Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
288/11.1TASTR.E1
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
UNIDADE DE RESOLUÇÃO
VALOR ATENDÍVEL
Data do Acordão: 12/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I. Condenado o arguido pela prática de um único crime de abuso de confiança fiscal (embora traduzido numa pluralidade de acções naturalísticas), o valor a atender para integrar a sua conduta no nº 1 ou no nº 5 do artº 105º do RGIT é o correspondente ao somatório de toda a actividade.[1]
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. No processo comum singular que, com o nº 288/11.1TASTR, corre termos no 2º Juízo Criminal de Santarém, os arguidos FG, JH, JP e Sociedade..., Ldª, todos com os demais sinais dos autos, foram julgados pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p.p. pelos artºs 107º e 105º, nº 5 do RGIT, tendo os três primeiros sido condenados na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, sob condição do pagamento, nesse prazo, da quantia de € 91.092,50 ao Instituto de Segurança Social, IP, com juros de mora à taxa legal, e a arguida sociedade condenada na pena de 500 dias de multa, à taxa diária de € 7,00; na procedência parcial do pedido cível, foram todos os arguidos condenados solidariamente a pagar ao ISS, IP a quantia de € 89.988,74, acrescida de juros de mora à taxa legal.

Inconformados, recorreram os arguidos FG, JH e JP, extraindo da sua motivação conjunta as seguintes conclusões (transcritas):

«1- Os arguidos vêm condenados, pelo Tribunal a quo, pela prática, cada um, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º do RGIT por referência ao artigo 105.° n.º 5 do RGIT, na pena de 18 meses de prisão, suspensa a sua execução, por igual prazo, sob condição de pagamento das contribuições em falta, num total de 91.092,50 €.

2- Foram, ainda, condenados na instância cível, no pagamento do montante de 89.988,74 €, acrescidos dos juros de mora à taxa legal em vigor.

3- Na verdade, como resulta do ponto 4 da factualidade dada por provada, o montante das contribuições retidas e constantes de cada declaração mensal não ultrapassa o montante de 50.000 €, pelo que, a condenação da conduta dos arguidos deveria ter sido enquadrada juridicamente no n.º 1 do artigo 105º (ex vi artº 107º, nº 1) do RGIT e não no n.º 5 do mesmo preceito legal, uma vez que nos termos do n.º 7 (também aplicável ex vi n.º 2 do 107.° do RGIT) prevê-se que “para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à Administração Tributária”.

4- O n.º 1 do artigo 105º do RGIT, prevê, para as pessoas singulares, urna moldura penal aplicável de pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, ao invés daquele outro preceito legal onde se prevê apenas a aplicação da pena de prisão.

5- A conduta dos arguidos consubstancia a omissão de entrega de montantes relativos a contribuições à Segurança Social retidas mensalmente das remunerações dos trabalhadores, as quais, segundo a legislação aplicável, devem ser declaradas e entregues nos cofres da Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que respeita.

6- No nosso caso em concreto os valores das contribuições retidas não excede o montante de 50.000 € mensal, pelo que, chegados à conclusão que a conduta dos arguidos deverá ser enquadrada no n.º 1 do artigo 105º do RGIT, importa proceder à escolha e determinação da medida da pena aplicável e adequada a essa conduta.

7- Em face da factualidade que ficou provada (que não é posta em causa neste recurso) e às finalidades de prevenção a pena de multa mostra-se suficiente, para dar satisfação às finalidades retributiva, restaurativa e ressocializadora da pena.

8- No que respeita à medida concreta da pena, muito embora o artigo 13.° do RGIT faça ter em consideração o prejuízo causado pelo crime, deverá aplicar-se, subsidiariamente o artigo 71.° do Código Penal que manda ter em consideração o grau de ilicitude dos factos, o modo e circunstâncias da sua execução e valor do prejuízo causado (€ 91.092,50 mas num período temporal compreendido entre Junho de 2003 a Agosto de 2010, portanto, 7 anos); as exigências preventivas gerais são de relevo, face à necessidade de manutenção da confiança nas normas legais, que protegem a entrega das contribuições devidas à Segurança Social; as atenuantes: 2 dos arguidos já são reformados, e um encontra-se de baixa médica devido a doença causada na sua profissão de marceneiro e sempre foram pessoas de trabalho, não havendo também perigo para o cometimento do mesmo crime, não tem antecedentes criminais, as circunstâncias em que as condutas foram levadas a cabo, num enquadramento de dificuldades económicas da empresa; as condições económicas dos arguidos, os quais recebem pensões sociais de valores perto do salário mínimo nacional, parte dos quais está penhorada.

9- Por outro lado, deveriam os arguidos terem sido absolvidos da instância cível, por força da exceção do caso julgado, tendo em conta que o demandante Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP já fez reverter contra os arguidos os processos executivos, através dos quais está a proceder à cobrança coerciva das dívidas da sociedade, também arguida, “xxx.Ldª” (artº 23 da LGT), conforme Citações que fizeram juntar aos autos a fls., no seu requerimento de 10/2/2012, sendo já detentor de títulos executivos, com os quais já instaurou o meio processual, judicial, idóneo à cobrança da dívida (execução Fiscal).

10- Assim sendo, e salvo melhor opinião, verifica-se a excepção do CASO JULGADO, não sendo necessário obter nova sentença, que reconheça os seus créditos (dividas e juros), para os processos executivos (artigos 493º e 494º alínea i) do CPC).

11- Em face do exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que qualifique a conduta dos arguidos nos termos do artigo 105º nº 1 do RGIT, ex vi artigo 107° do RGIT, aplique a pena de multa em alternativa à pena de prisão, absolvendo os arguidos do pedido de indemnização cível, por força do caso julgado».

Respondeu o Digno Magistrado do MºPº, pugnando pela improcedência do recurso.

No mesmo sentido vai o parecer da Exmª Procuradora-Geral Adjunta, nesta Relação. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta.

II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP [2] - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se

a) a apurada conduta dos arguidos é subsumível na previsão legal do nº 1 do artº 105º do RGIT, mas não na do nº 5 do mesmo dispositivo?

b) aos arguidos deve ser aplicada pena de multa, que não pena privativa de liberdade?

c) verifica-se a excepção de caso julgado, no que ao pedido cível diz respeito?

O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos (os quais temos por assentes, posto que a matéria de facto não se mostra impugnada no recurso, sendo certo que não vislumbramos na sentença recorrida qualquer dos vícios a que alude o artº 410º, nº 2 do CPP):

1.- A primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas com o número de identificação fiscal 501489266, tem por objecto social a actividade de fabrico e comercialização de artigos de madeira e silvicultura, e tem sede ...., Pernes.

2.- Desde a sua constituição que a gerência da sociedade é exercida pelos arguidos FG, JH e JP.

3.- Em Junho de 2003 os arguidos, de comum acordo, resolveram proceder ao pagamento dos salários aos trabalhadores e das remunerações aos membros dos órgãos estatutários, proceder à dedução e retenção das respectivas contribuições à Segurança Social devidas pelo pagamento desses salários e remunerações, e não proceder à entrega de tais quantias à Segurança Social, combinando fazer suas e da sociedade xxx essas importâncias.

4.- Assim, durante Junho de 2003 a Agosto de 2010, os arguidos pagaram um total de € 882.305,64 de remunerações aos trabalhadores e membros de órgãos estatutários e retiveram a quantia total de € 91.092,50 a título de contribuições para a Segurança Social da seguinte forma:

MÊS REMUNERAÇÕES CONTRIBUIÇÕES NÃO PAGAS
Jun. a Dez. 2003 € 96.969,00 € 9.863,65
Jan. a Dez. 2004 € 138.053,68 € 14.840,01
Jan. a Set. e Dez. 2005 € 110.139,97 € 11.825,73
Jan. a Dez. 2006 € 140.449,25 € 15.062,75
Jan. a Dez. 2007 € 135.008,73 € 14.460,96
Jan./Ag., Out. e Nov. 2008 € 111.38417 € 9.672,93
Jun. a Dez. 2009 € 81.576,37 € 7.810,78
Jan. e Mar./Ag. 2010 € 68.724,47 € 7.555,69
TOTAL € 882.305,64 € 91.092.50

5.- No referido período de Junho de 2003 a Agosto de 2010, os arguidos FG, JH e JP procederam ao pagamento de salários aos trabalhadores da arguida xx, Lda, bem como das remunerações aos membros dos órgãos estatutários, no valor total de 882.305,64 e retiveram a quantia total de € 92.571,41 deduzida dos salários e remunerações pagos, nos termos indicados no artigo n.º 4.

6.- Os montantes referidos e respeitantes a contribuições devidas à Segurança Social foram efectivamente deduzidos e retidos mas não foram entregues à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte ao processamento das respectivas retenções, nem foi regularizado o pagamento nos 90 dias seguintes, nem até à presente data, antes se apropriando de tais quantias gastando-as em seu proveito e em proveito da sociedade xxx, Lda, sabendo que as mesmas não lhes pertenciam.

7.- Os arguidos foram notificados para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento da quantia em dívida a título de contribuições para a segurança social, acrescida de juros de mora respectivos, nos termos do disposto no art. 105° n.º 4 al. b) do RGIT, pagamentos que não foram efectuados.

8.- Os arguidos, que agiram em conjugação de esforços e intenções, sabiam que ao procederem à dedução e retenção das quantias para a Segurança Social nos salários e remunerações pagos deviam entregar tais quantias à Segurança Social, e mesmo assim quiseram utilizar as quantias retidas em seu proveito próprio e da sociedade arguida, o que fizeram.

9.- Os arguidos actuaram de forma deliberada e consciente, sabendo que praticavam actos proibidos e punidos por lei.

10.- A sociedade Arguida SOCIEDADE xxx, Lda., no período temporal atrás referido passava por dificuldades económicas, tendo entretanto cessado a sua actividade e sido declarada insolvente.

11.- A co-arguida xxx, Lda., ao longo dos últimos anos de actividade enfrentou graves dificuldades económicas, provocadas pela diminuição da procura, diminuição das vendas e consequentemente a diminuição da libertação de fluxos financeiros que lhe permitissem solver os seus compromissos quer junto da Banca e dos seus fornecedores, quer junto do sector público estatal.

12.- O arguido FG é reformado, auferindo mensalmente cerca de 500 euros de reforma 258 dos quais penhorados.

13.- O arguido FG é casado, vivendo com sua mulher e um filho em casa executada.

14.- O arguido JH é reformado, auferindo mensalmente cerca de 500 euros de reforma 33 dos quais penhorados.

15.- O arguido JH é casado, vivendo com sua mulher em casa executada

16.- O arguido JP é casado, sendo sua esposa cabeleireira, é marceneiro encontrando-se de baixa médica, auferindo uma prestação social de cerca de 582 euros e vive em casa penhorada e tem um filho de 21 anos de idade estudante.

17.- A mulher do arguido aufere mensalmente no exercício da sua actividade profissional cerca de 480 euros mensais.

18.- O certificado de registo criminal do Arguido FG, datado de 11/1/2012, não insere qualquer condenação sua conforme documento junto a folhas 545, cujo teor se dá por reproduzido.

19.- O certificado de registo criminal do Arguido JH, datado de 11/1/2012, não insere qualquer condenação sua conforme documento junto a folhas 546, cujo teor se dá por reproduzido.

20.- O certificado de registo criminal do Arguido JP, datado de 11/1/2012, não insere qualquer condenação sua conforme documento junto a folhas 547, cujo teor se dá por reproduzido.

21.-As importâncias supra referidas em ainda não foram pagas à Segurança Social.

O tribunal recorrido, no que ao factualismo não provado diz respeito, consignou o seguinte:

«Não se provou que os arguidos não se apropriaram, quer para si quer para a sociedade, dos montantes de cotizações constantes na douta acusação, sendo que as mesmas resultam de retenções que formalmente efectuaram nos recibos de vencimento dos trabalhadores e que não correspondem a valores que na prática tenham ficado na sua posse».

III. Decidindo:

a) A apurada conduta dos arguidos é subsumível na previsão legal do nº 1 do artº 105º do RGIT, mas não na do nº 5 do mesmo dispositivo?

Entendem os recorrentes que o montante de cada contribuição retida e constante de cada declaração mensal não ultrapassa os 50.000 euros, razão pela qual não havia razão para integrar a conduta dos arguidos no nº 5 do artº 105º do RGIT, antes e tão-só no nº 1 do mesmo preceito, porquanto nos termos do nº 7 desse artigo, “para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

Não tem razão, como nos parece evidente.

Os arguidos não foram condenados pela prática de 77 crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social (tantos quantos os meses em que se processou a retenção de contribuições posteriormente não entregues). Tão-pouco foram condenados pela prática de um crime continuado de abuso de confiança. Bem distintamente, foram condenados pela prática de um único crime de abuso de confiança, porquanto se provou que agiram no âmbito de uma mesma e única resolução criminosa.

Como é sabido, estatui-se no nº 1 do artº 30º do Cod. Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

A este propósito, anota o Cons. Maia Gonçalves, “Código Penal Português anotado e comentado”, 8ª ed., 268: “perfilha-se o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa.”

Segue-se de perto, em tal anotação, a lição do Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, II, 1971, p. 197 e segs).

Rejeita o Mestre, como é sabido, a teoria naturalística da infracção, segundo a qual determinar o número de crimes praticados pelo agente seria o mesmo que saber em quantas acções se pode dividir a conduta. E aponta, de forma inequívoca, para uma teoria jurídica, de que resulta que o número de infracções se determina pelo número de valorações que, no mundo criminal, correspondem a uma certa actividade. Daí que “se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção” - op. cit., 201.

Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se - assim - como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.

Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa.

Essencial para tal determinação será, sempre, a conexão temporal que liga as várias condutas do agente.

Daí que “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação” - autor e op. cit., 202.

Ora, provado ficou (ponto 3 da matéria de facto assente) que em Junho de 2003, os arguidos, de comum acordo, “resolveram proceder ao pagamento dos salários aos trabalhadores e das remunerações aos membros dos órgãos estatutários, proceder à dedução e retenção das respectivas contribuições à Segurança Social devidas pelo pagamento desses salários e remunerações, e não proceder à entrega de tais quantias à Segurança Social, combinando fazer suas e da sociedade X essas importâncias”. E foi em execução dessa mesma resolução que nos meses (e anos) seguintes procederam à dedução das contribuições, não as entregando à Segurança Social, fazendo-as suas.

E perante tal factualismo, o tribunal recorrido não teve dúvidas em que o mesmo integrava a prática de um (único) crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social.

Dúvidas sobre tal qualificação jurídica também não tiveram os arguidos que, neste recurso, a não questionaram.

Dito de outra forma: os arguidos/recorrentes querem Sol na eira e chuva no nabal: de um lado, aceitam de bom grado que uma actuação que se estendeu por 7 anos e se concretizou em 77 distintas acções naturalísticas tivesse sido qualificada como um único crime; de outro, pretendem que para efeitos de moldura penal, tais acções naturalísticas assumam relevância (a mesma relevância que lhes foi negada para efeitos de qualificação jurídica).

É bom, mas nem sempre possível, ter o melhor de dois mundos: ou bem que as condutas dos arguidos integram a prática de 77 crimes de abuso de confiança [3] e, nesse caso, faz sentido o apelo que os recorrentes fazem aos diversos montantes mensais retidos; ou bem que tais condutas integram um único crime (posto que praticadas no âmbito de uma mesma resolução criminosa) e, então, o valor retido a considerar é, necessariamente, o resultante do somatório de toda a actividade (porque só uma há que considerar, de um ponto de vista jurídico) [4
].
E assim sendo, considerando que o valor da entrega não efectuada foi bem superior a € 50.000, censura alguma merece a sentença recorrida ao considerar que os factos apurados integram a prática, pelos arguidos, do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p.p. pelos artºs 107º e 105º, nºs 1 e 5 do RGIT.

Nesta parte improcederá, pois, a pretensão dos recorrentes.

b) Aos arguidos deve ser aplicada pena de multa, que não pena privativa de liberdade?

Esta pretensão dos recorrentes, como é bom de ver, pressupunha a procedência da anterior.

Improcedente a mesma, carece de fundamento a peticionada aplicação da regra contida no artº 70º do Cod. Penal, porquanto o crime cometido pelos arguidos é punido, no que às pessoas singulares diz respeito, apenas com pena privativa de liberdade.

c) Verifica-se a excepção de caso julgado, no que ao pedido cível diz respeito?

Afirmam os recorrentes que o IGFSS, IP, já fez reverter contra os arguidos os processos executivos, “através dos quais está a proceder à cobrança coerciva das dívidas da sociedade (…) sendo já detentor de títulos executivos (…)” – concl. 9ª – assim se verificando a excepção de caso julgado – concl. 10ª.

Não têm, mais uma vez, razão.

A reversão alegada pelos recorrentes não consta do rol dos factos apurados nestes autos.

De outro lado, nem sequer é certo que a reversão documentada a fls. 576 e segs. diga respeito, ou abranja, as contribuições elencadas no ponto 4 da matéria de facto, atenta a diferença entre os valores constantes desse ponto 4 e dos documentos de fls. 576 e segs.

Seja como for, isto é, ainda que se entenda que o demandante dispõe de título executivo contra todos os arguidos, ainda assim não haveria fundamento para a rejeição do seu pedido cível.

No seu acórdão de 30/6/2004, esta Relação de Évora (em acórdão relatado pelo aqui também relator, www.dgsi.pt., ou CJ ano XXIX, T. III, 265) decidiu já que “não temos grandes dúvidas de que aquilo que de uma forma directa, imediata, principal, se tutela no tipo legal de crime p. e p. no artº 107º, nº 1 do RGIT é o interesse do Estado na boa cobrança das receitas que lhe permitem sustentar o sistema de segurança social e, de alguma forma, também um interesse (ainda estatal, comunitário) na justiça e na equidade contributivas: sendo as prestações contributivas dos trabalhadores uma das várias fontes de receitas do orçamento da segurança social, a não entrega pontual das mesmas determinará um maior esforço contributivo das outras fontes de receitas, fazendo recair sobre terceiros cumpridores os efeitos negativos do incumprimento de alguns devedores”. E porque assim é, não sendo o direito do ISS a receber as prestações contributivas dos trabalhadores “o interesse particularmente tutelado na norma penal em referência, encontra-se mediatamente protegido na mesma: daí que lhe seja lícito, enquanto lesado, isto é, prejudicado no seu património com a prática do crime, deduzir o competente pedido cível, no âmbito de processo penal instaurado”.

Mais recentemente, esta Relação de Évora reapreciou a mesma questão no seu Ac. de 22/11/2011 (proc. 405/09.1TATVR.E1), com o mesmo relator. E aí se escreveu: “A responsabilidade tributária dos gerentes é subsidiária em relação à da sociedade (artº 24º, nº 1 da Lei Geral Tributária). Diversamente, a responsabilidade dos demandados, responsáveis civilmente nos termos do artº 483º do CC, é solidária (artº 497º, nº 1 do mesmo diploma legal). E, obviamente, é diferente poder executar directamente o património de cada um dos gerentes, sem que a estes seja lícito sequer opor o benefício da divisão ou só poder executar tal património após a demonstração da insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal (artº 23º, nº 2 da LGT). Mais: o responsável subsidiário fica isento de juros de mora se, citado para cumprir a dívida tributária principal, efectuar o respectivo pagamento no prazo de oposição – nº 5 desse artº 23º o que, naturalmente, não sucede com o civilmente responsável (referimo-nos, obviamente, à responsabilidade civil emergente de crime).

Os demandados cíveis destes autos foram condenados no pagamento ao demandante de determinada quantia, não por serem devedores tributários, antes porque praticaram um crime; a sua responsabilidade, apurada nestes autos, não tem natureza tributária, antes tem natureza civil, mais concretamente pela prática de factos ilícitos”.

Na realidade, como bem se decidiu no Ac. RP de 22/6/2011 (rel. Melo Lima), www.dgsi.pt., “a responsabilidade civil emergente para os demandados cíveis deriva, tem sua causa petendi, na prática de um facto penalmente ilícito. Se o inadimplemento da obrigação tributária pode preencher e ficar-se pelo mero incumprimento da obrigação fiscal, certo é também que este mesmo incumprimento pode assumir, verificados que se mostrem os respectivos elementos do tipo-do-ilícito, a natureza de facto penalmente ilícito.

Assim: uma coisa é a responsabilidade meramente tributária pelo cumprimento da dívida tributária – responsabilidade que, como se deixa referido, pode, nos termos da LGT (supra) abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas –; outra coisa, diferente, é a responsabilidade subjectiva, aquiliana ou por facto ilícito, por cujos danos são
solidariamente responsáveis os co-autores da prática do crime. A qualificação como crime do acto do agente - que, não cumprindo a obrigação da entrega à Segurança Social dos valores apurados e efectivamente percebidos, desvia e passa a agir uti dominus relativamente ao que recebera uti alieno -, confere uma substancial especificidade à causa de pedir do enxerto cível: o facto jurídico concreto que enforma esta não se identifica com o mero incumprimento de uma obrigação fiscal, antes com o incumprimento enquanto portador dos elementos objectivo-subjectivos de um determinado tipo-do-ilícito, o abuso de confiança contra a Segurança Social. (…)

Destarte: que o Estado se acautele providenciando pela forma mais adequada à realização do seu desiderato (direito/dever) de ver integrado no seu património - Segurança Social, incluída - o que lhe é devido, não há repetição de causa e de efeito jurídico pretendido, há diversidade de meios por que pode optar. (…) Seguramente, porém: nem é suposto que o Estado vá cobrar duas vezes o que lhe é devido (é de presumir o Estado como pessoa de bem), muito menos é suposto que os demandados neste processo, se disponham a pagar o que está pago e que, sabendo estar pago, deixem de invocar a exceptio adimpleti – aqui ou ali, tanto faz - do que era devido ao Fisco ou à Segurança Social”.

É entendimento que subscrevemos na íntegra e que temos por maioritário na jurisprudência dos nossos tribunais superiores [a título meramente exemplificativo, cfr. Acs. RP de 23/2/2011, de 23/11/2011 (rel. Élia São Pedro) e de 13/6/2012 (rel. Eduarda Lobo), RC de 13/6/2007 (rel. Jorge Dias), 28/5/2008 (rel. Alberto Mira) e 11/2/2009 (dois arestos, um relatado pela Des. Alice Santos, outro pelo Des. Jorge Dias), da RG de 19/7/2007, (rel. Estelita de Mendonça) e de 23/11/2009 (rel. Cruz Bucho) e da RE de 27/9/2011 (rel. Edgar Valente)].

Inexiste, pois, qualquer impedimento à dedução e apreciação do pedido cível dos autos.

Obviamente, na liquidação do montante em cujo pagamento os arguidos foram condenados levar-se-á sempre em conta a quantia que entretanto já tiver sido paga, posto que, como se lembra no Ac. RP de 22/6/2011 (rel. Melo Lima), acima referido, presumindo o Estado como pessoa de bem, não é suposto que o mesmo vá cobrar duas vezes aquilo que lhe é devido.

Improcede pois mais esta pretensão dos recorrentes.

IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando inteiramente a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um em 4 UC’s (artº 513º, nºs 1 e 3 do CPP).

Évora, 20 de Dezembro de 2012 (processado e revisto pelo relator)

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Sénio Manuel dos Reis Alves
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Gilberto da Cunha

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[1] - Sumariado pelo relator.

[2] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).

[3] A figura do crime continuado está, aqui, naturalmente arredada, posto que os autos não evidenciam qualquer circunstancialismo exterior facilitador da conduta e que, por isso, diminua consideravelmente a culpa dos agentes – artº 30º, nº 2 do Cod. Penal.

[4] Cfr., neste sentido, o Ac. RP de 18/2/2009 (rel. Artur Oliveira), www.dgsi.pt : “Sendo várias as não entregas de prestações tributárias deduzidas ou liquidadas e tendo elas ocorrido no âmbito de uma só e mesma resolução criminosa, o valor a considerar para o efeito do art. 105º, nº 1, do RGIT é o global”.