Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
100/19.3GBODM.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
DEMANDANTE CIVIL
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O lesado não se confunde com o ofendido, no sentido do artigo 68º, nº 1, alínea a), do CPP. Sendo que este é apenas o que for titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação, enquanto o lesado é qualquer pessoa que, segundo as normas do direito civil, tenha sido prejudicada em interesses seus juridicamente protegidos, ou seja, todos aqueles que sofreram danos e que, segundo as regras do direito processual civil, tiverem legitimidade para formular o pedido de indemnização. O lesado é um conceito lato ou extensivo do ofendido e que abrange todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal,
A problemática de saber se o direito a essa indemnização existe ou não é matéria que se prende com a substância da causa, com o seu mérito (legitimidade substantiva ou ad causam) que não pode influenciar a determinação da legitimidade activa para a acção (legitimidade processual ou ad processum), dado que esta, como resulta do disposto na referida norma, deve ser aferida em função dos termos como o autor descreveu a relação controvertida –
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 100/19.3GBODM, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de … – Juiz …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido AA condenado, por sentença de 22/09/2022, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 26º, nº 1, 137º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, por referência aos artigos 24º, nº 1 e 18º, nº 3, do Código da Estrada, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.

Foi ainda condenado o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano e 9 meses.

Pela mesma sentença foi condenada a demandada civil “BB, S.A.” no pagamento da quantia de 1.450,00€ (mil quatrocentos e cinquenta euros), a título de despesas e ainda 20.000,00€ (vinte mil euros) a título de indemnização por danos morais, pagamento a ser feito ao assistente CC, em representação dos progenitores do ofendido DD, de seu nome EE e FF.

2. A demandada civil não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. A ora Recorrente vem pelo presente recurso impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto nos termos previstos no artigo 412.º n.º 3 do CPP, adiante especificando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, assim como as concretas provas, constantes no processo, que impõem decisão diversa da recorrida;

2. E ainda, pugnar pela alteração do teor da sentença proferida com base na factualidade dada como provada nos presentes autos, que, salvo o devido respeito, falhou na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º n.º 2 alíneas a) e c) do CPP, violando o disposto nos artigos 496.º, 563.º e 566.º, n.º 3 todos do CC.

3. Com efeito, tendo em conta toda a prova documental junta aos autos, entende a ora Recorrente, salvo o devido respeito, que a matéria de facto constante do Facto Provado n.º 27 foi incorretamente apreciada, tendo conduzido a uma decisão injusta e incoerente com toda a factualidade discutida e apurada nos autos.

4. De acordo com o Facto Provado n.º 27 “os pais do falecido – EE e FF – outorgaram ao assistente, seu filho e irmão germano do falecido, poderes para representá-los neste processo e receber eventual quantia indemnizatória, por documento de 01-04-2022 no Nepal, emitido perante entidade pública nepalesa.”.

5. Os documentos que impõem decisão diversa sobre o Facto n.º 27 e que devem ser reapreciados são os seguintes:

- Documento junto pelo Demandante através de requerimento com a referência Citius …, junto aos autos em 21/02/2022;

- Documentos com a referência Citius …, juntos aos autos em 13/04/2022;

- Documentos com a referência Citius …, juntos aos autos em 19/04/2022;

- Documentos com a referência Citius …, juntos aos autos em 13/05/2022.

6. Os referidos documentos não corroboram a tese do douto Tribunal a quo, segundo a qual o Demandante atua em representação dos progenitores e em “gestão de negócios”.

7. De facto, o Demandante, apenas após a junção aos autos da Contestação da Demandada, na qual foi invocada a ilegitimidade ativa daquele, é que veio aos autos tentar obter a tão necessária legitimidade, primeiramente, alegando que seria o herdeiro único do ofendido DD, juntando, para o efeito, um documento do Consulado Honorário do Nepal, no qual se declara que “de acordo com a lei nepalesa, o herdeiro legítimo de um cidadão nepalês falecido é o seu irmão” (Documento junto através de requerimento com a referência Citius …, junto aos autos em 21/02/2022); e, posteriormente, após impugnação daquele documento pela Demandada, invocando que estaria no processo em representação dos seus progenitores, herdeiros legais do ofendido falecido (Documentos com a referência Citius …, junto aos autos em 13/04/2022).

8. Acresce que, as declarações do Consulado Honorário do Nepal juntas aos autos, além de atestarem factos que o Consulado do Nepal em Portugal não pôde atestar diretamente (como a vontade de os pais do Demandante – que se encontram no Nepal – se fazerem representar pelo mesmo na presente ação), são contraditórias entre si.

9. A declaração do Consulado Honorário do Nepal, junta pelo Demandante em 21/02/2022, a fls. dos autos, que refere que “de acordo com a lei nepalesa, o herdeiro legítimo de um cidadão nepalês falecido é o seu irmão”, atesta factos que não correspondem à verdade! – conforme se constata pela leitura do artigo 239.º da Lei Nacional Civil Nepalesa, junta aos autos devidamente traduzida.

10. Acresce que, os documentos com a referência Citius …, juntos aos autos em 13/04/2022 e os documentos com a referência Citius …, juntos aos autos em 19/04/2022, além das certidões de nascimento do ofendido e do Demandante, consubstanciam, na sua própria denominação um “pedido urgente e recomendação” e uma “recomendação”.

11. Quer isto dizer que, os referidos documentos, não consubstanciam uma Procuração, nem atribuem quaisquer poderes ao aqui Demandante para representar os progenitores no presente processo e para receber o pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos – tanto mais que, nem sequer se identifica o número do processo judicial nos referidos documentos.

12. Mais, a “recomendação”do Consulado Honorário do Nepal fala por si e contra legem, na medida em que refere que os pais do ofendido falecido consideram CC como seu único herdeiro. A qualidade de herdeiro não é, nem poderia ser, atribuída pelos pais do falecido. A qualidade de herdeiro resulta da Lei!

13. Ainda assim, não deixa de ser curioso que a “recomendação” do Consulado Honorário do Nepal declare, por um lado, que os pais do ofendido consideram que o Demandante CC é o único herdeiro do falecido; e, por outro lado, conceda permissão para o Demandante atuar em nome deles (na qualidade de herdeiros).

14. Os documentos juntos aos autos pelo Consulado Honorário do Nepal são, de facto, claramente contraditórios e, além de não estarem devidamente legalizados, oferecem fundadas dúvidas acerca dos factos que alegadamente atestam e da sua autenticidade. Motivo pelo qual, não merecem a relevância que lhes foi dada pelo douto Tribunal a quo.

15. A este propósito, veja-se ainda os documentos com a referência Citius …, juntos aos autos em 13/05/2022, no qual o Consulado do Nepal, primeiramente, em 19/04/2022, afirma que não dispõe de informação acerca do estado civil do ofendido e se tinha ou não filhos; e, posteriormente, em 12/05/2022, após apresentação de um qualquer documento por parte do aqui Demandante no referido Consulado, afirma que o ofendido não era casado nem tinha filhos.

16. Efetivamente, e salvo o devido respeito, que é muito, do teor dos documentos juntos aos autos pelo Consulado Honorário do Nepal resulta que o referido Consulado declara aquilo que lhe é pedido para declarar, sem qualquer confirmação acerca das referidas declarações e sem que tenha acesso a uma base de dados governamental que lhe permita aferir da veracidade das informações. Pelo que, no entendimento da ora Recorrente, resulta claro que os documentos em apreço se revelam totalmente infundados e devem ser livremente apreciados pelo Tribunal ad quem, tendo em consideração tudo o que supra se expôs.

17. Ademais, basta uma leitura atenta do articulado no qual o Demandante formulou o Pedido de Indemnização Civil em apreço nos presentes autos para facilmente se constatar que o Demandante formulou o referido pedido em nome próprio e nunca em representação dos seus pais, herdeiros legais do falecido DD.

18. Assim, no entendimento da ora Recorrente, não resultou provado que “os pais do falecido – EE e FF – outorgaram ao assistente, seu filho e irmão germano do falecido, poderes para representá-los neste processo e receber eventual quantia indemnizatória, por documento de 01-04-2022 no Nepal, emitido perante entidade pública nepalesa.”, devendo, por isso, o facto considerado provado sob o n.º 27, corretamente analisada a prova produzida, designadamente, a prova documental junta aos autos e, bem assim, o próprio articulado do Demandante, ser considerado como NÃO PROVADO.

19. Considerando-se que o Demandante não agiu no presente processo em representação dos seus pais, sempre terá de concluir-se que não cabia ao Demandante o direito de receber qualquer quantia indemnizatória por parte da ora Recorrente, seja a título de dano morte, seja a título de danos não patrimoniais.

20. Efetivamente, as pessoas referidas no artigo 496.º do CC têm direito de indemnização, tanto pela perda do direito à vida, como pelos danos morais sofridos pela vítima, como pelos danos morais sofridos por elas mesmas, atento o evento morte, e esta solução baseia-se no elemento histórico do preceito, que lhes confere aquele direito, e por direito próprio e que se aloja na sua esfera jurídico patrimonial por via de aquisição originária, porque o legislador, na norma, e no âmbito de uma opção de política legislativa “de afetos” entregou a titularidade de um tal direito à pessoa ou pessoas com maiores vínculos de afeição com a vítima, e não com base na "linhagem" tradicional sucessória e hereditária, pese embora, muitas vezes, estas possam ser coincidentes.

21. Efetivamente, o artigo 496.º do CC elenca as pessoas cujos danos devem ser tomados em linha de conta. Sendo certo que, de acordo com o pensamento doutrinal maioritário e com a orientação jurisprudencial predominante, tem vindo a ser entendido e decidido que no caso de morte da vítima toda a indemnização correspondente aos danos não patrimoniais (dano morte ou perda do direito à vida, dano moral sofrido pela vítima antes da morte e danos morais dos familiares desta) cabe aos familiares por direito próprio de acordo e com a ordem prevista no artigo 496.º, n.º 2 do CC.

22. Posto isto, resulta claro que, o Demandante, não estando em representação dos pais do ofendido falecido, carece de total legitimidade para peticionar qualquer indemnização por danos não patrimoniais decorrente da morte de DD, na medida em que, ao abrigo do disposto no artigo 496.º, n.º 2 do CC, e no caso dos presentes autos, apenas os pais do falecido teriam legitimidade para o efeito.

23. Assim, não sendo o Demandante o titular da indemnização em apreço nos autos, é claramente, parte ilegítima na presente ação. A ilegitimidade ativa constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância, conforme disposto nos artigos 278.º, n.º 1 al. d), 576.º, n.º 2, 577.º al. e), e 578.º do CPC.

24. Face ao exposto, sempre deveria a ora Recorrente ter sido absolvida da instância, atenta a ilegitimidade ativa do Demandante.

25. Em face do exposto, entende a ora Recorrente, salvo devido respeito, que a douta sentença proferida fez uma incorreta interpretação e aplicação das normas em apreço em face da convicção errada quanto à prova produzida nos autos, nomeadamente, aprova documental, pelo que requer que esta decisão seja alterada, ordenando-se a revogação da douta Sentença recorrida em conformidade.

26. Sem prescindir de todo o supra exposto, e ainda que se entendesse que o Demandante peticionou a indemnização em causa nos autos em representação dos seus progenitores (o que não se aceita e apenas por cautela de patrocínio se equaciona), sempre terá de considerar-se que o Pedido de Indemnização Civil deduzido não tinha por base nem o dano morte, nem os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos pais do ofendido.

27. O Demandante, aquando do Pedido de Indemnização Civil por si deduzido, peticionou o valor de € 1.450,00, a título de despesas de funeral por si alegadamente suportadas; e uma indemnização no valor € 38.000,00, pelo sofrimento que lhe causou a morte do ofendido, seu irmão.

28. Ora, a Sentença ora recorrida denota, desde logo, uma argumentação totalmente incoerente quando, apesar de considerar que o Demandante se encontra no processo em representação dos pais, acaba por condenar a Demandada, ora Recorrente, a pagar ao mesmo o valor de € 1.450,00, a título de despesas de funeral suportadas por si próprio.

29. Ademais, a Sentença recorrida também não fundamenta devidamente a condenação da Demandada, ora Recorrente, ficando por explicar se a mesma foi condenada a pagar € 20.000,00, a título de dano morte ou a título de danos não patrimoniais sofridos pelos pais da vítima (alegadamente representados pelo aqui Demandante).

30. Certo é que, o Pedido de Indemnização Civil deduzido não tinha por base nem o dano morte, nem os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos pais do ofendido.

31. É certo e sabido que, o direito à vida é na nossa civilização e na nossa sociedade o mais elevado dos direitos de personalidade. Como referia o Acórdão do STJ de 27-09-2007, proc. nº 07B2737, in www.dgsi.pt: “sabe-se que a vida é o bem mais precioso da pessoa que ele não tem preço, porque é a medida de todos os preços, e que a sua perda arrasta consigo a eliminação de todos os outros bens de personalidade”.

32. O direito à vida é o primeiro, o mais importante, dos direitos absolutos. É o bem supremo, cuja tutela é assegurada pelo artigo 24.º, da Constituição da República Portuguesa. E que a sua violação gera um dano suscetível de compensação, não se dúvida. Contudo, é necessário que a mesma seja peticionada, o que, espante-se, não sucedeu no caso dos autos!

33. O mesmo se diga quanto aos alegados danos não patrimoniais sofridos pelos pais do ofendido, uma vez que, além de não terem sido peticionados, não resultaram sequer da prova produzida.

34. Contudo, à semelhança dos danos patrimoniais, os danos não patrimoniais não se presumem, e, no caso dos autos, nada resultou provado quanto a alegados danos não patrimoniais sofridos pelos pais do ofendido.

35. De facto, independentemente de estarmos perante uma condenação por dano morte ou por danos não patrimoniais sofridos pelos pais do falecido, a decisão em causa no presente recurso é nula por ter havido, conforme adiante se exporá, condenação em quantidade superior e/ou em objeto diverso do peticionado, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. c) do CPP e do artigo 609.º, n.º 1 do CPC.

36. Assim o prescreve, igualmente, o artigo 615.º, n.º 1, al. e) do CPC, segundo o qual é nula a sentença quando o Juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

37. A questão, nesta perspetiva, tem cariz essencialmente adjetivo e implica com um dos princípios que enformam o direito processual civil: o princípio do dispositivo ou da disponibilidade objetiva e, mais concretamente, com uma das suas principais manifestações – o princípio do pedido.

38. Com efeito, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. c) do CPP e do artigo 609.º, n.º 1 do CPC, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

39. Assim, quanto ao conteúdo, a sentença deve ater-se aos limites definidos pela pretensão formulada na ação, o que é considerado "núcleo irredutível" do princípio do dispositivo. É a essa pretensão assim definida que o tribunal está adstrito, não podendo decretar um outro efeito, alternativo, apesar de legalmente previsto.

40. A violação da referida regra –se o Juiz condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido – determina a nulidade da sentença, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, al. c) do CPP e 615.º, n.º 1, al. e) do CPC.

41. No caso dos autos, o Demandante peticionou a condenação da Demandada no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais sofridos por si mesmo, enquanto irmão do ofendido falecido, e a Demandada acabou por ser condenada no pagamento de uma indemnização por dano morte aos pais do ofendido, o que não faz qualquer sentido. Condenou, assim, o douto Tribunal a Demandada num pedido diferente do formulado pelo Demandante! Tornando, assim, a douta sentença nula, nos termos já supra explanados.

42. Assim, tendo em conta o supra exposto, sempre terá de considerar-se nula a Sentença de que ora se recorre, o que desde já se alega e requer a V. Exas., sob pena de, a manter-se a decisão, estarmos perante uma clara violação do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. c) do CPP; 609.º, n.º 1; 615.º, n.º 1, al. e); e 552.º, n.º 1, al. e) do CPC.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Sentença proferida em conformidade com o exposto e, em consequência, ser a Recorrente BB, S.A.L absolvida do pagamento da indemnização no valor de € 20.000,00 a que foi condenada nos presentes autos, só assim se fazendo JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. Inexiste resposta à motivação de recurso.

5. Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu parecer, entendendo que “o Ministério Público não se encontra especialmente legitimado para proferir parecer sobre as questões suscitadas no âmbito do objecto deste recurso”, porquanto versa exclusivamente sobre matéria cível enxertada na acção penal.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do CPP.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Ilegitimidade do demandante para peticionar indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da morte deDD.

Nulidade da sentença nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP e artigo 615º, nº 1, alínea e), do CPC.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 31.05.2019, cerca das 21h35, na Estrada Nacional n.º …, ao Km …, em …, freguesia de …, …, o arguido AA conduzia o motociclo de marca …, modelo …, cor azul escuro, com a matrícula …, no sentido … – ….

2. Por sua vez, nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, seguia o vitimado DD, ao volante de um velocípede.

3. O arguido seguia ao volante do motociclo supra identificado sem respeitar as distâncias de segurança e o limite de velocidade para as circunstâncias, pelo que, ao tentar contornar o velocípede que seguia à sua frente, no mesmo sentido de marcha e na mesma faixa de rodagem, o Arguido embateu com a roda dianteira do motociclo na traseira lateral esquerda do velocípede, junto ao pedal.

4. Tal embate provocou o despiste do velocípede e a projeção de DD pelo ar até cair na valeta existente na berma direita da estrada.

5. Em consequência direta e exclusiva do referido embate, projeção e queda, DD sofreu diversas lesões traumáticas intratoráxicas e uma fratura exposta na perna direita, acabando por falecer às 00h05 do dia 01.06.2019.

6. As lesões traumáticas intratoráxicas foram a causa direta da morte de DD.

7. O local onde ocorreu o embate é uma reta em patamar, com iluminação pública e com visibilidade normal, onde o arguido avistava a faixa de rodagem em toda a sua largura e numa extensão de, pelo menos 50m.

8. À hora do acidente – cerca das 21h35 – os postes de iluminação pública da via estavam ligados e a iluminar toda a estrada.

9. A faixa de rodagem onde se deu o embate tem uma largura total de 6,20m, com uma configuração que permite o trânsito em ambos os sentidos de marcha, com bermas de ambos os lados, separada pela sinalização horizontal - marca M12 – linha descontinua, separadora de sentidos de trânsito, bem visível.

10. A velocidade máxima permitida no local é de 90 Km/h.

11. O piso encontrava-se seco e limpo, em estado regular de conservação e manutenção, sem anomalias no local do embate que contribuíssem para a sua produção.

12. O velocípede apenas tinha dispositivos de sinalização luminosa (retrofletores) nos pedais, sendo, ainda assim, visível logo que o sistema de iluminação do motociclo conduzido pelo arguido incidisse sobre os mesmos, permitindo que este avistasse o velocípede e DD atempadamente.

13. DD conduzia o velocípede com uma taxa de alcoolémia de 2,14 +- 0,27 g/l de álcool no sangue.

14. O Arguido encontrava-se habilitado para a condução do motociclo que conduzia, sem restrições ou sanções averbadas.

15. O motociclo de matrícula … não está sujeito a inspeção periódica.

16. E, à data do acidente, tal veículo encontrava-se segurado na companhia de seguros BB, S.A..

17. O arguido reside em …, conhece o local/ estrada onde o acidente ocorreu e sabia que peões e velocipedistas utilizam diariamente aquela estrada para se deslocarem entre as localidades.

18. O acidente e as consequências dele resultante - a morte de DD - ficaram a dever-se unicamente à conduta do Arguido, que circulava sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente, em violação das normas estradais, incúria que não lhe permitiu visualizar a vítima em tempo, impedindo que realizasse a manobra com a distância necessária para não embater naquele.

19. Em todos os atos supra descritos, o Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

20. DD veio a falecer às 00h05 do dia 01 de Junho de 2019.

21. Em resultado da morte de DD despendeu o demandante €1,.450,00 Euros (mil quatrocentos euros), com o funeral.

22. O Demandante viveu um profundo sofrimento, que lhe causou dor, angústia, tristeza e solidão, pois o seu irmão era mútuo querido e amado.

23. O falecido era uma pessoa sociável e bem-disposta.

24. O veículo do arguido foi objecto de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil emergente de circulação rodoviária, titulado pela apólice n.º …, no âmbito da qual se encontravam cobertos os riscos inerentes à circulação do veículo com a matrícula ….

25. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Condições económicas, sociais e pessoais

26. Do seu relatório social consta:

“AA, de 46 anos de idade, aquando dos alegados factos, maio de 2019, encontrava-se em união de facto, integrando o agregado familiar que partilhava com a companheira e os três filhos do casal, um rapaz atualmente com 19 anos e duas raparigas, gémeas, atualmente com 15 anos de idade. A família residia em habitação propriedade da companheira do arguido e a sua subsistência encontrava-se assegurada em resultado do vencimento deste, trabalhador por conta própria na área da mecânica auto.

Natural de …, integrado numa fratria de três elementos, todos do sexo masculino, o arguido é o mais novo, por ordem de nascimento. O progenitor trabalhava na área da construção civil e posteriormente dedicou-se à agricultura, atividade que exerce até hoje, num pequeno terreno de que é proprietário, e a mãe dedicava-se às tarefas domésticas e aos cuidados para com os filhos. A situação económica da família, embora modesta, permitia garantir as necessidades dos diferentes elementos, e a relação entre os mesmos foi-nos referida como próxima e harmoniosa até ao presente. AA integrou o ensino em idade própria, no local de residência, tendo concluído o 6.º ano de escolaridade quando contava cerca de 12/13 anos de idade. Pese embora deter boa capacidade de aprendizagem e manter boa relação com a escola não prosseguiu os estudos, preferindo trabalhar. Iniciou atividade profissional com o progenitor, a quem passou a ajudar nas tarefas agrícolas, durante cerca de quatro anos ou seja, dos 13 aos 16 anos de idade.

Aos 16 anos foi trabalhar para uma Estação de Serviço existente no local de residência, tendo a seu cargo a montagem de pneus, limpeza de viaturas e mudança de óleo, e aí permaneceu durante oito anos, à exceção do período de cumprimento do serviço militar. Em resultado das competências desenvolvidas no local de trabalho e aprendizagens adquiridas neste e também junto de um irmão, com 24 anos de idade estabeleceu-se por conta própria, passando a trabalhar como mecânico auto, atividade a que se dedicou até ao momento do acidente que deu origem ao presente processo. Na sequência do acidente e lesões sofridas, nomeadamente traumatismo cranioencefálico e membros superior e inferior, com incapacidade até ao presente no membro superior direito, deixou de ser laboralmente ativo e, em novembro de 2020 ingressou na situação de reformado por invalidez. Ao longo deste período sofreu diversos internamentos, inicialmente no Hospital de …, em …, e posteriormente em clinicas de reabilitação, fazendo também períodos de fisioterapia em ambulatório. Atualmente aguarda nova cirurgia ao membro superior direito na procura/tentativa de melhorar a mobilidade. À data do acidente a relação de união de facto que mantinha e fruto da qual nasceram os seus três filhos acusaria algum desgaste, vindo a rutura a verificar-se, situação que se mantém até ao presente.

Assim, atualmente, embora o arguido mantenha a mesma residência, partilhando a habitação com os filhos e a ex-companheira, encontram-se afetivamente afastados. Em termos económicos subsiste do valor da reforma, de 350 euros mensais, e do apoio dos pais e dos irmãos. No dia a dia ocupa-se a assistir a programas na televisão ou nas diligências clínicas, fisioterapia, exames, consultas. Relativamente aos factos que deram origem ao presente processo e respetiva acusação o arguido referiu-nos não deter qualquer tipo de memória sobre os mesmos e que, mesmo após o coma, situação validada pelo seu irmão, permaneceu longo tempo com grandes lacunas ao nível do funcionamento cognitivo.

Tanto quanto nos é dado conhecer, este será o primeiro contacto de AA com o Sistema de Administração da Justiça.

No OPC Local, GNR de …, não existem registos de ocorrências relativas ao arguido, para além dos factos que deram origem ao presente processo. O processo de desenvolvimento e socialização de AA decorreu em contexto familiar organizado e normativo, no agregado familiar que partilhava com os progenitores e os irmãos, sem aspetos dignos de registo, e em condição económica que permitia assegurar, de forma suficiente, as suas necessidades. Com 46 anos de idade, este é o seu primeiro contacto com o Sistema de Administração da Justiça. Natural de …, a sua vida tem decorrido no local e zona de nascimento, salvo no período em que cumpriu o serviço militar. Em resultado do acidente ocorrido encontra-se reformado por invalidez e com uma situação económica extremamente precária, carecendo do apoio dos familiares, pais e irmãos. Assim, numa avaliação global, tendo em atenção o percurso de vida do arguido e a sua situação atual, consideramos que o mesmo evidencia competências para se submeter a regras e normas, que conhece, bem como capacidade para compreender e cumprir as decisões judiciais, nomeadamente as que possam vir a resultar do presente processo, sem necessidade de intervenção por parte deste serviço de reinserção social.”.

27. Os pais do falecido – EE e FF- outorgaram ao assistente, seu filho e irmão germano do falecido, poderes para representá-los neste processo e receber eventual quantia indemnizatória, por documento de 01-04-2022 no Nepal, emitido perante entidade pública nepalesa.

28. O falecido não tinha filhos ou esposa.

29. O falecido ambicionava evoluir profissionalmente e poder melhorar de vida.

30. O arguido está sujeito a medida de acompanhamento de maior.

31. Vive com os filhos e mãe deles, mas já não tem relação com a mesma.

32. Tem três carros.

33. tem o 6º ano de escolaridade.

34. Não tem despesas.

35. Por sentença proferida no proc…. deste J.. do J.C.G. de …, foi proferida sentença de acompanhamento de maior do arguido com o seguinte dispositivo:

“Determina-se o acompanhamento de AA, nascido … 1975, designando-se como seu acompanhante, GG, seu irmão, a quem se comete o exercício das medidas de representação geral do requerido, mantendo o beneficiário o seu direito de realizar os actos de gestão da vida corrente e os seus direitos pessoais, com a excepção do exercício do direito de testar, casar ou de constituir situação de união, de perfilhar ou de adoptar, nos termos conjugados dos artigos 138.º, 140.º, 143.º, n.º 2, al. c), 145.º, n.º 1 e 2, b), 147.º e 2189, al. b), todos do Código Civil e 900.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

b) Fixa-se como data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, o dia 31 de Maio de 2019.”.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

A. DD era um homem trabalhador e gozava de uma vida económica estável.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada fundou-se na ponderação da prova produzida em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador – art.º 127º do C.P.P. – na prova documental e pericial.

Assim sendo, valoramos:

• Relatório de autópsia médico-legal de fls. 43 a 47 e verificação de óbito – INEM de fls. 10, Certificado de óbito de fls. 22, quanto ao óbito do ofendido e seu contexto;

• Relatórios toxicológicos de fls. 135/136 e 48/49 – quanto à TAS dos envolvidos no acidente de viação;

• Relatório de perícia médico-legal de fls. 257 a 267, quanto ao estado mental do arguido, sendo que, do mesmo, em nosso entender, não resultou que o arguido não estivesse à data dos factos e nem agora, aquando do julgamento, impossibilitado de alcançar a gravidade dos factos;

• Auto de Notícia de fls. ¾, Adiamento ao Auto de Notícia de fls. 29 e verso, Participação de acidente de fls. 5 a 7, Aditamento à Participação de Acidente de fls. 30/31, Auto de Exame direto ao local de fls. 101 a 105, Auto de Exame aos veículos de fls. 106 a 110, Croquis do acidente de fls. 111 a 115, Relatório fotográfico de fls. 116 a 129, Auto de apreensão de fls. 143/144, Relatório de ocorrência dos B. V. … de fls. 149/150, Informação da ANSR de fls. 156, Informação da EDP de fls. 164/ 165, Informação clínica de fls. 195/196, Consulta de condutores de fls. 233, Consulta de veículo de fls. 234 a 236 e Relatório final de fls. 237 a 245 - quanto às características do local – estado da via e suas dimensões, iluminação pública, localização dos veículos e vestígios, bem como, o estado em que os intervenientes estavam aquando do embate e características dos condutores;

• Relatório social para efeitos de aferição das condições económicas, sociais e pessoais;

• CRC do arguido para efeitos dos seus antecedentes criminais;

Ref.ª… de 26-07-2019

a) informação da ASF quanto à existência de seguro do veículo do arguido (doc.1);

b) recibo de pagamento pelo assistente das despesas de funeral do ofendido, no valor de 1.450,00€(doc.2) para prova do valor das despesas e do seu pagamento pelo assistente;

Ref.ª… – Contestação

a) comprovativo de pagamento do prémio de seguro do arguido, quanto a prova da existência do contrato de seguro automóvel, sua cobertura e validade, notando-se que, a demandante cível admitiu tal facto;

Ref.ª… de 21-02-2022

a) atestado de óbito e certidão de óbito do ofendido;

Ref.ª … de 21-02-2022

a) declaração do consulado do Nepal atestando que, segundo a lei nepalesa o herdeiro do ofendido seria o seu irmão, o assistente (junto em original em audiência – cfr. ref.ª … de 23-02-2022;

Ref.ª… de 13-04-2022/… de 19-04-2022/… de 13-05-2022

a) tradução do consulado do Nepal de documento público de 01-04-2022 da Office of Ward nº 6, Musikot Municipality of the Government of Nepal, onde os pais do ofendido declaram outorgar poderes de representação dos mesmos quanto ao processo em causa e ainda para receber quaisquer eventuais quantias indemnizatórias – para prova do ponto 27 - seguindo-se também as traduções e originais das certidões de nascimento do ofendido e assistente, para prova do seu grau de parentesco e ainda informação quanto ao estado civil do ofendido e que não tem filhos – para prova do ponto 28 – sendo que, quer o ponto 27, quer o 28 foram aditados nos termos do art.º 5º nº 2º a) do C.P.C. ex vi do 4º do C.P.P., consignando-se que resultaram de matéria discutida nos autos e face à qual as partes se puderam pronunciar.

De notar que, pese embora, a posição da demandada quanto à invalidade dos mesmos, tratam-se de documentos emitidos por entidades públicas do pais de origem do ofendido, que merecem fé pública e têm cariz autêntico, não podendo ser postos em causa, a não ser que existam fundadas dúvidas, o que não sucedeu, nos termos do art.º 365º do C.C.

Valoramos ainda:

As declarações do arguido, o qual não se recorda dos factos, pois na colisão entre veículos o mesmo perdeu os sentidos, foi levado para o hospital de urgência e esteve em coma, tendo perdido faculdades mentais posteriormente ao sucedido.

Valoramos ainda as suas declarações quanto às suas condições económicas, sociais e pessoais.

CC, irmão do arguido, referiu que às 9h da noite foi avisado de que o irmão tinha tido um acidente grave e no dia seguinte soube que o irmão faleceu no Hospital, tendo lá ido identificar o irmão. Disse ainda que contactou a associação nepalesa e depois o irmão foi cremado, tendo pago o funeral no valor de 1.400,00€. Referiu ainda que o irmão trabalhou na Agricultura e antes trabalhou nos países do Golfo, tinha o 12º ano de escolaridade e por vezes tinha o hábito de beber. Mais disse que o irmão era boa pessoa, sendo que ficou muito chocado com a sua morte e muito triste, junto com a sua família. Ainda referiu que o seu irmão era saudável, pretendendo uma vida melhor, não era casado, nem tinha filhos, sendo que tinham uma relação próxima, falando 2/3 vezes por semana. Disse que pediu um empréstimo para chamar o irmão para Portugal. Ainda disse que vai doar o dinheiro da indemnização a um orfanato de raparigas.

HH, militar da GNR disse que foi chamado ao local à noite, sendo que era na Estrada Nacional para …, mas não se lembra de muito.

II, bombeira, referiu que o local estava escuro, sendo o acidente na Estrada Nacional. Quando chegou ao local a 1ª vítima que viu foi o arguido (estava inconsciente) e depois chegou outra equipa que socorreu o ofendido, mas nunca o viu. Disse que conhece o arguido pessoalmente e já o viu a conduzir, achando-o calmo.

JJ, bombeiro, referiu que a estrada era uma recta, em bom estado, era à noite e muito escuro, com pouca visibilidade, não tendo iluminação pública.

Disse que o ofendido estava em muito mau estado, com fractura exposta e socorreram-no, tendo pedido reforços.

KK, bombeiro, referiu que o acidente foi em Maio de 2019, sendo que, a estrada era uma recta, não se recordando da iluminação, sendo que, naquela estrada é muito difícil de identificar as pessoas.

Apenas tratou da limpeza da via.

LL, bombeira, também referiu que a estrada é perigosa porque tudo tem lá acesso.

MM, bombeira, referiu que o arguido era seu marido e ainda vivem juntos, mas já não como cônjuges.

Referiu que ia a conduzir um carro mesmo atrás do arguido, mas não viu o embate.

Disse que era já de noite e apercebeu-se que estavam muitas pessoas na via, de origem indiana, encostou e viu logo o ofendido que estava fora da estrada e socorreu-o, sendo que ainda estava a respirar e ligou para o 112.

Só depois é que se apercebeu que havia outra pessoa na via e que era o seu ex-marido.

Confirmou que a estrada não tinha visualização e iluminação, sendo comum acontecerem acidentes ali, não estando nevoeiro e chuva.

Acha que o acidente terá ocorrido opor falta de percepção da vítima.

NN, referiu que se via muito mal na via pois teve que ligar a lanterna, mas com as luzes conseguia-se ver as pessoas e não haviam problemas de piso.

Viam-se várias pessoas à volta do ofendido, de origem nepalesa.

OO, militar da GNR, referiu que quando lá chegaram ao local viram o arguido inconsciente e não conseguia falar, sendo que, o ofendido estava fora da berma, com a perna fracturada e algumas pessoas estavam a tentar falar com ele.

Tudo conjugado, resultou que ninguém presenciou o embate de veículos, pelo que, a conclusão sobre o sucedido deverá advir da análise dos elementos no local.

Quanto às características da via todos confirmaram que era uma via em bom estado, mas com pouca iluminação. Tal é contrariado pela informação da EDP acerca da existência de iluminação pública, porém, sem se poder excluir que o local fosse parcamente iluminado na percepção dos condutores. Sem prejuízo, certo é que, todos concordaram que, com as luzes era possível visualizar as pessoas na via, pelo que, se torna difícil explicar como o embate ocorreu – o ofendido foi embatido na parte de trás da sua bicicleta pelo arguido, no seu motociclo, na parte da frente – sem que se considere que o arguido não o tenha visualizado.

De notar que o arguido não se encontrava alcoolizado, não tem antecedentes estradais e como tal, nada permite concluir que não seja um condutor eficiente, que deveria ter visto o ofendido, agravado porquanto o mesmo actuou em desrespeito pela distância legal e velocidade máxima entre veículos, numa manobra perigosa, pelo que, se torna lógico concluir que o que sucedeu foi que o arguido terá perdido controle do veículo e embatido na parte de trás da bicicleta do ofendido.

Sendo que, de acordo com as regras da experiência comum, sempre deveria o arguido ter previsto e previu tal cenário, não tendo actuado com o cuidado devido, que lhe era imposto.

Sem prejuízo da – elevadíssima, note-se – taxa de álcool do ofendido, certo é que, nada permite concluir que tal tenha estado na origem do acidente em apreço.

No tocante aos pontos de facto não provados, os mesmos resultaram não provados dada a ausência de prova ou a contrariedade com a prova produzida.

Apreciemos.

Verificação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do CPP

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Sustenta a recorrente que a sentença recorrida padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, reportando-os à factualidade dada como provada no ponto 27.

Como vimos, os apontados vícios, a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do CPP, respectivamente, só relevam se resultarem do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. São vícios da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.

Verifica-se o vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

Refere-se, por isso, à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito (e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova) e ocorre quando, nas palavras de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Editorial Verbo, 2000, pág. 340, “a matéria de facto se apresenta como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito” porque o Tribunal “deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão” - Ac. do STJ de 03/07/2002, Proc. nº 1748/02-5ª; a insuficiência “decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão”, ou seja, quando da decisão revidenda resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição – Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, em www.dgsi.pt e Ac. do STJ de 21/06/2007, Proc. nº 07P2268.

Ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto, enquanto vício desta, com as consequências a que conduz – o reenvio do processo para novo julgamento quando não for possível decidir da causa, conforme consagra o nº 1, do artigo 426º, do CPP - não se identifica nem com a eventual insuficiência da prova produzida para se poder ter por assente a factualidade apurada pelo tribunal recorrido, nem com a dos factos provados para a decisão que está em causa, antes concerne à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, ainda que com orientação diferente da prosseguida, não estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas, eventualmente, face a erro de julgamento e de subsunção dos factos provados ao direito.

Já o erro notório na apreciação da prova está presente, quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Também ocorrendo quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.

Como bem se esclarece no Acórdão do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, o erro notório na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão lógica seria a contrária já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.

O requisito da notoriedade afere-se pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio. Ou, se partirmos de um critério menos restritivo, de acordo com o entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido - cfr. também Acs. do STJ de 18/11/2021, Proc. nº 2029/17.0GBABF.E2.S1 e 23/06/2022, Proc. nº 11/20.0GACLD.C1.S1, consultáveis em www.dgsi.pt.

Seja qual for o entendimento, vero é que a discordância, face aos elementos de prova apreciados, entre aquilo que foi dado como provado e aquilo que a recorrente entende não ter resultado da prova produzida, não se configura como integrando este vício.

Ora, não suscita a demandada/recorrente questão alguma que resulte da insuficiência da matéria de facto provada ou erro notório na apreciação da prova, enquanto vícios da matéria de facto nos termos legalmente configurados e que densificados pela jurisprudência nacional se mostram, mas tão só pretende fazer valer a divergência quanto à forma como foi apreciada pelo tribunal a quo a prova produzida em audiência e a convicção firmada, o que naqueles vícios se não enquadra.

Com efeito, a factualidade que provada se mostra permite uma decisão segundo as várias soluções plausíveis para as questões em causa, mesmo eventualmente diversa da que foi encontrada pelo tribunal recorrido.

Por outro lado, partindo do texto da decisão sob recurso não se vê que o tribunal recorrido tenha retirado de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, dado como provado algo que grosseiramente está errado, que não podia ter acontecido, ou, de todo o modo, que do mesmo texto, usando um processo racional e lógico, suposto no cidadão comum minimamente prevenido (ou, na tese do Ac. do STJ de 29/09/2022, perceptível pelo julgador com a especial formação e experiência de um juiz) se retire de um facto considerado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

De onde, presentes não estão na decisão revidenda os apontados vícios.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

A recorrente discorda da matéria de facto dada como provada no ponto 27 dos fundamentos de facto da decisão revidenda, também fazendo apelo ao teor dos documentos juntos aos autos pelo demandante aos 21/02/2022, 13/04/2022, 19/04/2022 e 13/05/2022, conjugados com o do pedido de indemnização civil deduzido, mostrando-se cumpridas as exigências do artigo 412º, nº 3, do CPP (não se especificando as provas gravadas, obviamente porque não são invocadas apara alicerçar a dissensão).

A factualidade em causa é a seguinte:

Os pais do falecido – EE e FF – outorgaram ao assistente, seu filho e irmão germano do falecido, poderes para representá-los neste processo e receber eventual quantia indemnizatória, por documento de 01-04-2022 no Nepal, emitido perante entidade pública nepalesa.

A Mmª Juíza da 1ª instância dá-nos a conhecer o percurso de formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada colocada em causa, como segue:

Ref.ª … de 21-02-2022

a) declaração do consulado do Nepal atestando que, segundo a lei nepalesa o herdeiro do ofendido seria o seu irmão, o assistente (junto em original em audiência – cfr. ref.ª … de 23-02-2022;

Ref.ª… de 13-04-2022/… de 19-04-2022/… de 13-05-2022

a) tradução do consulado do Nepal de documento público de 01-04-2022 da Office of Ward nº 6, Musikot Municipality of the Government of Nepal, onde os pais do ofendido declaram outorgar poderes de representação dos mesmos quanto ao processo em causa e ainda para receber quaisquer eventuais quantias indemnizatórias – para prova do ponto 27 - seguindo-se também as traduções e originais das certidões de nascimento do ofendido e assistente, para prova do seu grau de parentesco e ainda informação quanto ao estado civil do ofendido e que não tem filhos – para prova do ponto 28 – sendo que, quer o ponto 27, quer o 28 foram aditados nos termos do art.º5º nº2º a) do C.P.C. ex vi do 4º do C.P.P., consignando-se que resultaram de matéria discutida nos autos e face à qual as partes se puderam pronunciar.

De notar que, pese embora, a posição da demandada quanto à invalidade dos mesmos, tratam-se de documentos emitidos por entidades públicas do pais de origem do ofendido, que merecem fé pública e têm cariz autêntico, não podendo ser postos em causa, a não ser que existam fundadas dúvidas, o que não sucedeu, nos termos do art.º 365º do C.C.

Pois bem.

Analisado o pedido de indemnização civil formulado e que deu entrada em juízo aos 26/07/2021, resulta que figura expressamente como demandante e em nome próprio CC, tendo sido articulado que o Demandante viveu um profundo sofrimento, pois o seu irmão DD era um homem trabalhador, gozava de uma vida económica estável e ambicionava evoluir profissionalmente e poder melhorar a vida. O demandante sofreu e ainda sofre com a morte do seu irmão o que lhe causou dor, angústia, tristeza e solidão.

DD era uma pessoa sociável e bem-disposta, sendo que a sua morte foi um choque para o seu irmão, para quem era muito querido e amado, deixando-o mergulhado num desgosto profundo, o que ainda perdura, causando-lhe sofrimento. Por todo o sofrimento vivenciado pelo demandante, não será exagerado reclamar a título de danos não patrimoniais a quantia de €38.000,00 (trinta e oito mil euros).

E, impetra-se nessa peça processual:

Nestes termos e nos mais de direito deverá a demandada ser condenada a pagar ao demandante a indemnização global no valor de €39.450,00 (trinta e nove mil quatrocentos e cinquenta euros) – sendo, precisamente, 38.000,00 euros a título de danos não patrimoniais e 1.450,00 euros de despesas que o demandante despendeu com o funeral de seu irmão.

Ora, em passagem alguma do pedido de indemnização civil se articulam os factos relativos aos danos (não patrimoniais) sofridos por EE e FF, progenitores do falecido DD que, aliás, sintomaticamente, também não constam da matéria de facto dada como provada, sendo que os danos dessa natureza tidos por assentes no ponto 22 (O Demandante viveu um profundo sofrimento, que lhe causou dor, angústia, tristeza e solidão, pois o seu irmão era mútuo querido e amado) concernem inequivocamente a CC (o irmão).

Por outro lado, pelo documento junto pelo demandante aos 21/02/2022, emitido pelo Consulado Honorário do Nepal, cujo original se encontra a fls. 508, apenas se informa que “de acordo com a lei nepalesa, o herdeiro legítimo de um cidadão nepalês é o seu irmão” e “CC (…) irmão do falecido Sr. DD, terá direito a receber a herança completa deixada pelo seu irmão”, o que para efeitos do pedido de indemnização em causa é irrelevante, sendo certo que o teor desta declaração nem sequer corresponde à realidade, pois, de acordo com a lei nepalesa, referenciada na sentença censurada como “Capítulo 11 ponto 239 c) da Lei Nacional Civil (Código) 2017 (2074) do Nepal)”, sendo o falecido solteiro e sem filhos os progenitores são os seus herdeiros legais.

No que tange ao documento de 01/04/2022, emitido pelo Presidente da Freguesia nº 6, Município de … – Nepal, intitulado Carta de Recomendação, podemos ler (na respectiva tradução): pedimos por este meio a concessão do subsídio de seguro de DD ao seu irmão mais velho, CC, que vive em Portugal, pois os seus pais encontram-se no Nepal (…) e os seus pais consideram CC como seu herdeiro e concedem a sua permissão para que o mesmo realize todos os procedimentos necessários em nome deles.

Face ao seu teor, entendemos que não se pode concluir que pelo mesmo outorgam os progenitores do falecido ao demandante poderes de representação no processo em causa, que até nem sequer nesse documento é referenciado.

Porque assim é, não tendo o demandante intervindo nos autos em representação dos seus progenitores (que o eram também de DD), cumpre alterar a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida sob o ponto 27, que passa a não provada.

Ilegitimidade do demandante para peticionar indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da morte de DD

No entender da recorrente, não estando o demandante a intervir nos autos em representação dos pais do falecido DD, falta-lhe legitimidade para impetrar indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte deste, pois que, nos termos do estabelecido no artigo 496º, nº 2, do Código Civil, apenas os progenitores têm legitimidade para tanto.

Vejamos.

De acordo com o consagrado no artigo 71º, do CPP, “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”

E, estabelece-se no artigo 74º, do mesmo Código:

“1 - O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.

2 - A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.

3 - Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independente cada uma das defesas”.

O lesado não se confunde com o ofendido, no sentido do artigo 68º, nº 1, alínea a), do CPP. Sendo que este é apenas o que for titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação, enquanto o lesado é qualquer pessoa que, segundo as normas do direito civil, tenha sido prejudicada em interesses seus juridicamente protegidos, ou seja, todos aqueles que sofreram danos e que, segundo as regras do direito processual civil, tiverem legitimidade para formular o pedido de indemnização. O lesado é um conceito lato ou extensivo do ofendido e que abrange todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal, como elucida Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo 2000, págs. 346/347, apoiando-se em Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 508.

Quer dizer, para o efeito de apurar da legitimidade do demandante, importa convocar também a respectiva noção constante do artigo 30º, do Código de Processo Civil, que é a seguinte:

“1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

Tendo em atenção o critério aventado neste nº 3, uma vez que o demandante (excluído que está, como vimos, que tenha actuado em representação de seus progenitores) no pedido de indemnização civil que formulou descreve a relação controvertida de molde em que surge como o lesado e a demandada “BB, S.A. – Sucursal em Portugal” como a responsável pelo pagamento da indemnização que almeja lhe seja atribuída (pelos danos não patrimoniais próprios que sofreu devido à morte de seu irmão) por força da existência do contrato de seguro pelo qual a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula … foi transferida para esta, assim resulta ser parte legítima.

A problemática de saber se o direito a essa indemnização existe ou não é matéria que se prende com a substância da causa, com o seu mérito (legitimidade substantiva ou ad causam) que não pode influenciar a determinação da legitimidade activa para a acção (legitimidade processual ou ad processum), dado que esta, como resulta do disposto na referida norma, deve ser aferida em função dos termos como o autor descreveu a relação controvertida – assim, Ac. R. de Lisboa de 06/06/2013, Proc. nº 2145/10.0YXLSB.L2-6, consultável em www.dgsi.pt.

Como se refere no Ac. R. do Porto de 07/04/2022, Proc. nº 6099/20.6T8VNG.P1, que pode ser lido no referenciado sítio, a “legitimidade substantiva é apreciada à luz das regras substantivas, de direito material. Quando ela não se verifica, a consequência é a improcedência do pedido (decisão de mérito).

Isto porque a legitimidade substantiva está relacionada com a titularidade do direito. O Tribunal só pode reconhecer um direito àquele a quem a lei o atribui. É em face da relação jurídica trazida aos autos, e das normas jurídico-substantivas que regem o respetivo instituto, que o Tribunal vai apurar se é o Autor o titular dessa relação jurídica de direito material.

Como tal, a legitimidade substantiva contende com o mérito da ação, ou seja, com a decisão que há que proferir a final reconhecendo ou não o direito que o Autor se arroga, concedendo ou denegando a providência requerida” – fim de citação.

Não é questão de legitimidade (processual) saber quem são os titulares do direito a indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da morte da vítima.

Em conclusão, o demandante CC tem de ser considerado parte legítima (legitimidade processual), carecendo de razão a recorrente.

Mas, já não é assim no que tange à legitimidade substantiva.

O demandante impetrou a indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreu – danos próprios - (como retro se explicitou, dos factos provados nem sequer consta facto algum relativo aos danos sofridos pelos progenitores, apenas que o demandante viveu um profundo sofrimento, que lhe causou dor, angústia, tristeza e solidão, pois o seu irmão era mútuo (sic) querido e amado, pelo que causa até perplexidade como se pôde atribuir uma indemnização por supostos danos não comprovados) com o decesso de seu irmão.

Estabelece-se no artigo 496º, do Código Civil:

“1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”

O direito à indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima pertence às pessoas indicadas nos nºs 2 a 4 por direito próprio e não por via sucessória, sendo que o legislador estabeleceu ordem de preferências (vinculativa) na compensação desses danos, como constitui jurisprudência consolidada do nosso Supremo Tribunal de Justiça, sendo que “os beneficiários do segundo grupo só são chamados na falta de beneficiários do primeiro grupo, os beneficiários do terceiro grupo só são chamados na falta de beneficiários do primeiro e do segundo grupos” – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 11/12/2019, Proc. nº 107/15.0GAMTL.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt.

Porque assim é, existindo progenitores sobrevivos de DD não há lugar à atribuição de indemnização por danos não patrimoniais próprios a CC, irmão do falecido.

Pelo exposto, cumpre conceder provimento ao recurso.

Fica prejudicado o conhecimento da questão da nulidade da sentença nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP e artigo 615º, nº 1, alínea e), do CPC, suscitada pelo recorrente.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela demandada civil “BB, S.A.” e, consequentemente:

A) Eliminam da matéria de facto provada da sentença revidenda a materialidade descrita no ponto 27, que passa a integrar os factos não provados;

B) Revogam a decisão recorrida na parte em que condena a demandada civil no pagamento da quantia de 20.000,00 euros a título de indemnização por danos morais, absolvendo-a do pedido formulado por CC quanto a estes danos.

Custas cíveis a suportar pelo demandante - artigo 527º, nº 1, do Código de Processo Civil ex vi artigo 523º, do CPP

Évora, 12 de Setembro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

________________________________________

(Artur Vargues)

_______________________________________

(Margarida Bacelar)

_______________________________________

(Nuno Garcia)