o IMEI … e uma folha A4 contendo apontamentos manuscritos valores a quantidades medidas em g.
No automóvel com a matrícula … o arguido guardava ainda um telefone Samsung Dual Sim, com os IMEI … e ….
Tais factos indiciados são susceptíveis de configurar a prática, por parte dos arguidos V… e H… crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 25º, do DL 15/93, de 22-01, por referencia ao artigo 21º do mesmo diploma (aqui se concordando com o Ministério Publico aquando da proposta das medidas de coacção) e por parte dos demais arguidos um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22-01, e tabelas I-C e 1-B, anexas ao mesmo diploma legal (neste momento atentas as quantidades de produto de estupefaciente apreendido e o seu grau de participação).

5 - Teor do despacho recorrido quanto ao arguido T…:

«Da nulidade da busca invocado pelo arguido T…:.
A fls. 1101 foi determinado, por despacho judicial a emissão de mandados de busca às residências identificadas a fls. 1099, onde se incluí a residência do arguido T… bem como àquela onde este por vezes pernoita. Tais mandados foram emitidos por se indiciarem factos subsumíveis ao crime de tráfico de estupefaciente p.p. pelo artigo 21 do DL 15/93 de 22 de Janeiro. Nos termos do disposto no artigo 177º, n.º 1 do C.P.P as buscas só pode ser autorizada pelo Juiz e efectuada entre as 7 e às 22 horas sob pena de nulidade. Adianta o n.º 2 do citado preceito, para além do mais, que no caso da criminalidade altamente organizada e em flagrante delito pela pratica de crime punível com pena superior no seu máximo a 3 anos, as buscas poderão, também, ser realizadas entre as 21 e às 07 horas.
O crime de tráfico de estupefaciente é em abstracto considerado criminalidade altamente organizada como decorre do preceituado no artigo 1º al. m), do C.P.P
Com efeito, entende-se que in casu a busca poderia ser realizada entre as 21 horas e 07 horas.
Dos autos resulta que a busca às residências utilizadas por T… foram efectuadas, pelas 22 horas e 15 minutos e pelas 23 horas e 25 minutos, tendo-se seguido a sua detenção.
Assim, atento o supra exposto e considerando os fundamentos adiantados pelo Ministério Publico, aos quais se adere, têm-se como validamente realizada a busca decidindo-se pela improcedência da nulidade invocada.»

***

Cumpre conhecer.

B.2 – O objecto do presente recurso é de simples formulação. A questão a apreciar nesta decisão, em função das conclusões de recurso, é a de saber se o tribunal recorrido podia considerar lícita a busca policial efectuada fora das prescrições do mandado judicial emitido.

O caso encontra-se extremamente facilitado pois que a resposta ao recurso por parte do Ministério Público veio reforçar as razões aduzidas pelo recorrente. O claro abuso policial – a roçar o acinte – só o confirma. Preocupante seria que a judicatura homologasse este estado de coisas.

Comecemos pela tese do Ministério Público. Para este, o artigo 177º, nº 1 do C.P.P. é uma regra geral afastada em caso de aplicação do disposto no artigo 177º nº 2 cuja aplicabilidade está unicamente dependente da conformação do caso concreto, supondo-se até que o mandado de busca domiciliária seja dispensado em todos os casos deste nº 2. Tal é a tese do Ministério Público na sua resposta.

Daí que, no caso concreto, o agente policial que procedeu à busca era rei e senhor de determinar a forma como ocorreu a dita, de desconsiderar os termos do mandado judicial e concluir que, tratando-se de crime de tráfico de estupefacientes, entender que ao caso era aplicável o disposto na al. b) do nº 2 do preceito e, portanto, efectuar a busca quando e como entendesse.

Foi esta conduta que o despacho recorrido considerou lícita e homologou e que o Ministério Público defende na sua resposta nas suas conclusões B a E, como segue:

Os nºs 2 e 3 da referida norma prevêem excepções a essa regra geral permitindo a busca sem ordem ou autorização judicial e/ou a qualquer momento em situações em que a Lei considerou que o interesse da sociedade enquanto colectividade na perseguição criminal prevalece sobre os direitos individuais;

Trata-se de uma norma imperativa que não se encontra na disponibilidade do aplicador;

Nesse sentido depõe a letra do nº 2 ao dizer que as buscas podem ser “realizadas” entre as 21h e as 7h ao passo que o nº 1 determina que a busca “só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7h e as 21h”.

A diferença de entre os dois números, conjugada com as razões que subjazem ao regime delineado, impõe a conclusão que o Juiz de Instrução Criminal pode, fundamentadamente, autorizar ou rejeitar a realização das buscas mas não pode limitar o horário em que as mesmas são feitas, afastando a aplicação do nº 2.

A questão que se coloca – questão óbvia – é a de perguntar por que razão foi promovida pelo Ministério Público a emissão de mandados de busca domiciliária? Eram necessários face a esta tese? A resposta também é óbvia: claro que não!! A polícia, na tese do Ministério Público, basta-se a si própria.

Tratando-se de crime de tráfico de droga – em todos os casos um crime altamente organizado, como se sabe, pelo menos a crer na al. m) do artigo 1º do nosso mui sábio C.P.P. - e sabendo o Ministério Público a razão por que pedia a busca domiciliária (a prática de crimes de tráfico de droga), por que razão se não limitou a pedir à força policial que lhe fizesse o favor de efectuar a busca domiciliária quando lhe aprouvesse? Porque, seguramente, quando a força policial – o agente matriculado – chegasse à porta da residência do arguido estavam reunidos – segundo a tese - os pressupostos da busca domiciliária nos termos da al. a) do nº 2 do artigo 177º do C.P.P.. Era um crime de tráfico de droga! Indiciado talvez, mas era isso.

Temos, desta forma, uma tese que revoga a Constituição e consagra um Estado policial.

E temos, igualmente, uma judicatura que se desconsidera a si própria e que aprecia os termos de um mandado judicial de busca domiciliária, que foi incumprido, como passível de ser negado por uma conduta policial abusiva!


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B.2 – Contrariamente ao defendido pelo Ministério Público a al. a) do nº 2 do artigo 177º do Código de Processo Penal só pode ser interpretada na sequência lógica e substancial do nº 1 do preceito como a possibilidade de o juiz que determina a emissão dos mandados de busca domiciliária escolher – com os elementos que lhe são trazidos pelos autos e pela promoção do Ministério Público – que a busca se não efectue nos termos do nº 1 do preceito (entre as 7 e as 21 h) mas segundo o disposto nessa alínea a) do nº 2 (entre as 21 e as 7 h) em função das características de facto do caso concreto.

Ou seja, perante os nºs 1 e 2 do artigo 177º do C.P.P., o juiz que autoriza a busca tem a possibilidade de determinar que esta se efective ou nos termos do nº 1 (entre a 7 h e as 21 h) ou nos termos do nº 2 (entre a 21 h e as 7 h). Ou seja, o preceito completa-se em alternativa ou cumulativamente.

Será a casuística que determinará a opção do juiz na escolha entre o nº 1 e o nº 2, al. a) do artigo 177º do C.P.P..

Mas o nº 1 do preceito tem um alcance geral muito para além desta simples alternativa. É a consagração regulamentadora de um preceito constitucional claro: a busca domiciliária só pode ser autorizada ou determinada por um juiz.

A partir daqui devem ser concretas e específicas as normas que excepcionam este princípio constitucional, exemplarmente o nº 3 do artigo 177º e o nº 5 do artigo 174º do C.P.P. e nem sequer na sua totalidade.

A al. b) do nº 3 do artigo 177º do C.P.P. – que permite ao M.P e às polícias a efectivação de buscas domiciliárias entre as 7 e as 21 h - é explícita na remissão para as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 174º, abrangendo tão só o consentimento do visado e os casos de maior gravidade (“de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa”).

E nesta previsão são elucidativas duas realidades.

A primeira, a exclusão da al. a) do nº 2 do artigo 177º do código (terrorismo, ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada) da previsão do nº 3, al. b) do artigo 177º. Isso quer apenas significar que nunca o Ministério Público e as polícias podem ordenar uma busca domiciliária, mesmo nos casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, hipótese prevista nessa al. a) do nº 2 do artigo 177º do C.P.P., entre as 21 e as 7 h..

A segunda que a “nossa” busca é ilícita se a entendermos como um acto voluntarista do agente da força policial agindo para além dos termos do mandado e apenas olhando à hora a que o acto foi realizado, após as 21 h. Só o podem fazer com consentimento ou mediante flagrante delito e este, entenda-se, antes da realização da busca.

Violar o domicílio e, após, deter alguém com fundamento em flagrante delito para justificar a busca domiciliária nos termos da al. c) do nº 2 do artigo 177º do C.P.P. é um abuso que não afasta a nulidade da busca e actos subsequentes.

O que confirma a leitura de que o Juiz de Instrução que determina a busca e manda emitir os mandados pode optar – em função do caso concreto – pelo regime horário da busca, a concretizar-se num dos dois horários previstos pelo diploma (ou em ambos). Ou nos termos do nº 1, ou nos termos do nº 2, ou a qualquer tempo. É uma decisão do juiz.

E a adequação do caso concreto a um específico horário, mesmo tratando-se de tráfico de droga é uma evidência se pensarmos no domicílio de um pequeno traficante de rua de pequenas quantidades que guarda a droga enterrada no quintal ou no baldio fronteiro. Aqui não se justifica a busca nocturna.

E muitos outros casos haverá. Não se pode tratar de forma igual aquilo que em concreto é diverso apenas porque o crime – em abstracto – é qualificado como altamente organizado.

Ou seja, a norma exige uma ponderação casuística e impõe que se evite uma interpretação do processo penal à luz do administrativismo abstracto português, pai e mãe de muitos males.

Outra norma que confirma o dito e nega a interpretação veiculada pela resposta reside no artigo 174º, nº 5 do C.P.P..

Na sequência da previsão do nº 3 do artigo 174º que determina que as “revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, …” o nº 5 ressalva dessas exigências – ou seja, dispensa, no que nos interessa, a prévia intervenção judicial - as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.

Não por acaso as alíneas b) e c) deste artigo 174º, nº 5 coincidem com as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 177º do mesmo diploma. Querem apenas significar que o consentimento do visado – como é óbvio – dispensa o mandado judicial. O caso de flagrante delito – menos óbvio – também apresenta alguma justificação, não obstante a jurisprudência tender a uma interpretação laxista.

Também não é por acaso que a al. a) do preceito é diversa ao acrescentar comparativamente à al. a) do nº 2 do artigo 177º a elucidativa expressão quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa.

A diferença para a norma contida no artigo 177º, nº 2 al. a), sendo muito reveladora, só se justifica dada a urgência da resposta policial. Essa urgência fica muito clara e muito esclarecedora do alcance da al. a), do nº 5 do artigo 174º quando analisamos o caso Gäfgen do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Respingamos de um nosso estudo os factos pertinentes do caso:

«J, de doze anos de idade, filho mais novo de uma família de banqueiros de Frankfurt am Main foi morto em 27 de Setembro de 2002 por M. Magnus Gäfgen (o acusado), estudante de direito, depois de este o ter atraído ao seu apartamento com o pretexto de que a irmã daquele ali havia deixado uma peça de roupa.

De seguida Magnus Gäfgen depositou uma carta na residência dos pais de J informando-os que este havia sido raptado por várias pessoas e que não voltariam a ver o seu filho se não entregassem um milhão de euros aos raptores. Magnus Gäfgen dirigiu-se, então, de viatura para um lago situado numa propriedade privada, a cerca de uma hora de Frankfurt onde dissimulou o corpo num cais ali existente.

A 30 de Setembro de 2002, pela uma hora da manhã, Gäfgen apoderou-se do dinheiro do resgate numa estação de eléctricos, momento em que passou a ser vigiado pela polícia. Veio a depositar parte do dinheiro do resgate numa sua conta bancária e ocultou o restante no seu apartamento. Nesse mesmo dia foi detido pela polícia no aeroporto de Frankfurt. (…)

E e D (agentes de polícia) agiram no convencimento de que J ainda estava vivo, pretendendo salvá-lo o mais rapidamente possível atendendo ao frio que se fazia sentir.»

In “Em Busca da Regra Mágica - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a universalização da regra de exclusão da prova - o caso Gäfgen v. Alemanha”, in Julgar nº 11, Maio-Agosto de 2010, ponto 3, pags. 31 e 32, in http://julgar.pt/em-busca-da-regra-magica-o-tribunal-europeu-dos-direitos-do-homem-e-a-universalizacao-da-regra-da-exclusao-da-prova/

É para casos deste jaez que a norma existe, permitindo-se às forças policiais terem as mãos livres – estão dispensadas de obter mandado judicial - para salvar vidas desde que para tanto existam os indícios.

Fora desse condicionalismo de perigo na demora a al. a) do nº 2 do artigo 177º não permite a busca domiciliária sem mandado judicial. É uma evidência.

O que é confirmado pela previsão do artigo 251.º, nº 1, al. a) do C.P.P. quando afirma que, “para além dos casos previstos no n.º 5 do artigo 174.º, os órgãos de polícia criminal podem proceder, sem prévia autorização da autoridade judiciária … à revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontrarem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se”.

Isto é, mesmo no caso de receio de perda de prova a busca domiciliária é sagradamente judicial.


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B.3 – O caso dos autos é claro quanto ao desprezo a que foram votados os termos do despacho e do mandado de busca domiciliária.

Isto sem perdermos tempo a analisar o auto de busca – omisso quanto a qualquer causa explicativa para que a busca se tivesse iniciado às 22 h e 15 m – mas é preocupante que se junte certidão a atestar que nada foi apreendido de ilícito quando se apreenderam 20,72 g de haxixe.

É claro que os mandados poderiam, para um maior clareza dos seus requisitos de cumprimento, vir com uma clara indicação do horário possível para a realização da busca.

Mas também é certo que as forças policiais têm conhecimento do texto do artigo 177º do C.P.P. sendo fácil inferir que se os mandados são emitidos exclusivamente nos termos do nº 1 do artigo 177º o horário correspondente e, portanto, autorizado, é entre as 7 e as 21 horas.

Aqui não se trata de caso de discrepância entre o despacho judicial e o teor dos mandados de busca (nosso relato no acórdão desta Relação de 16 de Fevereiro de 2016 no proc. nº 235/14.9JELSB) em que a decisão judicial autorizava a busca nos termos dos ns. 1 e 2 do artigo 177 e os mandados a restringiam ao período diurno, sendo a busca efectuada de acordo com o teor do despacho judicial mas em desconformidade com o mandado, vício invocável no acto e sanável.

Aqui existe conformidade entre o despacho judicial e os mandados, sendo a violação de ambos uma evidência. E a nulidade outra evidência que deve ser declarada.

Tendo em mente os direitos fundamentais de reserva da intimidade da vida privada e familiar e da inviolabilidade do domicílio (artigos 26º, nº 1 e 34º da Constituição da República Portuguesa), tendo presentes os artigos artigo 12.º do DUDH (“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei) e artigo 8.º, n.º 2, do CEDH (“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência) resta concluir que tais normativos foram postos em causa no caso sub iudicio.

Será, portanto, caso de aplicação do disposto no nº 3 do artigo 126º do Código de Processo Penal que determina que “ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.

Os factos relativos à busca realizada e que dizem respeito à residência do arguido T… são claros. Foram apreendidos 20,72 gramas de haxixe e um telemóvel.

Sendo nula a busca e pelo correspondente efeito à distância é nula a prova obtida na sua sequência, incluindo a droga e a adquirida no telemóvel.

Considerando os factos imputados ao arguido (No mesmo dia, o arguido T… tinha em sua casa, na …, 20,72g de uma substância que reagiu positivo a haxixe bem como um telefone Huawei, com o IMEI …), cessa a medida de coação imposta por tais factos, sem prejuízo de o tribunal recorrido poder decidir como lhe aprouver relativamente a diversos factos imputados.

Sendo este o único fundamento de recurso este é procedente na totalidade.


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Dispositivo

Em face do exposto acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em dar provimento ao recurso interposto pelo arguido.

Sem tributação.

Notifique (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 24 de Setembro de 2019

João Gomes de Sousa

António Condesso