Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3803/16.0T9FAR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: INJÚRIA
ATIPICIDADE
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – As expressões contidas nas mensagens enviadas pelo arguido ao assistente (tal como ficou provado na sentença sub judice), não são suscetíveis de serem subsumidas ao crime de injúria, já que se trata de expressões meramente deselegantes, revelando grosseria e “má-educação”, e não de expressões que, face ao contexto em que foram escritas, revelem, minimamente, a existência de ofensa à honra ou à consideração do assistente.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 3803/16.0T9FAR, do Juízo Local Criminal de Faro (Juiz 2), mediante pertinente sentença foi decidido:

“a) Absolver LL da prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do C. Penal;

b) Isentar o arguido do pagamento das custas criminais, nos termos do art. 513º, nº 1, a contrario sensu, do C. P. Penal;

c) Condenar o assistente no pagamento das custas pela absolvição do arguido da acusação particular, em 2 UC' s de taxa de justiça (cfr. arts. 515º, nº 1, al. a), e 3, do C. P. Penal, e 80º, nº 9, do RCP, e tabela III anexa ao Regulamento);

d) Determinar o oportuno arquivamento dos autos”.
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Inconformado, interpôs recurso o assistente HM, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. A sentença recorrida considerou provados os factos constantes da acusação, mas absolveu o arguido.

2. Porquanto não considerou provado que o mesmo fosse conhecedor de que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

3. Tal consideração contraria anterior sentença já transitada em julgado.

4. O arguido foi condenado no Processo nº 3042/15.8T9FAR pela prática de crime de injúria contra a pessoa do assistente, pela prática de factos da mesma natureza.

5. Nesse processo, foi considerado que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

6. Nos presentes autos, foi junto o CRC do arguido, no qual consta essa condenação, sendo o mesmo arguido reincidente.

7. Não é admissível a prova de que o arguido desconhecia que praticava atos criminosos.

8. Há contradição entre a matéria provada e não provada e a decisão, o que corresponde ao vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP.

9. O processo deve ser reenviado para novo julgamento, nos termos do artigo 426º, nº 1, do CPP.

10. O assistente não aceita que ao mesmo tempo que considera provados os danos causados na honra do assistente, a sentença recorrida justifica a conduta do arguido como desculpável.

11. É contrário à lei, à jurisprudência e ao senso comum que, se for no âmbito de uma discussão, não se regista a prática de qualquer crime, ainda que sejam proferidas expressões injuriosas.

Pelo exposto, o processo deve ser reenviado para novo julgamento. Caso assim não se entenda, deve a sentença recorrida ser substituída por outra que condene o arguido”.
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O Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se também no sentido de o recurso dever improceder.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Tendo em conta as conclusões acima enunciadas pelo assistente, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma, em síntese, a questão que vem suscitada no presente recurso: a fixação da matéria de facto (no que tange aos factos integrantes dos elementos subjetivos do crime de injúria em discussão nestes autos).

2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Da discussão da causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 28 de Maio de 2016, pelas 23:15 horas, o Assistente recebeu uma chamada no seu telefone com o nº 9172---, proveniente de um número não identificado;

2. Após atender a chamada e verificar que a voz correspondia à do arguido, disse-lhe, de imediato, que não podia falar com ele e desligou;

3. Seguidamente, recebeu várias chamadas, que não atendeu, sendo as primeiras de um número não identificado e as restantes de um que não reconhecia;

4. Após as chamadas, recebeu duas mensagens, com o seguinte teor:

i. “Es muito baixo sempre fui teu amigo de puto vieste para o porto ao fim de 30 anos e eu acolhite como amigo de infância metite no seio da minha família e fodeste.me sabendo que tu fudeste a Segafredo a marca de café para quem tu trabalhavas meteste.me em tribunal por eu te insultar por tu seres um filho da puta eu não te esqueso podes mostrar mais uma em tribunal juro por deus eu do signo escorpiao antes de morrer tenho uma conversa contigo pena naquilo que queres”;

ii. “Podes me atender que não fica gravado não sou tao porco como tu”;

5. O arguido enviou as referidas mensagens no contexto de divergências existente entre ambos por negócios comerciais;

6. Ao serem-lhe dirigidas as expressões contidas nas mensagens, o Assistente sentiu-se ofendido na sua honra e dignidade enquanto pessoa humana e também enquanto profissional da área do comércio.

Apurou-se, ainda, que:

7. O arguido exerce a profissão de técnico de máquinas de café;

8. Foi anteriormente condenado no âmbito dos processos constantes do seu certificado de registo criminal, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

B. DOS FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, não se provou que o arguido agisse livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

C. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do tribunal no que respeita aos factos julgados como provados e não provados, estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C. P. Penal), como se passa a expor.

O arguido não compareceu em sede de audiência de julgamento, razão pela qual não foi ouvido em declarações.

Para a formação da sua convicção no que aos factos julgados como provados concerne, o julgador valorou o depoimento prestado pelo assistente, HM, o qual confirmou o teor das mensagens por si recebidas e enviadas pelo arguido, bem como o contexto em que as mesmas foram produzidas. Referiu que as mensagens surgiram no contexto de divergências existentes entre ambos e relacionadas com negócios.

Valorou-se também o teor do auto de transcrição das mensagens, de fls. 57 e 58 e a informação da Vodafone de fls. 87.

A convicção do julgador no que respeita à factualidade julgada como não provada resultou da circunstância de não ter sido mobilizada qualquer prova quanto à sua verificação.

Essa factualidade diz respeito ao elemento subjetivo do tipo de ilícito, respeitando a mesma ao íntimo do arguido, em face da sua ausência em sede de audiência de julgamento, teria de ressaltar da restante factualidade julgada como provada, bem como das regras da experiência.

Acontece que, analisado o teor das mensagens, bem como o contexto em que as mesmas foram elaboradas e enviadas, não resulta seguro que o arguido que o arguido quisesse ofender a honra e dignidade do assistente ou, sequer, que soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei, por enquadrar a prática de qualquer ilícito criminal.

Na verdade, na primeira mensagem o arguido não injuria o assistente, não contendo a mesma qualquer menção injuriosa. Quando o arguido refere a expressão “filho da puta”, refere-se a um processo já existente e que havia sido originado por ter dirigido esse epíteto ao assistente.

Já quanto à segunda mensagem, atento o contexto de conflito em que foi escrita, extrai-se do seu teor que o arguido, notoriamente zangado com o assistente pretendeu, com a expressão “porco”, apenas dizer a este, ainda que de forma incorreta, grotesca, que não recorreria à justiça como ele o havia feito, por considerar essa atitude de mau tom.

Não se retira do teor dessas mensagens que o arguido quisesse ofender a honra e consideração do assistente, razão pela qual se julgou a factualidade em conformidade”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.
Entende o recorrente, em breve resumo, que a decisão recorrida, ao não considerar provado que o arguido fosse conhecedor de que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal, contraria anterior sentença, já transitada em julgado, pela prática de crime de injúria contra a pessoa do recorrente, pela prática de factos da mesma natureza, pelo que ocorre, assim, contradição entre a matéria de facto provada e não provada e a decisão (vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. b), do C. P. Penal), o que impõe o reenvio do processo para novo julgamento.

Além disso, entende o recorrente que a conduta do arguido não é “desculpável”, pelo que a sentença recorrida deve ser substituída por outra que condene o arguido.

Mais alega o recorrente que “não é admissível a prova de que o arguido desconhecia que praticava atos criminosos”.

Cumpre apreciar e decidir.
Em primeiro lugar, carece totalmente de sentido (com o devido respeito) a alegação segundo a qual a decisão recorrida, ao não considerar provado que o arguido fosse conhecedor de que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal, contraria sentença anterior, já transitada em julgado.

Com efeito, a factualidade dos presentes autos é diferente da anteriormente julgada, desde logo pela singela razão de os factos, na presente situação e na anterior, estarem situados em momentos temporais totalmente distintos.

Ou seja, in casu, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo não desrespeitou qualquer “caso julgado”.

Em segundo lugar, carece igualmente de sentido a invocação da existência do vício da contradição entre a matéria de facto provada e não provada e a decisão (vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. b), do C. P. Penal), porquanto, por um lado, tal vício não pode ocorrer entre os factos dados como provados no presente processo e os factos dados como assentes num outro processo, e, por outro lado, a presente situação não contraria, conforme já dito, qualquer sentença criminal anterior.

Por outras palavas: não existe, na sentença revidenda, qualquer contradição de julgados, nem a situação explanada na motivação do recurso configura, minimamente, o vício previsto no artigo 410º, nº 2, al. b), do C. P. Penal.

Em terceiro lugar, é totalmente absurda (sempre com o devido respeito) a alegação do recorrente segundo a qual “não é admissível a prova de que o arguido desconhecia que praticava atos criminosos”, pois tal alegação não possui qualquer fundamento válido, nem, aliás, a mesma é sustentada em qualquer argumento lógico, apreensível e racionalmente atendível.

Por último, cabe apenas dizer que, ponderando (na sua pura objetividade) as expressões contidas nas mensagens escritas dirigidas pelo arguido ao assistente/recorrente (tal como ficou provado na sentença sub judice), e independentemente da verificação ou não dos elementos subjetivos do crime em discussão, tais expressões, em nosso entender, não são suscetíveis de serem subsumidas ao crime de injúria, já que se trata de expressões meramente deselegantes, revelando grosseria e “má-educação”, e não de expressões que, face ao contexto em que foram escritas, revelem, minimamente, a existência de ofensa à honra ou à consideração do assistente (elementos do tipo objetivo do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal).

Isto é, as expressões escritas pelo arguido que, na perspetiva do assistente, foram aptas a humilhá-lo e a lesar a sua honra e consideração, não possuem idoneidade objetiva para preencher o tipo incriminador em causa.

Com efeito, e como muito bem se escreve na sentença recorrida, “o comportamento do arguido é, sem qualquer tipo de dúvida, desrespeitoso e nada educado e cortês. A expressão dirigida ao assistente, atento o contexto de desavenças e conflitos existentes entre ambos, não tem outro significado que não o de um ato desrespeitoso e grotesco, sendo absolutamente incapaz de pôr em causa o carácter, o bom nome ou a reputação do assistente. É certo que a expressão em causa não é meramente indelicada; é verdadeiramente grosseira, denotando profunda falta de educação do arguido. Mas daí até que se possa afirmar um atentado à personalidade moral do assistente, medeia significativa distância. A expressão referida não contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ético e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal, nem atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana, vista objetivamente, não se podendo considerar, como tal, ofensiva da honra e consideração.

Por tudo o que ficou exposto, o arguido foi, em primeira instância, bem absolvido da prática do crime que lhe vinha imputado na acusação.

Face ao predito, o recurso interposto pelo assistente é de improceder.

III - DECISÃO.
Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do assistente, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs..
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 19 de fevereiro de 2019

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Laura Goulart Maurício)