Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
390/20.9T8STC.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
NULIDADE
CONTRATO-PROMESSA
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Perante a nulidade decorrente de preterição de formalidades legais inerentes à celebração do contrato, só excecionalmente podem ser paralisados os respetivos efeitos a coberto do instituto do abuso do direito, afirmada que esteja a clamorosa ofensa do princípio da boa fé.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autor: (…)
Recorridos / Réus: (…) e (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual o A invocou o incumprimento culposo por parte dos RR do contrato-promessa celebrado, já que o Notário suspendeu a realização da escritura por existirem incongruências nos elementos documentais apresentados pelos RR promitentes-vendedores – na certidão predial, o destino do prédio consistia em edifício destinado a hotel. Não obstante interpelados para tanto, os RR não promoveram a alteração da referida designação.
Foram formulados os seguintes pedidos:
- que seja declarada a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os Autores e os Réus;
- que seja julgado procedente o incumprimento definitivo e culposo do contrato- promessa de compra e venda pelos Réus e, consequentemente, serem os Réus condenados a restituir aos Autores o sinal em dobro, na quantia de € 15.000,00, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4% desde a citação, até efetivo pagamento;
- subsidiariamente, que seja declarado resolvido o contrato-promessa celebrado, e os Réus serem condenados de forma solidária a restituir aos Autores a quantia recebida a título de sinal no montante de € 7.500,00, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4% desde a citação, até efetivo pagamento.
Em sede de contestação, os RR invocaram que, antes da celebração do contrato-promessa, foi dado conhecimento do teor de todos os documentos; que a fração está abrangida pela licença de habitação concedida pela Câmara Municipal; que não têm possibilidade de, só por si, alterar a designação da fração (destinada a unidade de alojamento) constante do título constitutivo de empreendimento turístico; que, tendo tomado conhecimento da existência de tal título na sequência da objeção apresentada pelo notário, constataram que o contrato-promessa é nulo, atento o disposto no artigo 54.º, n.º 7, do D-L n.º 39/2008, de 7 de março – diploma que regula o regime jurídico da instalação e funcionamento dos empreendimentos turísticos.
Concluem pugnando pela improcedência do pedido de restituição do sinal em dobro, apenas sendo devida a devolução do sinal recebido.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, conforme segue:
«julgo parcialmente procedente a presente ação por provada e, em consequência, declaro nulo o contrato-promessa celebrado entre Autor e Réus e em consequência desta, condeno os Réus (…) e (…) a restituir ao Autor a quantia de € 7.500,00, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4% desde a citação, até efetivo pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.»
Inconformado, o A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue improcedente a nulidade invocada e, decidindo pelo incumprimento do contrato-promessa por parte dos Recorridos, condene estes a pagar a quantia de € 15.000,00 correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4% desde a citação até efetivo pagamento. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«I. Consideram os Recorrentes que os meios de prova valorados, declarações do Recorrido, Testemunhas, e documentação apresentada, impunham uma formulação de juízo probatório diverso daquele que incidiu sobre os mesmos;
II. Os Recorrentes entendem que a reapreciação dos meios de prova produzidos terão de conduzir a uma solução decisória diversa da alcançada relativamente às questões fundamentais submetidas pelas partes à apreciação do Tribunal;
III. Vêm os Recorrentes impugnar a matéria de facto assente como provada e não provada, porquanto houve provas produzidas nos autos e em audiência que não foram consideradas na sua apreciação e fixação.
IV. Assim como, foi produzida prova bastante para que o Tribunal a quo tivesse considerado outros factos de especial importância para a ponderação e decisão da matéria de facto provada e não provada, que se absteve de conhecer, e que permitiriam a obtenção de conclusões contrárias, que determinarão a anulação da sentença,
V. Vem o presente recurso interposto da douta sentença, que julgou a ação parcialmente procedente, e declarou nulo o contrato-promessa celebrado entre o Recorrente e os Recorridos e em consequência desta, a condenação dos Recorridos restituir ao Recorrente o valor pago a título de sinal.
VI. O conhecimento da nulidade resulta da arguição na contestação pelos Recorridos da nulidade do contrato promessa de compra e venda, por vício de forma.
VII. Acedendo ao pedido formulado pelos Recorridos, o Tribunal a quo decidiu declarar a nulidade do contrato promessa de compra e venda, por vício de forma, considerando que o objeto do contrato é de facto uma unidade hoteleira.
VIII. Consequentemente, o Tribunal a quo escusou-se de conhecer o pedido formulado pelo Recorrente: declarar o incumprimento culposo do contrato promessa de compra e venda pelos Recorridos.
IX. Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, a douta sentença não fez correta aplicação do direito, pois crê-se que os documentos e prova trazidos aos autos só por si implicam necessariamente decisão diversa da proferida.
X. Caberia ao Tribunal a quo analisar a conduta controversa dos Requeridos, que ao arrepio dos princípios da boa-fé vieram arguir a nulidade do contrato promessa de compra e venda.
XI. Houve por parte dos Recorridos uma utilização abusiva do pedido de nulidade do contrato-promessa em causa.
XII. Os Recorrentes agiram em Abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium, como veremos adiante.
XIII. Resulta da matéria de facto provada Q) e R), e das declarações de parte do Recorrido que os Recorridos consideraram sempre que a fração objeto do contrato promessa tem como destino a habitação.
XIV. Aliás, nada consta dos autos, não foi alegado, nem foi produzida prova de que as partes queriam transacionar o imóvel como se de uma unidade hoteleira se tratasse.
XV. Deveria o Tribunal a quo concluir que as partes queriam de facto celebrar um contrato de compra e venda de uma fração que se destinava a habitação, pela correta apreciação dos factos, nomeadamente do depoimento de parte do Recorrido.
XVI. Do depoimento de parte do Réu, o Recorrido confessa que sempre tratou o imóvel prometido como habitação, confirmado pela testemunha (…), mediadora imobiliária que promoveu anteriormente a venda do imóvel.
XVII. O Recorrido confirmou ter comprado e vendido o imóvel objeto do contrato de compra e venda como habitação, sendo esse o destino inscrito nas escrituras outorgadas.
XVIII. Os Recorridos ao invocar a nulidade do contrato promessa adotam uma conduta contraditória com tudo o que alegam, em manifesto abuso de direito, e que cabia ao Tribunal a quo ter adotado outro entendimento, que não o conhecimento da nulidade.
XIX. O Recorrido agiu em Abuso de Direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
XX. Resulta da matéria de facto, que nunca os Réus trataram da venda deste imóvel como unidade hoteleira, e é o que deveria resultar das conclusões do Tribunal a quo, e não conhecer a nulidade do negócio.
XXI. O próprio Réu confirma que o Autor só realizaria a escritura de compra se o imóvel se destinasse para habitação!
XXII. Os Recorridos, na posse do sinal do Recorrente, lograram vender o imóvel a terceiros, tendo sido vendido em Casa Pronta como destino a habitação.
XXIII. Resulta do exposto que os Recorridos ao invocar a nulidade do contrato por erro de forma, considerando que o contrato promessa de compra e venda teria como objeto uma unidade hoteleira e não para habitação, fizeram-no em manifesta má-fé, uma vez terem vendido esse mesmo imóvel como habitação, poucos meses depois da resolução do contrato com o Recorrente.
XXIV. Deveria o Tribunal a quo concluído que, comprando, utilizando e vendendo posteriormente o imóvel como habitação a terceiros, é ilegítimo ao Recorrido considerar que o imóvel se destina a unidade hoteleira ou turística, e arguir uma nulidade pela falta de forma do contrato promessa, nos termos da lei que regula os empreendimentos turísticos.
XXV. Decorre do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 2234/11.3TBFAF.G1.S1 de 03/17/2016 que:
“(…) 3 - Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium, quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito pelas regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do ato.”
XXVI. O Tribunal a quo deveria ter considerado este imóvel destinado a habitação, para efeitos de validade do contrato promessa de compra e venda, pois dúvidas não existem que as partes obrigaram-se a prometer comprar e vender aquele imóvel como destino habitação.
XXVII. O Recorrido ao longo do seu depoimento confessa reiteradamente que as partes queriam comprar e vender o imóvel como habitação.
XXVIII. Assim, a declaração de nulidade deverá ser revogada, e apreciado o incumprimento culposo do contrato promessa por parte dos Recorridos, objeto deste recurso,
XXIX. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo omite, erradamente e com influência negativa para a boa decisão da causa, o porquê da suspensão da realização da escritura por parte do cartório notarial, cuja motivação se encontra descrita nos pontos Q) R) e S) da matéria de facto provada.
XXX. Deverá ser considerada como matéria de facto provada um ponto com o seguinte conteúdo “o Cartório ao analisar a documentação do imóvel, suspendeu a realização da escritura no próprio dia da sua receção, dia 11 de maio de 2020, por haver incongruência na documentação apresentada.”
XXXI. Atente-se à conduta dos Recorridos, constante de matéria de facto provada S) e T), os Recorridos só fariam a escritura após aquela data de 13 de maio de 2020, se o preço fosse aumentado, e que os Recorridos recusaram-se a fazer o que seja, ficando inertes face às interpelações do Recorrente, constando da matéria de facto provada de W) a Z):
XXXII. Face a esta factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, só se poderá concluir que o contrato promessa de compra e venda foi incumprido culposamente pelos Recorridos.
XXXIII. Deveria o Tribunal a quo, conhecido da resolução definitiva do contrato promessa de compra e venda, com culpa por parte dos Recorridos, com a consequente condenação da restituição do sinal pago em dobro, como decorre da lei.
XXXIV. Da matéria de facto provada, conclui-se que os Recorridos incumpriram com o dever de criar as condições jurídicas, e entrega de todos os elementos necessários para a celebração do negócio em definitivo, pois nada fizeram para retificar a descrição predial da fração prometida.
XXXV. Razão pelo qual, o contrato promessa deverá ser considerado resolvido com culpa dos Recorridos, com a cominação prevista no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.
XXXVI. Assim, deveria o Tribunal a quo ter indeferido o pedido de nulidade do contrato promessa, com o conhecimento do incumprimento culposo do mesmo, por parte dos Recorridos, e em consequência ter decidido pela condenação dos Réus no pagamento ao Autor o montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4% desde a data a citação até efetivo pagamento.
XXXVII. Entende o Recorrente que os meios de prova indicados, deveria ter sido objeto de valoração diversa da operada pelo Tribunal recorrido.
XXXVIII. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo, com referência aos factos indicados supra, incorreu em erro de julgamento em matéria de facto.
XXXIX. Tendo Tribunal a quo dado como provados os elencados factos, foi violado de forma expressa e grosseira o princípio da valoração da prova produzida em audiência de julgamento.
XL. O Tribunal a quo, salvo o devido respeito, desconsiderou parte dos documentos juntos aos autos, e declarações de parte e prova testemunhal produzida.
XLI. Face ao exposto, entende o ora Recorrente que o Tribunal a quo não logrou fazer a prova que lhe impunha.
XLII. Verificou-se expressamente erro na apreciação da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de declarar a nulidade do contrato promessa, sem apreciação o abuso de direito da respetiva arguição por parte dos Recorridos.
XLIII. Verificou-se ainda uma contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão proferida.
XLIV. O Tribunal a quo efetuou errada apreciação da prova quanto à decisão proferida;
XLV. A sentença violou o disposto nos artigos 334.º e 442.º, n.º 2, do Código Civil.
XLVI. Em consequência, deverá ser revogada a decisão recorrida, e a substituição por outra que condene os Réus no pagamento ao Recorrente o montante correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4% desde a data a citação até efetivo pagamento.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer das seguintes questões, atento o teor das conclusões da alegação do recurso[1]:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- do abuso do direito a arguir a nulidade do contrato-promessa;
- do incumprimento do contrato-promessa pelos Recorridos.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
A) O Autor (…) e os Réus celebraram entre si, a 10 de fevereiro de 2020, um contrato a que deram a designação de “Contrato Promessa de Compra e Venda de Imóvel”.
B) Por esse contrato, o Autor prometeu comprar aos Réus, e estes prometeram vender o apartamento n.º (…), no 5º andar do lote 7 (edifício …), na Rua Professora (…), freguesia de Armação de Pera, Concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).
C) Os Réus prometeram vender o Imóvel livre de quaisquer ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos.
D) Do referido contrato resultou que o preço global da venda seria de € 75.000,00.
E) Ficou também contratado, que o prazo para celebração da escritura seria até 90 dias após celebração do contrato promessa, ou seja, até dia 10 de Maio de 2020.
F) O Autor comprometeu-se a pagar aos Réus, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de € 7.500,00.
G) Ficando de entregar a restante parte do preço no montante de € 67.500,00 no dia da realização da escritura pública de compra e venda.
H) No momento da celebração do contrato, em 10 de Fevereiro de 2020, foi pago o sinal contratado aos Réus no valor de € 7.500,00 através de transferência bancária efetuada pelo Autor.
I) No momento da celebração do contrato, em 10 de Fevereiro de 2020, foi pago o sinal contratado aos Réus no valor de € 7.500,00 através de transferência bancária efetuada pelo Autor.
J) Os Réus tiveram conhecimento, após uma fase inicial, de que o Autor iria recorrer a empréstimo bancário para aquisição do imóvel.
K) A data agendada de 13 de maio de 2020 para realização da escritura foi aceite pelo Autor e Réus.
L) O Autor, em 8 de maio de 2020 mandou emitir cheque bancário no valor de € 67.500,00 à ordem dos Réus para pagamento do preço restante, de acordo com o contrato promessa celebrado.
M) Após receção dos documentos remetidos pelos Réus, o Autor enviou para o Cartório Notarial Marco Pires, a fim de preparar a escritura que se encontrava agendada para o dia 13 de Maio de 2020.
N) O prédio encontra-se descrito como Edifício destinado a hotel – cave destinada a equipamento desportivo de squash, ginásio, sauna, banho turco, economato, lavandaria e parqueamento automóvel; rés-do-chão destinado a escritório, cafetaria/bar, jardim infantil e campo de ténis; 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º andares destinados a alojamento, encontrando-se a fração “AB” descrita como “unidade de alojamento”.
O) Mediante Ap. (…), de 2007/4/11, encontra-se descrita a constituição da propriedade horizontal, com uma alteração introduzida pela Ap. (…), de 2007/12/17.
P) Foi exibida uma licença de habitação para o prédio com o número (…), emitida no ano de 1990.
Q) Confrontado com o sucedido, os Réus confirmaram que em tempos o imóvel foi de facto um hotel, mas atualmente seriam habitações.
R) Mais, reiteraram os Réus que inclusive foram efetuadas 3 escrituras anteriores, com o imóvel a ser transacionado como para habitação.
S) Com a impossibilidade de realização da escritura para o dia agendado de 13 de Maio de 2020, os Réus de imediato advertiram que só fariam a venda em data posterior se o preço do imóvel fosse aumentado.
T) Os Réus insistiam que o Cartório Notarial estava errado, sugerindo ao Autor que recorresse a um outro Cartório que realizasse a escritura com o imóvel destinado a habitação, mesmo com a descrição predial destinada a hotel.
U) Interpelada diretamente pelo Autor, a Câmara Municipal de Silves confirmou a alteração do prédio para empreendimento turístico de apartamentos turísticos de 3 estrelas.
V) Os serviços da Câmara concluem ainda que, sendo a utilização desse prédio como turística, não é possível a aquisição do imóvel pelo Autor como habitação.
W) Os RR. não tomaram qualquer iniciativa ou diligência de querer ultrapassar o problema, promovendo as alterações e averbamentos necessários junto das entidades competentes, nomeadamente Câmara Municipal, Finanças e Conservatória do Registo Predial, convictos que nada tinham a fazer, atentas as escrituras já previamente realizadas.
X) Em 3 de Junho de 2020, através dos seus mandatários, o Autor interpelou os Réus para que adotassem outra atitude.
Y) Explicando uma vez mais as razões porque a escritura não se tinha realizado, e descrevendo o problema jurídico, o Autor equacionou inclusive em prorrogar o prazo para realização da escritura, para que os Réus tratassem do que fosse necessário. Em alternativa, o Autor pedia o reembolso do sinal entregue.
Z) Por carta datada de 10 de Junho de 2020, os Réus recusaram todas as soluções apresentadas pelo Autor, assumindo que, para além de não proceder a nenhuma diligência, não iriam devolver o sinal.
AA) A 16 de Junho de 2020, através dos seus mandatários, o Autor fez uma última interpelação aos Réus considerando o contrato promessa definitivamente incumprido, com culpa daqueles.
BB) Nessa interpelação, o Autor reiterava a devolução do sinal, sob cominação do recurso à via judicial, onde seria conhecida da culpa do incumprimento do contrato promessa de compra e venda dos Réus, com a consequente devolução do sinal em dobro.
CC) Em email remetido pelo Autor aos Réus, solicitou o Autor informação sobre a fração, designadamente sobre custos associados (IMI, condomínio e outros) e se taxa de imposto era turística ou residencial.
DD) Por email de 20 de Maio de 2020 o Cartório Notarial Marco Pires mantém a realização da escritura suspensa, por impossibilidade de apurar junto da Câmara Municipal de Silves a compatibilização da licença de utilização para 32 fogos e a propriedade horizontal constituída por 40 fogos.

B – O Direito
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O Recorrente pretende seja dado como provado o seguinte:
«O Cartório, ao analisar a documentação do imóvel, suspendeu a realização da escritura no próprio dia da sua receção, dia 11 de maio de 2020, por haver incongruência na documentação apresentada.”
Nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
O n.º 2 de tal preceito, por sua vez, estabelece que “no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Trata-se de um regime espartano, que estabelece quais são os requisitos formais das alegações de recurso em que seja colocada em crise a decisão sobre a matéria de facto. Tem em vista definir concretamente o que está sujeito a instância recursional e aquilo que resulta cristalizado e imutável, transitado em julgado. Dele decorre que a matéria de facto provada apenas há de ser colocada em causa na medida em que seja expressamente indicado pelo recorrente, não bastando mera alusão encapotada; só assim, aliás, se possibilita o exercício do contraditório de modo pleno e eficaz.
No caso em apreço, o Recorrente afirma que resulta dos autos encontrar-se tal matéria provada, tece considerandos relativamente a outros pontos factuais provados, concluindo existir incongruências na documentação apresentada para a realização da escritura. Porém, não especifica os concretos meios probatórios que revelem, de forma consistente, que houve decisão, no dia 11 de maio, de 2020, do Cartório de suspender a realização da escritura por existirem incongruências na documentação apresentada.
De todo o modo, resulta já do rol dos factos provados que a escritura não foi outorgada na data marcada por as partes pretenderem fazer constar que a fração se destinava a habitação quando a descrição do prédio indica tratar-se de hotel, e a fração como sendo unidade de alojamento e, bem assim, que a escritura se manteve, posteriormente, suspensa por impossibilidade de apurar a compatibilização da licença de utilização para 32 fogos e a propriedade horizontal constituída para 40 fogos.
Termos em que se conclui inexistir fundamento para alterar o rol dos factos provados.

Do abuso do direito a arguir a nulidade do contrato-promessa
O Recorrente sustenta que o instituto do abuso do direito obsta à declaração de nulidade do contrato-promessa.
Ora vejamos.
Apurou-se que a fração objeto desse contrato está descrita na Conservatória do Registo Predial como sendo uma unidade de alojamento integrada num edifício destinado a hotel. Acresce que a Câmara Municipal de Silves confirmou o licenciamento do prédio para empreendimento turístico de apartamentos turísticos de 3 estrelas. Mais consta dos autos o Título Constitutivo da Composição do Hotel-Apartamentos (…), 3 Estrelas, em Armação de Pêra, do qual consta que o Edifício (…) é destinado a Hotel-Apartamentos de 3 estrelas; tal Título foi objeto de depósito junto da Secretaria de Estado do Turismo.
Atenta a natureza jurídica da referida fração, foi declarada, em 1.ª Instância, a nulidade do contrato-promessa de compra e venda por via do disposto no artigo 54.º, n.º 7, do Regime Jurídico da Instalação, Exploração e Funcionamento dos Empreendimentos Turísticos aprovado pelo DL n.º 39/2008, de 7 de março, na versão atualizada. Tal disposição determina o seguinte: Deve fazer parte integrante dos contratos-promessa de transmissão, bem como dos contratos de transmissão de propriedade de lotes ou frações autónomas que integrem o empreendimento turístico em propriedade plural, uma cópia simples do título constitutivo devidamente registado, cópia simples do título referido no n.º 3 do artigo 45.º, bem como a indicação do valor da prestação periódica devida pelo titular daqueles lotes ou frações autónomas no primeiro ano, nos termos do título constitutivo, sob pena de nulidade do contrato.
É que os empreendimentos turísticos podem constituir-se em propriedade plural, determinando-se a aplicação subsidiária do regime da propriedade horizontal no relacionamento entre a entidade exploradora e administradora do empreendimento e os proprietários das unidades de alojamento que o compõem, sem prejuízo do estabelecimento de um importante conjunto de normas específicas, resultantes da natureza turística do empreendimento – cfr. preâmbulo do referido diploma. As unidades de alojamento, que podem ser quartos, suítes, apartamentos ou moradias, consoante o tipo de empreendimento turístico, constituem o espaço delimitado destinado ao uso exclusivo e privativo do utente do empreendimento turístico – cfr. artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 39/2008.
Nos termos do disposto no art. 52.º, nº 1, do citado DL, consideram-se empreendimentos turísticos em propriedade plural aqueles que compreendem lotes e ou frações autónomas de um ou mais edifícios. Segue o n.º 2 estipulando que as unidades de alojamento dos empreendimentos turísticos podem constituir-se como frações autónomas nos termos da lei geral. Ora, às relações entre os proprietários dos empreendimentos turísticos em propriedade plural é aplicável (…) subsidiariamente o regime da propriedade horizontal – artigo 53.º. Os empreendimentos turísticos em propriedade plural regem-se por um título constitutivo (…) – artigo 54.º, n.º 1.
Neste recurso não é colocada em causa a nulidade do contrato-promessa, atenta a natureza jurídica da fração nele versada. A questão que vem suscitada é a do abuso do direito a arguir a nulidade. O Recorrente considera ser abusiva tal arguição, na vertente da proibição do venire contra factum proprium, já que sempre a fração foi considerada entre as partes como sendo destinada a habitação, sempre os Recorridos a apresentaram nesses moldes, nunca as partes a tendo tomado como uma unidade de alojamento em empreendimento turístico.
O instituto do abuso do direito está consagrado no artigo 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, é ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Por via deste regime, “a lei procura obter um controlo ou uma moderação do poder, fazendo com que o exercício do direito subjetivo por parte do seu titular se efetue dentro do quadro resultante do fim para o qual foi atribuído. O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções.”[2]
Estão em causa “os direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça, (…) as hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria no caso concreto intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”[3]. “Há abuso de direito, segundo a conceção objetiva aceite no artigo 334.º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. (…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode em qualquer dos casos afirmar-se a exclusão dos fatores subjetivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.”[4]
A toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do venire contra factum proprium, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento no sentido de não pretender exercer o direito. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra[5], o princípio da proibição do venire contra factum proprium impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração da responsabilidade pela confiança.
No caso em apreço, está em causa a violação de uma formalidade do concreto negócio jurídico que, sendo de conhecimento oficioso, implica na respetiva nulidade – cfr. artigos 54.º, n.º 7, do DL n.º 39/2008, de 7 de março e 286.º do CC. A nulidade opera ipso iure, pelo que pode ser conhecida oficiosamente e ser declarada a todo o tempo. Prescindindo, pois, de ser invocada pela parte a quem aproveita, a paralisação dos efeitos da nulidade a coberto do instituto do abuso do direito só pode conceber-se em casos limite e de cariz excecional.
Seguindo de perto a resenha doutrinal exarada no Ac. do STJ de 30/10/2003[6], constata-se inexistir consenso relativamente à aplicação do instituto do abuso do direito à situações de nulidade por inobservância de formalidade legal, sendo os casos ponderados aqueles em que não foi observada a forma legalmente prescrita para a declaração negocial (cfr. artigo 220.º do CC). Desde logo Manuel de Andrade, embora não categoricamente, admite a invocação do abuso do direito quando a invocação da nulidade por vício de forma seja feita em circunstâncias tais que a tornem verdadeiramente escandalosa, como sucede nos casos em que a nulidade seja arguida por quem a provocou ou por quem induziu dolosamente a contraparte a não insistir pela formalização do negócio, criando-lhe a expectativa de que a nulidade jamais seria arguida.[7] Já Vaz Serra defende a inadmissibilidade dessa invocação “por as disposições legais respeitantes à forma se destinarem a um fim de segurança ou de certeza jurídicas inconciliáveis com a eficácia da declaração não formalizada.”[8] Menezes Cordeiro, por sua vez, sustenta que “quando uma situação de invalidade seja considerada como de origem censurável por, na sua génese, ter havido uma atuação contrária a regras jurídicas, incluindo a própria boa fé, altura em que ocorre a culpa in contrahendo, podem, com facilidade, constituir-se os pressupostos da responsabilidade civil: o dano – e não a sua imputação – tomaria corpo aquando da alegação da nulidade, ou do seu próprio reconhecimento, por ofício, pelo tribunal: tem, então, cabimento, o arbitrar de uma indemnização em espécie – artigos 562.º e 566.º, n.º 1, a contrario – que, procurando reconstituir a situação a que se teria chegado se não tivesse havido prevaricação, corresponda, materialmente, ao cumprimento do contrato nulo, mediante a contraprestação acordada, devida agora a título de compensação necessária para evitar enriquecimentos indevidos. (…) não podem, à face do direito português, manter-se, por via direta da boa fé, os efeitos falhadamente procurados pelo ato nulo.”[9]
Nas palavras de Henrich Ewald Horster[10], estando em causa comportamentos que implicam a convicção de que a nulidade do negócio não será invocada, há que ser cauteloso, “na medida em que é ilidida a sanção da nulidade e desconsiderada a razão na qual ela está fundada.”
A mais recente jurisprudência do STJ evidencia não ser já tão categórica na recusa da aplicação do instituto do abuso do direito aos casos de nulidade decorrente de violação de formalidade legal. Tem vindo a reconhecer “a admissibilidade dessa invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o ato formalmente nulo, como sanção do ato abusivo. Não é qualquer atuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excecionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium.”[11]
As formalidades que não foram observadas foram as de integrar no contrato-promessa de compra e venda a cópia simples do título constitutivo do empreendimento turístico, devidamente registado, a cópia simples do título jurídico que a habilite à exploração daquela unidade de alojamento, e a de indicar o valor da prestação periódica devida pelo titular daquela fração autónoma no primeiro ano, nos termos do título constitutivo – cfr. artigo 54.º, n.º 7, do DL n.º 38/2008, de 7 de março.
Da factualidade assente não se retira que os Recorridos tenham atuado em moldes a fazer prever que nunca iriam arguir a nulidade decorrente da preterição daquelas formalidades. Tendo ambas as partes tomado a promessa de compra e venda como tendo por objeto uma fração destinada a habitação, não cabe conceber que os Recorridos tenham criado no Recorrente a expectativa de que os referidos vícios nunca seriam apontados. Na verdade, gizando ambas as partes o negócio como sendo o de promessa de compra e venda de fração destinada a habitação, só perante a recusa do notário em promover a outorga da escritura pública (recusa essa que não cabe aqui apreciar) é que estes foram confrontados com a caraterização da fração como unidade de alojamento integrada em empreendimento turístico. Perante essa circunstância, apontaram a nulidade do contrato-promessa por preterição das formalidades elencadas no citado artigo 54.º, n.º 7, do DL n.º 38/2003. A arguição da nulidade surge, assim, como contra-ataque dos Recorridos perante a imputação que lhes é feita no sentido do incumprimento culposo do contrato-promessa por falta de diligência na alteração da descrição predial. Certo é que o circunstancialismo factual não revela que, no decorrer nas negociações, as partes tenham tomado a fração como uma unidade de alojamento no empreendimento turístico e que os Recorridos tenham atuado de modo a criar no Recorrente a firme expectativa de que não iriam chamar à liça a versada nulidade.
Não se verificando os pressupostos que permitem afirmar ser abusiva a declaração de nulidade do contrato-promessa, não é de acolher a pretensão do Recorrente, antes se acompanhando a decisão proferida em 1.ª Instância no sentido da declaração da nulidade do contrato-promessa com a consequente restituição da quantia monetária que foi prestada a título de sinal, resultando prejudicado o conhecimento da questão atinente ao incumprimento culposo do contrato-promessa.

As custas recaem sobre o Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
*
Évora, 15 de setembro de 2022
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões
Ana Margarida Pinheiro Leite

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[1] Tais conclusões definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso – cfr. artigos 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 281.
[3] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, pág. 63.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, págs. 436 a 438.
[5] RLJ ano 105.º, pág. 28.
[6] Relatado por Araújo de Barros.
[7] Sobre as cláusulas de liquidação de partes sociais pelo último balanço, Coimbra, 1955, págs. 99 e 100. No mesmo sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1976, págs. 346 a 348.
[8] Abuso de Direito, BMJ n.º 85, págs. 305 e seguintes.
[9] Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra 1984, págs. 795 e 796.
[10] Ob. cit., pág. 285.
[11] Cfr. Ac. do STJ citado.