Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22/18.5T8ETZ.E1
Relator: JOSÉ PROENÇA DA COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DEFESA DO ARGUIDO
DILIGÊNCIAS DE PROVA
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – O art.º 50.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações consagra o direito de audição e defesa do arguido.
II – Esse direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências.
III – Contudo, competindo, à autoridade administrativa a investigação e a instrução do processo, nos termos do n.º 2, do art.º 54.º, do RGCO, é a ela que cumpre decidir pela realização ou não das diligências de prova que lhe forem requeridas.
IV – Mas a autoridade administrativa, ao não aceitar as diligências de prova requeridas pelo arguido, terá de fundamentar a sua decisão, em obediência ao princípio da legalidade (art.ºs 43.º, do RGCO e 266.º, n.º 1, da CRP).
V – Não se pode imputar qualquer nulidade à autoridade administrativa se não procedeu à inquirição das testemunhas arroladas pela arguida porquanto entendeu ser desnecessária e irrelevante a sua audição, face à especificidade da matéria que se propunha provar, e se mostra de nenhuma, ou de fraca, importância a prova testemunhal.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 22/18.5T8ETZ

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Em Processo de Contra-Ordenação, por Decisão proferida pela Entidade Administrativa – Direcção Regional de Mobilidade e Transportes do Alentejo – foi aplicada à arguida BB, S.A., a coima no valor de € 550,00 (quinhentos e cinquenta Euros), pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art.º 31.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16.07.

Discordando dessa Decisão Administrativa, veio a arguida impugná-la Judicialmente.

Por Decisão da M.ma Juiz do Tribunal da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica de Estremoz -, veio manter-se a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.

Inconformada com o assim decidido, traz a arguida BB, S.A., o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
I. O direito de defesa em processo de contra ordenação vem previsto no Art.º 50º do RGCO e tem consagração constitucional no n.º 10 do Art.º 32º da CRP;
II. Tendo sido exercido tempestivamente pela recorrente, arrolando para tal três testemunhas;
III. Não obstante, as testemunhas não foram ouvidas na fase administrativa do processo;
IV. O direito a ser ouvido pressupõe o direito a oferecer e a produzir prova, que toda a prova pertinentemente oferecida venha a ser produzida, necessariamente antes da decisão final e, finalmente o direito a controlar a produção da prova;
V. Tendo assim decidido, de entre muitos outros o douto Acórdão da Relação de Évora de 08.04.2014, tirado no processo n.º 108/13.2TBCUB, assim sumariado:
“… V - A não inquirição de uma testemunha indicada pelo arguido na fase administrativa não pode estar dependente da simples vontade da entidade administrativa e esta não pode, de motu proprio, decidir não inquirir a testemunha por razões que não têm a ver com a necessidade da sua inquirição para a defesa do arguido. Disponível em www.dgsi.pt.…”;
VI. É suportada na mencionada jurisprudência que a arguida entende que a decisão administrativa de aplicação da coima, não se mostra fundamentada no segmento que enuncia as razões para não atender à prova apresentada pela arguida em sede de direito de defesa a que se reporta o Art.º 50º do RGCO;
VII. Daí resultando que a douta sentença, com o devido respeito, em vez de confirmar a decisão administrativa, deveria ter dado provimento à suscitada nulidade;
VIII. A recorrente viu o seu direito de defesa prejudicado, ao não lhe ser objectivamente possibilitado, que de forma cabal e eficaz, relativamente a pontos da maior importância, indicasse as provas que entendesse pertinentes;
IX. A ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física mas também a ausência processual no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa;
X. Para todos os efeitos, a recorrente, não teve possibilidade de se defender, considerando-se uma violação do princípio da legalidade, nos termos do Art.º 50º do RGCO;
XI. O princípio da legalidade é uma garantia constitucional por força do Art.º 29º da Constituição da República Portuguesa (CRP), admitida em processo contra- ordenacional, nos termos do Art.º 43º do RGCO;
XII. A ausência processual do arguido, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, conduz a que tais garantias, fiquem irremediavelmente prejudicadas;
XIII. O pleno exercício do direito de defesa no processo contra-ordenacional tem hoje consagração constitucional no Art.º 32º n.º 10 da CRP norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais, nos termos do Art.º 18º n.º 1 da CRP;
XIV. Veja-se quanto a este ponto em concreto o citado arresto da Relação de Évora, que se acompanha: “VI - O arguido, ou seu mandatário, deve ser notificado da data da inquirição de testemunhas para que tenha oportunidade de inquirir ou contra-inquirir a prova por si indicada, em observância do n.º 10 do art. 32,º da Constituição da República Portuguesa, norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 1, da Constituição).” TRE de 08.04.2014. Disponíveis em www.dgsi.pt;
XV. Se ao direito de audiência e defesa do arguido, passou a ser conferida dignidade constitucional, em sede de direitos liberdades e garantias, a postergação de tal direito, só tem protecção adequada, se tal omissão configurar uma nulidade insanável;
XVI. Como tal, o presente processo contra-ordenacional, está ferido de nulidade insanável, nos termos do Art.º 119º, alínea c) do CPP conjugado com o Art.º 32º n.º 10 da CRP;
XVII. O processo penal, é subsidiariamente aplicável ao processo contra-ordenacional, nos termos do Art.º 41º do RGCO;
XVIII. A ausência processual do arguido no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, conduz a que tais garantias, fiquem irremediavelmente prejudicadas;
XIX. Tais garantias, consagradas constitucionalmente, só se podem tornar efectivas, tornando nulo, de forma insanável, o acto em que esses direitos não tenham sido respeitados; ~
XX. Assim, foi cometida a nulidade prevista no Art.º 119º, alínea c), do CPP, tendo como consequência a invalidade do acto praticado, bem como, os que dele dependerem, nos termos do Art.º 122º n.º 1, também do CPP;
XXI. Foi esse o entendimento do STJ, ao proferir o Assento n.º 1/2003, publicado no DR n.º 21, I série A, de 25 de Janeiro de 2003, pág. 547 a 558, em que fixa jurisprudência sobre o direito de defesa em processo contra-ordenacional;
XXII. A douta sentença sob recurso refere sobre a questão da arguição da invocada nulidade: “Entendo pois que o direito de defesa em processo de contra-ordenação, não pode ser preterido sem fundamentação válida e eficaz por parte da autoridade administrativa, sob pena de ocorrer uma insuficiência de inquérito geradora da nulidade prevista no Art.º 120º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal e não a prevista no art.º 119º alínea c) do Código de Processo Penal.”;
XXIII. A recorrente entende que o suscitado vício constitui duas nulidades: a falta de inquirição das testemunhas constitui uma insuficiência de inquérito geradora da nulidade prevista no Art.º 120º n.º 2 alínea d) do CPP, como menciona a douta sentença recorrida; e por sua vez, viola o direito de defesa em processo de contra ordenação, gerador de uma nulidade insanável, nos termos em que foi arguida em sede de impugnação;
XXIV. Como aliás também resulta do douto Acórdão da Relação de Évora de 20 de Maio de 1997 tirado do processo n.º 479/96: “A omissão posterior ao inquérito ou à instrução de uma diligência essencial para a descoberta da verdade dos factos é nos termos do art.º 120º, n.º 2 al. d) do CPP, é uma nulidade dependente de arguição.
Mais do que isso, a preterição do direito de defesa é uma violação do direito consagrado na Constituição e, assim, constitui uma nulidade insanável, pois o arguido não é ouvido, violando-se o disposto no art.º 119º al. c) do CPP.”
XXV. Por outro lado, entende a recorrente, acompanhada do douto Assento n.º 1/2003 de 25 de Janeiro de 2003, a nulidade dependente de arguição, no processo de contra ordenação, é arguida no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação;
XXVI. A douta sentença apresenta uma contradição entre a fundamentação e a decisão, quanto à sanação das nulidades;
XXVII. A douta sentença fundamenta a sanação das nulidades cometidas no decurso de um processo administrativa de contra ordenação, com a apresentação de testemunhas e junção de documentos feita na impugnação da decisão administrativa, prevalecendo-se assim do direito preterido;
XXVIII. Porém, a recorrente, não juntou documentos nem arrolou testemunhas, no recurso de impugnação e como tal não foram analisados documentos nem ouvidas testemunhas arroladas pela recorrente em sede de julgamento;
XXIX. Termos em que, sempre com o devido respeito, a douta sentença recorrida decidiu ao arrepio da respectiva fundamentação: “de igual modo o alegado vício, se mostre sanado”;
XXX. Em face do que considera a recorrente que a douta sentença recorrida, carece de fundamentação, no segmento que dá por sanada a arguida nulidade por falta de inquirição das testemunhas;
XXXI. O que consubstancia uma nulidade da sentença, cuja alegação aqui se deixa arguida para todos os efeitos e cominações legais;
XXXII. A interpretação dada pela Autoridade administrativa ao exercício do direito de defesa previsto na forma conjugada do Art.º 50º do RGCO com o n.º 10 do Art.º 32º da CRP, padece de inconstitucionalidade;
XXXIII. Cuja arguição aqui se deixa alegada para todos os efeitos e cominações legais;
XXXIV. Aliás, a mencionada interpretação do preceito legal, conflitua com o princípio da investigação e da descoberta da verdade material, ínsitos no Código de Processo Penal (CPP), “ex vi” do Art.º 41º do RGCO;
XXXV. Ficou assim, irremediavelmente prejudicada, a garantia de defesa da sociedade arguida;
XXXVI. Ao negar à arguida, a possibilidade de exercer a sua defesa;
XXXVII. Produzindo a prova contrária, aos factos constantes do auto, na base do qual foi proferida a decisão sob impugnação;
XXXVIII. Da inquirição das testemunhas e se necessário da sua acareação, resultaria certamente na descoberta de que a arguida não praticou a infracção de que vem indiciado;
XXXIX. É entendimento de toda a jurisprudência que a ausência do arguido em relação à sua defesa, não é só a ausência física mas também a ausência processual, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa;
XL. Por essa razão, a consequência de tal vício, é equiparável à ausência do arguido, nos casos em que a lei exige a respectiva comparência;
XLI. O que significa que a autoridade administrativa cometeu a nulidade prevista no Art.º 119º alínea c) do CPP;
XLII. Cuja consequência é a prevista no n.º 1 do Art.º 122º do CPP, ou seja, a invalidade do acto praticado bem como dos que dele dependerem;
XLIII. Como tal, as garantias de defesa, só se tornam efectivas, tornando nula, de forma insanável, a decisão da autoridade administrativa de aplicar uma sanção ao arguido;
XLIV. A interpretação dada pela Autoridade Administrativa ao Direito de Defesa da sociedade arguida em processo contra-ordenacional, cuja letra da lei, resultante do Art.º 50º do RGCO conjugados com o n.º 10 do Art.º 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP), padece de inconstitucionalidade, cuja arguição aqui se deixa alegada para todos os efeitos e cominações legais;
XLV. Aliás, a mencionada interpretação do preceito legal, conflitua com o princípio da investigação e da descoberta da verdade material, ínsitos no Código de Processo Penal, “ex vi” Art.º 3º alínea b) do RGIT e Art.º 41º do RGCO;
XLVI. Ao indeferir a audição das 3 testemunhas indicadas pela ora recorrente, com o fundamento abstracto e genérico, sem conteúdo concreto, a Autoridade Administrativa fez uma interpretação dos normativos então invocados, o Art.º 50º do RGCO, desconformes à “Lex Fundamentalis”;
XLVII. Interpretação que a douta sentença sob recurso também fez ao manter a decisão administrativa;
XLVIII. Daqui resulta que, ao não inquirir as testemunhas arroladas, com base, apenas, naquela interpretação das normas em referência, desconforme à Constituição, nos termos em que se deixou alegado e ao não consignar, nos autos, de modo fundamentado, as concretas razões pelas quais tais audições eram indeferidas e quais as concretas razões porque tais inquirições se revelavam desnecessárias para a decisão a proferir no processo e dessa forma justificando a não realização das diligências probatórias, devida e atempadamente requeridas pela arguida no âmbito do seu direito, constitucionalmente consagrado, de defesa em processo contra-ordenacional, impõe-se concluir, ter sido violado o direito de defesa desta;
XLIX. Ocorrendo a nulidade do procedimento administrativo a partir da apresentação da defesa pela arguida com a consequente nulidade da decisão administrativa e dos actos posteriores, dela decorrente, tudo, nos termos conjugados do Art.º 50º do RGCO, com o Art.º 32º n.º 10 da CRP, e ainda com o Art.º 61º, n.º 1 alínea g) e o Art.º 119º n.º 1 alínea c), ambos do Código de Processo Penal, (CPP) “ex vi” Art.º 41º do RGCO;
Nestes termos deve ser admitido o presente recurso, revogada a douta sentença sob recurso e substituída por outra que declare a invocada nulidade, a partir da Defesa Escrita então apresentada, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

Não teve lugar resposta ao recurso.

Nesta Instância, o Sr. Procurador Geral-Adjunto entende ser de confirmar a Decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados provados os seguintes Factos:
Factos Provados:
Da decisão administrativa/acusação:
1. No dia 16 de Janeiro de 2017, pelas 09h32m, no CAM da …, no decurso de uma acção de fiscalização, nas circunstâncias de modo e lugar constantes no auto de Contra-ordenação n.º …, a arguida BB, S.A., NIPC …, circulava com o veículo pesado de mercadorias com a matrícula … efectuando um transporte de adubo em paletes.
2. Nas circunstâncias de modo e lugar constantes dos autos, o mencionado veículo foi submetido a pesagem pelas balanças Captels ORA 10, série n.º 1059, aprovadas pela ANSRT, com o certificado de aprovação n.º CE T6377 e certificado de verificação periódica n.º 201.24/16.14210 e acusou o peso total de 20580 kg.
3. O referido veículo tem um peso bruto de 18600 kg.
4. A arguida era a proprietária do veículo identificado nos autos, que na ocasião era conduzido pelo seu funcionário CC, por conta e no interesse da arguida.
5. O instrumento de pesagem utilizado pela entidade fiscalizadora encontrava-se devidamente aprovado, aferido e certificado para as funções desempenhadas até 31 de Dezembro de 2017.
6. A arguida, por intermédio dos seus representantes, agiu de forma livre, voluntária e consciente e ao agir de modo a prever o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo porém de a empreender, e conformando-se com a produção desse mesmo resultado, actuou com dolo, ainda que eventual.

Mais se provou:
7. A carga que foi transportada pela sociedade arguida – adubo -, quando molhada é susceptível de aumentar de peso e de volume.
Factos não Provados:

Da impugnação judicial/recurso:
a) Quando pela manhã, muito cedo, do dia a que se reportam os factos, foi tomada pelo representante legal da arguida, a decisão de proceder à carga e transporte dos produtos em causa, estava um dia bonito e nada fazia prever a chegada da chuva, porém com o lapso de tempo despendido na carga do veículo e na pesagem, já no trajecto com vista ao destino dos produtos transportados e com a impossibilidade de evitar o seu transporte e, sem que nada o fizesse esperar, caiu uma grande quantidade de chuva.
b) Em face da surpresa que constituiu a chuvada no dia, hora e local dos factos, em relação à qual se tonou, por um lado, inevitável molhar a carga e por outro lado, gerou na sociedade arguida a invencibilidade para evitar as consequências do contacto da chuva com a carga, o que provavelmente gerou um aumento do seu peso.
c) A arguida tendo ordenado a prévia pesagem do veículo com a carga, ficou com a convicção que o peso da carga não excedia o peso permitido.

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
O Tribunal formou a sua convicção, quando aos factos provados, desde logo pela admissão dos mesmos por banda da Recorrente, uma vez que não os impugnou, tendo contudo, os mesmos sido confirmados pelo militar da GNR que elaborou o auto e que prestou declarações, a testemunha …. O facto aludido em 7, atendeu-se ao depoimento da testemunha CC, motorista do camião que transportou a mercadoria dos autos, que mencionou este facto, resultando também o mesmo das regras da experiência comum.

Quanto aos factos não provados, tal assim resulta por não ter sido produzida qualquer prova quanto aos mesmos. Aliás foi antes produzida prova em sentido contrário. Com efeito, a testemunha CC afirmou que a carga se molhou porque foi carregada em cima do camião na véspera, por ter chovido durante a noite e a mercadoria não ter ficado tapada ou o camião resguardado dentro de instalações. Ou seja, se ouve aumento de peso da mercadoria, tal ocorreu, não no decurso da viagem, mas antes desta se iniciar. Esta testemunha referiu também que o camião depois de estar carregado com a mercadoria não foi pesado.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
No caso em apreço várias são as questões trazidas pela recorrente à consideração deste Tribunal de recurso.
No caso em apreço está em causa a omissão de diligências probatórias por parte da Autoridade Administrativa, consistente na não audição de testemunhas por si apresentadas.
Cabendo, de seguida, decidir de que nulidade se trata – de nulidade sanável, como defende a Sentença recorrida ou, ao invés, se trate de nulidade insanável como defende a aqui recorrente.
Porém, antes de se saber de que tipo de nulidade se poderá vir a tratar, importa, em primeiro lugar, saber se a Autoridade Administrativa cometeu alguma nulidade ao recusar a audição de três testemunhas apresentadas pela arguida e ora recorrente nessa fase processual.
Na Decisão sob censura, a respeito, discorreu-se, como segue:
A recorrente invocou a nulidade da decisão proferida pela autoridade administrativa por omissão de diligências probatórias.
Vejamos,
O artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, dispõe que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 54.º, n.º2, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, “a autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará uma coima”.
Com relevância para a questão suscitada, atente-se no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, que determina que “constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.”.
Sem dúvida que uma das formas de exercício de direito de defesa é através da indicação de meios de prova, designadamente na inquirição de testemunhas, que no entender da Recorrente resultaria “na descoberta de que a arguida não praticou a infracção de que vem indiciada”.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se a entidade administrativa está ou não obrigada a realizar as diligências de prova requeridas pela arguida (v.g. inquirir as testemunhas por aquela arroladas).
Não tem sido pacífica a resposta a esta questão.
Da análise das posições em confronto verifica-se que nenhuma sustenta a obrigatoriedade absoluta (isto é, sem possibilidade de indeferimento das mesmas por parte da autoridade administrativa) de realização das diligências probatórias requeridas, assentando a divergência de entendimentos essencialmente na necessidade ou não de fundamentar a não realização de tais diligências.
Com efeito, para os que defendem a não obrigatoriedade de realizar as diligências probatórias requeridas pela arguida a posição da entidade administrativa na fase administrativa é em tudo semelhante à do Ministério Público em sede de inquérito pelo que detendo aquela o poder de direcção do processo pode “praticar ou não praticar os actos de investigação e as diligências probatórias que entender adequados aos fins do processo contra-ordenacional e, designadamente, de não realizar as diligências requeridas pelo arguido, à imagem e semelhança do que sucede com o Ministério Público quando dirige o inquérito criminal”.[1]
Sustentam igualmente que a audição de testemunhas não constitui um acto imposto por lei pelo que nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, nem o procedimento nem a decisão administrativa são nulas por preterição daquela diligência.
Para quem entende que a autoridade administrativa está obrigada a realizar as diligências requeridas pela arguida, ancora a sua posição no direito de defesa previsto no artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, sustentando que o mesmo significa o direito de intervir no processo de contra-ordenação apresentando provas ou requerendo diligências.
Não pode pois a autoridade administrativa, sem fundamentar válida e eficazmente a preterição da diligência requerida, deixar de a realizar sob pena de insuficiência do inquérito e consequente verificação da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.[2]
Como se vê das posições enunciadas, nenhuma sustenta, a absoluta obrigatoriedade de realização de diligências requeridas pelos arguidos, em sede de processo administrativo, podendo a Autoridade Administrativa, desde que o fundamente válida e eficazmente (requisito exigido pela segunda posição), não a realizar.
Sigo esta segunda posição porquanto a meu ver, contrariamente ao que sucede com a acusação, a decisão da autoridade administrativa é uma decisão punitiva que implica a condenação pela prática de um ilícito contra-ordenacional e que pode pôr termo ao processo caso não seja objecto de impugnação. É pois, diferente da acusação deduzida pelo Ministério Público a qual terá ainda de ser confirmada em julgamento, onde poderá haver ou não condenação do arguido.
Entendo pois que o direito de defesa, (v.g. a audição de testemunhas indicadas) em processo de contra-ordenação não pode ser preterido sem fundamentação válida e eficaz por parte da Autoridade Administrativa sob pena de tal se traduzir, numa insuficiência de inquérito que determina a nulidade prevista no citado artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal e não a prevista no art.º 119.º, alínea c) do Código de Processo Penal, como defende a Recorrente.
Vejamos, então, se ocorreu, no caso, a invocada nulidade.
Nos presentes autos a recorrente alegou que da inquirição das testemunhas que arrolou “resultaria, certamente na descoberta de que a arguida não praticou a infracção de que vem indiciado”.
Ora, desde logo, é incompreensível tal alegação da Recorrente, quando é a própria que, em sede de impugnação judicial, não arrola testemunhas para serem ouvidas pelo Tribunal e assim demonstrar o quão as mesmas eram importantes e essenciais à descoberta da verdade.
A Autoridade Administrativa, em sede de decisão, referiu que “entende como desnecessário e irrelevante proceder à realização da inquirição das testemunhas arroladas em sede de defesa pelo arguido, quer face ao objecto do presente processo contra-ordenacional, quer face à especificidade da matéria que se pretende provar. Ora, os autos e análise têm por objecto a matéria factual que lhe está subjacente e consubstanciadora da infracção imputável ao arguido, encontrando-se a mesma adequadamente sustentada na objectividade no processo do talão de pesagem, elemento probatório suficiente e apto a proferir a decisão final”.
Analisado o teor da defesa da Recorrente perante a Autoridade Administrativa verificamos que a mesma versa, essencialmente, sobre questões de direito, apenas com excepção para os dois factos alegados pela Recorrente, a saber: de ter pesado a mercadoria e de ter chovido no dia dos factos.
Ora para estes factos, a Recorrente podia ter junto documentos que os comprovassem, o que não fez, nem sequer agora, em sede de impugnação judicial.
Considerando que a infracção em causa se consubstancia no transporte de mercadorias com excesso de peso, e porque não se vislumbra em que medida as testemunhas podiam contribuir para a prova daqueles factos, os quais só por documento seriam comprovados, a fundamentação vertida na decisão administrativa é suficientemente válida, eficaz e cabal, pelo que não enferma a decisão de qualquer nulidade.
Como dos autos resulta à aqui recorrente foi aplicada a Coima no valor de € 550,00, por violação do disposto no art.º 31.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16.07,
O citado diploma legal versa sobre o regime jurídico da actividade de transporte rodoviário de mercadorias, adoptado no direito interno em consonância com as Directivas n.ºs 96/26/CE, do Conselho, de 29 de Abril, e 98/76/CE, do Conselho, de 1 de Outubro, em vigor desde 1999.
Nos termos do art.º 31.º, do Decreto-Lei n.º 257/2007 – sob a epígrafe de excesso de carga -, refere-se no seu n.º 1 que a realização de transportes com excesso de carga é punível com coima de (euro) 500 a (euro) 1500, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
E no seu n.º 2 que sempre que o excesso de carga seja igual ou superior a 25 % do peso bruto do veículo, a infracção é punível com coima de (euro) 1250 a (euro) 3740.
Contra-ordenação que se consubstanciou no facto de no dia 16 de Janeiro de 2017, pelas 09h32m, no CAM da …, no decurso de uma acção de fiscalização, nas circunstâncias de modo e lugar constantes no auto de Contra-ordenação n.º …, a BB, S.A., NIPC …, circulava com o veículo pesado de mercadorias com a matrícula …efectuando um transporte de adubo em paletes.
E que sendo submetido o mencionado veículo a pesagem, pelas balanças Captels ORA 10, série n.º 1059, aprovadas pela ANSRT, com o certificado de aprovação n.º CE T6377 e certificado de verificação periódica n.º 201.24/16.14210, acusou o peso total de 20580 kg.
Sendo que o referido veículo tem um peso bruto de 18600 kg.
Como decidir?
Importa fazer intervir no caso em apreço o disposto no art.º 50.º, do RGCO, sob a epígrafe de direito de audição e defesa do arguido, onde se estatui que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.
Entendendo-se que em tal normativo se consagra o direito de defesa do arguido (ver, art.º 32., n.º 10, da CRP). Sendo que tal direito não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo também o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo diligências.
No sentido de acabar de tecer, vemos o ensinamento de Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa ao referirem que o direito de defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências. Caberá, no entanto, à entidade que dirige o processo de contra-ordenação deferir ou não a realização das diligências requeridas, devendo abster-se de realizar as que se lhe afigurem de utilidade para a descoberta da verdade. A realização de diligências posteriores à apresentação de defesa deverá ser seguida da concessão de nova possibilidade ao arguido para se pronunciar sobre elas, como é exigido pelo direito de audiência, constitucional e legalmente reconhecido[3].
E competindo, como compete, à Autoridade Administrativa a investigação e a instrução do processo, nos termos do n.º 2, do art.º 54.º, do RGCO, é a ela que cumpre decidir pela realização ou não das diligências de prova que lhe forem requeridas.
E sobre que diligências probatórias terão de ser levadas a cabo pela Autoridade Administrativa, somos de entendimento que só terão de ser realizadas aquelas que se mostrem necessárias para o apuramento da verdade e da boa decisão da causa; todas as demais serão de indeferir, por supérfluas, inúteis.
Sobre esta temática Oliveira Mendes e Santos Cabral pronunciaram-se no sentido de a autoridade administrativa não estar obrigada à prática dos actos requeridos pelo arguido, apenas devendo praticar os actos que se proponham atingir as finalidades daquela fase processual o que pode não coincidir, necessariamente, com os actos propostos.[4]
Porém, somos a entender que a autoridade administrativa, ao não aceitar as diligências de prova requeridas pelo arguido, terá de fundamentar a sua decisão, em obediência ao princípio da legalidade, cfr art.ºs 43.º, do RGCO e 266.º, n.º 1, da CRP.
Como se deixou retro transcrito, a autoridade administrativa não procedeu à inquirição das testemunhas arroladas pela arguida, ora recorrente, porquanto entendeu ser desnecessária e irrelevante a sua audição, face à especificidade da matéria que se propunha provar. E que o elemento probatório junto aos autos – talão de pesagem - seria suficiente e apto a proferir decisão.
Para além desse elemento probatório seria de aportar dados do IPMA (Instituto Português do Mar e Atmosfera) que desse nota da quantidade de chuva caída no trajecto percorrido pelo veículo e no período temporal que durou esse trajecto e até ter sido efectuada a pesagem do veículo.
E bem assim pertinente peritagem que avaliasse o impacto dessa quantidade de chuva na alteração do peso da carga transportada.
Mostrando-se de nenhuma, ou de fraca, importância a prova testemunhal, sobre o tema em causa nos autos.
Daí que, e bem, se andou ao não proceder à inquirição das testemunhas arroladas pela arguida/recorrente, por desnecessárias.
O que quer significar que nenhuma nulidade foi cometida pela autoridade administrativa, sendo inútil a apreciação de que tipo de nulidade se trata (art.ºs 130.º, do Cód. Proc. Civ., 4.º, do Cód. Proc. Pen., e 41.º, do RGCO).

Cabe analisar e decidir se o despacho da autoridade administrativa se mostra devidamente fundamentado.
Para dilucidar tal questão importa trazer a terreiro o que se diz no art.º 97.º, do Cód. Proc. Pen., sobre a epígrafe de actos decisórios, onde se refere no seu n.º 5 que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão (normativo aplicável ex vi, do art.º 41.º, do RGCO).
Preceito que se apresenta em conformidade com a exigência constitucional vertida no art.º 205.º, n.º 1, da C.R.P.
Na lição do Prof. Gomes Canotilho, a necessidade de fundamentação dos actos decisórios decorre de três razões fundamentais, a saber:
- Controlo da administração da justiça;
- Exclusão do carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes.
- Melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas.[5]
Ou como refere o Prof. Germano Marques da Silva, a fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.[6]
Ora, basta atentar no teor do despacho revidendo – e sem curar de outros considerandos - para se ter de concluir que o mesmo se mostra fundamentado, como exigido por lei.

Face à conclusão retirada não há que analisar, uma vez mais, por inútil a questão da constitucionalidade suscitada.
Sendo nestes vectores que o recorrente funda o seu recurso, importa concluir pelo total naufrágio da sua pretensão recursiva.
Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a Decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça devida.

(texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora, 6 de Novembro de 2018
José Proença da Costa (relator)
Alberto Borges


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[1] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2011, pág. 230. Vide ainda Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/2004, publicado in www.tribunalconstitucional.pt, cuja jurisprudência Paulo Pinto de Albuquerque aplica, mutatis mutandis ao processo contra-ordenacional.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-04-2014, Processo n.º 108/13.2TBCUB
[3] Ver, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, págs. 307 a 308.
[4] Ver, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, págs. 139.
[5] Ver, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, págs. 583.
[6] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. III, págs. 294.