Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
289/11.OT3STC.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CRIME CONTINUADO
NE BIS IN IDEM
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I - Os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social protegem diferentes bem jurídicos e encontram-se entre si numa relação de concurso efectivo.
II - É legalmente admissível a concessão de um prazo de pagamento da indemnização condicionante da suspensão da pena superior ao prazo de duração da própria suspensão.
III - Permitir que o arguido pague no prazo alargado que o art. 14.º do RGIT lhe concede, sem ampliar o período de suspensão da prisão que o art. 50º, nº 5, do Código Penal prevê, mantém a pena suspensa na sua matriz de “tempo de prisão igual à duração da suspensão” e permite, simultaneamente, a aplicação do prazo ampliado previsto naquele art. 14.º.
IV - O art. 57.º, n.º 2, do Código Penal deve, para o efeito, ser interpretado no sentido de abranger também os casos em que o processo terá de aguardar o decurso do prazo para pagamento da indemnização referida nesse art. 14º, quando concretamente superior ao período de suspensão da pena.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 289/11.OT3STC.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 289/11.OT3STC do juízo de instância criminal de Santiago de Cacém foi proferida sentença condenando a arguida A pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social dos artigos 7º, 105º, n.ºs 1 e 5, e 107º do RGIT, na pena de 300 (trezentos) dias de multa a €5,00/dia, e o arguido B, como autor de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social dos artigos 105º, n.ºs 1 e 5 e 107º do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão suspensa na execução, subordinando a suspensão à obrigação do arguido proceder ao pagamento da prestação tributária no valor total de €561.299,53.
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“1) Por sentença proferida nos presentes autos, foi o arguido B condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artº105º, nº1 e nº5, e artº107, do RGIT, na pena se 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
2) O presente recurso versará sobre a matéria de direito, como consta das conclusões formuladas e a seguir enunciadas;
3) O tribunal a quo para a apreciação e escolha do tipo e medida de pena a aplicar ao arguido B, entendeu como circunstâncias atenuantes, as seguintes:
a. A circunstância do arguido B já não levar a cabo qualquer actividade comercial ou industrial no nosso país, tendo pela emigração procurado a obtenção de novos meios e alternativas económicas;
b. A circunstância de não lhe serem conhecida maior riqueza pessoal;
c. O contexto da sua atuação e a circunstância de ter liquidado, na sua maioria, os vencimentos dos trabalhadores, o que pese embora não justificando a sua atuação, curará de mitigar a sua culpa;
4) O tribunal a quo, por sua vez, entendeu como circunstâncias agravantes as seguintes:
a. «a demonstração por este e outros actos, da profusão do incumprimento dos deveres públicos;
b. A dimensão expressiva dos valores subtraídos à Segurança Social;
c. Os antecedentes dos arguidos B e “A”, materializada em duas condenações por abuso de confiança fiscal, em pena de prisão e multa.»
5) O arguido B respondeu anteriormente pelos factos constantes no processo 844/06.0TDLSB, pelos quais foi condenado a uma pena de um ano e dois meses de prisão e no processo 22/09.6IDSTB, pelo qual foi condenado a uma penha de multa (15 dias de multa), a qual já liquidou;
6) Nos dois processos anteriores e supra referidos no ponto 5., o tipo de ilícito praticado pelo arguido B é o mesmo, o período temporal, o mesmo (período de 2004 a 2008), o bem jurídico pretendido é o mesmo, tendo o arguido praticado os factos actuando com um propósito único, agindo com a mesma motivação;
7) Ora, estabelece o artº30º, nº2 do C.P., que constitui só um crime continuado, a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico, referindo a sentença que o crime foi executado de forma homogénea, no âmbito da mesma actividade profissional;
8) Resulta que interpretando e aplicando correctamente o artº30º do CPP, à situação em apreço, o arguido terá cometido um único crime e não uma profusão de crimes, ao contrário do referido na sentença, já que o arguido não cometeu qualquer outro tipo de ilícito, quer durante quer após o período temporal em causa nos três processos;
9) O arguido respondeu assim em três processos distintos, por inércia do próprio estado e das autoridades administrativas, as quais deveriam ter agido atempadamente, não o tendo feito;
10) Estabelece o artigo 29º nº5 da CRP, o principio ne bis in idem, pelo qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, tendo tal principio a génese da necessidade de garantir a paz a segurança jurídica de todo o sistema penal português, estando vertido tal principio em vários artigos do código processo penal;
11) Tendo o arguido B sido julgado e condenado pelo mesmo tipo de ilícito e pelos mesmos factos, constantes da acusação, nos três processos, resulta que por interpretação de tal preceito constitucional, não deveria o arguido ter sido julgado e condenado no âmbito deste processo, objecto do presente recurso;
12) Ao fazê-lo, incorre o tribunal numa violação do princípio constitucional, consagrado no artº29º, nº5 da Constituição da Republica Portuguesa, ocorrendo a excepção de caso julgado no presente processo, devendo como tal ser declarado por este Venerando tribunal, revogando-se a sentença proferida e absolvendo-se o arguido B do crime de que vem acusado;
13) Mas mesmo quando assim doutamente se não entenda, sempre as circunstancias consideradas como agravantes pelo tribunal, quando na sentença refere concretamente os antecedentes criminais do arguido B, em duas condenações anteriores, verdadeiramente não o seriam, por força do exposto nas conclusões anteriores;
14) Porquanto não pratica vários crimes fiscais, mas um único crime fiscal ou contra a segurança social, o agente que no mesmo período temporal comete vários ilícitos, mas do mesmo tipo de crime, não devendo tal facto constituir agravante, quer na medida da pena, quer na escolha da mesma;
15) Ao fazê-lo, interpretou incorrectamente o tribunal a quo o artº30º -nº2 do Cód. Penal e aplicou incorrectamente o direito aos factos, ao ter considerado tal circunstância como agravante, quando o não era;
16) O sentido correcto da norma e da aplicação da mesma no caso dos autos, deverá ser a dos dois processos anteriores, pelos quais o arguido B foi condenado, não deveriam constituir circunstâncias agravantes, devendo em consequência de tal interpretação ser a sentença revogada por outra que reduza a pena aplicada ao arguido B e substitua a mesma por pena não privativa da liberdade;
17) Ou se assim se não entender, deverá sempre a sentença ser revogada e substituída por outra que aplique ao arguido pena não privativa de liberdade, a fixar segundo o prudente arbítrio deste tribunal ou não sendo possível seja fixado o regime de trabalho a favor da comunidade;
18) Ademais e não obstante o referido em supra nas conclusões anteriores, as necessidades de prevenção especial, no caso concreto dos autos, não são elevadas, como aliás resulta da análise dos factos dados como provados nos pontos 22, 18, 17, 14 e 15, constando igualmente da sentença que não lhe é reconhecido ao arguido maior riqueza pessoal e que sempre privilegiou o pagamento dos trabalhadores;
19) Tais factos devidamente interpretados e à luz das mais elementares regras da experiencia comum, deverá resultar que a possibilidade de o arguido B voltar a cometer um crime, está praticamente afastada, não existindo particular necessidade de prevenção especial, no que ao arguido B diz respeito;
20) O sistema penal português pretende ser um sistema re-socializador e de reintegração do individuo, devendo as penas de prisão ser utilizadas quando outro tipo de penas não acautele de forma eficaz e suficiente, o cometimento de novos crimes, devendo o juiz optar pela pena que melhor se adeqúe aos referidos objectivos de prevenção especial;
21) Assim, apenas deverá ser sujeito o arguido a uma pena privativa da liberdade, se a execução da pena de prisão for exigida pela referida necessidade de prevenção especial, ou seja, para evitar o cometimento de novos crimes por parte do arguido;
22) Ora estando o arguido integrado na sociedade, remontando os factos a um determinado e localizado período de vida do arguido, o qual passou sem o cometimento de outros crimes, o qual o cometido foi devido a não conseguir pagar as contribuições nesse período de tempo, e nas circunstancias dadas como provadas nos pontos 14, 15, 17, 18 e 22, resulta que tal conduta será irrepetível no futuro, beneficiando de juízo de prognose favorável de que não cometerá novos crimes;
23) Pelo que, poderá ao arguido ser aplicada uma pena não privativa da liberdade e sendo a mesma inferior a 2 anos, o tribunal pode substitui-la por prestação de trabalho a favor da comunidade, previsto no artº58º., nº1 do Cód. Penal;
24) Devia verdadeiramente o tribunal a quo quando concluiu serem relevadas as necessidades de prevenção especial, quando não são e ao não fazê-lo, violou o tribunal a quo o disposto no artº43º, nº1 do C.P., os artº58º-n1 do CP ao não proceder à sua aplicação ao arguido B, de pena não privativa de liberdade e ao não substitui-la por prestação de trabalho a favor da comunidade;
25) Pelo exposto deverá a sentença em apreço ser revogada e substituída por noutra que aplique ao arguido uma pena não privativa da liberdade e substitui-la por prestação de trabalho a favor da comunidade;
26) A moldura da pena para o crime de abuso contra a segurança social, vai de um a cinco anos.
27) A pena aplicada ao arguido B foi de um ano e seis meses de prisão;
28) A determinação da medida da pena deve ser feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção geral e especial, de acordo com o estabelecido no art.º 71º do Cód. Penal;
29) Não existindo necessidade de prevenção especial, e não podendo tais necessidades gerias sobrepor-se às necessidades de prevenção especial, atento o já vertido nas conclusões anteriores, as quais se dão aqui por reproduzidas nos pontos 18 e 19 das primeiras conclusões, e não existindo dolo na sua forma mais grave, deveria antes ter sido aplicada a pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução, por se mostrar justa e adequada aos factos praticados pelo arguido;
30) Ao invés, a pena de um ano e seis meses mostra-se injusta na medida em que o arguido sempre procurou liquidar as suas dívidas fiscais, excessivas porque seria mai adequada a pena de um ano e desajustada porquanto o arguido não cometeu qualquer outro tipo e crime;
31) Pelo exposto, ao não ter aplicado ao arguido uma pena de um ano de prisão, violou o tribunal a quo o artº79º do C.P., cometendo um erro de julgamento, devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que aplique ao arguido uma pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução;
32) O tribunal a quo aplicou ao arguido a pena de um ano e seis meses de prisão, pelo crime de abuso de confiança, contra a segurança social, p. e p., pelos artigos 105º, nº1 e nº5 e artº107, ambos do RGIT, ponto c) da decisão.
33) Decidiu igualmente o tribunal suspender a pena mencionada em c) pelo período de um ano e seis meses, subordinando a suspensão á obrigação do arguido proceder ao pagamento da prestação tributária em dívida, no valor de €561.299,53, acrescida de juros contabilizados sobre tal quantia e legais acréscimos, ponto D) da decisão.
34) Entende o arguido que o prazo de um ano e seis meses estabelecido para a suspensão da pena, para o arguido puder beneficiar da sua não execução, na condição de pagar a quantia em dívida, é manifestamente um prazo demasiado curto e de muito difícil execução.
35) A legislação aplicada ao caso sub-judice será a prevista no artº14º, nº1 do RGIT, a qual estabelece o prazo máximo de cinco anos para efeitos de suspensão condicionada e não a prevista no artº50º, nº1 do C.P., uma vez que a primeira se trata de legislação especial não revogada, aliás no mesmo sentido foi assim entendido por este tribunal no processo 118/09.4IDFAR.E2 de 26/6/2011;
36) Pelo que, e salvo melhor opinião, será a norma do nº1 do artº14º do RGIT que estabelecerá o limite de suspensão condicionada e não o previsto no artº50º, nº1 do C.P;
37) Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo decidiu mal, interpretando incorrectamente o sentido da norma estabelecida no nº1 do artº14º do RGIT, devendo proceder-se á aplicação no caso, da referida norma contida no artº14º, nº1 do RGIT e do período de suspensão por cinco anos, aí previsto;
38) Mostra-se este regime contido na lei especial mais favorável ao arguido, e razoável, atendendo ao montante e ao prazo de cinco anos permitido na norma especial, não revogada, ao invés do período de suspensão agora fixado pelo tribunal a quo de apenas um ano e seis meses, o qual se mostra assim desajustado;
39) Pelo exposto e caso não procedam as conclusões efectuadas em supra, nos pontos I, II, III E IV, deverá a sentença que decidiu pela suspensão condicionada de apenas um ano e seis meses, ser sempre revogada e substituída por outra que conceda ao arguido o período de cinco anos de suspensão condicionada da pena que lhe foi aplicada;
40) A Constituição da República portuguesa estabelece no seu artigo primeiro que: « Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.» e no seu Artigo Segundo, que: « A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.»
41) A norma contida no artº14º do RGIT, na realidade estabelece a prisão por dívidas, pela qual se exige e se impõe, de forma automática, e sem qualquer outra opção;
42) Assim, o condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento da totalidade dos impostos devidos, é inconstitucional, por violação dos princípios mais elementares do estado de direito democrático, da dignidade da pessoa humana e das liberdades e garantias constitucionais;
43) É igualmente violador dos princípios de separação de poderes, uma vez que manda a norma estabelecida no artº14º, nº1 do RGIT, aplicar de forma automática e sem qualquer outra opção, esvaziar a função do juiz e esvazia também dessa forma o poder da função jurisdicional do estado;
44) A norma estabelecida no nº1 do artº14º do RGIT é alheia a qualquer sentido de culpa e ao princípio estabelecido, quer na Constituição, quer na legislação penal portuguesa, pelo qual é a culpa e o seu critério, o princípio nuclear de todo o sistema penal português;
45) Pelo exposto, a imposição da suspensão na condição de pagamento, estabelecida na norma do artº14º, nº1 do RGIT, sem qualquer outra opção dada ao Juiz que caso não seja cumprida imponha sempre a revogação da referida suspensão, ofende o princípio do critério de culpa estabelecido no Código penal português, ofendido por essa via os preceitos constitucionais supra citados nos artigos 1º, 2º, 13º, 17º, 18º, 23º, 27º, 202º e 203º, todos da Constituição da república Portuguesa.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e pela confirmação da sentença
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se também no sentido da improcedência, mas nada acrescentando.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. O arguido C consta registralmente (desde 23 de novembro de 2007) como gerente da sociedade comercial A, com sede (…), sociedade esta que iniciou em 2002 a atividade de cedência temporária de trabalhadores para utilização de terceiros, seleção, orientação, formação, consultoria e gestão de recursos humanos;
2. Durante todo o período de tempo compreendido entre julho de 2003 a setembro de 2008, o arguido B foi gerente de facto da sociedade arguido (sendo entre 30 de novembro de 2003 a 23 de novembro de 2007 também gerente registral), administrando a referida sociedade, tomando todas as decisões respeitantes à mesma, fornecendo orientações aos seus trabalhadores;
3. Como contribuinte da Segurança Social, a sociedade comercial A. Está inscrita e coletada sob o n.º (…);
4. Por motivos relacionados com dificuldades económicas do setor de atividade da empresa, o arguido B gizou um plano que consistia na retenção das contribuições devidas à Segurança Social, efetivamente descontadas nos vencimentos dos trabalhadores, e na aplicação dos respetivos valores em proveito da sociedade, sempre que a falta de liquidez não lhes permitisse fazer face aos encargos do giro industrial;
5. E, assim, em execução desse plano previamente delineado, B procedeu ao desconto nos vencimentos dos trabalhadores, a título de contribuições devidas à Segurança Social: a) nos meses de agosto de 2004 a agosto de 2006; b) nos meses de novembro de 2006 a setembro de 2007; c) nos meses de novembro de 2007 a setembro de 2008;
6. Descontos que totalizam a quantia global de €561.299,53 (quinhentos e sessenta e um mil, duzentos e noventa e nove euros e cinquenta e três cêntimos);
7. Em resumo, na execução do plano traçado, e durante os períodos de tempo descriminados, na qualidade de gerente de facto e de direito nos supra identificados períodos da sociedade comercial A, o arguido B reteve e aplicou em proveito próprio da sociedade a quantia indicada em 6);
8. E fê-lo, apesar de saber que tal montante pertencia à Segurança Social, a quem o devia ter entregue por a tal estar legalmente obrigado;
9. Por outro lado, mostra-se decorrido o prazo de 30 (trinta) dias após a notificação para efetuar o pagamento da quantia em dívida à Segurança Social, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, sem que a sociedade arguida e o arguido B tenham procedido ao pagamento das cotizações referentes aos meses supra identificados;
10. Os arguidos B e A agiram de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços e vontades, e na sequência de um plano previamente delineado, a que o primeiro aderiu e deu execução, com a intenção concretizada de garantir proventos económicos para a sociedade comercial que geria, integrando no respetivo património quantias que sabiam não lhes pertencer, por estar legalmente obrigado a entregá-las à Segurança Social;
11. Tinham os arguidos B e A, além disso, perfeito conhecimento que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei;
12. A sociedade arguida era titular do alvará n.º 400 para o exercício da atividade de cedência de trabalhadores;
13. Exercendo a sua atividade maioritariamente com vista à cedência de trabalhadores aos domínios agrícola e de jardinagem, contava nos seus clientes com as sociedades D, E, F;
14. Tais sociedades incorriam, por diversas vezes, em atrasos no pagamento de faturas emitidas pela “A”, relativas à cedência de mão de obra, as quais contavam, enquanto prazos de vencimento, os de 30, 60 ou 90 dias;
15. Gerando, dessa forma, situação de atraso no cumprimento, entre outras, das obrigações fiscais por aquela sociedade;
16. Por outro lado, alguns dos clientes da sociedade arguida, entre os quais E, ficaram a dever àquela avultadas quantias em dinheiro;
17. Sempre que o valor dos recebimentos e, consequentemente, das disponibilidades financeiras da sociedade “A”, se revelou exíguo, o arguido B privilegiou o pagamento dos vencimentos dos trabalhadores (os quais sempre tiveram lugar, com exceção dos últimos meses de funcionamento da sociedade);
18. Isto sem prejuízo de tentar liquidar, ainda que com atrasos, as responsabilidades perante a Administração Tributária e Segurança Social, com sucedeu quanto à primeira nos anos de 2003, 2004, 2005 e parte de 2006, 2007 e 2008;
19. A administração Tributária moveu contra a sociedade arguida inúmeros processos de execução fiscal;
20. Por outro lado, a sociedade arguida confrontou-se com a negação da concessão de renovação de alvará de atividade, designadamente sob o fundamento da existência de dívidas perante a Administração Fiscal e Segurança Social, o que determinou a cessação da sua atividade em janeiro/fevereiro de 2009;
21. Foi por “imposição” do IAPMEI, gerada no âmbito da negociação contendente à renovação do alvará de atividade da sociedade “A”, que o arguido C assumiu, formalmente, as funções de gerente;
22. O arguido B encontra-se emigrado em Cabo Verde, onde leva a cabo a actividade de venda de pneus;
23. Aufere vencimentos não concretamente apurados;
24. A esposa do arguido e os dois filhos menores do casal residem em Portugal;
25. O arguido C é supervisor de pessoal na empresa agrícola “(…);
26. Por via da atividade supra, aufere €750,00;
27. Vive com a companheira e uma filha, com 10 anos de idade;
28. A companheira do arguido explora comercialmente um café, auferindo por essa atividade o rendimento mensal de €800,00;
29. Residem em casa própria, pela qual despendem o valor de €370,00;
30. Liquida empréstimo no valor de €440,00;
31. Tem o 9.º ano de escolaridade;
32. Do CRC do arguido B constam os seguintes averbamentos criminais: a) pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 5 do RGIT, por factos ocorridos em 2003, sancionados por sentença de 3/11/2010, na pena de 1 ano e 2 meses, suspensa na sua execução sob a condição do pagamento da quantia em dívida à Administração Tributária (Proc. n.º 844/06.0TDLSB deste Tribunal); b) pelo crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, por factos ocorridos até 2008, sancionados em 11/03/2011, na pena de 150 dias de multa (Proc. n.º 22/09.6IDSTB deste Tribunal);
33. Do arguido da sociedade A constam as seguintes condenações: a) pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 5 do RGIT, por factos ocorridos em 2003, sancionados por sentença de 3/11/2010, na pena de 280 dias de multa (Proc. n.º 844/06.0TDLSB deste Tribunal); b) pelo crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, por factos ocorridos até 2008, sancionados em 11/03/2011, na pena de 150 dias de multa (Proc. n.º 22/09.6IDSTB deste Tribunal);
34. Do CRC do arguido C nada consta.”
Foi ainda consignada a inexistência de factos não provados.

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes:
(a) Unidade de crime e violação do ne bis in idem;
(b) Medida da pena, condicionamento da suspensão da execução da pena e inconstitucionalidade do artº14º, nº1 do RGIT.

(a) Da unidade de crime e da violação do ne bis in idem
Dos factos provados resulta que o recorrente sofreu duas condenações anteriores – “pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, do artigo 105º, n.ºs 1 e 5 do RGIT, por factos ocorridos em 2003, sancionados por sentença de 3/11/2010, na pena de 1 ano e 2 meses, suspensa na sua execução sob a condição do pagamento da quantia em dívida à Administração Tributária (Proc. n.º 844/06.0TDLSB deste Tribunal)” e “pelo crime de abuso de confiança fiscal, do artigo 105º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, por factos ocorridos até 2008, sancionados em 11/03/2011, na pena de 150 dias de multa (Proc. n.º 22/09.6IDSTB deste Tribunal).
Desta circunstância extrai o recorrente que “o tipo de ilícito praticado é o mesmo, o período temporal, o mesmo, o bem jurídico protegido é o mesmo, tendo o arguido praticado os factos actuando com um propósito único, agindo com a mesma motivação”, que “o crime foi executado de forma homogénea, no âmbito da mesma actividade profissional” e que toda a sua conduta delituosa, incluindo a agora em apreciação, constitui um só crime continuado.
De tudo conclui que foi por incúria do próprio Estado que foi julgado em três processos distintos e que o artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa impede que seja agora condenado (de novo) nos autos.
O recorrente invoca o concurso aparente de infracções e a continuação criminosa, fazendo-o indistintamente, sendo certo que se trata de figuras jurídicas diferentes, que não se confundem. De comum, existe apenas a circunstância de se inserirem na temática mais vasta da unidade ou pluralidade de crime.
O nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa estipula que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Este preceito confere dignidade constitucional ao princípio clássico do ne bis in idem, que impede que uma mesma questão seja de novo apreciada, pelo que o que se deva entender por “mesmo crime” assume também aqui extrema importância.
Proibindo a Constituição que se seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, cumpre então saber concretamente se o caso julgado material que se formou na sequência das condenações anteriores sofridas pelo arguido abrange também o crime (continuado) agora em apreciação. O que, a suceder, obstaria à nova condenação.
Como sinalizam Canotilho e Vital Moreira a propósito do ne bis in idem, “o problema pode não ser fácil nos casos de comparticipação, concurso de crimes e de crime continuado” (CRP anot.. 2007, p. 497) como ocorre aqui.
Cumpre começar, então, por precisar se o crime dos autos – de abuso de confiança contra a segurança social – se encontra (ou não) numa relação de concurso efectivo com os crimes de abuso de confiança fiscal que foram objecto das condenações anteriormente sofridas pelo arguido, afirmação (pela positiva) de que dependerá agora a possibilidade de condenação.
Mas o eventual reconhecimento dessa relação de concurso efectivo não resolve ainda, em definitivo e por si só. o problema do ne bis in idem. Haverá que afastar a possibilidade latente de integração das condutas do arguido numa mesma continuação criminosa, condutas que foram formalmente tripartidas em processos-crime diversos.
E há um ponto em que o recorrente tem razão: os três crimes poderiam ter sido apreciados num único processo-crime. Mas a sua razão termina aqui, como se verá, sendo certo que a proliferação por processos diferentes nunca o prejudicará materialmente. Na pluralidade de infracção, a regra é a de que o concurso de crimes dará lugar ao concurso de penas, e apenas uma sucessão de crimes poderá dar lugar a uma sucessão de penas.
O art. 78º do Código Penal, que trata do concurso superveniente, visa precisamente proceder à reposição da situação de igualdade entre arguido com conduta ilícita global conhecida logo num mesmo processo e arguido cujo ilícito global sofreu uma fragmentarização acidental por vários processos. Razões exclusivamente casuais e de procedimento (razões processuais) nunca ditarão diferenças de tratamento de direito material, particularmente no que às consequências do crime diz respeito.
Voltando ao caso, só o reconhecimento de que o crime dos autos concorre efectivamente com os das anteriores condenações (se afastada a hipótese de crime único e/ou de concurso aparente) e de que os crimes anteriores não serão susceptíveis de integrar a continuação criminosa afirmada na presente condenação, afastará a aplicação do ne bis in idem.
Importa, para tanto, concretizar e delimitar a situação de vida a que se deve atender para resolver a unidade ou pluralidade de facto e de crime, matéria que Eduardo Correia apelidou de “um dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal” (“Unidade e Pluralidade de Infracções”, Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1983 (reimpr.), p. 13).
Na aplicação dos art. 30º do Código Penal temos seguido a interpretação proposta por Figueiredo Dias para distinção de “mesmo crime” e de “crime diverso”, na garantia do princípio do ne bis in idem, da proibição da dupla valoração e “do mandato de esgotante apreciação de toda a matéria tipicamente ilícita submetida à cognição de um tribunal num certo processo penal” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2007, p. 978).
Referimo-nos ao critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global, que a partir de 2007 Figueiredo Dias passou a integrar nas suas Lições, num capítulo (41º) dedicado à unidade e pluralidade de crimes (loc. cit., pp. 977-1041).
Esclarecendo que “o crime por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal efectivamente aplicável ao caso”, não residindo a essência de uma tal violação “nem por um lado na mera “acção”, nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção”, mas “no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside (…) no ilícito-típico”, conclui que “é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crime”.
Diz Figueiredo Dias que deve reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa “a partir da consequência”, a existência de dois grupos de casos: (a) o caso “normal” em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos e, deste modo, a uma pluralidade de factos puníveis – hipóteses de concurso efectivo (do art. 30º,nº 1), próprio ou puro; (b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados – hipóteses de concurso aparente, impróprio ou impuro”.
E prossegue, “se face às normas concreta e efectivamente aplicáveis vários tipos legais se encontram preenchidos pelo comportamento global haverá concurso, mas não necessariamente concurso efectivo ou puro. Este pode não existir se se verificar que à pluralidade de normas efectivamente aplicáveis corresponde, apesar dela, um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante, verificando-se então um concurso aparente ou impuro. Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. Isto significa que o procedimento não pode em qualquer caso reduzir-se ao trabalho sobre normas, mas tem sempre de ser completado com um trabalho de apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto” (loc. cit., pp. 990-991).
Ora este conteúdo de ilicitude material, no caso sub judice, nem é único, nem existe um que, dentre os demais, assuma um conteúdo dominante. Assim, todos os sinais (ou circunstâncias) indicadores de um diverso e novo sentido de ilicitude revelado nos factos agora em apreciação, conduzem ao afastamento tanto duma unidade de crime que integrasse os factos já julgados, como de um concurso meramente aparente entre os dois tipos de crime, como por último, adiantamos já, uma única continuação criminosa.
Na verdade, as condutas delituosas, independentemente de se desenrolarem em período temporal mais ou menos próximo ou mesmo idêntico (elemento pouco relevante até), apresentam-se naturalisticamente distintas e separáveis, integram diferentes tipos de crime (de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social), tipos estes que protegem bens jurídicos que não são coincidentes.
A questão do bem jurídico e das demais dicotomias e/ou homologias existentes entre os dois crimes de abuso de confiança (fiscal, por um lado, e contra a segurança social, pelo outro), encontra-se amplamente desenvolvida e debatida no Acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2010 que se pronunciou no sentido da “exigência do montante mínimo de 7500 euros, de que o nº 1 do art. 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo art. 113º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º nº 1 do mesmo diploma”.
Na fundamentação deste acórdão, e com interesse para o caso presente, o Supremo Tribunal de Justiça ajuizou:
“Arriscamos a afirmação de que o crime do art. 107º nº 1 do RGIT aflora um bem jurídico em que se joga à partida, e sobretudo, o património da Segurança Social. Claro que é também possível ver aí, como desvalor da acção, a atitude de desobediência em relação a um comando que vincula o agente, ou, até, uma postura de rebeldia, perante a política social previdencial que o Estado promove.
Não temos por pacífico, longe disso, que se possa considerar que o bem jurídico subjacente ao crime de abuso de confiança fiscal e ao de abuso de confiança contra a segurança social, seja o mesmo (…).
O sistema fiscal do Estado e o sistema da Segurança Social constituem em si realidades diferentes, muito mais amplo aquele que este, e ambos organizados, evidentemente, a seu modo.
As finalidades prosseguidas pela fiscalidade e pela Segurança Social também divergem.
A natureza das contribuições para a Segurança Social não é, pelo menos no que toca ao trabalhador, a de um imposto.
O universo dos sujeitos passivos está também muito longe de coincidir.
Finalmente, as receitas da Segurança Social formam um património que se não dilui, pura e simplesmente, no erário público.
Daí que não seja só do ponto de vista político, económico, ou jurídico, que entre a fiscalidade e a Segurança Social haja importantes diferenças.
Do ponto de vista psicológico e social a comunidade não pode deixar de encarar estes dois sistemas como realidades diversas.
Uma coisa é o que o cidadão trabalhador (ou o empregador dele) paga ao Estado, ao serviço do apoio que desse Estado se possa vir a receber, para suprimento de limitações sentidas a nível individual (doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, segundo o art. 63º nº 3 da CR). Outra, completamente diferente, é o que todos pagamos ao Estado em impostos, para ser usado indiferenciadamente ao serviço de todas as despesas possíveis com que este tenha que arcar.
A “função tributária” ou as receitas fiscais do Estado visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, mas, também, uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza (art.º 103.º-1, da CRP).
À semelhança de um fundo de pensões, as contribuições para a Segurança Social destinam-se à prossecução dos seus fins muito específicos, de que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos.
No regime contributivo da segurança social as receitas arrecadadas não são do Estado, no sentido de integrarem directamente o «erário público», mas pertencem a uma entidade individualizada, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IGFSS (art. 25.º n.º 1 al. a) do DL 260/99 de 7 de Julho). O sistema previdencial tem mesmo por vocação autofinanciar-se.
E o facto de as receitas fiscais suprirem as carências do sistema da segurança social, só revela a subsidiariedade daquelas.
(…) Se o bem jurídico subjacente ao crime de abuso de confiança contra a segurança social é integrado antes do mais pelas receitas da Segurança Social, nunca poderá perder-se de vista a singularidade do financiamento desta. Singularidade que assenta em princípios como o da sustentabilidade, autonomia orçamental, reserva de lei, ou contributividade, e que não interessam da mesma maneira na área da fiscalidade.”
Toda esta argumentação é transponível para o caso presente, funcionando como um indicador de que, também aqui, os dois diferentes tipos de crime correspondem afinal a dois tipos de crime efectivamente cometidos, sendo por isso de reconhecer, concretamente, o concurso efectivo.
Mau grado as circunstâncias que o recorrente aponta – alguma proximidade temporal e espacial – não é possível descortinar no episódio de vida global nenhum indicador suficientemente forte que afaste a pluralidade de sentidos sociais de ilicitude, que decorrem da pluralidade de condutas e da diversidade de bens jurídicos violados.
No mesmo sentido da diversidade de bens jurídicos tutelados pelos dois tipos de abuso de confiança tributários se parecem pronunciar Carlos Adérito Teixeira e Sofia Gaspar (em Leis Penais Extravagantes, Org. P.P. Albuquerque, José Branco, II, p. 458/9).
Os factos objecto da condenação recorrida, em relação aos factos já julgados nos processos anteriores, preenchem assim um novo tipo de crime que com aqueles concorre efectivamente.
A relação de concurso efectivo não resolveria ainda, como dissemos, o problema do ne bis in idem, pois ela não seria impeditiva duma continuação criminosa (isto, independentemente do efeito de caso julgado não se estender desde logo a todos os factos que integrem uma continuação (nº 2 do art. 79º do Código Penal, aditado pela Lei nº 59/2007)).
O crime continuado tem na sua base uma pluralidade de infracções, existindo uma unificação jurídica de uma pluralidade de crimes assente numa considerável diminuição da culpa do agente, decorrente de um quadro facilitador exterior que cria “um cenário propício à perpetuação da actividade criminosa, facilitando-a de maneira apreciável” (Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 345). Curiosamente, já quanto à conexão temporal e espacial das actividades do agente, Eduardo Correia atribui-lhe importância quase residual.
Figueiredo Dias vê no art. 30º, nº2, o propósito da lei de tratar um concurso de crimes efectivo «no quadro da unidade criminosa, de uma “unidade criminosa” normativamente (legalmente) construída».
Estar-se-á perante uma diversidade de actos, sendo cada um susceptível de integrar várias vezes o mesmo tipo de crime ou tipos “análogos” (casos, portanto, de concurso efectivo); há, porém, uma conexão objectiva e subjectiva tal (de certo modo, como acontece no concurso aparente) que aconselha um tratamento unitário dos factos .
Quanto à conexão objectiva, exige-se que a realização continuada viole, se não o mesmo bem jurídico de forma plúrima, diversos bens jurídicos entre os quais haja, pelo menos, uma relação de proximidade ou afinidade grandes. A proximidade espácio-temporal dos actos entre si também é desvalorizada por este autor, tendo uma importância meramente indiciária
Note-se que, como explica Figueiredo Dias (e também outros autores), o propósito político-criminal que terá desde sempre estado na base da unificação normativa do facto própria do crime continuado, terá sido o de, relativamente a séries extensas de actuações típicas, evitar os dilemas práticos, muitas vezes insolúveis, de comprovação de cada uma das actuações que constituem a série, bem como os novos julgamentos provocados pela ignorância ou não acusação de comportamentos típicos que a integram (deveriam integrar). Isto para além da desproporcionalidade, ou mesmo injustiça, que seria punir estas situações como sendo de concurso efectivo, face ao conteúdo e sentido do ilícito global.
No caso presente, a unidade situacional e as circunstâncias exteriores facilitadoras funcionaram para unificar juridicamente todas as condutas omissivas de entregas das quantias retidas à Segurança Social. Daí ter sido o arguido condenado na sentença recorrida como autor de um só crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social (a correcção da sentença neste circunscrito ponto não constitui objecto do recurso, não cumprindo, por isso, sindicá-lo).
Mas a diversidade de bem jurídico em relação aos crimes já julgados nos outros processos (de abuso de confiança fiscal), mais precisamente a ausência identitária de bem jurídico ao nível exigido pelo nº 2 do art. 30º do Código Penal, obsta a que seja juridicamente admissível uma continuação criminosa que pudesse abarcar todas as condutas.
Daí que se conclua que o caso julgado que se formou em relação às anteriores condenações sofridas pelo recorrente não abrange os factos e crime presentes, pelo que a sentença recorrida não afronta o invocado princípio do ne bis in idem.

(b) Da medida da pena, do condicionamento da suspensão da execução da pena e da inconstitucionalidade da imposição da suspensão da pena à condição de pagamento por aplicação do artº14º, nº1 do RGIT.
O arguido foi condenado na pena de um ano e seis meses de prisão suspensa na execução, na condição de proceder ao pagamento da prestação tributária no valor total de €561.299,5.
Pede agora a redução da prisão para um ano e a substituição desta por pena não privativa da liberdade, designadamente por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Na sentença fundamentou-se a pena da forma seguinte:
“Aos arguidos é então imputada a autoria de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107º, com referência ao artigo 105º, ambos do RGIT, com penalidade compreendida de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1.200 dias para as pessoas colectivas.
De seguida, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar aos arguidos B e “A” e, dando cumprimento ao disposto no artigo 70º do Código Penal, a primeira operação que urge levar a cabo é, sempre que possível, a de optar entre uma pena privativa da liberdade ou uma pena não detentiva.
Reza o mencionado preceito que, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Tais finalidades são as constantes do artigo 40º, n.º 1 do Código Penal, ou seja, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
O crime cometido ofendeu um bem jurídico patrimonial (considerando uma hipotética escala de hierarquia entre os bens protegidos pelos tipos incriminadores), e consubstanciou-se numa lesão do património colectivo em €561.299,53
Por outro lado, importa também não descurar que a inércia do Estado, protelando a sua intervenção fiscalizadora, favorecendo dessa forma a conduta dos arguidos, permitindo o arrastamento da infracção desde 2004 a 2008.
Cumprirá, em idêntica medida, realçar o seguinte:
In casu, no que concerne à prevenção geral, as necessidades são prementes, quer pela frequência com que ocorre este tipo de crime, quer pela necessidade de promover a consciência ética fiscal e contributiva dos cidadãos.
No que concerne à prevenção especial, é de considerar:
Como circunstâncias atenuantes:
- A circunstância do arguido B já não levar a cabo qualquer actividade comercial ou industrial no nosso país, tendo pela emigração procurado a obtenção de novos meios e alternativas económicas;
- A circunstância de não lhe serem conhecida maior riqueza pessoal;
- O contexto da sua actuação e a circunstância de ter liquidado, na sua maioria, os vencimentos dos trabalhadores, o que pese embora não justificando a sua actuação, curará de a mitigar a sua culpa;
Como circunstâncias agravantes:
- A demonstração, por estes e outros autos, da profusão do incumprimento dos deveres públicos;
- A dimensão expressiva dos valores subtraídos à Segurança Social;
- Os antecedentes dos arguidos B e “A”, materializados em duas condenações por abuso de confiança fiscal, em pena de prisão e multa;
Concluímos serem assim relevantes as exigências de prevenção especial.
Tudo visto e ponderado, o Tribunal apenas se mostrará em condição de aplicar pena de multa à arguida pessoa colectiva, a qual se entende fixar em 300 (trezentos) dias, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
Relativamente ao arguido pessoa singular, o Tribunal julga impor por ajustada uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, afastando, por desajustado às referidas exigências de prevenção, que o seu cumprimento se efective por trabalho comunitário (o que até nem se mostrará possível face à ausência de residência do arguido em território nacional).
Decide-se, em todo o caso, e face à subsidiariedade da cárcere efectiva, pela suspensão da pena em referência pelo período da sua duração, isto é, por 1 (um) ano e 6 (seis) meses, devendo a suspensão ser condicionada ao pagamento da prestação tributária aqui em dívida, no valor total de €561.299,53 (quinhentos e sessenta e um mil, duzentos e noventa e nove euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros sobre a mesma contabilizados e legais acréscimos.”
Começa por se consignar que (também) em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico. O tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, apenas quando detecta incorrecções ou distorções no processo de determinação, ou seja, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena.
O recurso não visa, nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1ª instância enquanto componente individual do acto de julgar.
A sindicabilidade da pena pela Relação situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.
No caso, a sentença revela uma compreensão correcta do direito aplicável na determinação da medida da pena principal e na subsequente escolha da pena de substituição.
Na verdade, a determinação concreta da pena é uma actividade judicialmente vinculada cujo iter aplicativo inclui 1º escolha da pena principal (nos casos de pena compósita alternativa, o que não ocorre aqui), 2º determinação da medida concreta da pena principal, 3º ponderação da aplicação de uma pena de substituição (sempre que legalmente prevista no caso), sua escolha e determinação concreta. Os passos aplicáveis no caso mostram-se na sentença como tendo sido devidamente ponderados.
A fundamentação da pena envolveu os factos relativos à culpabilidade e os factos pessoais do agente, que incluíram os antecedentes criminais. Note-se que estes antecedentes não significam que o arguido não fosse considerado como “primário” à data da prática dos factos. Era-o, e como tal tem que ser tratado na sentença. Mas as condenações entretanto sofridas, que são apenas isso mesmo, não podem ser excluídas do processo de ponderação, equiparando-se indevidamente o arguido a um agente com uma única condenação.
Tendo presente que a decisão sobre a pena assenta num juízo de prognose, configurando “necessariamente uma estrutura probabilística” e não podendo “senão concretizar-se por aproximações” (assim, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 27), aos factos relativos à culpabilidade, acresceram os relacionados com a personalidade do arguido e com o seu comportamento anterior e posterior aos factos, incluindo essas condenações entretanto sofridas.
Assim, pelas razões que se desenvolvem na sentença, que traduzem uma correcta aferição do grau da ilicitude dos factos e respeitam o limite da culpa, a prisão suspensa na execução, fixada no ponto em que o foi, ou seja, próxima do limite mínimo (nada justificando que se situasse mesmo nesse mínimo, como pretende o recorrente) apresenta-se como a resposta adequada ao crime cometido e mostra-se fixada em medida que serve as finalidades de prevenção, gerais e especiais.
Também o condicionamento da suspensão ao pagamento da indemnização à Segurança Social não afronta princípio legal ou constitucional, antes traduzindo o acatamento da disciplina imposta pelo art. 14º, nº 1 do RGIT.
Na verdade, o Tribunal Constitucional sempre se pronunciou pela conformidade à Constituição do condicionamento da suspensão ao pagamento da dívida tributária.
Veja-se o acórdão n.º 237/2011 em que “não se julgou inconstitucional a norma que se extrai da leitura conjugada do art. 50º do CP e do art. 14º do RGIT, segundo a qual o tribunal criminal pode condicionar a suspensão da pena aplicada pelo crime de abuso de confiança fiscal ao pagamento das dívidas de natureza fiscal pelas quais a condenação foi proferida”. Ali se disse que “de facto, o condicionamento da suspensão da pena ao pagamento de tais dívidas não viola o princípio da proporcionalidade, nem o princípio da culpa, como se mostrou nos acórdãos nºs 256/2003, 335/2003, 376/2003, 500/2005, 309/2006, 543/2006, 587/2006, 29/2007, 61/2007, 327/2008 e 556/2009”.
Resta apreciar uma última pretensão do recorrente, que é a de ver prolongado o período de suspensão da pena, fixado na sentença em um ano e seis meses.
Este período (de um ano e seis meses) corresponde à duração da pena de prisão fixada na sentença, tendo a sentença feito aplicação do disposto no art. 50º, nº 5 do Código Penal.
O nº 5 do art. 50º foi introduzido na reforma de 2007 (pela Lei nº 59/2007) e alterou o regime que vigorava anteriormente, passando a impor a regra de correspondência legal entre o quantum de pena fixado e a duração do período de suspensão (que terá, no entanto, sempre um mínimo de um ano).
Na redacção anterior previa-se a possibilidade de fixação do período de suspensão até cinco anos, independentemente da medida da prisão aplicada, conferindo ao julgador a possibilidade de ajustar autonomamente os tempos de prisão e os de duração da suspensão, às reais necessidades de prevenção.
Já hoje, a pena de prisão suspensa terá de ser ponderada de um modo diferente, devendo o julgador pesar outras possibilidades, como as do reforço do período de suspensão com a imposição de deveres ou de regras de conduta, se assim o exigirem as exigências de prevenção (aqui, essencialmente especiais).
Mas parece-nos incontroverso que o legislador penal de 2007 pretendeu acabar com a fixação livre e autónoma do período de suspensão da execução da pena, designadamente com a possibilidade de uma pena curta de prisão se poder manter suspensa por um longo período ou seja, por tempo superior ao da sua própria duração.
O art. 14º, nº 1 do RGIT continua a prever os cinco anos como prazo limite para o pagamento da indemnização condicionante duma suspensão de pena. Ali se preceitua que “a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais (…)”.
Esta norma integra-se no Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, que visou combater a evasão fiscal, procedendo à unificação dos ilícitos tributários, reunindo as normas de carácter especial relativas a infracções aduaneiras, não aduaneiras e contra a segurança social (assim, Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 53/VIII). O nº 2 do art. 1º estendeu a aplicação desta lei “aos factos de natureza tributária puníveis por legislação de carácter especial”. O art. 2º dividiu as infracções tributárias em crimes e contra-ordenações, afirmando a sujeição aos princípios da legalidade e da tipicidade (art. 16º, nº2 da CRP e 12º, nº 2 da DUDH).
Na tutela do património fiscal e da segurança social, a opção do legislador português foi pois a de criação de um regime penal autónomo, extravagante, completo e fechado.
O recurso a um direito sancionatório penal restringe-se sempre ao mínimo indispensável à tutela de bens jurídicos fundamentais que materializam valores constitucionais. Só os bens jurídicos fundamentais, de reconhecimento constitucional, podem erigir-se como bens jurídicos penais (o art. 18º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa positiva a regra de que o direito penal deve ter uma função de protecção de bens jurídicos constitucionais).
Dissemos já que, na tutela do património fiscal do Estado, a opção do legislador português foi a de criação de um regime penal autónomo, extravagante, que prefere ao direito penal clássico e pode afastar a aplicação deste.
Acompanhamos por isso o acórdão do TRE de 21.06.2011 (Rel. António João Latas) na parte em que, após detectada a incompatibilidade entre as disposições do nº5 do art. 50º e do art. 14º nº1 do RGIT no que respeita ao prazo de duração da suspensão da execução da pena, não considera revogada esta última disposição legal.
Ali se argumenta pertinentemente: “Por um lado, a Lei 59/2007 não a revogou expressamente. Por outro, o art. 14º nº1 do RGIT não pode considerar-se tacitamente revogado na parte em que prevê que o pagamento da dívida fiscal possa ocorrer até ao limite de 5 anos (…). Na verdade, o preceito não pode considerar-se tacitamente revogado pela lei 49/2007, mais recente, pois acolhe norma especial face à norma do nº5 do art. 50º do C.Penal que rege para a suspensão da pena em geral e o nº3 do art. 7º do C.Civil, aplicável a todo o ordenamento jurídico, expressamente excepciona estas hipóteses do princípio da revogação tácita pela lei mais recente contido no nº2 daquele mesmo art. 7º”.
Mas já divergimos da posição defendida quando se conclui que “consequentemente o art. 14º nº1 do RGIT não pode considerar-se tacitamente revogado (…) na parte em que prevê que o prazo de suspensão da pena seja fixado até ao máximo de 5 anos nos casos a que se aplica aquele mesmo art. 14º”.
Na verdade, este regime especial não foi revogado pela lei geral e mantém-se, assim, em vigor. Só que não nos parece que ele preveja que o prazo de suspensão da pena seja fixado até ao máximo de cinco anos. Desde logo, porque não o diz.
As alterações ao Código Penal de 2007, particularmente a operada (re)conformação da pena em análise (pena de prisão suspensa na execução) implicam uma reinterpretação do art. 14º.
A interpretação das normas do RGIT, dentro, mas também fora dele na sua relação com o direito penal de justiça, evocam as palavras de Castro Mendes, de que “as leis se interpretam umas pelas outras”, e “cada conjunto de normas funciona em relação às outras como elemento sistemático de interpretação” (Introdução ao Estudo do Direito, 1977, p. 361).
O art. 14º do RGIT não prevê expressamente um prazo de suspensão da pena de prisão que permita ir além da regra fixada no art. 50º do Código Penal. E o art. 50º, nº 5 do Código Penal estipula inequivocamente que o período de suspensão da prisão será sempre obrigatoriamente equivalente ao da duração da pena (mas nunca inferior a 1 ano).
Segundo cremos, os princípios da legalidade e da tipicidade da pena impedirão que se interprete este art. 14º como uma norma que estipule prazos de suspensão da duração da prisão, uma vez que não o diz de uma forma suficientemente clara ou expressa.
O RGIT não possui uma norma (especial) que trate desta matéria, ou seja, que preveja a possibilidade do período de suspensão ter duração diversa da pena de prisão determinada na sentença e, assim, cremos ser vedado ao intérprete criá-la.
Prevê, sim, um prazo para pagamento da indemnização, o que não se equivale.
Na verdade, uma coisa é o prazo de pagamento da indemnização condicionante duma suspensão, outra, o prazo da própria suspensão da prisão (podendo aquele até ser inferior a este), com especificidades e condições diversas para os casos de incumprimento.
A prisão mantém-se politico-criminalmente como ultima ratio, devendo ser substituída por pena de substituição sempre que esta sirva adequadamente as finalidades da punição, e o incumprimento culposo de uma pena de substituição importará, em princípio, o cumprimento da pena de prisão substituída.
Este regresso (não automático) da pena de substituição à pena principal como consequência de um incumprimento culposo, é o reconhecimento da frustração da prognose em que assentou a pronúncia precedente, sobre a adequação e suficiência da pena de substituição para garantir as finalidades da punição.
Como faculdade latente (de conversão em prisão), a possibilidade de revogação das penas substitutivas visa conferir-lhes maior eficácia e efectividade, e insere-se plenamente num programa político-criminal de primeira opção pela não-prisão.
Mas o binómio pena principal / pena de substituição não se esgota na relação que entre uma e outra circunscritamente se estabelece. No processo de determinação da pena, está sempre em causa assegurar a protecção de bens jurídicos, aquilatando-se das exigências de prevenção diagnosticadas no caso, sendo a prevenção especial a relevar sobretudo, neste momento do iter aplicativo. O legislador optou por fazer impender sobre o arguido a ameaça da prisão até ao término do prazo de suspensão condicionando sempre a extinção da pena ao não cometimento de novos crimes
Neste sentido convergem os regimes de execução da pena de proibição de exercício de profissão prevista no art. 43º, da pena de permanência na habitação prevista no art. 44º, da pena suspensa prevista nos arts. 50 e seguintes e da pena de trabalho a favor da comunidade prevista no art. 58º - cf. os arts. 43º, nº 5, b), nº 6, 44º, nº 3, b), 56º, nº 1, b), 57º e 59º, nº 2, c), todos do Código Penal
O “não cometimento de novos crimes” funciona assim como o tipo-matriz da pena suspensa, mas pode não ser concretamente esta a única condição da substituição, que poderá surgir reforçada com “deveres” ou “regras de conduta”. O pagamento de indemnização é precisamente um desses deveres, na classificação do Código Penal (art. 51º, nº1-a)).
A pergunta que se põe é, então, a de saber se se apresenta como legalmente possível a concessão de um prazo de pagamento da indemnização condicionante da suspensão da pena superior ao prazo de duração da própria suspensão.
No acórdão TRE que referimos, entendeu-se que “dado o regime da suspensão da execução da pena, nomeadamente no que respeita às consequências do seu incumprimento e da sua extinção, o prazo de cumprimento de algum dos deveres ou regras de conduta não pode exceder o prazo fixado para a duração da suspensão” e que “o incumprimento sempre tem que ocorrer durante o período da suspensão e a pena é declarada extinta se decorrido o período da suspensão não se verificarem motivos para a sua revogação”.
Mas a lei penal e a lei tributária parecem não o proibir de modo expresso.
O Código Penal distingue até, respectivamente nos arts. 51º e 52º, o regime da imposição de “deveres”, do das “regras de conduta”. E o art. 52º, nº 1, que trata da imposição de regras de conduta, estipula que o tribunal pode impor ao condenado o cumprimento de regras de conduta “pelo tempo de duração da suspensão”. Já diferentemente o art. 51º nº1, que trata da imposição de deveres, refere apenas que “a suspensão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado … nomeadamente, pagar dentro de certo prazo… a indemnização devida…”.
Neste preceito já não se determina que o pagamento tenha de ser efectuado no tempo de duração da suspensão (mas é evidente que nos casos tratados no direito penal clássico, ou seja, fora da situação especial prevista no art. 14º do RGIT, a harmonia do sistema e a falta de previsão expressa em sentido diverso, implicarão que o “dever” deva ser fixado e cumprido no tempo de duração da suspensão).
Acresce que o art. 57º do Código Penal, que trata da “extinção da pena”, prevê no nº 2 a possibilidade da decisão sobre a extinção da pena não coincidir temporalmente com o fim do decurso do período da suspensão, ou seja, trata de situações em que, embora já findo o período de suspensão, “a pena só é declarada extinta” quando determinados incidentes (relativos a cumprimento de condições ou a outros processos pendentes por outros crimes relevantes para a decisão) findarem.
Não disciplinando expressamente, é certo, a hipótese tratada no art. 14º do RGIT – e é apenas desta que curamos aqui – não deixa de prever, no entanto, algumas situações semelhantes em que, apesar de já decorrido o período de suspensão da pena, a decisão sobre a extinção ou revogação não pode ser proferida de imediato.
Esta possibilidade de sustação da decisão sobre a extinção da pena e da sua projecção para um momento posterior ao decurso do período da suspensão contraria uma suposta ideia de obrigação legal de decisão imediata, ou de um direito do arguido a uma decisão seguida logo ao decurso do prazo de suspensão.
Somos sensíveis à ideia de que a interpretação que se adopta – no sentido do cumprimento do dever condicionante da suspensão poder ir além do período de suspensão – quebra alguma harmonia do sistema da pena suspensa (a que o acórdão TRE citado se mostrou sensível), no sentido de que a condição imposta (que deveria afinal manter-se, à semelhança das demais permissíveis, dentro do período de suspensão), se estende para lá dele.
Mas a concordância dos dois regimes, comum (do Código Penal) e especial (do RGIT), obrigaria sempre a uma extensão do sentido de uma das normas em conflito, e cremos ser, a extensão que propugnamos, a mais coerente com os princípios da legalidade e da tipicidade da pena.
Ela é, ainda, a interpretação mais favorável ao arguido, pois permite-lhe, simultaneamente, pagar num prazo mais alargado (prazo que o art. 14º do RGIT claramente lhe concede) sem ampliar o período de suspensão da prisão (alongamento que o art. 50º, nº 5 afastou e não prevê), com as consequências diversas e mais gravosas que, em latência e contra legem, sempre se manteriam.
Cremos que esta interpretação mantém a pena suspensa na sua matriz (definida no Código Penal) de paridade “tempo de prisão/duração do período de suspensão” e, simultaneamente, permite a aplicação prática do prazo ampliado previsto no art. 14º do RGIT.
Assim, o art. 57º, nº 2 do Código Penal deve ser interpretado no sentido, mais favorável ao arguido, de abranger também os casos em que o processo deve aguardar o decurso do prazo da indemnização referida no art. 14º do RGIT, quando este for concretamente superior ao período de suspensão da pena.
Resta ponderar das reais condições do recorrente, de este poder cumprir o dever imposto no tempo fixado na sentença.
A suspensão condicionada como “meio razoável e flexível para exercer uma influência ressocializadora sobre o agente, sem privação da liberdade” (JeschecK, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 898) pressupõe que o arguido se encontre em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária, na quantidade e no tempo determinados na sentença.
Para tanto, incumbe ao tribunal averiguar das possibilidades do cumprimento do dever a impor, de forma a fixá-lo num modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições do condenado, só assim se prosseguindo o direito deste a uma pena justa.
A esta compatibilização se refere o art. 51º nº 2 do Código Penal quando estipula que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, prevendo-se no nº 3 a modificação dos deveres por “ocorrência de circunstâncias relevantes supervenientes”. Daí o dizer-se que este nº 2 completa, com um princípio da razoabilidade, os princípios gerais que norteiam a fixação da pena – da adequação e da proporcionalidade.
Ficou provado que o recorrente B se encontra emigrado em Cabo Verde, onde desenvolve a actividade de venda de pneus auferindo vencimentos não apurados, e que tem a mulher e os dois filhos menores a residir em Portugal.
A indemnização condicionante da suspensão totaliza o valor de € 561.299,53.
Os factos apurados relativos à situação económica do arguido são escassos (mas nada indica que o tribunal pudesse ter ido além deles) e dificultam uma decisão mais conscienciosa. Mas chegam para concluir que o arguido não se encontrará em condições de poder cumprir o dever imposto num período tão curto.
O tempo fixado na sentença deverá ser ampliado para três anos, de modo a facilitar o cumprimento da obrigação, mantendo-se o período de suspensão da prisão em um ano e seis meses, porque necessariamente equivalente à duração da própria pena.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar parcialmente procedente o recurso, fixando em três anos o prazo para cumprimento do dever condicionante da suspensão da pena, mantendo-se no mais a sentença.
Sem custas.

Évora, 03.06.2014

Ana Maria Barata de Brito
Maria Leonor Vasconcelos Esteves