Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
448/08.2 TBLGS.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO EUROPEU
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DIREITO COMUNITÁRIO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
O artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, exclui o processo de execução.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Relatório

A presente execução para pagamento de quantia certa, em que é exequente BB (GmbH &Co) KG, com sede em Hamburgo, Alemanha, e executado CC, residente na mesma cidade, fundada em título executivo europeu, culminou com despacho a declarar “a inutilidade superveniente da lide, por força da declaração de insolvência e inexistência de bens penhoráveis”.
Inconformada com o decidido, apelou a dita exequente, concluindo do modo seguinte:
- No caso concreto, deve ser aplicado o artigo 5º. do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000;
- Como tal, deve a ação executiva prosseguir, com vista à satisfação do crédito da exequente[1]:
Contra-alegou o executado/recorrido, concordando com a aplicação do regulamento antes referido, mas do seu artigo 15º., pugnando, em consequência, pela manutenção do decidido.

O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se o despacho impugnado deve ou não ser mantido.

Foram colhidos os vistos legais.

Fundamentação
A - Os factos
Decisão recorrida:
“ Da insolvência do Executado
Conforme consta dos autos o Executado foi declarado insolvente por decisão proferida pelo tribunal da Comarca de Hamburgo, Alemanha (…).
A questão que se coloca e que se mostra debatida pelas partes prende-se com os efeitos de tal decisão e, em especial, com a lei aplicável à mesma.
A nível da União Europeia, mostra-se em vigor o Regulamento nº 2015/848 do P.E. e do Conselho, de 20/5/2015. Note-se, contudo, que tal regulamento visa, genericamente, reger a matéria atinente à competência internacional para a tramitação do processo de insolvência, visando-se assim evitar conflitos internacionais de jurisdição e salvaguardar-se a correta tramitação processual.
No que concerne aos efeitos processuais, é o próprio regulamento que remete para a Lei aplicável no país em que é tramitado cada processo individual. Com efeito, lê-se no art. 18º. do Regulamento que “Os efeitos do processo de insolvência (…)”. É o próprio regulamento que resolve a questão material, remetendo de forma clara para a lei portuguesa no que diz respeito aos efeitos processuais que decorrem da declaração de insolvência (note-se que tal declaração não está colocada em crise).
Não pode assim o signatário deixar de aplicar nos presente autos a decisão que aplica aos demais processos em que o executado é declarado insolvente.
A situação de insolvência determina que os bens da insolvente deverão ser liquidados naqueles autos. Mesmo que seja deferida liminarmente a exoneração do passivo restante, os credores da insolvência só poderão ser satisfeitos pelos rendimentos a entregar pelo fiduciário durante o período de cessão.
Não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens destinados à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período de cessão - artigo 242º., nº 1 do C.I.R.E.
Perante a liquidação dos bens da insolvente no processo de insolvência, os credores apenas devem ser satisfeitos pelo seu produto - artigos 1º. e 46º., nº 1 ambos do C.I.R.E.
Em face do estatuído nos artigos 748º., nº 3, 750º., nº 2, 848º., nº 1 al. c) e e) e 855º., nº 4, todos do Código de Processo Civil, com a declaração de insolvência verifica-se que inexistem bens que possam ser penhorados na presente execução para satisfação do crédito exequendo.
Trata-se, portanto, de sustação integral por existência de execução universal sobre os bens penhorados à ordem destes autos e emergente de declaração judicial de insolvência. E, ao abrigo do disposto no artigo 794º., nº 4, do Código de Processo Civil, aplicável por analogia, devem estes autos ser declarados extintos.
Pelo exposto, declara-se a inutilidade superveniente da lide, por força da declaração de insolvência e inexistência de bens penhoráveis.
(…)”.

B - O direito/doutrina/jurisprudência
- O direito de ação executiva “(…) é um direito de carácter público porque se dirige e refere à atividade de órgãos do Estado, e não um direito de caráter privado, tendo em vista a conduta de um particular; é, em suma, um direito contra o Estado ou para com o Estado, representado nos órgãos executivos e não um direito contra o devedor”[2];
- O credor, desde que munido de título executivo, “(…) tem o direito ou o poder de mover a ação executiva, o que significa que os órgãos do Estado, incumbidos de exercer a atividade executiva, são obrigados a praticar os atos necessários, segundo a lei, para dar satisfação ao exequente, uma vez que este dê o impulso necessário”[3];
- “A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do Autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar - além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”[4];
- Quando a lide se torna impossível pela extinção do sujeito, objeto ou da causa (dum dos interesses em conflito), “evidente que o processo não pode continuar. Costuma então dizer-se que o processo cessa, porque cessou a matéria da contenda[5];
- A decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, é reconhecia em todos os Estados - Membros, logo que produza efeitos no Estado da abertura do processo [6];
- Salvo disposição em contrário do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto do processo, a seguir designado “Estado de abertura do processo” [7];
- Os efeitos do processo de insolvência, numa ação pendente relativa a um bem de cuja administração ou disposição o devedor está inibido, rege-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente[8];
- A abertura do processo de insolvência não afeta o direito real de credor - nomeadamente, o direito de liquidar ou exigir a liquidação e ser pago, com o respetivo produto, por força de hipoteca - sobre bem imóvel pertencente ao devedor e que, no momento da abertura do processo, se encontre no território de outro Estado-Membro[9];
- Qualquer credor que, após a abertura de um processo de insolvência, obtiver, por qualquer meio, nomeadamente com carater executório, satisfação total ou parcial do seu crédito, com base nos bens do devedor situados no território de outro Estado-Membro, deve restituir ao síndico o que tiver obtido[10];
- As “ações em que o insolvente seja parte e em que tenham sido aprendidos ou detidos bens abrangidos na massa” são, obrigatoriamente, apensadas ao processo de insolvência, sendo o devedor/insolvente nelas substituído pelo administrador da insolvência[11];
- “III - Em regra, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos sobre as ações individuais executivas é a lei do Estado-membro em cujo território é aberto o processo - lex fori concursus -, contudo o Regulamento (CE) nº 1346/2000 prevê exceções a essa regra geral (arts. 4º., 5º. a 15º); uma dessas exceções é a relativa aos efeitos do processo de insolvência nas ações declarativas pendentes relativas a um bem ou direito de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido, os quais se regem exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente (arts. 4º., nº 2, al. f) e 15º). IV - Em conformidade com o decidido pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, suscitado no presente processo, “O artigo 15º do Regulamento (CE)) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual no caso de o devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração abranger todo o património do referido devedor. IV - De acordo com o entendimento do TJUE apenas os processos de execução estão excluídos do âmbito de aplicação do citado art. 15º., estando por ele abrangidas as ações declarativas que tenham por objeto o reconhecimento de um direito de crédito, sem implicarem a sua cobrança coerciva, posto que estas não são suscetíveis de pôr em causa o princípio da igualdade do tratamento dos credores, nem a resolução coletiva do processo.” [12]

C - Aplicação do direito aos factos
A exequente BB (GmbH &Co) KG solicitou ao Estado Português a intervenção dos seus órgãos, “incumbidos de exercer a atividade executiva”, no sentido de levar a cabo as ações necessárias, tendo em visto o pagamento do crédito certificado pelo titulo executivo, que deu à execução.
Tais ações circunscreveram-se, apenas, à apreensão de um imóvel pertencente ao executado CC, localizado em Portugal.
Assim sendo, é manifesto que o crédito exequendo não foi ainda pago, nem encontrou “satisfação fora do esquema da providência pretendida”.
Como tal, presente ação executiva continua a ter objeto, sendo certo, ainda, que os sujeitos deste processo não desapareceram.
Não parece, pois, razoável chamar à colação a figura da inutilidade superveniente da lide, com a consequente extinção da instância executiva.
Por outro lado, a continuação desta ação executiva, não obstante a insolvência do executado CC - decretada por um tribunal alemão -, não viola o princípio da igualdade do tratamento dos credores, uma vez que a credora/exequente BB (GmbH &Co) KG está obrigada a restituir ao síndico, o que obteve, através deste meio “executório”.
Equivale isto a dizer que o artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000 exclui o processo de execução.
Além disso, é de mencionar que a obrigatória apensação de um processo executivo ao processo de insolvência, não implica a extinção daquele e, sim, quando muito, a sua hibernação.
Deste modo, é de ratificar a pretensão da exequente BB (GmbH &Co) KG, veiculada através do recurso.

Em síntese[13]:o artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, exclui o processo de execução.

Decisão
Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação procedente, revogar o despacho recorrido, com o consequente prosseguimento dos autos.
Custas pelo recorrido.
******
Évora, 20 de dezembro de 2018
Sílvio José Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo
Manuel António do Carmo Bargado

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[1] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das prolixas “conclusões” da recorrente.
[2] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, pág. 16.
[3] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, pág. 16.
[4] Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol., pág. 512, e artigo 277º., e) do Código de Processo Civil
[5] Prof. Alberto dos Reis, Comentário do Código de Processo Civil, vol. III, pág. 369.
[6] Artigo 16º., nº 1 do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[7] Artigo 4º., nº 1 do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[8] Artigo 15º. do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[9] Artigo 5º., nºs 1 e 2, a) do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[10] Artigo 20º., nº 1 do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[11] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 355, 2ª edição, e artigo 85º., nº 2 do mencionado diploma.
[12] Acórdão do STJ de 12 de julho de 2018 (processo nº 2153/08.0 TVLSB.L1.S1), in www.dgsi.pt..
[13] Artigo 713º., nº7 do Código de Processo Civil.