Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
922/20.2T8OLH.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
CRÉDITO LITIGIOSO
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O CIRE consagra uma legitimidade activa alargada, podendo o processo ser promovido por “qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do seu crédito (…)” (cfr. artigo 20.º).
II. Está em causa a legitimidade processual ou ad causam, que não se confunde com a legitimidade substantiva, pelo que é parte legítima para requerer a insolvência do indicado devedor aquele que se arroga seu credor, justificando a origem, natureza e montante do crédito.
III. Não existe impedimento a que o titular de um crédito litigioso possa requerer a declaração de insolvência do devedor, independentemente da extensão do litígio.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 922/20.2T8OLH.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 2


I. Relatório
(…) – Projectos e Fiscalização, Lda., sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Portimão com o NIPC (…) e sede social na Urbanização (…), Rua da (…), Lote 33 – Loja 2, Portimão, veio requerer a declaração judicial de insolvência de (…) – Empreendimento de Turismo e Desporto, Lda., sociedade comercial por quotas, com NUPC (…) e sede social na Quinta dos (…), (…), 617-A, Santa Bárbara de Nexe, com fundamento nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com a requerida em 25/10/2019 um contrato de prestação de serviços de elaboração de projectos de especialidades, mediante o qual se obrigou a executar um conjunto de projectos de engenharia mediante o pagamento, a título de preço, dos montantes de € 130.000,00 relativo à Fase I e de € 15.000,00 atinente à Fase II, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor. Mais alegou que já prestou os serviços respeitantes à Fase I, tendo procedido em 20/01/2020 e em 04.09.2020, respectivamente, à emissão das facturas n.ºs FAC (…) e FAC (…), a primeira com vencimento a 20/02/2020, no montante de € 87.945,00, e a segunda com vencimento a 04/10/2020, no valor de € 23.985,00, sendo que a requerida apenas liquidou parcialmente a primeira das facturas, encontrando-se em dívida o remanescente, bem como o valor total referente à factura n.º FAC (…), acrescidos dos juros de mora vencidos, perfazendo um crédito no valor global de € 66.364,46, que não pagou nem revela intenção de pagar.
Alegou finalmente que a requerida é titular dos nove imóveis que identificou, não lhe sendo todavia conhecida qualquer actividade comercial, não dispondo actualmente de quaisquer rendimentos declarados, proveitos ou receitas que lhe permitam o pagamento das quantias de que é devedora, não tendo instalações nem lhe sendo igualmente conhecidos quaisquer trabalhadores, não reunindo condições financeiras que lhe permitam cumprir pontualmente o conjunto das suas obrigações, aqui se incluindo um financiamento no valor de € 50 000,00, factos de que resulta encontrar-se em situação de insolvência, o que deve ser declarado.
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Regularmente citada, a requerida apresentou contestação, peça na qual se defendeu por excepção, nesta sede tendo invocado a ilegitimidade da requerente, cujo crédito é amplamente contestado no âmbito do processo de injunção instaurado poucos dias antes da entrada em juízo da presente acção, implicando a resolução das questões suscitadas larga indagação, demandando prova pericial e testemunhal especializada, o que em nada se coaduna com a natureza urgente do processo de insolvência e o carácter necessariamente sumário da prova que nele pode ser produzida.
Invocou ainda a ausência de interesse em agir por banda da requerente, uma vez que, conforme resulta do articulado inicial, se apresenta como a única titular de crédito vencido, visando com a presente acção forçar a cobrança indevida do seu putativo crédito, actuando em abuso de direito.
Alegou finalmente, e por mera cautela, que a pretensão formulada é, em todo o caso, improcedente, desde logo porque o crédito invocado não existe, dado que o incumprimento defeituoso e incompleto do contrato celebrado por banda da requerente legitima a contestante a recusar a sua prestação – excepção do não cumprimento do contrato prevista no artigo 428.º do Código Civil que expressamente invocou – assim faltando uma condição de procedência da acção, para além de que os factos alegados, ainda a provarem-se inteiramente, não evidenciam uma situação de insolvência.
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Foi de seguida proferida decisão que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da requerente (…) – Projectos e Fiscalização, Lda. para o pedido de declaração de insolvência, e, em consequência, absolveu a requerida da instância.
Inconformada, apelou a requerente e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final, após convite ao aperfeiçoamento, as seguintes conclusões:
“1.ª Vem o presente Recurso interposto da douta Sentença prolatado pelo Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 2, no âmbito do Proc.º n.º 922/20.2T8OLH, que determinou conceder provimento à excepção dilatória de ilegitimidade da Recorrente para o pedido de declaração de insolvência da Recorrida Insolvente e, em consequência absolveu a Recorrida da instância.
2.ª Salvo melhor e douta e opinião, entende a Recorrente que o Tribunal a quo errou ao determinar que a Recorrente não tinha legitimidade para o pedido de declaração de insolvência, e por isso verificam-se erros na aplicação do Direito.
3.ª Contrariamente ao fundamentado pelo Tribunal a quo não se verifica qualquer “complexidade e/ou densidade da factualidade que se acha controvertida”.
4.ª Estranha-se a razão pela qual o Tribunal a quo tenha ficado tão desabilitado para conhecer a existência do crédito e tão incapaz para analisar a documentação já junta aos autos.
5.ª O Tribunal a quo limitou-se a demitir-se na apreciação para conhecer a existência do crédito, quando o podia perfeitamente fazer, declarando-se desabilitado ao singelamente ler os articulados.
6.ª Não colhem, pois, os fundamentos do Tribunal a quo, que sustenta a ilegitimidade da credora Recorrente da insolvência que não demonstre que o seu crédito não é controvertido ou litigioso, ou a alegada (aparente) “complexidade” e/ou “densidade” dos factos articulados.
7.ª A Recorrida não fez mais do que adotar um comportamento inadmissível e contrária à boa fé, na exata medida em que traiu a confiança gerada na Recorrente pelo seu comportamento anterior, confiança essa objetivamente reforçada pela pretensa vontade de recorrer a financiamento para liquidação do crédito, que como é evidente, não consegue solver porque se encontra numa situação de insolvência.
8.ª Sendo por de mais evidente que a Recorrente demonstra a existência do seu crédito (demonstração que deverá ser alcançada com uma prova sumária, compatível com a natureza própria do processo de insolvência).
9.ª A interpretação (errada) da Lei que o Tribunal a quo fez, inviabilizaria qualquer pedido de insolvência, pois era suficiente o insolvente opor-se e alegar factos contraditórios, que tivessem a aparência de “densos” e “complexos” e, deste modo, seria uma forma adequada para impedir a apreciação de qualquer situação da insolvência.
10.ª Entende a Recorrente que tem legitimidade (activa) nos presentes autos, e que em caso algum poderia a exceção de ilegitimidade ter sido julgada procedente.
11.ª Ainda por força do princípio da suficiência, a circunstância de se encontrar pendente acção onde o crédito invocado pela Recorrente está a ser discutido não impede que a sua legitimidade seja discutida no âmbito da fase declarativa do processo de insolvência. Não se coloca, pois, no caso vertente, a possibilidade de se estar perante uma situação de prejudicialidade, nem tão-pouco se afigura relevante a possibilidade de ocorrerem contradições entre a decisão a proferir na acção onde o crédito é contestado e na acção de declaração de insolvência.
12.ª A posição subjetiva da credora Recorrente enquanto beneficiária das medidas de tutela e ressarcimento do seu crédito no âmbito do processo de insolvência, sempre terá de ser, como as dos demais credores, apurada em sede de verificação e reconhecimento de créditos, no apenso ao processo de insolvência que se destina a verificar o passivo do requerido, em momento posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência.
13.ª Entende a Recorrente que objetivamente nada obsta a admitir-se a possibilidade de que a credora Recorrente, (e que acredita que o será, tanto que moveu os meios judicias declarativos para obter título executivo) a cujo conhecimento, na pendência dessa acção, tenham chegado factos demonstrativos da situação de insolvencial da sua devedora (Recorrida), possa vir alertar a comunidade desses factos.
14.ª Salvo melhor e douta opinião, está demonstrado que não há razões normativas, sistemáticas ou lógicas que justifiquem – pelo contrário – a improcedência do pedido de declaração de insolvência pelo facto de o crédito em que o requerente da declaração da insolvência estar a ser discutido em acção própria intentado com o fito de obtenção de um título executivo.
15.ª Pelo exposto o Tribunal a quo errou na aplicação do direito, pelo que violou o disposto nos artigos 20.º, n.º 1, 27.º n.º 1, alínea a), do CIRE e artigo 91º do CPC”.
A requerida contra-alegou, sustentando sem surpresa a manutenção da decisão recorrida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se a requerente tem legitimidade para instaurar a presente acção.
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II. Fundamentação
De facto
À decisão interessam os factos relatados em I e ainda os seguintes:
1. A aqui requerente instaurou contra a requerida procedimento injuntivo tendo em vista a cobrança da quantia de € 66.061,13, parte do preço alegadamente em dívida pelos serviços prestados no âmbito do contrato celebrado entre as partes em 25 de Outubro de 2019.
2. A aqui requerida deduziu oposição no âmbito do processo referido em 1 – peça entrada em juízo em 12/1/2021 – encontrando-se os autos pendentes no 2.º Juízo Central Cível de Faro-Juiz 2, onde correm termos sob o n.º 97609/20.5YIPRT.
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De Direito
Da legitimidade da requerente
O CIRE[1] consagra uma legitimidade activa alargada, prevendo, a par do dever do devedor – com excepção das pessoas singulares que não sejam titulares de empresas – se apresentar à insolvência (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2), um leque alargado de legitimados, dentre eles “qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do seu crédito (…)” (n.º 1 do artigo 20.º, corpo, epigrafado de “Outros legitimados”).
Estabelece, por seu turno, o artigo 25.º, n.º 1, que o credor requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito.
Da conjugação destes preceitos resulta que a lei atribui legitimidade para requerer a insolvência do indicado devedor a quem se arroga a qualidade de credor, estando em causa a legitimidade processual ou ad causam, que não se confunde com a legitimidade substantiva.
Tal orientação foi claramente acolhida pelo STJ no acórdão de 29/3/2012[2], no qual se afirmou que:
“1. O titular de crédito litigioso encontra-se legitimado, ao abrigo do preceituado no artigo 20.º, n.º 1, do CIRE, para requerer a declaração de insolvência do respectivo devedor.
2. Trata-se, in casu, de legitimidade processual ou ad causam, não contendente com o mérito da causa a que diz respeito a existência ou inexistência do controvertido crédito”.
No mesmo sentido esclarece a Sr.ª C.ª Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, página 117): “Ora, o que está em causa no artigo 20.º, n.º 1, é a legitimidade processual e não a legitimidade substantiva. Sempre que se trate de um credor, por exemplo, a lei não exige que ele produza prova da qualidade que alega (…), mas tão-só que ele proceda à justificação do crédito, através da menção da origem, da natureza e do montante do seu crédito (artigo 25.º, n.º 1).
Não há, assim, nenhum impedimento a que o titular de um crédito litigioso ou, para usar a definição do artigo 579.º, n.º 3, do Código Civil, de um crédito que “é contestado em juízo contencioso”, possa requerer a declaração de insolvência”.
E prossegue “A solução é a única coerente com a concepção correta do processo de insolvência – com a convicção de que ele não é um puro processo de execução, de que a situação material subjacente é a situação de insolvência e não a relação jurídica obrigacional entre os sujeitos e, principalmente, de que existem outros interesses a tutelar para lá dos interesses do requerente”.
Face a tal entendimento, só a título verdadeiramente excepcional se deve ter por excluída a legitimidade daquele que se arroga credor do requerido, apontando a este respeito a mesma autora, para além dos expressamente previstos na lei, apenas aqueles casos “em que se torne evidente que o uso da legitimidade atribuída, em abstracto, pela lei, é, em concreto, incompatível com o disposto noutras normas jurídicas – em que existe claramente abuso de direito” (ob. cit., pág. 11).
Não se questionando na decisão apelada que os titulares de créditos litigiosos têm, em princípio, também eles, legitimidade para requerer a insolvência do indicado devedor, entendimento que, de resto, se afigura hoje claramente maioritário, defendeu-se no entanto que a extensa litigiosidade que envolve o crédito invocado pela ora recorrente, demandando para a sua demonstração a produção de meios de prova não compatíveis com uma indagação necessariamente abreviada imposta pela natureza urgente dos presentes autos, prejudicava a legitimidade do requerente.
Não concordamos, porém, com o decidido.
Com efeito, nada na lei permite fazer depender a legitimidade do requerente titular de crédito que é contestado quanto à sua origem, montante ou natureza, da extensão do litígio. Deste modo, admitindo embora que não logrando o requerente demonstrar a existência do crédito cuja titularidade se arroga, na ausência de outros créditos vencidos, tal insucesso probatório confira relevância à falta de legitimidade substantiva, maneira que, afirmada essa falta após produção infrutífera da prova sobre a existência do alegado crédito, tal determine a absolvição do requerido do pedido (não já da instância[3]), não é essa a situação dos autos. Com efeito, para lá da requerente e agora apelante ter apontado um outro credor – ainda que a requerida tenha impugnado que se trate de um crédito vencido – a verdade é que àquela não foi concedida a oportunidade de fazer prova da existência do crédito que se encontra contestado. Deste modo, tendo indicado na petição inicial a origem, montante e natureza do crédito, tanto basta para que lhe seja reconhecida legitimidade para propor a presente acção.
Refira-se, em reforço, que uma vez produzida a prova que o tribunal julgue admissível, a decisão a proferir atenderá naturalmente à repartição legal do respectivo ónus, decidindo contra a parte onerada caso não se tenha desincumbido do seu encargo probatório, sem que, todavia, se forme caso julgado material, donde não ficar prejudicado eventual reconhecimento do crédito numa outra acção instaurada para o efeito. Assim o afirmou o STJ em acórdão de 8/9/2021[4], de que se destaca o seguinte ponto do sumário: “IV. A sentença de improcedência da insolvência, cuja fundamentação não tiver reconhecido o crédito invocado na petição inicial desse processo, não tem força de caso julgado material em relação a este crédito não reconhecido, para vincular a apreciação de mérito de uma acção posterior destinada directamente a reconhecer ou cobrar esse crédito”.
Decorre de quanto se deixou dito que a recorrente tem legitimidade ad causam para instaurar a presente acção, devendo os autos prosseguir para apreciação das demais questões que pelas partes foram suscitadas.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e, afirmada a legitimidade activa da requerente, determinam o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões que neles foram suscitadas.
As custas do recurso, na modalidade de custas de parte, serão suportadas pela requerida.
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Sumário:
(…)
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Évora, 28 de Outubro de 2021
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho

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[1] Diploma a que pertencerão as disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
[2] Processo n.º 024/10.5TYVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr., neste sentido, o acórdão do TRG de 19/06/2019, processo n.º 80/18.T8TMC.G1 e de 03/03/2020, processo n.º 3422/19.0T8VIS.C1 e deste TRE de 25/03/2021, processo n.º 198/20.1T8OLH-D.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo 737/17.5T8VNF-A.G1.S1, em www.dgsi.pt.