Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
569/15.5T8LAG.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em regra, o regime legal de resolução do contrato não é imperativo, antes podendo ser afastado por estipulação das partes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 569/15.5T8LAG.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Lagos


Relatório

Banco (…) Portugal, SA propôs a presente acção declarativa comum contra (…), pedindo a condenação deste a:

a) Restituir à autora, a título definitivo, o veículo automóvel locado;

b) Pagar à autora o valor de € 1.568,70 a título de prestações vencidas e não pagas desde 25.03.2014 até 25.05.2014, acrescido de juros de mora à taxa legal desde as datas dos respectivos vencimentos até efectivo pagamento;

c) Pagar à autora € 1.457,60 a título de indemnização por lucros cessantes;

d) Pagar à autora € 62,46 a título de notas de débito datadas de 28.03.2014, 29.04.2014 e 28.05.2014;

e) Pagar à autora € 37.76 a título de juros de mora calculados à taxa comercial contabilizados até ao dia 22.06.2014;

f) Pagar à autora € 296,39 a título de juros de mora, calculados à taxa comercial de 7,25%, 7,15% e 7,05%, contabilizados desde 23.06.2014 até 02.11.2015;

g) Pagar à autora, como indemnização pela não restituição atempada da viatura objecto do contrato de aluguer n.º (…), a quantia de € 7.194,91, contabilizada até 29.10.2015, acrescida da quantia mensal de € 423,23 por cada mês que decorrer entre aquela data e a efectiva restituição do bem.

O réu foi citado editalmente e não contestou.

Citado nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do CPC, o Ministério Público não contestou.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 1.568,70, relativa às rendas vencidas, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada renda, no final do mês a que respeita e até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.

A autora recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

- O recorrente e o recorrido celebraram o contrato de aluguer n.º (…), junto aos autos como doc. 1, tendo acordado, na cláusula 8.ª das condições gerais do mesmo, que “O incumprimento pelo Locatário de qualquer das obrigações assumidas no presente Contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pela Locadora, tornando-se efectiva essa resolução à data da notificação pela Locadora ao Locatário de comunicação fundamentada, nesse sentido”.

- Mais, nos termos do n.º 1 da cláusula 17.ª das condições gerais do contrato, ficou acordado entre as partes que “(…) quaisquer comunicações a serem efectuadas ao abrigo deste contrato, serão expedidas para o endereço das partes que figuram nas Cláusulas Particulares deste contrato”.

- Dispondo o n.º 2 da mesma cláusula que: “(…) em caso de litígio, as partes convencionam expressamente que o local onde se consideram domiciliadas, para efeitos de citação ou de notificação, é o endereço que se encontra nas Cláusulas Particulares deste contrato, excepto se o Locatário tiver notificado o Locador, mediante carta registada com aviso de recepção, da alteração do local do domicílio nos 30 dias subsequentes à respectiva superveniência”.

- Ora, não tendo sido notificado de nenhuma alteração de morada por parte do recorrido, o recorrente enviou a carta de resolução registada e com aviso de recepção para a morada que as partes convencionaram e que consta da condições particulares do contrato, agindo sempre de boa-fé e cumprindo o contratado entre as partes, conforme doc. 4 junto aos autos.

- Quanto a esta matéria, dispõe o artigo 224.º do Código Civil, sob a epigrafe “Eficácia da declaração negocial”, que:

“(n.º 1) - A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder (...);

(n.º 2) - É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”).”.

- Ora, atendendo que o contrato aqui em discussão é um contrato de prestações periódicas, em que todos os meses, durante 6 anos, o recorrido procedeu à liquidação das mesmas, era do seu pleno conhecimento que o incumprimento da obrigação de pagamento dos alugueres iria culminar na resolução do mesmo.

- Mais, era do conhecimento do recorrido que estas diligências implicavam, necessariamente, o envio de uma carta de resolução para por fim ao mesmo, porquanto o mesmo declarou “conhecer e aceitar as Cláusulas Particulares e Gerais constantes do presente contrato de Aluguer de Longa Duração, das quais teve prévio, integral e atempado conhecimento e que lhe foram prestadas as necessárias informações sobre o conteúdo e alcance das mesmas (…)”.

- Não obstante o exposto e como decorre da petição inicial, o recorrido nunca contactou o recorrente para proceder ao pagamento, nem tão pouco o informou que não recebeu nenhuma carta.

- Em suma se conclui que a possível não recepção da carta de resolução, terá que ser obrigatoriamente imputada ao recorrido, porquanto a omissão de qualquer comportamento com vista ao cumprimento das obrigações a que estava adstrito, revela, evidentemente, que a eventual não recepção se deve única e exclusivamente a culpa sua.

- Com efeito, o caso em apreço consubstancia uma das situações que o legislador quis abarcar no n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil ao considerar eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi recebida.

- O tribunal “a quo” considerou a formulação da cláusula 8.ª do contrato “genérica e desprovida da necessária concretização (…)”.

- Ora, salvo o devido respeito, o recorrente não pode deixar de tecer algumas considerações relativamente a este assunto uma vez que o tribunal limitou-se a fazer uma leitura isolada da cláusula 8.ª do contrato, ao invés de uma interpretação sistemática do mesmo.

- Ao longo de todo o contrato, verifica-se um conjunto de obrigações contratuais a que o locatário está adstrito, i.e., pagamento do aluguer mensal; utilização normal e prudente do veículo; responsabilidade pelas deteriorações e transgressões; obrigação de efectuar a inspecção periódica obrigatória; restituição do veículo findo o contrato; pagamento do seguro; etc.

- Ora, estando elencadas todas as obrigações ao longo do contrato, discriminadas cláusula por cláusula, seria, no mínimo, inútil a repetição de todas as obrigações do locatário na cláusula 8.ª, designada por “Resolução e Denúncia”.

- É por demais evidente a que obrigações a cláusula 8.ª se refere porquanto estas decorrem da análise do contrato no seu global, encontrando-se devidamente especificadas e concretizadas.

- Em suma, perante o incumprimento da obrigação que decorre da cláusula 4.ª das condições gerais do contrato – pagamento dos alugueres (facto aliás que o tribunal “a quo” deu como provado), o recorrente procedeu à resolução do contrato.

- Não é verdade que o recorrido não tenha sido interpelado para pôr termo à mora porquanto, para além do depoimento prestado pela testemunha, decorre do texto da carta enviada a 23 de Junho de 2014 (junta como doc.4 da petição inicial) que o recorrente diligenciou diversas vezes junto do recorrido para regularizar os valores em dívida.

- Não obstante as referidas diligências para pôr termo à mora, nunca o recorrido liquidou os alugueres em dívida.

- Sem prejuízo, sempre será aplicável à situação sub judice o disposto no artigo 781.º do Código Civil, sob a epígrafe “Dívida liquidável em prestações”, que dispõe: “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

- Decorre da simples leitura deste artigo que a falta de uma única prestação implica para o recorrido a perda do benefício do prazo que lhe foi concedido, podendo o recorrente, sem prévia interpelação, solicitar o pagamento da totalidade da dívida.

- Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12/02/2002, do qual resulta que “O vencimento imediato de todas as prestações ainda em dívida por falta de pagamento de uma delas, é justificado com a quebra da relação de confiança em que assenta o plano de pagamento calendarizado.”.

- No entanto e ainda que não se entendesse que o recorrente pôs fim à mora, o contrato em apreço é um contrato de prestações periódicas, cuja data de vencimento era o dia 25 de cada mês, logo, continha um prazo certo para o seu pagamento.

- Ora, dispõe a al. b) do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil que há mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo.

- Com efeito, o recorrido não se encontrava em mora mas sim em verdadeiro incumprimento definitivo, não só como decorre da carta de resolução enviada, mas também nos termos da al. b) do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso

Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

- Se o contrato celebrado entre recorrente e recorrido foi validamente resolvido;

- Na hipótese afirmativa, quais são as consequências jurídicas dessa resolução.


Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. O autor é uma sociedade comercial que tem por objecto, entre outros, a celebração de contratos de aluguer de longa duração;

2. No exercício da sua actividade, o autor celebrou com o réu o contrato de aluguer n.º (…), dele constando, entre as demais cláusulas, o seguinte teor:

- Cláusula oitava, nº 1: “o incumprimento pelo locatário de quaisquer das obrigações assumidas no presente contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pela locadora, tornando-se efectiva essa resolução à data da notificação pela locadora ao locatário de comunicação fundamentada nesse sentido”;

- Cláusula oitava, nº 3: “a resolução por incumprimento não exime o locatário da restituição do bem e do pagamento de quaisquer dívidas vencidas para com a locadora, do pagamento da reparação de danos que o veículo apresente da responsabilidade do locatário e ainda de uma indemnização por lucros cessantes correspondentes a 25% do somatório dos alugueres vincendos e do valor relativo ao preço de compra mencionado no número um do contrato promessa de compra e venda, subjacente ao presente contrato;

- Cláusula nona, nº 4: “não se verificando a restituição do veículo locado prevista nos números anteriores, nos termos do artigo 1045º, nº 1, do Código Civil, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da sua restituição, o valor do aluguer fixado no contrato;

3. Esse contrato tinha por objecto um veículo automóvel de marca “(…)”, modelo (…) 2.0 Tdi, com a matrícula 89-(…)-11;

4. A propriedade sobre o referido automóvel encontra-se inscrita a favor do autor;

5. Nos termos do mencionado contrato, pelo aluguer do veículo identificado no artigo anterior, era devido pelo réu um primeiro aluguer no valor de quinhentos e sete euros (IVA incluído), bem como o pagamento de oitenta e três alugueres mensais no montante de quinhentos e sete euros e oitenta e oito cêntimos (IVA incluído), cada;

6. Entregue ao réu em aluguer o mencionado veículo automóvel, o mesmo não pagou o aluguer que no âmbito do contrato em apreço se venceu a 25 de Março de 2014, no valor de quinhentos e vinte e dois euros e quarenta e quatro cêntimos, bem como os alugueres que se venceram a 25 de Abril de 2014 e 25 de Maio de 2014, ambos no valor de quinhentos e vinte e três euros e treze cêntimos;

7. Em face do não pagamento dos alugueres em dívida, o autor comunicou ao réu, por carta registada com aviso de recepção datada de 23 de Junho de 2014, a resolução do contrato de aluguer em questão;

8. O réu não pagou os valores em dívida nem restituiu o veículo locado.


Fundamentação

Considerou-se, na sentença recorrida, que o contrato celebrado entre recorrente e recorrido não foi validamente resolvido, com fundamento na seguinte argumentação:

1 – A recorrente não alegou, nem provou, que o recorrido recebeu a carta mediante a qual ela manifestou a vontade de resolver o contrato, ou que tal recebimento não ocorreu por culpa do recorrido;

2 – A formulação do n.º 1 da cláusula 8.ª do contrato “é genérica e desprovida da necessária concretização, pelo que insusceptível de permitir a validade da resolução contratual fundada no seu teor”;

3 – O direito de resolução só opera na hipótese de incumprimento definitivo, nos termos dos artigos 432.º, 801.º e 808.º do Código Civil (CC), e tal hipótese não se verifica no caso dos autos porquanto “o cumprimento da prestação pecuniária não é impossível e não se vislumbra que tenha existido perda do interesse do credor na prestação, o que nem é alegado”, “nem foi fixado qualquer prazo em sede de interpelação admonitória, a qual não ocorreu sequer”; por isso, “existe incumprimento do contrato na modalidade de simples mora, o qual não é suficiente para fundamentar uma resolução do contrato”.

Analisemos cada um destes argumentos.

1.º argumento:

Nos artigos 7.º e 9.º da petição inicial, a ora recorrente alegou que “comunicou ao réu, por carta registada com aviso de recepção datada de 23 de Junho de 2014, a resolução do contrato de aluguer em questão (…)” e que, “não obstante para tanto intimado, o réu não cumpriu as suas obrigações contratuais, não tendo pago os valores em dívida, nem restituído, até hoje, o veículo locado” (sublinhados nossos). Para demonstrar a veracidade de tal alegação, a recorrente juntou, à petição inicial, cópia da referida carta, da qual consta, como endereço do recorrido, a morada indicada nas condições particulares do contrato como sendo a deste último, sendo certo que, no n.º 1 da cláusula 17.ª das condições gerais deste último, se convencionou que “quaisquer comunicações a serem efectuadas ao abrigo deste contrato, serão expedidas para o endereço das partes que figuram nas cláusulas particulares deste contrato”.

Resulta do exposto não ser exacto que a recorrente não tenha alegado que o recorrido recebeu a carta mediante a qual ela manifestou a vontade de resolver o contrato. Não obstante não ter utilizado os verbos “enviar” e “receber”, a recorrente alegou que “comunicou” ao recorrido a vontade de resolver o contrato e que este último foi “intimado” para cumprir as obrigações decorrentes dessa resolução, alegadas no artigo 8.º da petição inicial. Comunicar significa fazer chegar determinada mensagem ao conhecimento do receptor, fazer este último saber aquilo que o emissor transmite. Sem isso, não há comunicação. Não se verifica, pois, a deficiência de alegação que a sentença recorrida aponta à recorrente.

Aliás, se tal deficiência de alegação tivesse ocorrido, era dever do tribunal recorrido, sob pena de cometer uma nulidade secundária nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, convidar o recorrente a aperfeiçoar a petição inicial em conformidade, em despacho pré-saneador proferido nos termos do artigo 590º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do mesmo código. O tribunal recorrido não procedeu a tal convite e, em vez disso, chegado o momento da prolação da sentença, julgou a acção parcialmente improcedente com fundamento nessa suposta deficiência de alegação. Tendo em conta o disposto no referido artigo 590º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC, bem como no artigo 6.º do mesmo código, isto é inadmissível.

Mas tal deficiência de alegação não ocorreu. Mais, julgou-se provado, na sentença recorrida, em perfeita sintonia com o alegado pela ora recorrente, que, “em face do não pagamento dos alugueres em dívida, o autor comunicou ao réu, por carta registada com aviso de recepção datada de 23 de Junho de 2014, a resolução do contrato de aluguer em questão” (sublinhado nosso). Porém, em sede de fundamentação de direito, ignorou-se que se julgara provada a comunicação (a qual, como referimos, pressupõe envio e recepção) e considerou-se apenas provado que a recorrente “endereçou carta registada com aviso de recepção a comunicar a resolução do contrato”, mas não que essa carta tenha sido recebida. Logo, a sentença recorrida carece de rectificação neste ponto. Tendo-se julgado provado que a resolução do contrato foi comunicada ao recorrido e não tendo sido impugnado esse ponto da decisão de facto, há que retirar daí a inevitável consequência de que não será por incumprimento do disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 224.º CC que tal resolução deixará de ser eficaz.

2.º argumento:

A sentença recorrida considerou que a formulação do n.º 1 da cláusula 8.ª do contrato é genérica e desprovida da necessária concretização, pelo que é insusceptível de permitir a validade da resolução contratual fundada no seu teor.

Discordamos.

A redacção do referido n.º 1 da cláusula 8.ª é a seguinte: “O incumprimento pelo locatário de quaisquer das obrigações assumidas no presente contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pela locadora, tornando-se efectiva essa resolução à data da notificação pela locadora ao locatário de comunicação fundamentada nesse sentido”.

Não se verifica uma falta de concretização que justifique a invalidade ou a ineficácia da cláusula resolutiva, pois a determinação das obrigações que do contrato decorrem para o recorrido, mais que possível, constitui tarefa simples. Basta ler as restantes cláusulas do contrato para se perceber quais são essas obrigações. Mais, estando em causa a falta de cumprimento, pelo recorrido, da sua obrigação principal, que é a de pagamento do aluguer, nunca poderia ser posto em dúvida que tal obrigação se encontra abrangida pela previsão da referida estipulação e, consequentemente, que o seu incumprimento constitui fundamento de resolução do contrato pela recorrente.

É oportuna a referência, feita na sentença recorrida, à doutrina de JOÃO CALVÃO DA SILVA, em sentido oposto àquele que vimos defendendo. Sustenta este autor, com respaldo na doutrina italiana, que “as partes não podem dar à cláusula resolutiva expressa um conteúdo meramente genérico, referindo-se, por exemplo, ao incumprimento de todas as obrigações contratuais. Têm de fazer uma referência explícita e precisa às obrigações cujo incumprimento dá direito a resolução, identificando-as. Desde que identificadas uma a uma, obviamente que a cláusula resolutiva já pode reportar-se à totalidade das obrigações emergentes do contrato. Esta limitação à liberdade contratual das partes radica na própria razão de ser e função da cláusula resolutiva. Se as partes valoram elas mesmas, no momento em que estipulam a cláusula, as obrigações e modalidades de incumprimento que conferem o direito de resolução, impõe-se que o façam conscientemente, com pleno conhecimento de causa – o que só acontece se especificarem e determinarem as obrigações e as modalidades do inadimplemento (definitivo, defeituoso, moroso). Quando se limitem a fazer uma mera referência genérica, em branco, à violação de (qualquer uma das) obrigações nascentes do contrato, a estipulação não passará de uma cláusula de estilo, mero rappel do regime jurídico da chamada condição resolutiva tácita, já que não houve uma prévia vontade contratual (bilateral) que de facto valorasse especificamente a gravidade da inadimplência.”[1]

Em sentido idêntico e invocando também a doutrina italiana, pronunciou-se JOÃO BAPTISTA MACHADO, que passamos a citar: “Importa ainda ter presente que a chamada cláusula resolutiva expressa «deve referir-se a prestações e a modalidades de adimplemento determinadas com precisão: as partes não podem ligar a resolução a uma previsão genérica e indeterminada, do tipo ‘em caso de inadimplemento de qualquer obrigação surgida no presente contrato, este considera-se resolvido’» (cfr. Enzo Roppo, Il Contratto, Bolonha 1977, p. 238). Uma cláusula destas seria, afinal, uma simples «cláusula de estilo», devendo entender-se que ela se limita a remeter para a regulamentação legal da resolução por incumprimento.”[2]

Não acompanhamos esta doutrina.

Desde logo, a mesma carece, em absoluto, de apoio legal. Decorre do princípio geral da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º CC, que, “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver” (n.º 1). Subentendida neste enunciado está, naturalmente, a liberdade de as partes redigirem as cláusulas que entenderam inserir no contrato da forma que lhes aprouver. A liberdade de estipulação implica liberdade de redacção daquilo que se estipula. O único limite é a existência de norma legal imperativa, norma essa que, no caso, nenhum dos referidos Autores indica qual seja.

Por outro lado, o fundamento que JOÃO CALVÃO DA SILVA indica para esta restrição à liberdade contratual não convence. Resulta do citado texto deste Autor uma particular preocupação em relação à formação e manifestação da vontade das partes quando se trate de estipular uma cláusula resolutiva, que imporia a especificação e determinação, nesta última, das obrigações e modalidades do incumprimento, com vista a assegurar que aquela estipulação foi consciente e esclarecida. Ou seja, tratar-se-ia de uma limitação ao princípio da liberdade contratual ditada pelo objectivo de protecção das próprias partes.

Porém, não há fundamento para este agravamento da preocupação sobre a liberdade e o esclarecimento das partes quando se trate de estipular uma cláusula resolutiva, por contraposição a cláusulas contratuais sobre outras matérias. Nomeadamente, não está demonstrado que seja mais frequente a existência de vícios na formação ou na manifestação da vontade negocial quando se trate de estipular cláusula resolutiva.

Por outro lado, ainda que tal agravamento do risco de existência de vícios na formação e manifestação da vontade das partes se verificasse quando se trata da estipulação de cláusula resolutiva, ficaria por demonstrar que a proibição de remissão global para as restantes cláusulas contratuais como método de determinação das obrigações cujo incumprimento gera o direito potestativo de resolver o contrato na esfera do contraente fiel fosse suficiente para garantir a inexistência dos referidos vícios. O Autor a cujo texto nos vimos reportando exige uma referência explícita e precisa às obrigações cujo incumprimento dá direito a resolução, identificando-as uma a uma. Não esclarece, todavia, se tal referência poderia ser feita mediante remissão, não já globalmente para as restantes cláusulas do contrato, mas para cada uma dessas cláusulas que estabelecem as obrigações das partes, identificando-as numericamente. Admitindo esta forma de identificação das obrigações cuja violação constitui fundamento de resolução, parece-nos que pouco ou nada se adiantaria relativamente à hipótese de remissão global. Se nem sequer esta forma de redigir a cláusula de resolução fosse admissível, requerendo-se o enunciado expresso, na cláusula resolutiva, de todas as obrigações justificativas da resolução, estaríamos perante uma exigência que, em muitos casos, seria de difícil concretização, redundando num sério embaraço à celebração de contratos e à livre estipulação do conteúdo destes.

Quanto à solução, proposta por JOÃO BAPTISTA MACHADO, de que uma cláusula resolutiva segundo a qual constitua fundamento de resolução o incumprimento de qualquer obrigação decorrente do contrato seja entendida como limitando-se a remeter para a regulamentação legal da resolução por incumprimento, é, salvo o devido respeito, arbitrária. É fora de dúvida que, em regra, quando as partes estabelecem uma cláusula resolutiva, ainda que com o teor referido, querem afastar o regime legal. Se pretendessem a aplicação deste último regime, normal seria nada estipularem em matéria de resolução do contrato. Se, apesar de inútil, quisessem inserir uma cláusula de rescisão cujos pressupostos de funcionamento fossem idênticos ao regime legal, poderiam limitar-se a remeter para este último ou a reproduzi-lo na própria cláusula. Já uma cláusula resolutiva com o teor acima referido nunca pode ser interpretada como limitando-se a remeter para o regime legal.

A ponderação das consequências da aplicação da doutrina que vimos refutando num caso como o dos autos é decisiva para a sua refutação. Se se considerasse, como a sentença recorrida considerou, que a cláusula resolutiva aposta no contrato não produz efeitos, a consequência seria a aplicação do regime dos artigos 801.º e 808.º CC. Inexistiria incumprimento definitivo por parte da recorrida, mas simples mora no cumprimento da obrigação de pagamento do aluguer, pelo que a recorrente não poderia resolver o contrato. Assim se decidiu na sentença recorrida. Ora, se há solução que as partes manifestamente não quiseram ao celebrar o contrato dos autos e aí inserirem a cláusula 8.ª foi precisamente essa. Quis-se, antes, estabelecer que, logo que se verificasse o incumprimento, pelo recorrido, de qualquer das suas obrigações, a recorrente tivesse o direito de resolver o contrato, sem mais. Interpretar a referida cláusula como limitando-se a remeter para o regime legal da resolução por incumprimento constituiria, como já referimos, uma absoluta arbitrariedade, seria atribuir às partes uma intenção que elas, manifestamente, não tiveram. Aplicar o regime legal da resolução, não já ficcionando uma vontade das partes como fundamento, mas como efeito directo de um juízo de invalidade ou de ineficácia da cláusula, não seria menos arbitrário, pois redundaria em aplicar aquele regime contra uma vontade expressa das partes em sentido diverso e sem fundamento legal.

Mais, num caso como o dos autos, em que foi incumprida, precisamente, a obrigação principal do recorrido, que era a de pagamento do aluguer, em caso algum seria legítima a dúvida sobre se esse incumprimento foi tido em vista pela cláusula resolutiva em análise. Salta à vista que o foi. Daí considerarmos inaceitável a tese que vimos refutando, que faz tábua rasa da vontade das partes expressa no contrato e aplica um regime de resolução deste último que aquelas, manifestamente, pretenderam afastar.

Quanto aos riscos que os autores referidos apontam à formulação de uma cláusula resolutiva cuja previsão remeta, globalmente, para as obrigações decorrentes do contrato – riscos esses que, insistimos, não se afiguram maiores que em relação a cláusulas contratuais de outra natureza –, os mesmos poderão ser acautelados sem necessidade de fulminar, em todos os casos, aquela cláusula com uma invalidade ou uma ineficácia sem fundamento legal e cujas consequências são inaceitáveis. Na realidade, sobretudo em contratos extensos e complexos, que prevejam, além das obrigações principais, numerosas prestações acessórias e deveres laterais de conduta, facilmente poderá ocorrer um incumprimento contratual que, considerando a economia do contrato, tenha escassa relevância. Se esse contrato contiver uma cláusula resolutiva como aquela a que nos vimos reportando, tal incumprimento poderia, à partida, ser invocado pela contraparte para resolver o contrato. Porém, a eventual iniquidade daí resultante pode ser evitada, desde logo, com recurso à interpretação do contrato tendo em conta o disposto nos artigos 236.º a 239.º CC. Por outro lado, a princípio da boa-fé na execução do contrato, consagrado no artigo 762.º, n.º 2, CC, pode desempenhar aqui um papel importante, tornando inadmissível o exercício de um direito de resolução que pudesse encontrar fundamento na ampla previsão de uma cláusula resolutiva como a dos autos mas, ponderadas as concretas circunstâncias do caso, devesse ser considerado inadmissível[3]. Por qualquer destas vias, é possível chegar à decisão justa do caso concreto sem necessidade de uma solução radical como seria a de fulminar com a invalidade ou a ineficácia todas as cláusulas de resolução como aquela com que nos deparamos no contrato dos autos e, em consequência disso, aplicar o regime legal apesar de ser evidente que as partes o quiseram afastar.

Concluindo, estamos, no caso dos autos, perante uma cláusula resolutiva válida e, como tal, idónea para gerar um direito de resolução caso se verifiquem os pressupostos nela previstos.

3.º argumento:

O n.º 1 do artigo 432.º CC estabelece que é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção. Significa isto que, em regra, o regime legal de resolução do contrato, nomeadamente o que decorre dos artigos 801.º e 808.º CC, não é imperativo, antes podendo ser afastado por estipulação das partes. Também aqui, vigora o princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º CC, tendo as partes a faculdade de estipular o concreto regime de resolução do contrato que lhes aprouver. Como ensina ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “a resolução pode advir da concretização de uma cláusula resolutória, inserida, pelas partes, no contrato, para a eventualidade de ocorrer o facto justificante”[4].

Já vimos que o contrato dos autos contém uma cláusula resolutiva, pelo que é à luz do regime aí estabelecido, e não do disposto nos artigos 801.º e 808.º CC, que temos de ajuizar se a resolução operada pela recorrente foi válida. “A resolução fundada em convenção assume, a fortiori, o campo de aplicação que as partes lhe tenham atribuído”[5] . Por outras palavras, “existindo cláusula resolutiva, e verificados os pressupostos do respectivo funcionamento, não há que fazer apelo ao critério legal fundante do direito à resolução acolhido pelo art. 808.º C.Civil” (Acórdão da Relação de Évora de 10.04.2013, proferido no processo n.º 2859/10.4TBLLE.E1; relator: JOSÉ LÚCIO). Recorrendo agora à lição de JOÃO BAPTISTA MACHADO, “a cláusula resolutiva pode ter e tem frequentemente em vista apenas estabelecer que um determinado incumprimento será considerado grave e constituirá fundamento de resolução, eliminando assim de antemão qualquer dúvida ou incerteza quanto à importância de tal inadimplemento e subtraindo esse ponto a uma eventual apreciação do juiz. A função normal da cláusula resolutiva é justamente a de organizar ou regular o regime do incumprimento mediante a definição da importância de qualquer modalidade deste para fins de resolução”[6].

Como vimos anteriormente, consta do n.º 1 da cláusula 8.ª das condições gerais do contrato que a recorrente tem o direito de resolver este último em caso de incumprimento, pelo recorrido, de quaisquer das suas obrigações contratuais. A única interpretação possível desta cláusula é a de que a mesma atribui, à recorrente, o direito de resolução logo que o recorrido deixe de pagar o aluguer, independentemente de essa prestação ainda ser ou não possível ou de a recorrente manter ou não, em termos objectivos, interesse nela, e sem necessidade de a recorrente fixar um prazo razoável ao recorrido para efectuar o pagamento em falta. Manifestamente, com aquela cláusula, as partes pretenderam afastar discussões e formalidades desta natureza, atribuindo o direito de resolução à recorrente logo que o recorrido deixasse de pagar o aluguer. Se assim não fosse, a mesma cláusula seria inútil.

Ora, estando provado que o recorrido não pagou o aluguer correspondente a três meses (Março, Abril e Maio de 2014), assim incumprindo a sua obrigação principal, decorre da referida cláusula que a recorrente tinha o direito de resolver o contrato. Logo, a declaração de resolução efectuada pela recorrente é válida e eficaz, tendo-se o contrato extinguido.

Consequências jurídicas da resolução do contrato:

As consequências jurídicas da resolução do contrato também se encontram estabelecidas neste último, mais precisamente nas suas cláusulas 8.ª, n.º 3, e 9.ª, n.ºs 2, 3 e 4, de acordo com as quais:

- A resolução por incumprimento não exime o locatário da restituição do bem e do pagamento de quaisquer dívidas vencidas para com a locadora (…) e, ainda, de uma indemnização por lucros cessantes correspondentes a 25% do somatório dos alugueres vincendos e do valor relativo ao preço de compra mencionado no número um do contrato de promessa de compra e venda, subjacente ao presente contrato;

- Findo o contrato, seja a que título for, o locatário deverá restituir o veículo na sede da locadora ou noutro local convencionado pelas partes (…);

- Em caso de resolução do presente contrato e a verificar-se a não restituição do veículo e dos respectivos documentos que o acompanham, o locatário será considerado possuidor de má-fé (…);

- Não se verificando a restituição do veículo locado prevista nos números anteriores, nos termos do artigo 1045.º, n.º 1, do Código Civil, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar, até ao momento da sua restituição, os valores dos alugueres fixados no contrato.

Importa, também, ter em consideração o estipulado na cláusula 13.ª, de acordo com a qual:

- Em caso de não pagamento pontual dos alugueres devidos, o locador tem o direito de exigir juros à taxa máxima legalmente permitida, acrescida da sobretaxa moratória legal, enquanto durar o incumprimento, bem como as despesas administrativas por cada aluguer em atraso, nos termos do preçário em vigor (n.º 1);

- Em caso de não pagamento pontual de quaisquer outras quantias devidas por força do contrato, sem prejuízo a outras indemnizações e compensações nele previstas ou decorrentes da lei, serão devidos juros sobre tais quantias à taxa máxima legalmente permitida, enquanto durar o incumprimento, acrescida da sobretaxa legal (n.º 2).

A sentença recorrida condenou o recorrido a pagar à recorrente a quantia de € 1.568,70, relativa às rendas vencidas, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada renda, no final do mês a que respeita e até integral pagamento. Considerando a validade da resolução do contrato operada pela recorrente, é fora de dúvida, em face das cláusulas acima transcritas, que a recorrida deverá ser condenada, ainda, a restituir o veículo alugado à recorrente e a pagar a esta última as todas quantias por ela peticionadas.

Em conclusão, o recurso deverá ser julgado totalmente procedente, alterando-se a sentença recorrida nos termos expostos.


Sumário

1 – Em regra, o regime legal de resolução do contrato não é imperativo, antes podendo ser afastado por estipulação das partes.

2 – Nada obsta à validade e eficácia da cláusula resolutiva aposta num contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel mediante a qual se estipule que “o incumprimento, pelo locatário, de qualquer das obrigações assumidas no presente contrato, dará lugar à possibilidade da sua resolução pela locadora, tornando-se efectiva essa resolução à data da notificação, pela locadora ao locatário, de comunicação fundamentada nesse sentido”.

3 – Sendo inserida num contrato uma cláusula resolutiva com a redacção referida em 2, da verificação dos pressupostos de resolução dela constantes resulta a atribuição do direito de imediata resolução do mesmo contrato, não se aplicando o disposto no artigo 808.º do Código Civil.


Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, alterando a sentença recorrida e condenando o recorrido na totalidade dos pedidos formulados pela recorrente.

Custas pelo recorrido.

Notifique.


*

Évora, 28 de Junho de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura

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[1] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, p. 322.

[2] Pressupostos da Resolução por Incumprimento, estudo inserido na sua Obra Dispersa, vol. I, p. 187, nota 77.

[3] Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, obra citada, p. 187, tendo em vista a hipótese de estipulação de uma cláusula de resolução que atribuísse expressamente o direito de resolução por efeito da verificação de “um inadimplemento levíssimo, de todo insignificante na economia do contrato”.

[4] Tratado de Direito Civil, vol. IX, 3.ª edição, p. 928.

[5] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, obra citada, p. 919.

[6] Obra citada, p. 186-187.