Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1991/15.2T8PTM-A.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: RELATÓRIO PERICIAL
RECLAMAÇÃO
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A razão pela qual a avaliação do dano corporal é realizada de forma diversa no domínio laboral e no domínio civil, tem a ver com a circunstância de, no primeiro caso, estar em causa a determinação da perda da capacidade de ganho, enquanto no segundo caso, face ao princípio da reparação integral do dano, se valoriza a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, e suplementarmente o seu reflexo na actividade profissional específica do examinando.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. A razão pela qual a avaliação do dano corporal é realizada de forma diversa no domínio laboral e no domínio civil, tem a ver com a circunstância de, no primeiro caso, estar em causa a determinação da perda da capacidade de ganho, enquanto no segundo caso, face ao princípio da reparação integral do dano, se valoriza a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, e suplementarmente o seu reflexo na actividade profissional específica do examinando.
2. O art. 485.º, n.º 3, do Código de Processo Civil concede ao juiz a faculdade de avaliar se o relatório pericial padece efectivamente da deficiência, obscuridade ou contradição que lhe foi apontada pela parte, caso em que ordenará que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Portimão, em acção proposta por (…) contra Companhia de Seguros (…), S.A., em virtude de acidente de viação ocorrido em 25.08.2009 do qual resultaram diversas lesões físicas e psíquicas, foi produzido pelo Gabinete Médico-Legal e Forense relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil, datado de 24.04.2018.
As conclusões do referido relatório são do seguinte teor:
- “A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 27/03/2013.
- Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 219 dias.
- Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período 1092 dias.
- Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 1311 dias.
- Quantum Doloris fixável no grau 5/7.
- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 39 pontos. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional.
- Dano Estético Permanente fixável no grau 3/7.
- Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7.
- Repercussão permanente na Actividade Sexual fixável no grau 3/7.
- Não nos foi presente qualquer relação de quesitos.”

Notificado do referido relatório, o A. atravessou requerimento no seguinte teor:
“(…) notificado do Relatório/IML, porque não foram respondidos os quesitos que ante apresentou (logo na petição inicial), muito embora o referido Relatório diga que não foram entregues, requer que o Ex.mo Perito Médico lhes dê resposta em ordem a avaliar se tem ou não de requerer 2.º exame, já que, por exemplo, uma avaliação de psiquiatria, levada a cabo por um reputado médico psiquiatra (perito da Caixa Nacional de Aposentações, e que junta) se pronunciou por dever ser-lhe atribuída, só no que respeita a esta especialidade, uma incapacidade de 30%.
Ademais, o A. mal compreende não ter sido até aqui sujeito sequer a um electromiograma, exame a que aludiu a Perita do IML senhora Dra. (…), na consulta de 27/02/2018.
Por outro lado, surpreendeu-o muito, ou não (porventura, por pressão tardia do Tribunal) a circunstância de ter sido chamado à pressa, por telefone, para conclusão deste exame, e tão deficiente nos resultados.
A verdade é que o A. está destroçado, seja a nível psíquico, seja a nível físico, afectado de tal maneira que nem consegue ter entendimento íntimo com a mulher, mãe do filho mais novo, nem viajar sentado num automóvel em troços de mais de 20 km, obrigado a paragens constantes.
Pede que este requerimento seja transmitido ao Ex.mo Perito do IML.”

Este requerimento foi objecto de despacho de indeferimento, argumentando-se que “uma vez que a perícia se encontra realizada e não foram apresentadas reclamações nada mais há a ordenar nesta sede.”
Deste despacho recorre o A., concluindo:
i. “O A./recorrente apresentou Reclamação perante o relatório pericial IML, correspondente aos exames a que tem sido submetido em face da lide, jovem militar inutilizado, vítima de acidente de viação em serviço.
ii. A Mm.ª Juíza a quo, no despacho recorrido, refere porém que o recorrente nada reclamou.
iii. Trata-se, no entanto, de erro de facto e de direito: o A. suscitou o problema de o Ex.mo Perito Médico do IML não ter dado resposta aos quesitos apresentados pelo recorrente logo na petição inicial.
iv. E sublinhou que o próprio Ex.mo Perito Médico referira no relatório aludido não lhe ter sido presente qualquer relação de quesitos.
v. Entretanto, cotejando as conclusões que finalizam o relatório pericial com os quesitos apresentados pelo recorrente, verifica-se que na verdade não houve resposta aos quesitos indicados nesta motivação e seu ponto 2 (i), (iv), (vii), (viii), (xiv), (xv), (xvi), (xvii) e (xviii), mais ao último quesito não numerado e específico da carreira militar do A.
vi. Logo, o despacho recorrido deve ser reformado, no sentido de deferir a Reclamação apresentada pelo recorrente, em tempo e com legitimidade, ao abrigo do disposto no art.º 485.º/2 do CPC, muito poucas horas depois de ter sido notificado do dito relatório.
vii. Por fim, o recorrente pediu ao Tribunal a quo que transmitisse ao Ex.mo Perito Médico do IML o teor da Reclamação, naturalmente para que melhor enquadrasse o problema posto pelo examinando: as respostas aos quesitos em falta impõem sejam tidos em conta os resultados de exames complementares – electromiograma e perícia psiquiátrica – para que o requerimento chama à atenção.
viii. Porém, a Mm.ª Juíza a quo indeferiu especificamente quanto a este ponto (indeferindo de passo a Reclamação), tendo considerado encerrado o exame médico-legal, insistindo em não ter sido apresentada Reclamação (mas contra o que os autos traduzem).
ix. Ora, não só o exame não pode ser considerado encerrado, em face do disposto no art.º 485.º/2 do CPC, norma de que o Recorrente lançou mão, como este aspecto colateral da Reclamação se justifica, ao menos por economia processual.
x. No mais, porque o despacho recorrido carece de fundamentação quanto ao indeferimento da Reclamação, é nulo ainda, nos termos dos art.ºs 17.º, 18.º/1 e 205.º/1 da CRP, com repique nos art.ºs 154.º/1 e 195.º/1 do CPC.
xi. Deve, pois, ser reformado o despacho recorrido, no sentido do pleno deferimento."

Não foram produzidas contra-alegações.
Proferida decisão singular, o Recorrente requer que sobre a matéria recaia Acórdão – artigo 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Para além do manancial fáctico já constante do relatório supra, há ponderar, ainda, que na petição inicial o A. formulou, entre o mais, o seguinte requerimento probatório:
«2. Com base em todos os elementos médicos ali ínsitos e com os que vão juntos a esta p.i., será ordenado o exame, pelo IML, de avaliação cível do dano corporal da vítima, o A., incluindo:
(i) Avaliação complementar psiquiátrica;
(ii) Quesitos habituais sobre a extensão das lesões;
(iii) Sua consolidação;
(iv) Doenças sobreviventes;
(v) Quantum doloris;
(vi) Prejuízo sexual;
(vii) Défice de afirmação pessoal e física;
(viii) Perda estética e de confiança, nomeadamente no plano íntimo;
(ix) Período de incapacidade temporária geral total;
(x) Período de incapacidade temporária geral parcial;
(xi) Período de incapacidade temporária profissional total;
(xii) Período de incapacidade temporária profissional parcial;
(xiii) Incapacidade permanente geral;
(xiv) Dano futuro;
(xv) Esforços acrescidos;
(xvi) Acompanhamento futuro permanente, por 3.ª pessoa;
(xvii) Fisioterapia, assistência médica e medicamentosa, futuras;
(xviii) Intervenções cirúrgicas futuras;
(xix) Outros itens relevantes param avaliação do dano em direito civil;
E ainda resposta ao quesito seguinte:
Digam os senhores peritos se a vítima (…), como consequência das lesões contraídas no acidente, ficou, ou não, incapacitado para o esforço físico em geral, e, em particular, enquanto Guarda da GNR, para o que lhe seria pedido nas provas físicas de admissão ao curso de sargentos da Guarda Nacional Republicana, tendo em conta o Regulamento do Concurso de Admissão ao Curso de Formação de Sargentos (documento que deverá ser também facultado aos senhores Peritos – cfr. seu art.º 7.º e Anexo B, respectivo, que se junta)?»

Aplicando o Direito.
Da reclamação contra o relatório pericial
De acordo com o art. 475.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. Acrescenta o art. 476.º, n.º 2, que ao juiz incumbe, no despacho que ordene a realização da diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.
Argumenta o Recorrente que deveriam ter sido respondidas as questões de facto que formulou na sua petição inicial, no ponto 2 (i), (iv), (vii), (viii), (xiv), (xv), (xvi), (xvii) e (xviii), e no último quesito não numerado relativo à sua carreira militar.
No entanto, quanto ao referido no ponto 2 (i), (iv), (vii), (viii), (xiv), (xv), (xvi), (xvii) e (xviii), ali não se formulam questões de facto, mas antes propõem-se meras etapas de avaliação do dano corporal, que de resto foram observadas no relatório pericial produzido pelo Gabinete Médico-Legal e Forense em 24.04.2018: ali se documenta a realização de avaliação psiquiátrica forense (pág. 10), descrevem-se as sequelas existentes, afirma-se que actualmente está independente para todas as actividades da vida diária (pág. 9), e fixa-se o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, o dano estético permanente, a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, e na actividade sexual. Estão assim analisadas naquele relatório as áreas essenciais da avaliação do dano corporal, sendo que, quanto a danos futuros e intervenções cirúrgicas futuras, para além da imprevisibilidade inerente à avaliação da evolução futura – que poderá, inclusive, suscitar a seu tempo outras actuações processuais, em caso de agravamento das sequelas corporais e psíquicas – também se dirá não ser função do relatório pericial prescrever terapêuticas de tratamento.
E quanto ao desenvolvimento da carreira profissional do Recorrente – e este é o único quesito que verdadeiramente formula – a resposta foi dada: as sequelas que o afectam são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual.
Logo, ao contrário do que afirmou o Recorrente no seu requerimento de 12.05.2018, as questões relativas à avaliação do dano corporal estão respondidas.
O único quesito que apresentou no seu requerimento probatório teve resposta: foi fixado o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (em 39 pontos) e foi afirmado que as sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, impeditivas do exercício da actividade profissional habitual. Assim, a questão colocada – relativa à capacidade do A. para desenvolver as provas físicas de admissão ao curso de sargentos da Guarda Nacional Republicana – teve resposta, implícita, mas suficientemente clara e precisa para se perceber que já não pode desenvolver as actividades inerentes à sua profissão e, consequentemente, viu coarctada a sua possibilidade de progressão profissional.
A parte parece discordar, essencialmente, da avaliação de psiquiatria, que entende dever fixar-se em 30% (o relatório menciona que a avaliação psiquiátrica forense atribuiu às alterações psicopatológicas uma valorização de 12 pontos – código Nb0902).
Porém, aqui já não nos encontramos no campo da mera arguição de deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas (art. 485.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), mas no campo da discordância relativamente ao relatório pericial, que motivaria uma outra reacção (segunda perícia, nos termos do art. 487.º), que não foi a formulada pelo Recorrente.
De todo o modo, nota-se que o Recorrente juntou com o seu requerimento um relatório médico, datado de 08.05.2017, que avalia as sequelas de acordo o Capítulo X, grau III, da TNI – aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro.
É notório que a parte labora aqui em lapso que importa realçar: a avaliação constante desse relatório médico de 08.05.2017 foi realizada de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, constante do Anexo I daquele diploma, cujo Capítulo X trata, precisamente, das sequelas psiquiátricas.
Porém, encontramo-nos no âmbito de avaliação do dano corporal em direito civil, ao qual se aplica a “Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”, constante do Anexo II do DL 352/2007 – art. 2.º, n.º 1, deste diploma – e foi esta a tabela que o relatório pericial correctamente aplicou, enquadrando as sequelas psiquiátricas no Código Nb0902, relativa a perturbações persistentes do humor, com repercussão a nível do funcionamento social, laboral ou de outras áreas importantes da actividade do indivíduo, classificada “com moderada repercussão na autonomia pessoal, social e profissional”, e valorizada entre 11 a 15 pontos (no caso, foram atribuídos 12 pontos).
A razão pela qual o dano corporal é avaliado de forma diversa no domínio laboral e no domínio civil, está expressa no Preâmbulo do DL 352/2007, do qual se cita a seguinte passagem: «No direito laboral, por exemplo, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que no âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinando.»
Ora, ponderando que o art. 485.º, n.º 3, do Código de Processo Civil concede ao juiz a faculdade de avaliar se o relatório pericial padece efectivamente da deficiência, obscuridade ou contradição que lhe foi apontada pela parte, caso em que ordenará que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado, e visto que a reclamação se fundou na falta de resposta a um quesito – que teve resposta, implícita, mas suficientemente clara e precisa – e na discordância da avaliação psiquiátrica, resultante da utilização de uma tabela que não é a aplicável, não podia o requerimento formulado pelo Recorrente merecer outro destino, senão o indeferimento, pelo que bem se procedeu na decisão recorrida.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Évora, 20 de Dezembro de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões