Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
50/21.3T8STR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
REQUISITOS
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A excepção dilatória do caso julgado implica uma tripla identidade: de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, visando-se, por um lado, evitar a repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos e por outro vedar a possibilidade de ocorrer, com a sentença que viesse a ser proferida na segunda acção, uma contradição decisória com a sentença proferida na primeira acção;
2 – Já quando vigora como autoridade de caso julgado o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 50/21.3T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central Cível de Santarém - Juiz 2
Apelante: (…)-SGPS, SA
Apelada: (…)-Recolha, Transporte e (…) de Resíduos, Lda.
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Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
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Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
No âmbito dos presentes autos de acção declarativa condenatória, com processo comum, que (…)-SGPS, SA, com sede na Rua da (…), n.º 1296, (…), 4600-591 Amarante, moveu contra (…)-Recolha, Transporte e (…) de Resíduos, Lda., com sede na Urbanização Quinta (…), Lote 1, 2435-661 (…), Ourém, foi proferido despacho saneador com o seguinte teor:
“[…]
Da invocada excepção de caso julgado.
Nos presentes autos que (…)-SGPS, SA, pessoa colectiva n.º (…), com seda na Rua da (…), n.º 1296, (…), 4600-591 Amarante, move contra (…)-Recolha, Transporte e (…) de Resíduos, Lda., pessoa colectiva n.º (…), com sede na Urbanização Quinta (…), Lote 1, 2435-661 (…), Ourém, veio a ré, em sede de contestação, arguir a excepção de caso julgado, sustentando, para o efeito, que o presente litígio já foi decidido no âmbito dos autos que correram termos neste mesmo Tribunal sob o n.º 1846/17.6T8LRA, pretendendo a autora, nos presentes, com um fundamento jurídico diverso (enriquecimento sem causa), obter um valor indemnizatório que lhe foi negado no âmbito do referenciado processo.
Em resposta, a autora propugnou no sentido da improcedência da arguida excepção dilatória.
Cumpre decidir.
Conforme resulta da petição inicial, a autora, com fundamento no acervo factual que resultou provado no âmbito da acção que correu termos neste juízo sob o n.º 1846/17.6T8LRA pretende que a ré seja condenada a pagar-lhe a importância de € 118.907,30, acrescida de juros vincendos sobre o capital de € 72.880,36, deste a citação até efectiva liquidação.
Considera a autora que a referida factualidade, atento o regime previsto no artigo 473.º do Código Civil (enriquecimento sem causa), conduz à procedência da presente acção, atenta a força de caso julgado e de autoridade de caso julgado que decorre da decisão proferida nos mencionados autos.
O que sucede, em nosso entender, no caso vertente, é precisamente o inverso do que a autora vem defender, ou seja, o caso julgado que resulta da decisão exarada no processo que antecedeu o presente impõe-se à ora demandante e impede que a problemática aí suscitada seja de novo discutida, independentemente dos fundamentos jurídicos que a autora carreou em ambos os litígios.
No que ao caso diz respeito, a autora formulou um pedido indemnizatório, na acção que antecedeu a presente, com base no acervo factual que também vem invocar nestes autos, sendo que na primeira sustentava que existia incumprimento contratual e nos presentes defende que o respectivo pedido – que coincide com o formulado anteriormente – deve ser julgado procedente com base em enriquecimento sem causa.
A acção que precedeu a actual veio a julgada improcedente, por Acórdão, transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 12 de Setembro de 2019.
Ora, de harmonia com o preceituado no artigo 581.º, n.º 1, do C.P.C., “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
Os requisitos da tríplice identidade são explicitados nos nºs 2 a 4 do referido artigo 581.º, nos seguintes moldes:
“2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
Atentos os elementos estruturantes de ambos os litígios (sujeitos, pedido e causa de pedir), não restam quaisquer dúvidas, em nosso entender, de que os mesmos coincidem, pelo que tendo transitado a decisão, neste caso absolutória, proferida no processo a que corresponde o n.º 1846/17.6T8LRA, estava vedado à autora instaurar uma acção com o mesmo objecto, pelo que procede a exceção invocada pela ré, com as legais consequências.
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Nestes termos, e em conformidade com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, nºs 1 e 2, e 577.º, alínea i), todos do C.P.C., julgo procedente a invocada excepção de caso julgado e, em consequência, absolvo a ré da instância.
Custas pela autora.”
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Inconformada com a decisão proferida a Autora apresentou requerimento de recurso dirigido a este Tribunal da Relação alinhando as seguintes CONCLUSÕES:
1. A excepção de caso julgado, nos termos do artigo 580.º, nºs 1 e 2, do CPC, pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, e tem por finalidade evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.
2. A doutrina e a jurisprudência afirmam que o instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa, exercendo a primeira, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões.
3. E exercendo a segunda, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou outro tribunal.
4. Tendo em conta os efeitos do caso julgado, é imprescindível estabelecer com rigor o conceito de repetição de uma causa, dispondo o artigo 581.º, n.º 1, do CPC que, a causa se repete “quando se propõe uma acção idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
5. Por sua vez, os nºs 2, 3 e 4 do preceito citado dispõem que “há entidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e outra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico; e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”.
6. A causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito (facto jurídico de que procede a pretensão deduzida), em consonância com o princípio da substanciação consagrado pelo nosso ordenamento jurídico.
7. O pedido reconduz-se ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, ou seja, a providência que o autor solicita ao tribunal.
8. O conceito de sujeito, a atender para o efeito, coincide com a noção (adjectiva) de parte.
9. No caso dos autos, não há dúvidas quanto à identidade de sujeitos. Porém,
10. Também não se suscitam quaisquer dúvidas quanto à inexistência de identidade da causa de pedir e do pedido deduzidos na presente acção e na acção já transitada em julgado.
11. Na acção intentada que correu termos neste tribunal e juízo sob o nº 1846/17.6T8LRA, a A. alegou como causa de pedir factos que consubstanciavam o incumprimento pela R. das obrigações que sobre si impendiam, decorrentes do acordo (contrato) revogatório do protocolo/contrato denominado “Protocolo entre empresas no âmbito da execução de obras no Brasil”, celebrado em 14/12/2011.
12. A causa de pedir nesses autos reconduzia-se, assim, à responsabilidade civil contratual, decorrente do incumprimento do referido contrato pela R.. Aliás,
13. A douta sentença proferida no referido processo, em 1ª instância, no item “III- Objecto do litígio e questões a decidir”, é inequívoca nesse sentido. Tanto assim que,
14. Todas as questões a decidir, enunciadas na douta sentença e, de modo muito especial, na questão 5ª, “O incumprimento contratual da Autora e da Ré”, se reportam à responsabilidade civil contratual. Aliás,
15. Por assim ser, na referida douta sentença proferida em 1ª instância, consignou-se “os pressupostos da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade contratual são a inexecução ilícita e culposa da obrigação, a existência de um prejuízo reparável, e o nexo de causalidade adequada entre o último e a primeira (artigos 562.º, 563.º, 564.º, n.º 1, 566.º, 798.º, 799.º e 808.º, n.º 1, do Código Civil). No caso concreto, provou a autora que suportou, com a execução da empreitada, o montante de € 72.880,36, montante que a ré, nos termos do acordo de revogação do protocolo celebrado, se obrigou a restituir à autora até 31 de Dezembro de 2012 e que ainda não restituiu, pelo que deverá ser condenada a pagar tal quantia à autora, acrescida de juros de mora, à taxa legal comercial, contados desde 1 de Janeiro de 2013 até integral e efectivo pagamento”.
16. O douto acórdão da Relação, bem como o acórdão do S.T.J. que o confirma, mantiveram inalterado o enquadramento fáctico-jurídico da 1ª instância. Sendo que, a sentença foi revogada na sequência da alteração da decisão da matéria de facto, quantos aos pontos 32, 33 e 34 dos factos provados e, por via disso, a alteração do ponto 3 dos factos não provados.
17. É, assim, inquestionável que a causa de pedir invocada pela A. em tal acção se reconduziu exclusivamente à responsabilidade civil contratual.
18. Já na presente acção, atenta a improcedência daquela, a A. alega factos que evidenciam o locupletamento injustificado da R., à custa da A. fundamentando esta a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, pelo que não existe identidade de causas de pedir, ou de pedidos numa e noutra acções.
19. Esses factos invocados pela A. mostram-se definitivamente assentes na antecedente acção, mesmo tendo em consideração a alteração da decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação.
20. Resulta provado naquela instância que a A. suportou por conta e no interesse da R. custos no valor total de € 72.880,36.
21. Toda a factualidade provada na anterior acção atinente aos custos suportados pela Autora, deverá ter-se por assente sem necessidade de ulterior prova, por constituir autoridade de caso julgado.
22. E, vistas as coisas na perspectiva da autoridade do caso julgado, ou seja da aferição do âmbito e dos limites da decisão, tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado passa pela interpretação do conteúdo da sentença em ambos os seus segmentos de facto e de direito.
23. Na medida em que, em face do carácter definitivo decorrente do trânsito em julgado, se a autoridade de caso julgado vier a ser colocada posteriormente em situação de incerteza pelas mesmas partes, seja no mesmo processo, seja em processo diferente, então seria possível ocorrer, no que aqui releva, em sede de decisão sobre a matéria de facto, a ofensa do caso julgado formado na acção anterior.
24. A decisão sobre a matéria de facto já proferida na antecedente acção, fica a ter força obrigatória dentro e fora do processo, não podendo nesta parte contrariar-se a autoridade de caso julgado.
25. Para lá da decisão sobre a matéria de facto proferida na anterior acção, a questão que se coloca nestes autos, para decidir a excepção de caso julgado invocada pela R. é pois, a de saber se existe identidade da causa de pedir entre a formulada na presente acção e a invocada naquela outra, cuja decisão de improcedência já transitou em julgado e, manifestamente não existe.
26. Pois que a Autora, na primeira acção, fundamenta a sua pretensão na responsabilidade civil contratual, tendo a mesma sido julgada improcedente; em consequência, deduz a presente acção, onde alega os factos integradores do enriquecimento injustificado da Ré, à custa do empobrecimento da Autora, factos esses que não havia alegado naquela acção, razão pela qual não se verifica a identidade da causa de pedir, nem de pedidos entre as duas acções.
27. Deve assim, ser julgada improcedente a excepção dilatória de caso julgado, invocada pela R., a qual pressupõe a referida tríplice identidade: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (artigos 580.º e 581.º do C.P.C.), que não verifica no caso vertente.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-a por douto acórdão que julgue a presente acção totalmente procedente, assim se fazendo justiça”.
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A Apelada respondeu ao recurso pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi recebido na 1ª Instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito.
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Colheram-se os Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que, in casu, importa apenas saber se a excepção dilatória de caso julgado considerada procedente na decisão recorrida se verifica ou não.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
A matéria de facto a considerar consta descrita supra no relatório deste acórdão.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Está em causa saber se estamos, ou não, perante um cenário de caso julgado entre a presente causa e a acção que correu termos no Tribunal a quo sob o n.º 1846/17.6T8LRA, a qual se encontra definitivamente julgada por acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2020, o qual, confirmando o acórdão anteriormente proferido em 12 de Setembro de 2019 por este Tribunal da Relação de Évora, julgou improcedente a acção supra identificada e transitou em julgado em 12/06/2020 (cfr. certidão junta aos autos a 25/10/2021).
Decorre do artigo 580.º do CPC, que contem a noção de litispendência, o seguinte:
1 – As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário , há lugar à excepção do caso julgado”.
2 – Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”.
[…]
Por seu turno, estatui sobre os requisitos do caso julgado o artigo 581.º do CPC, nos seguintes termos:
“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa de pedir se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
A primeira constatação a fazer é a de que se afigura essencial para a verificação da excepção do caso julgado uma tripla identidade: de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir.
Quanto à identidade de sujeitos não se afigura suficiente a mera identidade física ou nominal, devendo atender-se para averiguar o preenchimento desse requisito “não a critérios formais ou nominais, mas a um ponto de vista substancial, ou seja , ao interesse jurídico que a parte concretamente atuou e atua no processo" (vide o acórdão do STJ de 24/02/2015 proferido no processo n.º 915/09.0TBCBR.C1.S1, acessível para consulta in www.dgsi.pt).
No que tange à identidade de pedidos a mesma verifica-se quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo (neste sentido além do acórdão do STJ acima identificado, vide o acórdão do mesmo Tribunal de 14/12/2016 , no processo 219/14.7TVPRT-C.P1.S1, também acessível in www.dgsi.pt), devendo ter-se como critério orientador, por um lado, a dispensabilidade de repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos e por outro lado a necessidade de se vedar a possibilidade de ocorrer, com a sentença que vier a ser proferida, uma contradição decisória, podendo a identidade de pedidos ser apenas parcial e ainda assim ser bastante para a constatação da verificação da excepção do caso julgado (neste sentido António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição actualizada, Almedina, 2020, pág. 686).
No tocante à identidade de causas de pedir defende Mariana França Gouveia (“A Causa de Pedir na Ação Declarativa”, página 508), que apenas quando noutra ação se aleguem normas que impliquem, pelo menos, um facto principal diferente a causa de pedir de ambas será diferente, pelo que para efeitos de caso julgado será de considerar que um mesmo evento possa ser objecto de reapreciação com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma jurídica não tiver sido apreciado pelo juiz.
Nesta linha de raciocínio referem ainda José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em comentário ao artigo 581.º do CPC (“Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 4.ª edição, Almedina, 2019), o seguinte (pág. 599):
“A qualificação jurídica dada aos factos na primeira ação nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova ação em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação (trata-se dum corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto e não o facto abstratamente descrito na lei: Alberto dos Reis, CPC anotado cit, III, páginas 123, 125, 127 e 132, com aplicações várias).”
Ainda no que respeita à identidade de causas de pedir diz-nos o acórdão do STJ de 14/12/2016 , já acima citado , que “A essencial identidade e individualidade da causa de pedir tem de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial das causas petendi invocadas numa e noutra das acções em confronto, não sendo afectada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções, nem pela invocação na primeira acção de determinada factualidade, perspectivada como meramente instrumental ou concretizadora dos factos essenciais” (neste sentido ainda o acórdão do STJ de 24/04/2013, Processo n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1 acessível in www.dgsi.pt ).
Seguimos as posições acima expostas no tocante à apontada tripla identidade.
Baixando agora ao caso concreto, verificamos desde logo que a presente causa foi instaurada em juízo em 07/01/2021, ou seja subsequentemente ao trânsito em julgado que operou no âmbito do processo n.º 1846/17.6T8LRA, ocorrido na data de 12/06/2020.
Com efeito, recorrendo ao exame da certidão já acima mencionada junta aos autos em 25/10/2021 percebemos que existe identidade de sujeitos entre a presente acção e a acção que correu termos no Tribunal a quo sob o n.º 1846/17.6T8LRA, quer no tocante ao elemento físico ou nominal, quer no tocante ao interesse jurídico que se pretende efectivar em cada um dos dois processos.
De resto, essa identidade não é sequer colocada em questão pela ora Apelante na sua peça recursiva sendo esta última a Autora em ambas as acções e a ora Apelada Ré nas duas causas.
Quanto ao pedido (ao contrário do sustentado pela Apelante que, porém, não o justifica na peça recursiva), fazendo apelo à posição doutrinária e jurisprudencial supra registada verificamos do cotejo entre as duas ações que o efeito prático-jurídico pretendido pela Apelante em ambas as ações é substancialmente o mesmo, a saber, a condenação da Apelada a restituir-lhe, a título de capital, a quantia de € 72.880,36, acrescida de juros de mora vencidos desde 10/02/2012 (que na primeira causa liquidou em € 22.245,98 e nesta segunda acção, atento o hiato temporal entretanto decorrido desde aquela data, em € 46,026,94) e vincendos desde a citação até efectiva liquidação.
No tocante à identidade de causa de pedir e relembrando mais uma vez a posição doutrinária e jurisprudencial que acima evidenciamos somos em crer que a mesma também se verifica entre o presente processo e a acção que correu termos sob o n.º 1846/17.6T8LRA.
Com efeito, tendo como certo que o complexo factual de que emerge a causa de pedir da acção n.º 1846/17.6T8LRA é o que resulta definitivamente assente no acórdão proferido em 12 de Setembro de 2019 neste Tribunal da Relação de Évora (confirmado posteriormente por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça), certo é também que confrontando aquele elenco de factos com o arrazoado da petição inicial da presente acção se pode concluir NADA acrescentar esta última a tal volume factual definido no acórdão.
Se dúvidas restassem quanto a tal sempre as mesmas se dissipariam através do alegado expressamente pela Apelante no artigo 35.º da petição inicial cujo teor é o seguinte:
“E toda esta factualidade a que atrás se faz referência (renúncia da Autora a todas as vantagens económicas do protocolo, com cessão da posição contratual a pedido e a favor da Ré e custos suportados pela Autora a pedido da Ré na execução da empreitada), tal matéria deverá ter-se por assente, sem necessidade de ulterior prova, configurando autoridade de caso julgado”.
Na verdade, uma leitura medianamente atenta da dita petição inicial permite constatar com facilidade que a Apelante não alega factos, seja a título de factos essenciais constitutivos de causa de pedir, seja de factos complementares, ou meramente instrumentais, em aditamento aos que ficaram definitivamente assentes no âmbito da acção n.º 1846/17.6T8LRA, o que equivale a dizer que os factos que invoca na petição inicial desta acção foram todos sujeitos a apreciação judicial mormente nos arestos proferidos por esta Relação de Évora e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Dito isto, percebemos que a qualificação jurídica que a Apelante ora sustenta na petição inicial da presente causa assente numa fonte de obrigações diversa, qual seja o enriquecimento sem causa, baseia-se, porém, nos mesmos factos que foram considerados definitivamente assentes e julgados na acção n.º 1846/17.6T8LRA, respaldados na fonte de obrigações contrato, pugnando nesta última a Apelante por indemnização fundada juridicamente em responsabilidade civil contratual derivada de incumprimento por parte da Apelada e naquela outra (a presente acção), em restituição de idêntico capital fundada no mencionado enriquecimento sem causa.
Essa identidade de factos, mormente no tocante a factos principais ou essenciais constitutivos da causa de pedir, conduz-nos necessariamente ao convencimento de que também se verifica entre as duas acções identidade de causa de pedir, uma vez que o que difere em ambas as causas é unicamente a qualificação jurídica que a Apelante conferiu numa e noutra aos mesmíssimos factos essenciais.
Diga-se, aliás, que sendo o instituto do enriquecimento sem causa uma fonte de obrigações que releva a título meramente subsidiário (vide artigo 474.º do Código Civil), e dado que a Apelante até entende que os factos julgados em definitivo na acção n.º 1846/17.6T8LRA (resultantes do alegado, designadamente por si, nos articulados em observância do princípio do dispositivo), lhe permitem fundamentar nesta acção o seu pedido também com base naquele instituto sempre poderia a mesma ter construído o seu petitório na petição inicial daquela primeira acção delineando, desde logo, um pedido subsidiário com base em enriquecimento sem causa, o que não terá logrado fazer.
Note-se que a vingar a tese da Apelante depararíamos com um cenário de patente insegurança jurídica uma vez que qualquer complexo factual mesmo que já julgado em definitivo por um Tribunal à luz de uma determinada formulação jurídica poderia sempre ser de novo trazido à colação, tal qual, pelo mesmo interessado, contra o mesmo demandado, para ser apreciado à luz de uma outra qualquer qualificação jurídica que ao primeiro parecesse, no entretanto, acertada.
Uma última palavra para dizer que a Apelante aborda erradamente, na perspectiva das conclusões que retira quer na petição inicial, quer no recurso, a questão da autoridade do caso julgado.
Na verdade, é precisamente porque a matéria factual julgada em definitivo na anterior acção nº 1846/17.6T8LRA, (a qual foi considerada improcedente quanto à pretensão que ora se pretende fazer valer de novo), se impõe com força de caso julgado sobre a presente acção que a mesma não pode voltar a ser objecto de discussão à luz de uma mera diferente qualificação jurídica sendo certo que perante um tal cenário se impõe evitar a repetição da causa através da invocação da excepção do caso julgado, o que a Apelada logrou fazer na respectiva contestação.
Pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova acção de mérito.
Assim, se podemos aceitar que a perda pelo demandante de uma acção fundada juridicamente em responsabilidade civil contratual contra certo réu pode justificar a condenação do mesmo réu em causa subsequente em restituição do que for devido com base jurídica no enriquecimento sem causa, a verdade é que tal só é possível, por só desse modo se contornar a questão da força do caso julgado, desde que na primeira acção o autor não tenha invocado os factos integradores do enriquecimento do réu e do seu próprio empobrecimento.
O que não ocorre no caso sub judice dado que a Apelante entendeu que os factos julgados definitivamente na acção n.º 1846/17.6T8LRA permitem por si, também, o enquadramento jurídico no instituto do enriquecimento sem causa tendo-os invocando integralmente na presente acção conferindo-lhes tal qualificação jurídica.
Em suma, verificando-se a tripla identidade entre a presente acção e a acção julgada por acórdão anteriormente transitado em julgado, improcedem, pois, as conclusões recursivas da Apelante, não merecendo censura a decisão recorrida.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso de apelação interposto por (…)-SGPS, SA e, em consequência, decide-se:
a) Confirmar a sentença recorrida;
b) Condenar a Apelante em custas – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
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Évora, 09/06/2022
José António Moita (Relator)
Mata Ribeiro (1º Adjunto)
Maria da Graça Araújo (2ª Adjunta), com o seguinte
Voto de vencida:
Determinaria o prosseguimento dos autos, porquanto entendo não ocorrer caso julgado (excepção ou autoridade).
Com efeito, as causas de pedir invocadas nas duas acções (in/cumprimento do acordo de revogação e enriquecimento sem causa) são distintas. É certo que em ambas as acções se invocam os custos suportados pela autora em prol de uma dada parceria que não chegou a bom porto (há um núcleo factual comum). Na primeira acção, tal montante era pedido porque correspondia à obrigação da ré constante do acordo de revogação. Na 2ª acção (artigos 30º a 34º e 47º e seguintes da p.i.), a autora diz que, ao ter renunciado aos seus direitos/vantagens na parceria sem ter sido compensada pelos custos suportados, ocorreu um enriquecimento ilegítimo da ré. Tendo a 1ª acção entendido que não se provara o acordo de revogação, entendeu, em consequência, que a autora não tinha o direito de ver cumprido esse acordo; ou seja, no entender da autora, deixou de existir a causa que justificara os custos por ela suportados e que beneficiaram a ré. Parece-me, assim, que há um núcleo factual (também essencial e ainda que merecedor de aperfeiçoamento ou venha a revelar-se improcedente) que é alegado nesta acção e que não existia na 1ª.
Considero, pois, que não há nem excepção nem autoridade de caso julgado (que, aliás, não cobre os factos provados). É a opinião de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Almedina, Coimbra, 3ª edição, a páginas 599.