Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
789/08.9TBMMN-I.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO
PRAZO
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo sido determinada e efectuada a apreensão de uma parte dos rendimentos do insolvente ao abrigo do disposto no artigo 46.º do CIRE, não poderá o tempo de duração da mesma ser, posteriormente, contabilizado no prazo previsto no n.º 2 do artigo 239.º do mesmo Código, nomeadamente fazendo retroagir o início deste último à data daquela.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 789/08.9TBMMN-I.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

(…) e (…), insolventes, recorreram do despacho, proferido em 29.11.2017, que fixou em dois salários mínimos nacionais o montante excluído da cessão do rendimento disponível (sem prejuízo de requererem, posteriormente, que sejam ressalvadas despesas e na medida em que tal se justifique) e determinou que a mesma cessão retroaja a 01.07.2017, considerando como tal as quantias apreendidas dos rendimentos dos insolventes desde essa data.

Os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
A) O caso dos presentes autos merece especial atenção à luz dos princípios orientadores do processo de insolvência atendendo à desconformidade com a situação factual que resulta da aplicação do artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-lei n.º 79/2017, de 30 de Junho.
B) Com a implementação do Decreto-lei n.º 79/2017, de 30 de Junho, o legislador quis prever o início do período de cessão, na data de entrada em vigor do diploma, para os processos em que o despacho liminar foi já proferido mas que não tenha sido declarado o encerramento.
C) No caso dos autos, os insolventes viram os seus rendimentos apreendidos desde Outubro de 2015, nos mesmos termos em que será processado o período de cessão que o tribunal a quo fixou ter início apenas em 01.07.2017.
D) Resultando assim num processo cujo período de cessão duraria 7 (sete) anos, o que não é admissível à luz do estabelecido no artigo 235.º do CIRE.
E) Tal é especialmente censurável tendo em conta que o processo teve início em 2008 e que corre até ao presente, mantendo por 14 (catorze) anos ou mais a condição de insolventes dos ora apelantes.
F) Sendo que a estes não pode ser imputada qualquer responsabilidade para tanto.
G) No artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-Lei 79/2017, de 30 de Junho, o legislador não atendeu às diferentes vicissitudes de cada caso em concreto, mostrando-se imperativo a adopção de um critério que responda de forma justa e equitativa, tendo conta os interesses que se encontram em juízo, e que a lei não acautela.
H) Assim, é entendimento dos apelantes que o período de cessão no caso dos presentes autos deve ter início na data em que se verificou a apreensão dos seus rendimentos por parte da administradora da insolvência.
I) Justificando-se que assim seja pois o montante apreendido é igual ao montante fixado pelo despacho de 29/11/2017 quanto aos valores indisponíveis de cessão.
J) Outro entendimento que não este, salvo melhor opinião e com o devido respeito, é grosseiramente violador do princípio da igualdade cuja consagração constitucional consta do artigo 13.º da CRP.
K) No mais, os insolventes têm gastos referentes a alimentação, higiene, saúde, transporte e vestuário, como quaisquer cidadãos, despesas essas que o tribunal a quo não teve em tinha de consideração e às quais aqueles só vão fazendo face apenas com a ajuda de familiares e amigos.
L) É com os valores auferidos a título de pensão e de vencimento que os insolventes fazem face às suas necessidades diárias, sendo certo que o valor fixado constrange, e em muito, o sustento minimamente digno daqueles.
M) Pelo que, sempre se dirá que deverá ser fixado como rendimento indisponível de cessão aquele que se entenda que não constranja a dignidade dos insolventes, e que no seu entender, não deve ser inferior a 2 SMN e meio.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine que o início do período de cessão do rendimento disponível retroage a Outubro de 2015, fixando como montante excluído daquela cessão tudo o que exceda o correspondente a dois salários mínimos e meio nacionais, só assim se fazendo a tão costumada Justiça.

O recurso foi admitido.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Se o início do período de cessão deve retroagir à data em que se verificou a apreensão dos rendimentos dos insolventes por parte da administradora da insolvência;
2 – Se o valor que o despacho recorrido excluiu do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deve ser aumentado em metade do salário mínimo nacional.
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Resulta dos autos que, em Outubro de 2015, os rendimentos dos recorrentes foram apreendidos na parte que excedesse o valor de dois salários mínimos. Os recorrentes manifestaram a pretensão de que o início do período de cessão do rendimento disponível retroaja a essa data. A decisão recorrida não acolheu tal pretensão, tendo, antes, feito o período de cessão retroagir a 01.07.2017, com fundamento no disposto no artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06.
Em sede de recurso, os recorrentes manifestam o seu inconformismo relativamente a este entendimento, argumentando, em síntese, que o mesmo redunda no estabelecimento de um período de cessão de 7 anos, inadmissível à luz do disposto no artigo 235.º do CIRE (diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante referidas) e tão mais censurável quanto é certo que o processo teve início em 2008 sem que tenham contribuído para tal demora, bem como na violação do princípio constitucional da igualdade, e que a sua pretensão se justifica, ainda, porque o montante apreendido é igual àquele que a decisão recorrida excluiu do rendimento disponível.
Analisemos estes argumentos.
A apreensão, a favor da massa insolvente, dos rendimentos dos recorrentes na parte que excedesse o valor de dois salários mínimos, efectivada em Outubro de 2015, teve o seu fundamento legal no artigo 46.º, ao passo que a cessão de rendimento no âmbito da exoneração do passivo restante encontra o seu fundamento legal no artigo 239.º, n.ºs 2 e 3. Não se pode confundir a cessão do rendimento disponível no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante com a apreensão do património do insolvente ao abrigo do disposto no artigo 46.º. Sendo regimes distintos e perfeitamente compatíveis entre si, inexiste fundamento para imputar o tempo da apreensão no período da cessão e, nessa linha de raciocínio, concluir que, no caso dos autos, resulta da decisão recorrida um período de cessão de 7 anos.
A circunstância de o processo estar pendente desde 2008 em nada releva para a análise da problemática de que agora nos ocupamos, pois a lei não associa qualquer efeito jurídico, a este nível, à demora processual.
O mesmo se diga relativamente ao argumento de que a pretensão dos recorrentes se justifica porquanto o montante apreendido é igual àquele que o despacho recorrido excluiu do rendimento disponível. Tal identidade – que, aliás, os recorrentes pretendem quebrar, pois pugnam pelo aumento do valor excluído do rendimento disponível – é absolutamente indiferente para este efeito. Verifique-se ou não, persiste a apontada diferença de natureza entre a apreensão do património do insolvente ao abrigo do disposto no artigo 46.º e a cessão do rendimento disponível no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante.
O artigo 13.º da Constituição estabelece que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (n.º 1) e que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual (n.º 2). Os recorrentes entendem que a decisão recorrida violou este princípio porquanto lhes deu um tratamento “manifestamente desfavorável” (ponto 19 das alegações) relativamente a hipóteses em que os insolventes não vissem os seus rendimentos apreendidos durante a fase de liquidação (ponto 21 das alegações). Constitui uma evidência que um insolvente cujo rendimento tenha sido parcialmente apreendido nos termos do artigo 46.º e, em seguida, fique sujeito a um período de cessão do rendimento disponível no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, é, no que toca ao período total de privação de parte dos seus rendimentos, afectado durante mais tempo que um insolvente cujo rendimento não tenha sido apreendido nos termos daquele preceito legal. Tal como haverá desigualdade entre um insolvente a quem seja apreendida e/ou excluída da cessão uma percentagem do rendimento superior à de outro, ou entre um insolvente relativamente ao qual o período de apreensão de parte do rendimento se tenha prolongado por 4 anos relativamente a outro em que tal período tenha sido de 2 anos, por exemplo. Em qualquer caso, tratar-se-á de vicissitudes processuais perfeitamente suportáveis à luz do princípio constitucional da igualdade, desde que não tenham na sua origem uma discriminação em função de algum dos factores referidos no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição. No caso dos autos, os recorrentes não demonstraram a existência de qualquer discriminação dessa natureza, pelo que não é possível concluir que o princípio constitucional da igualdade foi violado pela decisão recorrida.
Conclui-se, assim, que nenhum dos argumentos dos recorrentes procede, inexistindo fundamento para fazer retroagir a cessão do rendimento disponível a Outubro de 2015. O tribunal recorrido decidiu bem ao determinar que tal cessão retroagisse à data de 01.07.2017, pois é essa a solução que decorre do artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06. Logo, o recurso improcede nesta parte.
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Por outro lado, os recorrentes pretendem que o valor que o despacho recorrido excluiu do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, seja aumentado para 2,5 salários mínimos.
Com relevo para a decisão desta questão, o tribunal recorrido julgou provados os seguintes factos:
1 – O insolvente (…) aufere pensões com valor global e mensal de € 510,00;
2 – A insolvente (…) aufere salário no montante aproximado de € 890,00;
3 – Os insolventes despendem mensalmente a quantia de € 39,15 por conta de consumos de água;
4 – Por conta de consumos de electricidade respeitantes ao período de 24.7.2017 a 23.7.2017 despenderam a quantia de € 133,55;
5 – Despenderam em 20.2.2017 a quantia de € 89 por conta da aquisição de recarga de 45 quilogramas de gás propano;
6 – Despenderam a quantia de € 39,40 a respeito de serviços de telecomunicações em Setembro de 2017.
7 – Habitam em casa arrendada procedendo ao pagamento mensal da quantia de € 400,00.
Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham, a qualquer título, ao devedor, com exclusão, entre outros, dos que sejam razoavelmente necessários para o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional – artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). A ponderação do que seja, em cada caso concreto, o montante necessário para assegurar tal “sustento minimamente digno” deve ter em conta, não só as necessidades do devedor e do seu agregado familiar, mas também a legítima expectativa dos credores de verem os seus direitos satisfeitos, em toda a medida do possível, durante o período da cessão. A exoneração do passivo restante não pode redundar num perdão generalizado das dívidas do insolvente sem esforço para este. O equilíbrio entre os interesses dos credores e do devedor impõe que, ao sacrifício que o processo de insolvência e a exoneração do passivo restante acarretam para os primeiros, corresponda um efectivo esforço, por parte do segundo, no sentido de reduzir as suas despesas e as do seu agregado familiar em toda a medida do possível, até atingir o limite mínimo imposto pela salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Nomeadamente, o devedor não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o nível de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência, porventura assente, ao menos em parte, na obtenção de crédito.
Revertendo ao caso dos autos, a primeira observação a fazer em relação à pretensão dos recorrentes é a de que o valor que eles pretendem ver excluído da cessão (€ 1.450/mês) excede o montante global dos seus rendimentos (€ 1.400/mês). Ainda que se tivesse como base de cálculo o salário mínimo vigente à data da prolação da decisão recorrida (€ 557/mês), o valor excluído da cessão seria de € 1.392,50, apenas € 7,5 aquém do montante global dos rendimentos dos insolventes. Estes números, só por si, demonstram a irrazoabilidade da pretensão dos recorrentes, tendo em conta a exposição anterior. Aquilo que os recorrentes pretendem é, pura e simplesmente, a exoneração do passivo restante sem esforço da sua parte. É evidente que isso não pode acontecer. Tendo em conta a composição do seu agregado familiar, dois salários mínimos são perfeitamente suficientes para assegurar o sustento minimamente digno dos recorrentes, os quais, como bem se refere na decisão recorrida, terão de reajustar os seus gastos à sua actual condição financeira. Tal esforço, indubitavelmente razoável, é-lhes exigível.
Resulta do exposto que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.

Sumário:
1 – A apreensão, a favor da massa insolvente, de uma parte dos rendimentos do insolvente nos termos do n.º 1 do artigo 46.º do CIRE, não se confunde com a cessão do rendimento disponível prevista do artigo 239.º do mesmo código.
2 – Tendo sido determinada e efectuada a apreensão de uma parte dos rendimentos do insolvente ao abrigo do disposto no artigo 46.º do CIRE, não poderá o tempo de duração da mesma ser, posteriormente, contabilizado no prazo previsto no n.º 2 do artigo 239.º do mesmo código, nomeadamente fazendo retroagir o início deste último à data daquela.
3 – No incidente de exoneração do passivo restante, a ponderação do que seja, em cada caso concreto, o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, não pode deixar de ter em consideração a legítima expectativa dos credores de verem os seus direitos satisfeitos, em toda a medida do possível, durante o período da cessão.
4 – O devedor não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o nível de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência.

Decisão:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da massa insolvente.
Notifique.

Évora, 08.03.2018

Vítor Sequinho dos Santos (Relator)

Maria da Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura