Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10376/15.0T8STB-C.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No incidente de exoneração do passivo restante – e uma vez assente que tem que haver um custo visível no teor e qualidade de vida dos insolventes –, os valores do rendimento a ficarem disponíveis na sua esfera patrimonial serão os que forem razoavelmente necessários para o seu sustento minimamente digno, e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art.º 239.º, 3, i), CIRE).
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:

A Insolvente/Apelante AA vem, nestes autos de insolvência, a correrem termos no Tribunal Judicial – e onde foi determinado que os mesmos prosseguissem para liquidação do activo, por douta decisão de 02 de Fevereiro de 2016 (a fls. 85 a 86 dos autos) –, interpor recurso do douto despacho que foi proferido em 08 de Fevereiro de 2016 (ora a fls. 87 a 95), o qual, apesar de lhe ter deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que havia formulado, lhe fixou em um salário mínimo nacional, por mês, o valor que, do seu rendimento, no conjunto do seu agregado familiar, se destinaria à manutenção de uma sua vida condigna e desse agregado – com o fundamento aí aduzido, a fls. 92, de que “pode e deve o devedor reajustar as suas opções, designadamente, fazendo uma gestão mais económica das suas necessidades, o que poderá passar pela procura de uma renda de casa mais económica, pelo consumo de produtos de chamada ‘marca branca’, pelo que, desde já se diga que é manifestamente excessivo o requerido valor de três salários mínimos nacionais constantes da petição inicial” –, intentando a sua revogação e que seja tal valor “elevado para 2 salários mínimos e ½”, alegando, para tanto, em síntese, que “restou provado que a Insolvente é divorciada e vive com as suas três filhas sem qualquer ajuda do pai das crianças, em casa de seus pais”, auferindo um vencimento líquido de € 449,45 mensais, e despendendo € 425,00. Em consequência, “considerando que o sustento minimamente digno da Requerente é assegurado com o montante mensal de € 530,00, e considerando que é de 0,5 o peso de cada uma das três filhas no aumento das necessidades do agregado familiar, deverá o rendimento mínimo disponível encontrado para a Requerente ser aumentado de 3/2, atingindo-se, deste modo, um montante de € 1.325,00”. São termos em que deve dar-se provimento à apelação e vir a alterar-se o valor a disponibilizar à recorrente para € 1.325,00 mensais.
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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Vêm dados por provados os seguintes factos:

1) A ora insolvente é divorciada e vive com as suas três filhas em casa de seus pais.
2) Exerce funções de ajudante de acção educativa no Centro Paroquial onde aufere um vencimento líquido de € 449,45 (quatrocentos e quarenta e nove euros e quarenta e cinco cêntimos), por mês.
3) Aufere ainda € 35,19 (trinta e cinco euros, dezanove cêntimos), a título de abono de cada uma das suas três filhas.
4) Despende e contribui para as despesas da casa onde habita, com as seguintes quantias: € 15,00 (quinze euros), por mês a título de despesas de água; € 55,00 (cinquenta e cinco euros), por mês, referentes a electricidade e gás; € 300,00 (trezentos euros), mês, relativamente a alimentação, vestuário e higiene; € 30,00 (trinta euros), por mês, referente a despesas com dentista; € 25,00 (vinte e cinco euros), com despesas de televisão, telefone e internet, num valor total, mensal, de € 425,00 (quatrocentos e vinte e cinco euros).
5) É proprietária de meações em dois bens imóveis.
6) A presente situação de insolvência resulta de obrigações contraídas na constância do seu dissolvido casamento.
7) Não constam averbados antecedentes criminais.
8) Apresentou-se à insolvência em 09 de Dezembro de 2015.
9) O passivo encontra-se fixado na lista provisória de créditos, num valor global de € 244.488,14 (duzentos e quarenta e quatro mil, quatrocentos e oitenta e oito euros e catorze cêntimos).
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se o Tribunal a quo fixou bem o montante equivalente ao salário mínimo nacional, para o efeito de ser entregue à insolvente para fazer face às suas despesas e do seu agregado familiar, e poder, assim, manter uma vida digna, ou se tal valor deve ser aumentado, como pretende a Apelante no incidente de exoneração do passivo restante requerido, rectius se a decisão da 1ª instância foi bem ou mal feita, de acordo ou ao arrepio dos factos e das normas legais que a deveriam ter informado. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.
[E, assim, do teor do mesmo, a Apelante quer passar a reter mensalmente o valor de € 1.325,00, em vez dos € 530,00 fixados – uma diferença de € 795,00 mensais – mas nem deixando de cair-se aqui numa situação meramente teórica, pois que a mesma auferirá apenas um montante de € 449,45 por mês.]
Mas passemos ao enquadramento legal da situação apresentada.

Nos termos que vêm previstos no artigo 239.º, n.º 3, alínea b, subalínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante C.I.R.E.), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado já pelo Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também pela Lei 16/2012, de 20 de Abril – “Integram o rendimento disponível [a ser cedido naturalmente para a satisfação dos débitos] todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.

E a intenção do legislador, ao criar este instituto jurídico da exoneração do passivo restante (afinal, tão inovador no nosso sistema), só poderá ter sido a de que, verificado ter o devedor feito um significativo esforço durante um certo tempo para pagar o que deve – e pague mesmo –, permitir que volte a ‘levantar a cabeça’ e possa regressar à actividade económica, também a bem do País, sem o referido ‘passivo restante’ a entorpecer-lhe decisivamente tal recomeço (o que não aproveitaria a ninguém).

Daí que se trate realmente de um perdão, mas de um ‘passivo restante’, do que resta, não de todas as dívidas de quem não se apresenta a fazer esforço algum para as pagar ou atenuar. Doutra maneira, quase que se daria aqui, então, cobertura a uma fraude, pois se não poderá esquecer que este mecanismo legal funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores (e não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas).

Por isso que a lei se rodeou de especiais cautelas na sua aplicação, que o intérprete não pode deixar de conferir nos casos concretos que se lhe coloquem.
E conferi-lo rigorosamente.

Destarte, volvendo ao caso sub judicio, temos que a insolvente aduz que aufere, como rendimento mensal, o valor líquido de € 449,45, necessitando para sobreviver de forma minimamente condigna de um montante de, pelo menos, € 425,00 mensais (referentes a despesas fixas que agora vem indicar que suporta).
A sentença fixou a retenção em € 530,00 mensais = a um salário mínimo.

E, efectivamente, não está em causa que as despesas que o seu agregado familiar apresenta se possam qualificar de não supérfluas, nos tempos actuais, pois que ganhando o que ganha, até podia ter apresentado e justificado despesas de igual ou superior montante, que não era por isso que se iria eximir, logo de forma automática, às suas responsabilidades, nada pagando agora aos credores (ou entregando-lhes uma quantia irrisória, como intenta, e assim, retendo para si o principal dos seus rendimentos).
O ponto fulcral é sempre o mesmo: em tese, terá necessariamente que haver aqui um custo na sua qualidade e teor de vida, e um custo que se veja (ao ponto a que deixou degradar a sua situação económica e financeira, a insolvente alguma coisa de substancial agora terá que pagar aos seus credores, baixando, correlativamente, o seu teor/qualidade de vida).

Mas num ponto parece ter a ora recorrente razão – que, ao dar-se-lhe, em nada afronta as considerações que se deixaram tecidas supra, já neste Acórdão.
É que está ainda a criar, sozinha, as três filhas e sem apoios do respectivo progenitor – o que não deixa de acarretar as inerentes despesas, designadamente com a educação das mesmas. E estas já serão básicas e necessárias a uma vida condigna, como cremos se aceitará, por óbvio.

[O valor do salário mínimo nacional é, a partir de 01 de Janeiro de 2016, de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), mensais, nos termos fixados no artigo 2º do Decreto-lei nº 254-A/2015, de 31 de Dezembro.]

Consequentemente, apontará o bom senso para que, in casu, se suba um pouco o valor a reter pela devedora e que se destina a ter uma vida condigna – e o seu agregado familiar –, pese embora com os sacrifícios e as privações a que as suas opções a acabaram por conduzir. E não é desadequado subir esse limite de 1 para 1,5 salários mínimos nacionais, por mês – € 795,00 – indo, assim, ao encontro da pretensão da ora recorrente, formulada neste recurso, sem deixar de acautelar os legítimos interesses dos credores.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que alterar a douta decisão da 1ª instância, no sentido de albergar aquela subida do valor retido, assim procedendo parcialmente o presente recurso de Apelação.

E, em conclusão, dir-se-á:

No incidente de exoneração do passivo restante – e uma vez assente que tem que haver um custo visível no teor e qualidade de vida dos insolventes –, os valores do rendimento a ficarem disponíveis na sua esfera patrimonial serão os que forem razoavelmente necessários para o seu sustento minimamente digno, e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art.º 239.º, 3, i), CIRE).
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, fixar em € 795,00 (setecentos noventa e cinco euros) – valor correspondente a um salário mínimo nacional e meio – o quantitativo mensal a reter pela insolvente.
Custas pela massa insolvente (artigo 304.º do CIRE).
Registe e notifique.
Évora, 21 de Abril de 2016-04-26

Canelas Brás

Jaime Pestana

Paulo Amaral