Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
129/16.3GAVRS.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CO-HABITAÇÃO
RECUSA A DEPOR
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1 - A teleologia, essa busca da intenção essencial, da norma que se contém no artigo 134º do C.P.P. é de fácil apreensão: pretende-se evitar a intromissão do Estado na esfera íntima do casal. De forma mais chã e popular: o Estado não tem que bedelhar a intimidade de dois cidadãos que vivam ou tenham vivido em comum.
2 - O conceito de co-habitação não supõe apenas a vivência em comum em plena harmonia, tem que incluir, necessariamente, os momentos de discórdia, de zanga, os intervalos de desarmonia.
3 - Se o arguido foi acusado de factos anteriores à separação, sendo certo que a própria separação está em discussão, ambas as situações estão inseridas no acervo de factos protegidos pela norma, pela intimidade.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 129/16.3GAVRS


Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
Nos autos de processo comum singular supra numerado, perante tribunal singular do Tribunal da Comarca de Faro – Vila Real de Santo António - e onde é arguido BB, nascido em (…), imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, de um crime violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.°, n." 1, alínea b) do Código Penal, foi lavrada sentença em 20 de Abril de 2018 que julgou improcedente, por não provada, a acusação pública e, em consequência, absolveu o arguido do crime imputado.
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Inconformado, recorreu o Ministério Público junto do tribunal recorrido da sentença proferida, com as seguintes conclusões:
1. A Mma Juíza no despacho recorrido considerou que a testemunha CC ao afirmar que à data dos factos em discussão vivia na mesma casa que o arguido, embora separada do mesmo, por interpretar que tal corresponde a coabitação, se enquadrava na previsão do art.º 134º, nº 1, al. b) do C.P.P., e que podia recusar prestar depoimento.
2. Ora, a coabitação a que se refere tal preceito legal é a equivalente à manutenção de uma relação, no sentido de uma unidade de vida familiar, com comunhão de casa, mesa e cama, o que, manifestamente não se verificava.
3. Referindo-se no despacho recorrido às afirmações da testemunha aquando da sua eventual relação familiar ou outra de interesse com o arguido, verte no mesmo a ideia de que aquela afirmou que, à data dos factos em discussão nos autos, se mantinha a união de facto com o arguido, o que, conforme se pode constatar pela gravação respeitante à identificação da testemunha, mais precisamente logo na fase inicial, reforçada na parte final entre 00.14 e 13.41, não corresponde à verdade.
4. Violou, assim, o disposto em tal preceito legal, comprometendo o apuramento dos factos tendo em vista a eventual prática pelo arguido de um crime de violência doméstica.
5. Devendo tal decisão ser revogada, determinando-se a prestação de depoimento pela testemunha, sem cumprimento prévio do disposto no art.º 134º, nº 1, al. b) do C.P.P..
6. Por outro lado, a sentença recorrida encontra-se ferida dos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e erro notório na apreciação da prova previstos no art.º 410º, nº 2 al.s b) e c) do C.P.P., dando como não provados factos em contradição com a prova documental e testemunhal produzida nos autos, alguma dela indicada na sentença.
7. Por outro lado encontra-se ferida de nulidade em conformidade com o disposto no art.º 379º, nº 1, al. a) do C.P.P., por não observar o determinado no art.º 374º, nº 2 do C.P.P., porquanto não efectuou análise crítica da prova produzida para ser possível compreender e sindicar os raciocínios que efectuou e as premissas das conclusões a que chegou.
8. Devem, assim, ser revogadas a decisão de verificação dos pressupostos de recusa do depoimento da ofendida, bem como a sentença recorrida.
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O arguido pugnou na sua resposta pela manutenção na íntegra da decisão recorrida, com as seguintes conclusões:
1) O Ministério Público não se conformou com a douta sentença proferida nos autos, que absolveu o arguido do crime de que vinha acusado, e dela interpôs o presente recurso;
2) Invocou para o efeito os vícios de Desconformidade entre a Prova Produzida e os factos considerados provados e não provados; Contradição insanável entre a fundamentação e erro notório na apreciação da prova; Nulidade da Sentença.
3) Nas suas conclusões, a recorrente não indica as rasões de facto e de direito que sustentem aqueles vícios;
4) Limita-se a enuncia-los, referindo apenas relativamente ao vicio da nulidade que a sentença não efetuou análise critica da prova produzida, o que em nosso modesto entendimento não lhe assiste razão.
5) Por conseguinte, a sentença recorrida não enferma dos vícios supra referidos, nem viola quaisquer disposições legais, e por isso devera ser mantida na integra.
6) Nestes termos e nos demais de direito, deverá negar-se provimento ao recurso e manter-se a sentença recorrida.
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O Ministério Público havia interposto recurso interlocutório do despacho de 07-03-2018 que considerou válida ao abrigo do disposto no artigo 134.º, n. 1, alínea b) do C.P.P. a recusa da vítima em prestar depoimento sobre os factos em causa, concluindo:
1. A Mma Juíza no despacho recorrido considerou que a testemunha CC ao afirmar que à data dos factos em discussão vivia na mesma casa que o arguido, embora separada do mesmo, por interpretar que tal corresponde a coabitação, se enquadrava na previsão do art.º 134º, nº 1, al. b) do C.P.P. e que podia recusar prestar depoimento.
2. Ora, a coabitação a que se refere tal preceito legal é a equivalente à manutenção de uma relação, no sentido de uma unidade de vida familiar, com comunhão de casa, mesa e cama, o que, manifestamente não se verificava.
3. Referindo-se no despacho recorrido às afirmações da testemunha aquando da sua identificação verte no mesmo a ideia de que aquela afirmou que, à data dos factos em discussão nos autos, se mantinha a união de facto com o arguido, o que, conforme se pode constatar pela gravação respeitante à identificação da testemunha, mais precisamente logo na fase inicial, reforçada na parte final entre 00.14 e 13.41.
4. Violou, assim, o disposto em tal preceito legal, comprometendo o apuramento dos factos tendo em vista a eventual prática pelo arguido de um crime de violência doméstica.
5. Devendo tal decisão ser revogada, determinando-se a prestação de depoimento pela testemunha, sem cumprimento prévio do disposto no art.º 134º, nº 1, al. b) do C.P.P..
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Respondeu o arguido batendo-se pela manutenção do decidido, com as seguintes conclusões:
1) No ato da sua identificação, a testemunha-queixosa, CC, questionada nos termos do disposto no artº 348º nº 3 do CPP, e advertida para o efeito, declarou não pretender prestar declarações, considerando-se válida a recusa;
2) A Digna Magistrada do Ministério Público requereu ao Tribunal uma aclaração acerca da conclusão e premissas que a ela conduziram de que a testemunha CC se encontrava em condições de recusar depoimento;
3) A Meritissima Juiz considerou legitima a recusa da prestação de depoimento pela testemunha de acusação, de acordo com os fundamentos constantes da ata;
4) O arguido e a testemunha de acusação, queixosa, vivem em união de facto há vários anos, e no decurso dessa relação sempre coabitaram na mesma casa, na sua plenitude;
5) Em determinado momento da sua relação, o casal desentendeu-se, o que provocou um certo arrefecimento casual e transitório na sua relação, sem provocar qualquer separação de facto nem interromper a sua coabitação;
6) Conversaram longamente sobre a situação e rapidamente ultrapassaram aquele incidente;
7) Atualmente o casal vive em perfeita harmonia;
8) O arguido entende que a testemunha - queixosa recusou prestar depoimento, com receio que o mesmo pudesse eventualmente prejudicar o bom relacionamento e a perfeita harmonia em que o casal atualmente se encontra a viver;
9) Desde o inicio da união de facto estabelecida entre o arguido e a testemunha até à presente data, nunca se verificou qualquer separação entre ambos, vivendo sempre em plena coabitação;
10) A recusa da testemunha em prestar depoimento é legítima, nos termos do disposto no artº 134º nº 1 al. b) do CPP, e muito bem andou a Meritissima Juiz ao adverti-la para o efeito, dando cumprimento ao estabelecido no nº 2 da mesma disposição legal;
11) O despacho recorrido não violou qualquer disposição legal e por isso deverá ser mantido.
12) Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser negado provimento ao recurso e manter-se o despacho recorrido.
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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento de ambos os recursos, o interlocutório e o da decisão final.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1.1.a) – É o seguinte o teor da acta e do despacho recorrido lavrado em audiência de julgamento em 07-03-2018, pelas 10.00 horas:
«CC, 42 anos, profissão: professora, estado civil: vive em união de facto (…)Questionada a testemunha nos termos do art. 348º, n.º 3 do C. P. Penal, disse conhecer o arguido vivendo em união de facto com o mesmo, nada a impedindo de dizer a verdade.
Advertida nos termos do artigo 134.º n.º 1 do CPP, a mesma declarou não querer prestar declarações.»
DESPACHO
"Tendo em conta o ora referido e declarado pela testemunha de acusação, queixosa, designadamente no que respeita ao período de coabitação entre a mesma e o arguido, considera-se válida ao abrigo do disposto no artigo 134.º, n. 1, alínea b) do C.P.P. a sua recusa de prestar depoimento sobre os factos ora em causa."
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B.1.1.b) – Pelo Tribunal recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
1 - Desde data que não foi possível apurar mas pelo menos antes de Maio de 2016, o arguido BB vive maritalmente com CC, na Urbanização …;
2 - No dia 11 de Maio de 2016, em hora não concretamente apurada mas antes das 3.59 horas, a patrulha da Guarda Nacional Republicana de Vila Real de Santo António constituída pelos Guardas … e … deslocaram-se à residência de ambos, aludida em 1 e tocaram à campainha da referida residência, alertados para uma situação de violência doméstica;
3 - O arguido não tem antecedentes criminais;
4 - O arguido é agente … e CC é professora;
5 - Existe uma boa relação entre o arguido e CC.
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B.1.2 – Factos não provados:
a) - no período compreendido entre o final do ano de 2002 e o princípio do ano de 2014, o arguido BB viveu maritalmente com a ofendida CC, na Urbanização …;
b) - no início do ano de 2014, o arguido e CC desentenderam-se e, apesar de viverem na mesma casa de morada de família, passaram a viver separadamente um do com o outro, e cessaram a relação marital;
c) - o arguido não aceitou a separação e assumiu uma postura de confronto com a ofendida que envolveu agressões físicas perpetradas por ele sobre a companheira e que conduziram à denúncia desta pelo crime de violência doméstica que deu origem ao inquérito n. 89/14.5GAVRS;
d) - pelo menos desde o ano de 2010, que o arguido trata a sua companheira com desconsideração, e diz que a coloca na rua e que a mata;
e) - atitude que manteve mesmo depois dela terminar a relação marital;
f) - tal aconteceu, designadamente, entre os dias 8 de Abril de 2016 e 10 de Maio de 2016, em que o arguido enviou à ex-companheira 35 mensagens escritas (sms's) do seu telemóvel com o n.º… para o telemóvel dela com o n." …, ameaçando-a nos termos referidos no ponto anterior;
g) - no dia 11 de Maio de 2016, pela 1.34 horas, o arguido dirigiu-se ao quarto da ex-companheira exaltado com os termos em que se desenvolvia o processo de divisão dos bens comuns de ambos;
h) - logo que entrou no quarto da ex-companheira, o arguido acendeu a luz, debruçou-se sobre a cama onde ela estava a dormir e, aos gritos, disse-lhe: «já não fazes de mim parvo. Daqui não saio. Esta noite não dormes»;
i) - e quando a ofendida lhe pediu que saísse do quarto, o arguido exaltou-se ainda mais e, de punho fechado, desferiu-lhe um violento murro que a atingiu no braço esquerdo, causando-lhe fortes dores;
j) - depois, agarrou a ofendida pela roupa que tinha vestida, na zona do peito, e puxou-a com força para fora da cama;
k) - acto contínuo, projectou-a contra a parede do quarto onde embateu violentamente com a zona do peito, causando-lhe, novamente, fortes dores;
l) - nisto, a ofendida conseguiu pedir ao arguido que saísse do quarto mas este reagiu colocando-se à porta da entrada do quarto a bloquear a passagem, enquanto lhe dizia que «dali não saía» e simultaneamente, impedia a ex-companheira de sair para o exterior;
m) - vendo-se impedida de fugir, a ofendida CC ligou o telemóvel e colocou-o em chamada para a sua advogada;
n) - nisto, o arguido disse-lhe «podes chamar a GNR, daqui não saio»; «Odeio¬te, fizeste com que tivesse ódio de ti» e, de seguida, cuspiu na cara da ex¬companheira três vezes;
o) - o arguido só libertou a ofendida quando a patrulha da Guarda Nacional Republicana de Vila Real de Santo António constituída pelos Guardas … e…tocou à campainha da residência de ambos, alertados pela advogada daquela que se percebeu as ofensas físicas e verbais que o arguido exercia sobre a ex-companheira;
p) - o arguido ao longo de vários anos, maltratou psíquica e fisicamente a sua ex-companheira, designadamente, dirigindo-lhe ofensas à respectiva honra, ameaças dirigidas contra a vida; bem como, agressões físicas que lhe causaram dores;
q) - o arguido sabia que molestava a sua ex-companheira;
r) - agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por Lei.
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B.1.3 – E fundamentou a sua apreciação da prova nos seguintes considerandos:
«O Tribunal formou a sua convicçao quanto aos factos provados e não provados com base na apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas de acusação cujo teor consta do registo fonográfico apreciados à luz de regras de normalidade e de experiência comum.
E ainda com base no teor da prova documental analisada de forma critica e junta aos autos:
- auto de notícia de fls. 95 a 96;
- relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 15 a 17 do qual resulta que a examinanda não recorreu à assistência médica e ausência de lesões; - Assentos de Nascimento de fls. 24 a 25 e 26 a 27;
- certificado do Registo Criminal de fls. 28 e 223;
- certidão do processo de inquérito nO 89/14.5GAVRS de fls. 33 a 54 no qual figura como arguido BB, ora arguido, no qual foi decretada a suspensão provisória do processo com injunções cumpridas pelo arguido e que se encontra arquivado por despacho de 9-10-2015;
- requerimento de fls. 211 subscrito por CC e BB do qual resulta que ambos se reconciliaram.
O arguido, usando do seu direito ao silêncio, não prestou declarações sobre os factos.
Testemunhas de acusação
- CC, professora, queixosa.
Disse que vive em união de facto há vários anos com o arguido.
Disse que esteve separada quando apresentou queixa em Maio de 2016 mas logo a seguir se reconciliaram, nunca tendo deixado de viver na mesma casa, viveram sempre juntos. Estão reconciliados e não quer falar sobre os factos e confirma ter querido e querer pôr termo ao processo.
Manifestou não querer falar sobre os factos porque está tudo bem entre eles, arguido e ela, depoente, referindo que já havia manifestado o propósito de desistir da queixa contra o arguido e não prestar depoimento em audiência sobre os factos de forma a pôr termo ao processo.
- …, militar da Guarda Nacional Republicana.
Disse que conhece o arguido da situação e confrontado com o auto de fls. 3 a 4 confirmou o seu teor e a sua autoria.
Disse que foram alertados por telefone pela alegada advogada da vítima para uma situação de sequestro ou barricada, que a queixosa estava retida em casa e deslocaram-se ao local e aí a vítima relatou os factos. Disse que viu a vítima agitada e nervosa e que o arguido estava mais calmo. Disse que foi a vítima que relatou os factos e que tudo que consta do auto foi relatado pela queixosa.
Disse que não observou nada nem presenciou nenhuma situação de agressão verbal ou física, só houve relato dos factos e que no local só estava o casal e a alegada advogada da queixosa.
Disse que na diligência ele, depoente, foi acompanhado pelo guarda ….
Disse que quando chegaram ao local, foi a vítima que abriu a porta e os recebeu e não sentiu nenhum constrangimento por parte dela. Disse que não houve qualquer confronto entre o casal.
Disse que quando chegaram ao local a alegada advogada estava no exterior da casa do casal e lhes disse que foi aletrada pela cliente que não podia sair de casa e quando chegaram ao local não confirmaram isso, nem sequer viu o casal a discutir.
- …, militar da Guarda Nacional Republicana. Disse que conhece o arguido do serviço.
Disse que estavam de serviço e foram chamados para uma situação de violência doméstica e foram ao local e lá encontrava-se a alegada advogada e a alegada vítima que abriu a porta e falou com eles, guardas. Disse que a vítima estava nervosa, a chorar e não havia qualquer vestígio de agressão e que no local só estava o casal e a alegada advogada da vítima.
Disse que não presenciou qualquer acto agressivo por parte do arguido e que acompanhou a vítima dentro da residência o que é norma independentemente de não haver conflito.
Depôs, confirmando o teor do depoimento da anterior testemunha.
Da conjugação da prova produzida resultante dos depoimentos das testemunhas de acusação, militares da GNR que se deslocaram à residência do casal não resultaram provados factos que demandem a responsabilidade do arguido, da referida prova apenas resulta como certo que o arguido e a queixosa vivem maritalmente há alguns anos e que no dia 11 de Maio de 2016 a patrulha da GNR deslocou-se à residência de ambos por denúncia de uma situação de violência doméstica que não foi confirmada, nada mais tendo resultado provado, designadamente que o arguido agrediu, ameaçou e maltratou a queixosa da forma descrita na acusação. Note-se que a própria queixosa não manifestou o propósito de prestar depoimento, tendo manifestado pretender pôr termo ao processo por estarem bem um com o outro. Refira-se ainda que os depoimentos das referidas testemunhas de acusação convergiram, no sentido de que quando chegaram à residência do casal e durante o período que ali permaneceram não presenciaram qualquer atitude agressiva do arguido para com a queixosa, resultando daqueles depoimentos ausência de indícios de qualquer tipo de agressão por parte do arguido, não se apresentando a queixosa sequer com sinais de lesões. Em suma da prova produzida não resulta ter o arguido actuado da forma descrita na acusação e praticado os factos que lhe são imputados, o que demanda a sua absolvição.
Em suma, da prova produzida, o Tribunal concluiu pela exclusão da responsabilidade do arguido e pela sua absolvição e improcedência da acusação.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em consideração o certificado do Registo Criminal do arguido.»
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Cumpre decidir.
No essencial pode afirmar-se que a digna magistrada recorrente centra a sua insatisfação no despacho recorrido, lavrado em audiência de julgamento, sendo o seu recurso da decisão final o expediente necessário à aceitação desse recurso intelocutório, isto numa leitura superficial desse recurso da decisão final. Certo é que o recurso existe e deve ser analisado.
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B.2 – Do recurso da decisão final
São questões suscitadas pela recorrente, abarcando todos os pontos referidos nas conclusões apresentadas, a existência de:
- nulidade prevista no art.º 379º, nº 1, al. a) do C.P.P., por violação do art.º 374º, nº 2 do C.P.P., quanto aos requisitos da sentença (indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal).
- contradição insanável entre a fundamentação;
- erro notório na apreciação da prova, ambos previstos no art.º 410º, nº 2, al.s b) e c) do C.P.P..
Apesar de a recorrente indicar três vícios, um de cariz processual, dois de cariz factual, certo é que os trata de forma indiferenciada e nada concreta, quase se bastando com a sua invocação abstracta.
Quanto à nulidade descortina-se o seu fundamento nas motivações no seguinte trecho: «Isto tudo para dizer que a sentença recorrida é completamente omissa no que se reporta, em termos de conteúdo, aos meios de prova que a mesma refere como tendo suportado a decisão acerca dos factos dados como provados e não provados, não se percebendo o raciocínio que conduziu a considerar como não provados factos relativamente aos quais havia prova documental de suporte, que não indica, nem explica de todo
Em concreto a reclamada falta de exame crítico da prova concretiza-se no uso das informações colhidas nas questões “aos costumes” quanto à vivência em comum.
Isso é aliás patente na fundamentação de facto do tribunal recorrido quando afirma:
«Testemunhas de acusação - CC, professora, queixosa.
Disse que vive em união de facto há vários anos com o arguido.
Disse que esteve separada quando apresentou queixa em Maio de 2016 mas logo a seguir se reconciliaram, nunca tendo deixado de viver na mesma casa, viveram sempre juntos. Estão reconciliados e não quer falar sobre os factos e confirma ter querido e querer pôr termo ao processo.
Manifestou não querer falar sobre os factos porque está tudo bem entre eles, arguido e ela, depoente, referindo que já havia manifestado o propósito de desistir da queixa contra o arguido e não prestar depoimento em audiência sobre os factos de forma a pôr termo ao processo……»
Temos assim que a análise crítica da prova neste particular assentou na afirmação clara de que a testemunha de acusação – vítima do imputado crime – não quis prestar depoimento porque viveu e vive com o arguido (sem intervalos nessa co-habitação, mas com intervalos de desentendimento).
E a única questão processual que seriamente se pode colocar é a de saber se com essa resposta “aos costumes” era lícito ao tribunal recorrido ter dado como provado o facto sob 1):
«1 - Desde data que não foi possível apurar mas pelo menos antes de Maio de 2016, o arguido BB vive maritalmente com CC, na Urbanização …;»
A resposta não pode deixar de ser afirmativa sob pena de um facto realmente apurado e suporte de uma decisão processual com reflexos na produção probatória entrar em contradição com essa mesma decisão.
Por fim, o remédio que se alvitra é inviável na medida em que se propõe que a testemunha preste depoimento contra a sua vontade, como invoca nas motivações de recurso:
«Aliás, tendo em conta os dois primeiros factos dados como não provados, os primeiros constantes da acusação, impunha-se que tivesse questionado a ofendida expressamente se se encontravam separados de facto, embora vivendo na mesma casa, e não o que fez que foi, simplesmente, apenas atender à alegada reconciliação.
Não há portanto qualquer nulidade prevista no art.º 379º, nº 1, al. a) do C.P.P., por violação do art.º 374º, nº 2 do C.P.P.. A análise crítica da prova está feita de forma clara e completa e a nulidade invocada por ausência de exame crítico da prova visa um efeito retroactivo com reflexo em audiência de julgamento.
Aliás, as razões de inconformidade da Digna recorrente estão devidamente misturadas, mal se distinguindo os argumentos que suportam a invocação da nulidade, dos que suportam a invocação dos supostos erros de facto. Nem sequer em termos de repartição formal nas motivações isso se descortina, já que todos são apresentados em grupo, misturando-se a invocação de falta de exame crítico da prova com os supostos erros de facto.
E isso é bem patente na sua invocação de contradição entre a fundamentação e o erro notório na apreciação da prova. Ambos os vícios são invocados como vícios de facto de conhecimento oficioso já que, como referido nas motivações, são “vícios da decisão recorrida (que) devem constar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras da experiência comum”.
A Digna recorrente, saindo dessa limitada invocatória (vícios de conhecimento oficioso), faz apelo a prova produzida (por depoimento e documento) mas sem cumprir minimamente o seu ónus impugnatório, o previsto no artigo 412º, ns. 3 e 4 (e acórdão uniformador nº 3/2012).
Ou seja, apesar de manifestar insatisfação quanto à apreciação de facto operada pelo tribunal recorrido certo é que não segue qualquer das vias que permitiria concluir pela existência de vícios relativos à matéria de facto, sejam os de conhecimento oficioso (não demonstra a sua existência), sejam os resultantes do seu – no caso não cumprido – ónus de impugnação.
Logo, para além de devidamente fundamentada a decisão recorrida é intocável em sede factual.
Sempre se dirá, por outro lado, que não existe contradição factual entre o provado e não provado, pois que os factos não provados que constavam da acusação, se contêm contradições, são inerentes ao teor da acusação e não são imputáveis à decisão.
É, desta forma, improcedente o recurso da decisão final. Tal não invalida que se conheça – e essa é a pretensão essencial da Digna recorrente – do recurso interlocutório.
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B.3 – Do recurso interlocutório
Quanto ao recurso interlocutório ele centra-se na invocação de inexistência de requisitos para aceitar a recusa de depoimento de CC por esta não ter vivido em comunhão com o arguido na pendência dos factos.
O essencial da argumentação da recorrente - aqui centrada, compreensível e escorreita - surpreende-se nas conclusões de recurso, como segue:
1. A Mmª Juíza no despacho recorrido considerou que a testemunha CC ao afirmar que à data dos factos em discussão vivia na mesma casa que o arguido, embora separada do mesmo, por interpretar que tal corresponde a coabitação, se enquadrava na previsão do art.º 134º, nº 1, al. b) do C.P.P., e que podia recusar prestar depoimento.
2. Ora, a coabitação a que se refere tal preceito legal é a equivalente à manutenção de uma relação, no sentido de uma unidade de vida familiar, com comunhão de casa, mesa e cama, o que, manifestamente não se verificava.
3. (…).
4. Violou, assim, o disposto em tal preceito legal, comprometendo o apuramento dos factos tendo em vista a eventual prática pelo arguido de um crime de violência doméstica.
5. Devendo tal decisão ser revogada, determinando-se a prestação de depoimento pela testemunha, sem cumprimento prévio do disposto no art.º 134º, nº 1, al. b) do C.P.P..
Aqui haverá que fazer apelo não apenas à letra da lei – cujos resultados interpretativos são quase sempre limitados, despidos, muitas vezes devido à inexorável tendência de assumir um raciocínio administrativista aplicado ao mundo penal em consequência dos hábitos de pensamento formal proveniente das estéreis escolas de direito com origem nas universidades portuguesas – mas essencialmente à teleologia das normas.
E essa teleologia, essa busca da intenção essencial, é de fácil apreensão. Pretende-se evitar a intromissão do Estado na esfera íntima do casal. De forma mais chã e popular: o Estado não tem que bedelhar a intimidade de dois cidadãos que vivam ou tenham vivido em comum.
Note-se, não é apenas que vivam, é também que tenham vivido.
O que conduziu à previsão no artigo 134º do C.P.P de situações que justificam a “recusa de depoimento”, no caso na al. b) do nº 1 com a expressa estatuição de que (b) “Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação”.
A argumentação da recorrente assenta na afirmação de que a testemunha, apesar de habitar com o arguido na mesma casa, não mantinha com o mesmo um relacionamento à data dos factos imputados. Para tanto ultrapassa a dificuldade da coabitação “em comum” com a afirmação de que o conceito de “co-habitação” supõe um efectivo relacionamento.
Tal visão das coisas apresenta três evidentes dificuldades: a primeira a redução do conceito a um mero formalismo; a segunda o forçar da linguagem lendo no preceito o que lá não está; a terceira esquecendo que os factos relevantes – por constituirem o objecto do processo – são, prima facie, os que constam da acusação e esses são vastos.
Quanto ao formalismo já supra dissemos o que dele pensamos. Circunscrever o processo penal aos reduzidos parãmetros do raciocínio formal, administrativista, é decretar a morte do mesmo. É uma tendência precupante que se vai constatando.
Em segundo lugar a conceito de co-habitação não supõe apenas a vivência em comum em plena harmonia, tem que incluir, necessariamente, os momentos de discórdia, de zanga, os intervalos de desarmonia.
O terceiro aspecto faz recordar que o arguido foi acusado de factos anteriores à separação, sendo certo que a própria separação está em discussão e essa está, obviamente, inserida no acervo de factos protegidos pela norma, pela intimidade.
Por isso que a pretensão da recorrente não tenha fundamento factual e jurídico.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em declarar improcedentes ambos os recursos.
Notifique. Sem tributação.

Évora, 25 de Setembro de 2018 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso