Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
189/17.0PTFAR-A.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Antes de ser proferido despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária nos termos do artigo 49.º, nº 1, do C.P.P., deve ser cumprido o contraditório, dando-se a oportunidade ao arguido de se pronunciar, mas não é exigível que essa pronúncia seja verbal e presencial.

II - Referindo o nº 3 do artigo 49.º do Código Penal “Se o condenado provar …”, perante o silêncio do arguido face à notificação que lhe foi feita para se pronunciar antes de ser proferido o despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária, não cabe ao tribunal determinar a realização de quaisquer diligências, designadamente elaboração de relatório social, com vista a apurar se, eventualmente, o não pagamento lhe não é imputável.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

No âmbito do processo abreviado em referência, oriundo do tribunal da comarca de Faro – juízo local criminal de Faro (J2) – em 30/5/2019 foi proferido o seguinte despacho:

“Conversão da pena de multa em prisão subsidiária
FF foi condenado, por decisão transitada em julgado em 27/04/2018, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de €715 (setecentos e quinze euros).

Não pagou voluntariamente, apesar de autorizado o pagamento em prestações, nem requereu a substituição da multa por trabalho.

O pagamento coercivo não se mostra viável (cfr. fls. 121, 125, 126, 136).

Notificado para se pronunciar, nada disse.

Nos termos do art. 49.°, n.º 1 do CP, se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

Assim, nos termos do art. 49.°, n.º 1 do CP, fixa-se a prisão subsidiária pelo período de 73 (setenta e três) dias.

Notifique, sendo o condenado, também na pessoa do defensor, com a informação de que poderá, a todo o tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado.

Notifique-o, ainda, para, em 10 (dez) dias, informar se tem período de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação a descontar no cumprimento da pena, nos termos do disposto no art. 80.° do CP.

Após trânsito, envie boletim à DSIC, junte CRC e abra conclusão.”
Não se tendo conformado com tal despacho, o arguido recorreu, tendo terminado a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

“A - Nos presentes autos, o Tribunal a quo converteu, ao abrigo do n.º 1 do artigo 49.° do Código Penal, a pena de multa de 110 (cento e dez) dias, à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de 715,00€ (setecentos e quinze euros), a que o arguido foi condenando por sentença transitada em julgado em 27-04-2018, por 73 (setenta e três) dias de prisão subsidiária.

B - Nos termos do douto despacho, ora recorrido, o pagamento coercivo não se mostra viável.

C - Não foram realizadas as diligências necessárias para a descoberta da verdade, como a audição pessoal e presencial do arguido e a elaboração de relatório social para aferir as suas reais condições pessoais, social, financeira e económicas.

D - Visto que a pena de prisão afeta, diretamente o arguido pela privação da sua liberdade, este deve ser ouvido pelo Tribunal sempre que se deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete, o que não ocorreu nos presentes autos.

E - Do silêncio do arguido não se pode presumir que o não pagamento lhe é imputável.

F - Não restou provado nos autos que a falta de pagamento da multa é imputável ao condenado.

G - Após as diligências que visam apurar a situação social, económica e financeira do condenado e, concluindo-se que a falta de pagamento da multa não lhe é imputável, há a possibilidade de aplicação, a requerimento do condenado, da suspensão da pena de prisão ao abrigo do n.º 3 do artigo 49.° do Código Penal.

H - O douto despacho, ora posto em crise, violou os artigos 49.° n.º 3 do C.P., 61.° n.º 1, al. a) e b) e 120.° n.º 2 al. d) do C.P.P. e 27º e 32º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, devendo ser revogado.

Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Exas. mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, com as legais consequências, fazendo-se, assim, a tão costumada JUSTIÇA.”

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O Exmº Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, tendo concluído que o despacho recorrido não lhe merece nenhum reparo, que nenhuma disposição legal foi violada e, consequentemente, o mesmo deve ser mantido.

O mesmo entendimento expressou o Exmº Magistrado do Ministério Público junto deste tribunal no parecer que emitiu.

Foi cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P..

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APRECIANDO

Questão prévia/questão resolver: na parte final da resposta ao recurso, o Exmº Magistrado do Ministério Público requereu que o recurso fosse instruído com certidão de fls. 128 e segs..

No despacho judicial que se lhe seguiu, determinou-se que “Devidamente instruídos, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Évora”, sem que se tenha feito qualquer referência concreta à solicitada inclusão de fls. 128 e segs..

Compulsado o presente apenso de recurso em separado, e desde logo o rosto da certidão de fls.1, constata-se que o mesmo não veio acompanhado das solicitadas fls. 128 e segs., presumindo-se que as mesmas teriam que ver com as notificações feitas ao arguido para se pronunciar acerca do não pagamento da multa em que foi condenado, uma vez que na resposta ao recurso se alude a tais notificações.

Ora, o que está em causa no presente recurso (sendo o respectivo conhecimento delimitado pelas conclusões) é apenas saber se antes do despacho de conversão da multa não paga em prisão subsidiária, o arguido deve ser ouvido presencialmente e se deve ser feita qualquer outra diligência para se apurar a situação económica do mesmo.

Uma vez que o arguido não põe em causa que tais notificações tenham ocorrido, nem a validade das mesmas, julga-se ser desnecessário determinar a devolução do processo à 1ª instância para que a Srª Juiz se pronuncie concretamente sobre o que lhe foi requerido quanto à inclusão na certidão do que consta a fls. 128 e segs., ou solicitar directamente tais elementos.

Tais elementos em nada iriam contribuir para a resolução da única questão que se coloca, uma vez que, repete-se, a mesma tem que ver com a forma de audição do arguido antes de ser a multa não paga convertida na prisão subsidiária prevista no artº 49º, nº 1, do Cód. Penal.

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Apreciemos então a questão:

É incontrovertido, porque consta no despacho recorrido e o arguido não põe em causa no recurso que interpôs, que:

- o arguido foi condenado na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 6,50;

- não pagou tal multa voluntariamente, apesar de autorizado a fazê-lo em prestações, nem requereu a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade;

- o pagamento coercivo não se mostra viável;

- antes de ser proferido o despacho recorrido, o arguido foi notificado para se pronunciar e nada disse.
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Dispõe o artº 49º, nº 1, do Cód. Penal, na parte que nos interessa que “Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária…”.

Por sua vez, dispõe o nº 2 da indicada disposição legal que “O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado”.

Por último, também na parte que nos interessa, o nº 3 do referido preceito legal dispõe que “Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa …”.

Ao contrário do que dispõe o nº 2 do artº 492º do C.P.P. que prevê expressamente a audição do condenado antes de ser proferido despacho relativo à execução da pena de prisão, o referido artº 49º do Cód. Penal nenhuma referência faz à audição do condenado antes de ser proferido despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária.

Apesar disso, tem sido unanimemente entendido, e a nosso ver bem, que deve ser dada oportunidade ao condenado de se pronunciar sobre a não pagamento da multa.

Mas isso é uma coisa (que ocorreu no caso em análise); outra, é que tal oportunidade tenha que lhe ser dada através de tomada de declarações presencialmente.

A audição a que alude o artº 61º, nº 1, al. b), do C.P.P., não tem que necessariamente ser presencial. O que importa é que ao arguido seja dada oportunidade de se pronunciar antes de ser determinado o cumprimento da prisão subsidiária.

Não se vislumbra, ao contrário do alegado pelo recorrente, que o artº 27º (em qualquer dos seus números, apesar de o arguido no recurso não ter especificado qualquer deles), ou o artº 32º, nº 5, da C.R.P. obriguem a uma audição presencial. O contraditório, neste caso, deve ser cumprido dando-se a possibilidade de o arguido alegar o que entender de modo a ser proferida decisão que tenha em conta isso mesmo.

Como bem refere o Exmº Cons. Henriques Gaspar (Cód. Proc. Penal Anotado, 2014, pág. 212) “ O direito do arguido a ser ouvido significa direito a pronunciar-se antes de ser tomada uma decisão que directa e pessoalmente o afecte; não tem que consistir sempre numa audição ou audiência pessoal e oral; a possibilidade de se pronunciar por escrito através de intervenção processual do defensor satisfaz, por regra, o direito a ser ouvido para exercer o contraditório.”

Ora, se o arguido notificado que foi para o efeito, nada alegou, está perfeitamente cumprido o contraditório, nada mais sendo exigível que o tribunal faça.

Este entendimento resulta também, quanto a nós, do que dispõe o já referido nº 3 do artº 49º do Cód. Penal, ao prever “se o condenado provar …”.

Repare-se bem: é o condenado que tem que provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável para que se possa ponderar decretar a suspensão da execução da prisão subsidiária.

Tudo isto indica que o condenado, que bem sabe que foi condenado numa pena de multa que não pagou, tem que ter uma posição “proactiva”, digamos assim, de modo a impedir que tenha que cumprir a prisão subsidiária ou, pelo menos, que seja proferido despacho nesse sentido, já que, como se referiu, a qualquer momento pode impedi-lo, pagando a multa em que foi condenado.

No caso em apreço acontece até que o condenado solicitou o pagamento da multa em prestações, o que foi deferido e mesmo assim nada pagou.

Notificado, repete-se, nada alegou.

Ainda assim, deveria o tribunal convocá-lo para que eventualmente dissesse de viva voz o que não alegou por escrito? Julgamos que não.

Como bem se referiu no ac. da Rel. de Coimbra de 20.01.2016, in www.dgsi.pt: “O princípio do contraditório constitui uma verdadeira garantia constitucional. Todavia, para que a concessão dessa garantia assuma a sua efetividade torna-se necessária alguma colaboração positiva do arguido. O tribunal concede ao arguido a possibilidade de exercer o contraditório, não lhe pode impor, de modo algum, a obrigação de exercício efetivo desse direito”.

O entendimento que aqui se segue parece-nos ser maioritário na jurisprudência, embora se conheçam e respeitem decisões opostas, algumas delas argumentando com a necessidade de existir regime idêntico ao da execução da suspensão da pena de prisão.

Ora, tratam-se de duas situações completamente distintas, desde logo porque se revogada a suspensão da execução da pena de prisão, o condenado necessariamente tem que a cumprir; se convertida a multa não paga em prisão subsidiária, ainda assim, o condenado pode evitar o seu cumprimento, pagando-a a qualquer momento (como se sabe é isso, aliás, que acontece mais frequentemente). Para além do mais, é o nº 2 do artº 495º do C.P.P. que prevê recolha de prova por parte do tribunal e a audição do condenado na presença do técnico.

A favor do entendimento aqui defendido, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos:

Ac. da Rel. de Lisboa de 2/4/19 (referido na resposta ao recurso)
Acs. da Rel. de Évora de 26/4/18 (também referido na resposta ao recurso) e de 26/9/17
Acs da Rel. de Coimbra de 20/4/16 e de 16/3/16
Ac. da Rel. de Guimarães de 19/5/14
Acs. da Rel. do Porto de 31/10/18 e 6/2/19

Contra este entendimento, exigindo a audição presencial, podem ver-se os Acs. desta Relação de Évora de 2/2/16 e de 23/1/18 (embora a situação neste último seja um pouco diferente uma vez que o condenado estava em cumprimento de uma pena de prisão, entendendo-se que isso seria indício de que o não pagamento da multa lhe não era imputável).
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Alega também o arguido no seu recurso (conclusão G) que, apesar da sua inércia/silêncio, o tribunal recorrido deveria ter determinado a realização de relatório social a fim de apurar “a situação social, económica e financeira do condenado”.

Também não nos parece que assim devesse ser: como já se referiu, resulta do nº 3 do artº 49º do Cód. Penal que tem que ser o condenado, ao menos, a carrear para os autos factos que, a provarem-se, possam levar à conclusão que o não pagamento da multa lhe não é imputável.

A este propósito também se pronunciou o Ac. desta Relação de Évora de 4/4/17, entendendo-se aí que era ao arguido que competia requerer diligências com vista a apurar-se que o não pagamento lhe não é imputável.

Se o condenado alegar tais factos invocando dificuldade ou mesmo impossibilidade da sua parte em prová-los, ainda se admite que o tribunal determine o que achar por conveniente para os apurar. Mais do que isso, isto é, o tribunal substituir-se ao arguido a fim de, a todo o custo, evitar que se converta a multa não paga em prisão subsidiária, contraria frontalmente o que dispõe o referido nº 3 do artº 49º do Cód. Penal.
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Face ao exposto, conclui-se, pois, o seguinte:

1 - Antes de ser proferido despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária nos termos do artº 49º, nº 1, do C.P.P., deve ser cumprido o contraditório, dando-se a oportunidade ao arguido de se pronunciar, mas não é exigível que essa pronúncia seja verbal e presencial.

2 - Referindo o nº 3 do artº 49º do Cód. Penal “Se o condenado provar …”, perante o silêncio do arguido face à notificação que lhe foi feita para se pronunciar antes de ser proferido o despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária, não cabe ao tribunal determinar a realização de quaisquer diligências, designadamente elaboração de relatório social, com vista a apurar se, eventualmente, o não pagamento lhe não é imputável.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido FF.

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Atento o decaimento, deverá o arguido suportar 4 UCs de taxa de justiça (cfr. artºs 513º, nº 1, do C.P.P. e 8º, nº 9, e tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).

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Évora, 21 de Janeiro de 2020

Nuno Maria Garcia


António Manuel Charneca Condesso