Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
269/09.5TBACN.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – É de conhecimento oficioso o prazo de caducidade a que alude o artigo 1871.º, n.º 3, do Código Civil, porque incide sobre direitos indisponíveis (artigo 333.º, n.º 1, do Código Civil).
II – Os prazos de caducidade previstos no artigo 1871.º, nos 1 e 3, do Código Civil, aplicáveis ex vi do artigo 1873.º do mesmo diploma, são inconstitucionais por serem excessivos e impeditivos do respeito pela essencial dignidade da pessoa humana, do exercício do fundamental direito à identidade pessoal, ao direito de constituir família e ao direito geral de personalidade do investigante (artigos 1.º, 26.º e 36.º da CRP e 70.º do Código Civil).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 269/09.5TBACN.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Recorrentes/Autoras:
(…) e (…)

Recorridos/Réus:
(…), (…), (…) e (…)
No Tribunal da Comarca de Alcanena, as AA., ora recorrentes, propuseram ação declarativa sob a forma ordinária contra os RR., ora recorridos, alegando, em síntese, que:
- As AA. são únicas filhas e únicas herdeiras de (…), falecido em 16 de Julho de 2008, os RR. são filhos e, por ora, únicos herdeiros de (…), falecido em 23 de Maio de 2006, e que este é pai de (…), por ter mantido relações sexuais com a mãe de (…) nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento, e que este foi tratado como filho por aquele, o que foi reconhecido por todos quanto com eles conviveram até ao falecimento de (…), inclusive pelos RR., e que (…) sempre tratou as AA. como netas e estas sempre o trataram como avô.
As AA. pedem que, ao abrigo do disposto nos artigos 1.871º/1 a), d) e e), do C. Civil, “seja judicialmente reconhecido que (…)” “é pai de (…)” “para todos os devidos e legais efeitos”.
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A R. (…) contestou, excecionando a caducidade do direito que as AA. se arrogam na presente ação, por:
- O prazo de caducidade ter terminado em 23 de Maio de 2007 e
- Impugna a versão das AA., negando-a.
Conclui que deve ser julgada procedente a exceção perentória invocada, absolvendo-se a R. do pedido e, caso assim não se entenda, que a ação deve ser julgada improcedente por não provada, absolvendo-se a R. do pedido.
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Os RR. (…) e (…) contestaram a ação, arguindo:
- Exceção de ineptidão da petição inicial por as AA. não terem formulado qualquer pedido e
- A exceção de caducidade do direito de que a AA. se arrogam na ação por o direito se ter extinguido em 23 de Maio de 2007, ou seja, ainda em vida de (…) e
- Impugnam a versão alegada pelas AA..
Concluem que devem ser julgadas procedentes as exceções invocadas e, independentemente da decisão sobre tais exceções, que seja julgada improcedente a ação.
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A R. (…) contestou:
- Excecionando a caducidade do direito que as AA. pretendem ver reconhecido pela presente ação, por já ter decorrido o prazo previsto no artº 1817º, nº 4, do Código Civil quando a ação foi instaurada e
- São também parte ilegítima na ação por inaplicabilidade do artº 1818º do Código Civil e
- Impugnando que o (…) tenha reputado e tratado o (…) “de forma contínua, inequívoca e pública, como autêntico filho”.
Conclui pela improcedência da ação, por não provada, e pela procedência das invocadas exceções e que seja absolvida do pedido”.
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As AA. replicaram, alegando, em síntese, que:
- Formularam pedido na petição inicial e que o direito não caducou, por terem proposto a ação em 25 de Maio de 2009, o pretenso pai ter falecido em 23 de Maio de 2006 e 23 e 24 de Maio de 2009 corresponder a fim de semana e assim está respeitado o prazo de 3 anos introduzido pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, se aplicável, e ainda por
- O direito das AA. não estar sujeito a prazos também por força, nomeadamente, do acórdão do Tribunal Constitucional de 10 de Janeiro de 2006 que declarou a norma do artº 1817º, n.º 1, do Código Civil inconstitucional com força obrigatória geral, e “não parece” que a lei fixe prazos de caducidade para o reconhecimento da paternidade com fundamento nas alíneas d) e e) do artº 1871º do Código Civil.
Concluem pela improcedência de todas as exceções arguidas pelos Réus.
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Por decisão de 28 de Dezembro de 2009 foram julgadas improcedentes a exceção de ineptidão da petição inicial e, pelo fundamento da caducidade do direito das AA., procedente a exceção de ilegitimidade processual das AA. e os RR. foram absolvidos da instância.
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As AA. interpuseram recurso dessa decisão, que foi julgado procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Janeiro de 2011, que anulou essa decisão e ordenou o prosseguimento da ação com prolação de decisão que proceda à seleção de factos e elaboração da base instrutória e remeta para final o conhecimento das exceções de ilegitimidade ativa e de caducidade do direito das Autoras.
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Após, foi julgada no saneador a improcedência da exceção de ineptidão da petição inicial, e elaboração de despacho de condensação, com seleção da matéria de facto assente e elaboração da base instrutória, de que as AA. reclamaram sem procedência.
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Não obstante essa questão já estar decidida por decisão de 28 de Dezembro de 2009, nessa parte transitada em julgado, e esse despacho ter sido impugnando por via de recurso essa concreta questão não integrou o objeto do recurso, sendo que o Tribunal da Relação de Coimbra não alterou nem conheceu dessa concreta questão.
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Realizou-se a instrução da causa, em cuja sede foi decidido, além do mais, inverter o ónus da prova ante a recusa dos RR. em submeterem-se a exames hematológicos para exame pericial, em ordenar a exumação de ambos os cadáveres – do pretenso pai e do alegado filho – e em não aplicar o disposto no artº 578º do Código de Processo Civil, que foram objeto de recursos, todos julgados improcedentes por acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Abril de 2012 nos apensos A e B e por decisão singular de 27 de Março de 2012 do mesmo Tribunal da Relação.
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Encerrada a instrução da causa, foi realizada a audiência de julgamento e proferida decisão que julgou:
1.- As autoras com legitimidade substancial para instaurarem a ação;
2.- Procedente a exceção de caducidade do direito de as Autoras investigarem a paternidade do seu pai (…) e, em consequência, julgar totalmente improcedente a presente ação e absolver os Réus do pedido.
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É desta decisão que foi interposto o presente recurso, tendo os recorrentes formulado as seguintes conclusões, que delimitam o seu âmbito:
a) Os Réus não invocaram nas suas contestações que a presente ação fora proposta para além do prazo de três anos previsto no nº 3 com referência à alínea b) parte final do artº 1817º do Código Civil, não alegando quaisquer factos eventualmente integradores de que o tratamento como filho por parte de (…) relativamente a (…) tivesse cessado para além dos três anos anteriores à data da entrada da ação;
b) Tratando-se de matéria de exceção competia-lhes a respetiva invocação, não podendo o tribunal, ainda que se possa entender que aquele prazo é de caducidade, face ao preceituado nos artºs 5º, nº 1 e 608º, nº 2, parte final, do CPC, conhecer oficiosamente da questão;
c) Ao conhecer da questão relativa à alegada preclusão do citado prazo de três anos, a sentença recorrida decidiu para além do objeto do processo e de questão de que não podia conhecer pelo que padece da nulidade prevista no artº 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC e que, nos termos do nº 4 do mesmo preceito legal, aqui se invoca como primeiro fundamento deste recurso conducente à anulação da sentença com as legais consequências as quais, face à matéria dada como provada, consistirão na inevitável procedência da ação;
d) O depoimento da testemunha (…), prestado na audiência de 08/09/2007 e gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal recorrido, durante 41 minutos e 51 segundos (sendo a ata omissa relativamente ao seu início e ao seu termo) de modo algum permitia que nos pontos 42, 44 e 45 da factualidade dada como provada se dê como assente que os tratamentos ali referidos ocorreram até pelo menos cerca da data em que (…) faleceu;
e) Nada foi perguntado e/ou dito à/ou pela testemunha relativamente ao tratamento mantido diretamente entre Autoras e Réus e/ou entre os respetivos filhos;
f) Assim, impugna-se ao abrigo do disposto no artº 640º do CPC, o que foi dado como provado nos pontos 42, 44 e 45 da matéria assente de molde a que dos mesmos sejam eliminadas as expressões “até pelo menos cerca da data em que (…) faleceu”;
g) O depoimento da testemunha (…), surgida surpreendente e inesperadamente durante a audiência de julgamento, revela como se sustentou no corpo desta alegação, hesitações, inconsistências, contradições e insegurança que não permitiam que fosse dado como provado nos pontos 40 e 47 da matéria de facto assente que os tratamentos ali referidos apenas ocorreram até antes de maio de 2006 e que, no que toca ao ponto 47, tal tenha ocorrido por degradação da saúde de (…) que deixou de manter capacidade de conhecimento e reconhecimento;
h) E também não permitia o constante dos pontos vii) e viii) da matéria dada como não provada;
i) A testemunha (…), médico de clínica geral sem qualquer especialidade relacionada com a neurologia, e ligado profissional a empresa dos Réus, utilizou como alegado auxiliar de memória um apontamento escrito pelo seu punho não invocando qualquer suporte documental para o mesmo;
j) Não foram carreados para os autos quaisquer outros elementos documentais, em especial de natureza médica, suscetíveis de suportar as alegadas falta de capacidade de conhecimento e reconhecimento por parte de (…) relativamente ao tratamento como filho de (…) posteriormente ao final de Abril de 2006;
k) Impugna-se, consequentemente, também ao abrigo do disposto no citado artº 640º do CPC, a matéria de facto objeto nos pontos 40 e 47 dos factos provados e dos pontos vii) e viii) dos factos não provados de molde a que:
a) Sejam eliminados os pontos vii) e viii) dos factos não provados;
b) No ponto 40 se dê apenas como provado que (…) sempre considerou as Autoras como netas e tratava-as como tal e estas sempre o consideraram e trataram como avô; e que
c) No ponto 47 se dê apenas como provado que (…) sempre considerou e tratou como seu filho (…).
l) Os nºs 1 e 3 do artº 1817º do Código Civil, quando ali se estabelecem prazos limitadores para a propositura das ações de investigação de maternidade/paternidade (esta com referência ao artº 1873º do Código Civil), são inconstitucionais por violação do princípio da proporcionalidade na restrição de direitos constante do artº 18º, nºs 1 e 2, da CRP e por violação dos direitos à integridade pessoal e à identidade pessoal previstos nos artºs 25º, nº 1 e 26º do mesmo diploma fundamental;
m) Ficam invocados tais vícios de inconstitucionalidade que, tidos como verificados, impõem a desaplicação dos prazos constantes dos nºs 1 e 3 do artº 1807º do Código Civil, no caso dos autos com as legais consequências que serão, inevitavelmente, a da procedência da ação, demonstradas que estão a filiação biológica do pai das Autoras relativamente a (…) e os requisitos da posse de estado deste relativamente àquele;
n) Impõe-se que seja voluntária a cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai previsto na alínea b), parte final, do nº 3 do artº 1817º do Código Civil, incumbindo aos Réus a respetiva prova, como resulta do nº 4 do mesmo preceito legal;
o) Ainda que se mantenha a matéria de facto objeto do ponto 47 da sentença recorrida, ou seja, que (…) considerou e tratou como seu filho (…) até antes de Maio de 2006, data em que, por degradação da sua saúde, deixou de manter capacidade de conhecimento e reconhecimento, está-se perante uma cessação involuntária à qual não pode ser dada qualquer relevância para eventualmente se ter como precludido o prazo de três anos previsto no citado nº 3 do artº 1817º do Código Civil;
p) Ao considerar que, devido ao dado como provado no ponto 47, a presente ação foi proposta para além daquele prazo, e dando como caduco o direito de se ver reconhecida a paternidade de (…) relativamente a (…), a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente dos artº 1817º, nºs 3, alínea b), parte final e 4, do Código Civil, com referência ao artigo 1873º do mesmo Código;
q) Impõe-se, consequentemente, a sua revogação e que, face à matéria dada como provada integrante da filiação biológica do pai das Autoras relativamente a (…) e dos requisitos da posse de estado deste relativamente àquele, seja julgada procedente a ação com as legais consequências.
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Foram colhidos os vistos por via eletrónica.

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As questões que importa decidir são as de saber se:
1.- A sentença decidiu para além do objeto do processo e de questão que não podia conhecer – caducidade do direito de propor a ação para além de 3 anos após cessar o tratamento como filho –, padecendo da nulidade prevista no artº 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC;
2.- São inconstitucionais as normas contidas nos nºs 1 e 3 do artº 1.817º do Código Civil, quando ali se estabelecem prazos limitadores para a propositura das ações de investigação de maternidade/paternidade.
3.- É procedente a impugnação da matéria de facto nos termos configurados pelos AA, quanto aos pontos 42, 44, 45, 40 e 47, da factualidade dada como provada e os pontos vii) e viii) da matéria dada como não provada.
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A MATÉRIA DE FACTO PROVADA na 1ª instância é a seguinte:

1. (…) nasceu em 25 de Maio de 1930, na freguesia de (…), concelho de Mafra.

2. (…) foi registado como filho de (…) e de pai não identificado.

3. (…) faleceu em 16 de Junho de 2008.

4. (…) faleceu no estado de viúvo de (…).

5. (…) nasceu em 5 de Julho de 1912.

6. (…) casou com (…), em 11 de Janeiro de 1943.

7. (…) faleceu em 8 de Novembro de 1951.

8. (…) e (…) são as únicas filhas e herdeiras de (…).

9. (…) nasceu em 5 de Abril de 1912.

10. (…) é filho de (…) e de (…).

11. (…) casou com (…).

12. (…) faleceu em 23 de Maio de 2006.

13. (…) faleceu no estado de viúvo de (…).
14. (…), (…), (…) e (…) são filhos de (…).
15. (…) faleceu sem tomar qualquer iniciativa para ser reconhecido como filho de (…).

16. (…) esteve presente nos casamentos das Autoras.

17. (…) foi a baptizados de todos os filhos da Ré (…).

18. (…) e (…) são padrinhos de baptismo da A. (…).

19. (…) e os RR. (…), (…) e (…) estiveram presentes no baptizado da filha da Autora (…).

20. (…), (…) e as AA. estiveram presentes nas bodas de ouro de (…) e (…).

21. (…) e (…) cresceram na localidade de (…), conviveram desde crianças, iniciaram namoro um com o outro na juventude e mantiveram relações sexuais de cópula completa.

22. (…) não tinha mantido relações sexuais com outra pessoa.
23. As relações sexuais entre (…) e (…) ocorreram nomeadamente entre 31 de Julho de 1929 e 27 de Novembro de 1929.

24. (…) foi procriado pelas relações sexuais mantidas entre (…) e (…).

25. (…) foi nomeadamente trabalhar para fora da localidade de (…) em data em que (…) ainda estava grávida.

26. (…) permanecia fora de (…) e algumas vezes aí regressava em fins de semana, ficando pelo menos alguns dias na casa habitada por (…), quer antes quer depois do nascimento do (…), com conhecimento da generalidade dos habitantes de (…) e de familiares de ambos.

27. Os pais de (…) sempre tiveram conhecimento do descrito em 21, 24 e 26.

28. Por isso ao pai das Autoras foi posto o nome de (…).

29. (…) enviou várias vezes dinheiro para o sustento de (…).

30. Alguns familiares de (…) e de (…) procuraram convencer esta a ir viver com aquele em Alcanena, quando este já residia nesta localidade, mas (…) nunca foi viver com (…) em Alcanena.

31. (…) tinha conhecimento, mesmo antes de casar com (…), que este era pai de (…).
32. Mesmo depois do nascimento de (…), (…) continuou a deslocar-se várias vezes a (…), por vezes na companhia de (…), ficando em casa de seus pais, encontrando-se então com (…), à vista de todos, considerando-o e tratando-o como sendo seu filho.

33. Entretanto, em data não apurada, (…) foi viver para casa dos pais de (…).

34. (…) continuou a deslocar-se, várias vezes, a (…), aí convivendo com (…) e continuou a enviar ajudas para o sustento deste.

35. Quando (…) casou, (…) ofereceu materiais para as obras de construção na casa que aquele iria habitar.

36. (…) começou a trabalhar por conta própria, montando, a partir de data não apurada da segunda metade do século XX, uma oficina, cujo negócio desenvolveu em colaboração com (…), desenvolvimento que foi facilitado por este considerar aquele seu filho e aquele considerar este seu pai, sendo que vários objetos do seu negócio provinham da empresa (…) que (…) criara em Alcanena e de que era dono.

37. Entretanto, em data e com duração não apurada, (…) e (…) chatearam-se e deixaram de manter relações entre si, após o que retomaram o seu relacionamento pessoal e negocial, continuando aquele a considerar este como seu filho e este a considerar aquele como seu pai, mantendo relação entre si também na qualidade de pai e filho.
38. (…) deslocou-se várias vezes a Alcanena para visitar (…) e outras pessoas e para tratar de negócios que as respectivas empresas entre si mantinham.

39. (…) também se deslocava várias vezes a (…) e Pêro Pinheiro para visitar (…) e tratarem de negócios.

40. (…) sempre considerou as Autoras como netas e tratava-as com tal até antes de Maio de 2006 e estas sempre o consideraram e trataram como avô.

41. (…) e as Autoras visitaram-se mutuamente em (…) e em Alcanena.

42. Os Réus sempre trataram e consideraram o (…) como seu irmão até pelo menos cerca da data em que (…) faleceu.

43. Aquando da doença que veio a vitimar a mãe das Autoras, (…) ofereceu valor pecuniário não apurado para as respectivas despesas.

44. Os filhos de (…) e os filhos dos Réus consideraram-se como primos até pelo menos cerca da data em que (…) faleceu.

45. As Autoras trataram os Réus como tios e estes trataram-nas como sobrinhas até pelo menos cerca da data em que (…) faleceu.

46. As pessoas que sempre conviveram em (…) com (…) e (…) e os respectivos familiares consideram aquele como pai deste.
47. (…) considerou e tratou como seu filho o (…) até antes de Maio de 2006, data em que, por degradação da sua saúde, deixou de manter capacidade de conhecimento e reconhecimento.

48. Vários bens móveis que pertenciam a (…) no momento em que este faleceu foram igualitariamente divididos entre (…) e os Réus.

49. Após o óbito de (…) foi vendido um imóvel que era pertença deste à data do óbito e o produto da venda foi dividido em partes iguais por (…) e pelos Réus.

50. A presente ação deu entrada em tribunal no dia 25 de Maio de 2009.

51. Após o falecimento de (…), os RR. entregaram a (…) a quantia de dez mil euros.

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Matéria de Facto Não Provada:

i) Quando (…) foi trabalhar para a zona de Alcanena, nomeadamente nos trabalhos de eletrificação da vila, (…) ainda estava grávida;

ii) (…) todos os fins de semana se deslocava a (…) depois de ter deixado de aí permanecer diariamente;

iii) Todos os habitantes de (…) conheciam o descrito em 26 [dos factos provados];
iv) (…) brincou com (…);

v) (…) foi viver para casa dos pais de (…) por (…) ter casado e porque os pais de (…) não gostavam que este vivesse com o padrasto;

vi) Foi de quatrocentos mil escudos o valor que (…) ofereceu para custear as despesas do óbito da mãe das Autoras;

vii) (…) considerou e tratou até ao dia 23 de Maio de 2006 (…) como seu filho;

viii) (…) considerou e tratou até ao dia 23 de Maio de 2006 as Autoras como suas netas;

ix) A quantia de dez mil euros referida em 51 [dos factos provados] corresponde à parte de (…) na venda de sucata pertencente a herdeiros de (…), Lda.;

x) Foi a Ré (…) quem emitiu os cheques destinados à parte do montante pecuniário que coube ao (…) do produto da venda referida em 49.

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Conhecendo.
1.- A sentença decidiu para além do objeto do processo e de questão que não podia conhecer – caducidade do direito de propor a ação para além de 3 anos após cessar o tratamento como filho –, padecendo da nulidade prevista no artº 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC;
Alega o recorrente que, não tendo os recorridos, na contestação, exercido defesa por exceção quanto ao decurso do prazo de 3 anos para a propositura da ação, a que alude o artº 1817º/3, b), do C. Civil aplicável ex vi artº 1871º/1, a), do mesmo diploma, o conhecimento oficioso do tribunal desta exceção faz a sentença incorrer no vício a que alude o artº. 615º/1, d), parte final, do C.P.C., pelo que a sentença é nula.
Trata-se de eventual error in judicando.
Vejamos se o tribunal conheceu de questão que lhe não era lícito conhecer.
A caducidade, como figura do Direito Substantivo, consiste na extinção de vigência e eficácia dos efeitos de um ato, em virtude da superveniência dum facto com força bastante para tal, ou, por outras palavras, no “desaparecimento dos efeitos jurídicos em consequência de um facto jurídico stricto sensu, sem necessidade, pois, de qualquer manifestação de vontade tendente a esse resultado” (cfr. Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, pág. 351).
O direito contém em si algo que o mata.
Como forma extintiva de direitos, a caducidade, para quando o direito não é exercido dentro de um dado prazo fixado por lei ou convenção, cujo regime é estabelecido nos artigos 328º e seguintes do C. Civil, é de conhecimento oficioso do Tribunal e pode ser alegada em qualquer momento do processo, “se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes” – Art.º 333º/1, do C. Civil.
Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes é-lhe aplicável o regime da prescrição, ou seja, não é de conhecimento oficioso – Artºs 333º/2 e 303º do C. Civil.
O prazo de caducidade inicia-se, em princípio, se a lei não fixar outra data, no momento em que o direito possa ser legalmente exercido – Artº 329º do C. Civil.
A caducidade no âmbito do Direito Adjetivo implica que o direito da ação caduca pelo decurso do respetivo prazo, sem que tenha sido exercido pelo seu titular.
No caso dos autos, o prazo de caducidade a que alude o artº 1817º/3 do C. Civil não está na disponibilidade das partes, ou seja é subtraído à autonomia privada.
O que equivale a dizer que é de conhecimento oficioso do Tribunal não se verificando, por isso, a nulidade invocada pelo recorrente.
Neste sentido, Ac STJ de 18-03-86, Procº 073310, que trata exatamente da situação em causa nos autos:
“III - Aos prazos de propositura da acção de investigação de paternidade – artigo 1873º, referido aos ns. 1, 3 e 4 do artigo 1817, ambos do Código Civil –, aplicam-se atento o disposto no artigo 298º do mesmo diploma, as regras da caducidade.
IV - Neste caso, só impede a caducidade a propositura da acção.
V - Tal caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo.
VI - A acção de investigação de paternidade respeita a direitos indisponíveis.
VII - O respectivo prazo de propositura e estabelecido em matéria excluída da disponibilidade das partes.
VIII - Os prazos de caducidade, embora digam respeito a propositura das acções, são direito substantivo.
IX - A caducidade é uma excepção peremptoria de natureza substancial ou material.”

Em consequência, improcedem, nesta parte, as conclusões das recorrentes.
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2.- São inconstitucionais as normas contidas nos nºs 1 e 3 do artº 1.817º do Código Civil, quando ali se estabelecem prazos limitadores para a propositura das ações de investigação de maternidade/paternidade?
Quanto à caducidade da ação de investigação de paternidade, o artº 1817º do C. Civil, aplicável ex vi do artº 1873º, estabelece um prazo-regra no nº 1 (10 anos) e prazos especiais nos nºs 3, 4 e 5 (3 anos), conforme a causa de pedir seja o vínculo biológico ou as presunções legais.
Os prazos de três anos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1817.º, contam-se para além do prazo fixado no n.º 1 do mesmo artigo, não caducando o direito de proposição da ação antes de esgotados todos eles.
A causa de pedir nos presentes autos funda-se no vínculo biológico do artº 1869º do C. civil (artº 55º da p.i.) e nas presunções legais a que alude o artº. 1871º/1 a), d) e e), (artº 64º da p.i.) sendo que quanto a prazos de propositura da ação rege o artº. 1817º, como acima já referido.

Provou-se nos autos que:
“21. (…) e (…) cresceram na localidade de (…), conviveram desde crianças, iniciaram namoro um com o outro na juventude e mantiveram relações sexuais de cópula completa.

22. (…) não tinha mantido relações sexuais com outra pessoa.
23. As relações sexuais entre (…) e (…) ocorreram nomeadamente entre 31 de Julho de 1929 e 27 de Novembro de 1929.

24. (…) foi procriado pelas relações sexuais mantidas entre (…) e (…).”

46. As pessoas que sempre conviveram em (…) com (…) e (…) e os respectivos familiares consideram aquele como pai deste.
47. (…) considerou e tratou como seu filho o (…) até antes de Maio de 2006, data em que, por degradação da sua saúde, deixou de manter capacidade de conhecimento e reconhecimento.


Em face desta matéria de facto provada, dúvidas não restam de que o pai das AA., Recorrentes, (…), é filho de (…) tendo-se provado três das presunções de onde decorre a filiação alíneas a) d) e e) do artº 1871º/1, presunções que não foram ilididas por dúvidas sérias sobre a paternidade.
A questão que agora se coloca agora é a de saber se o direito de as AA. proporem a ação se mostra caduco, uma vez que foi proposta em 26-05-2009, após o decesso de (…) que nasceu em 25 de Maio de 1930 e faleceu em 16 de Junho de 2008, decorridos que se mostram os prazos a que alude o artº 1817º/1 e, eventualmente, do nº 3 do C. Civil (quanto à posse de estado), na redação dada pele Lei 14/2009, de 1-04.
Isto sem antes se apurar se o prazo de 3 anos, a que alude o citado nº 3, se mostra efetivamente decorrido, uma vez que o tratamento como filho pelo pretenso pai cessou de forma involuntária, questão que será dilucidada a seu tempo (ponto 47 da matéria de facto provada).

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Esta vexata quaestio do prazo para propositura da ação deu origem a inúmeras decisões não coincidentes dos nossos tribunais, com duas correntes jurisprudenciais distintas – uma que defendia a “imprescritibilidade” do direito de propor a ação e outra que pugnou pela proporcionalidade, justeza e adequação dos prazos de caducidade previstos na lei.

O Tribunal Constitucional colocou, aparentemente, termo à divergência, declarando a inconstitucionalidade do prazo de 2 anos então previsto no artº 1871º/1 do C. Civil, através do Acórdão com força obrigatória geral nº 23/2006:

“O Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

O legislador, através da Lei 14/2009 de 1-04, veio então alargar os prazos de caducidade referidos para 10 e 3 anos, respetivamente, sendo estes que vigoram atualmente na nossa ordem jurídica.

Contudo, a controvérsia jurisprudencial mantém-se intacta.

A corrente maioritária nos Tribunais da Relação, no Supremo Tribunal de Justiça e no Tribunal Constitucional é agora a da constitucionalidade dos prazos de 10 e 3 anos para a propositura da ação.

A título de exemplo, citam-se apenas os Acórdãos STJ de 09-04-13, Procº 187/09.7TBPFR.S1, com voto de vencido; de 14-01-14, Procº 155/12.1TBVLC-A.P1.S1; de 28-05-15, Procº 2615/11.2TBBCL.G2.S1; de 18-02-15, Procº 4293/10, com voto de vencido; de 08-11-16, Procº 4704/14.2T8VIS.C1.S1, com voto de vencido; de 04-05-17, Procº 2886/12.7TBBCL.G1.S1; de 02-02-17, Procº 200/11.8TBFVN.C2.S1; e de 13-03-18, Procº 2947/12.2TBVLG.P1.S1.

O que também ocorre no Tribunal Constitucional em vários acórdãos: n.ºs 99/88, 451/89, 370/91, 315/95, 506/99 e 23/2006 e 401/2011.


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Mas no sentido da inconstitucionalidade do estabelecimento de qualquer prazo, começa, de novo, a cimentar-se jurisprudência quer nos Tribunais da Relação, no Supremo Tribunal de Justiça e no Tribunal Constitucional, como o comprovam os acórdãos do TRP de 23-11-2010, Procº 49/07.2TBRSD.P1, TRC de 06-07-2010, Procº 651/06.0TBOBR.C1, TRG de 2-02-17, Procº 1660/16.6T8VCT.G1STJ e de 28-02-13, Procº 733/12.9TBFAF.G1; Ac. STJ de 08-06-2010 Proc. 1847/08.5TVLSB-A.L.S1; de 06-09-11, Procº 1167/10.5TBPTL.S1; de 15-11-2011, Procº 49/07.2TBRSD.P1.S1; de 6-01-2014 Proc. 905/08.0TBALB.P1.S1; de 14-01-2014 Procº 155/12.1TBVLC-A.P1.S1; de 31-01-2017, Procº 440/12.2TBBCL.G1.S1; de 15-02-2018 Proc. 2344/15.8T8BCL.G1.S2.

Quanto ao Tribunal Constitucional, o recentíssimo Acórdão nº. 488/18 de 04-10-2018, decidiu inverter a jurisprudência até aí firmada:

“Julga inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que aplicando-se às ações de investigação da paternidade por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.”

Este retorno da jurisprudência em direção à imprescritibilidade, vem dar consagração ao entendimento da doutrina que, sobre a questão, há muito decidiu pela não admissibilidade de prazo para propor ações de investigação de paternidade e maternidade.
O Acórdão do TC nº 488/18 descreve o estado da arte quanto ao entendimento da doutrina e jurisprudência.
O Prof. Guilherme de Oliveira – “Caducidade das Acções de Investigação”, – in “Comemorações dos 35 anos do C. Civil e dos 25 anos de Reforma de 1977 – Vol. I – ao contrário da sua posição anterior, defende hoje que a questão tem de ser equacionada sob outro prisma, afirmando:
Nesta balança em que se reúnem argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade de acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso. Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura em exagero; e com isso têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica. Nestas condições, o «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada”.
O que o leva a admitir a possibilidade de:
“alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos artºs 1817º e 1873º do C. Civil”, tornando-se o direito dos filhos investigantes exercitável a todo o tempo, durante a sua vida contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar (…)”.
A doutrina tem salientado, também, como critérios decisivos a favor da imprescritibilidade da ação de investigação da paternidade, a «responsabilidade inalienável» do pretenso pai, a qual se sobrepõe ao seu direito à reserva da vida privada. Vejamos as palavras (de novo) de Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, 2017, p. 154):

«É certo que o pretenso pai poderá continuar a invocar o “direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar”, que poderá ser afetada pela revelação de factos de algum modo comprometedores. Mas será possível demonstrar que o decurso do tempo agrava os danos sobre o suposto pai? Não poderá afirmar-se que o decurso do tempo é ainda mais prejudicial para o filho? E deve proteger-se este direito do eventual progenitor à custa do direito de investigar o vínculo? Como resposta, diria que prefiro tutelar o direito do filho a investigar a filiação a tutelar o direito do progenitor a esquivar-se à sua responsabilidade inalienável; diria também que não podemos exagerar o direito à reserva da intimidade da família do suposto progenitor, sob pena de se estabelecerem outras limitações do direito de agir contra supostos progenitores casados – casados ao tempo do nascimento ou casados no momento do reconhecimento – que foram conhecidas do nosso sistema jurídico e, obviamente, foram consideradas discriminatórias contra os filhos adulterinos». – Acórdão TC nº 488/18 de 4-10-2018, que vimos seguindo de perto.

Também no sentido da inconstitucionalidade de normas que estabeleçam prazos de caducidade para a propositura das ações, defende Jorge Duarte Pinheiro que:
“num ordenamento como o nosso, em que a acção de investigação da paternidade ou maternidade constitui o meio que assiste ao pretenso filho para obter o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica, penso que os prazos de caducidade configuram uma restrição desproporcionada do direito à identidade pessoal, mais precisamente do direito à identidade pessoal relativa ou à historicidade pessoal, consagrado no Art.º 26º n.º 1, da C.R.P.”Comentário ao Ac. do TC n.º 23/2006, publicado nos Cadernos de Direito Privado – n.º 15 – 32 e seg.
No sentido da inconstitucionalidade da previsão de qualquer prazo, a doutrina é maioritária: Joaquim de Sousa Ribeiro, «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», ob. cit., 2018; Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, Coimbra, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2017, pp. 152-156; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 134 e ss; Rafael Vale e Reis, O direito ao conhecimento das origens genéticas, Coimbra, pp. 206-216, Idem, «Filho depois dos 20…! Notas ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 486/2004, de 7 de Julho», Lex Familiae, n.º 3, 2005, pp.127-134); Paula Távora Vítor, «A propósito da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril: Breves considerações», Lex Familiae, n.º 11, 2009, pp. 87-91).

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A jurisprudência dos Tribunais Superiores e do Tribunal Constitucional, favorável à tese da proporcionalidade e adequação dos prazos de 10 e 3 anos, identificam argumentos favoráveis ao estabelecimento desses prazos para a propositura da ação mas que são hoje fortemente contestados pela doutrina e jurisprudência:

A) O argumento caça fortunas.
O prazo de 10 anos considera-se proporcional e adequado a defender o direito fundamental do filho em conhecer a sua história pessoal e exercer o seu direito à identidade; não propondo a ação neste prazo razoável o direito deve caducar, para obviar a que tenha por único fito aceder ao acervo hereditário do progenitor.
Contudo, como se argumenta no acórdão do TC nº 488/18: “um filho, que, durante a menoridade, se viu privado, em relação ao investigado, seu pretenso pai, do apoio financeiro e afetivo que os pais costumam proporcionar, resta-lhe apenas a obtenção do seu direito à herança, o qual, mesmo que exercido tardiamente, não se pode considerar abusivo, num contexto legal em que os restantes herdeiros o podem exercer a todo o tempo, nos termos do artigo 2075.º do Código Civil. Por outro lado, a presunção de que o estabelecimento da filiação tem a sua dimensão mais importante durante a menoridade, esquece que existem entre pais e filhos, em todas as fases da vida, deveres mútuos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º do Código Civil) e que esta solidariedade familiar se repercute em deveres de alimentos recíprocos entre pais e filhos adultos, segundo os artigos 1874.º, n.º 2 e 2009.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil (para além dos alimentos devidos a filho maior enquanto este não completar a sua formação profissional, nos termos do artigo 1880.º do Código Civil) e nos efeitos sucessórios da filiação, que constitui, ainda, uma forma de os pais auxiliarem os filhos no plano económico. (…)
Por outro lado, os efeitos sucessórios perderam a eficácia económica que tinham nas sociedades pré-industriais, em que o bem imóvel era o tipo mais significativo de riqueza, sendo predominante, hoje, a riqueza que se constitui graças ao rendimento do trabalho e que, por falta de controlo adequado, se transmite à margem do Direito das Sucessões (cf. Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, AAFDL, Lisboa, 2011, pp. 42-43).”
Não deixa, contudo, de se questionar a possibilidade de operar o funcionamento do instituto do abuso de direito, em casos onde, manifestamente, a ação se destina exclusivamente a atingir o acervo hereditário; ou que o legislador ordinário estabeleça formas de dificultar o acesso à herança quando o fito do filho seja aceder à fortuna; mas existirá sempre uma enorme dificuldade em estabelecer limites aos direitos fundamentais do filho.
B) O argumento da segurança jurídica do investigado e seus herdeiros.
Em confronto com o direito fundamental de o filho investigar a sua ascendência, costumam contrapor-se razões de certeza e segurança jurídica do progenitor e sua família, uma vez que, não existindo prazo para propor a ação, a sua vida familiar permaneceria numa incerteza permanente quanto a um eminente estabelecimento da filiação.
A segurança jurídica está também ligada à proteção de interesses patrimoniais.
Contudo, os direitos fundamentais de personalidade devem sobrepor-se aos direitos de proteção da estabilidade familiar, mormente patrimonial.
Com efeito, o artº. 1º da CRP obriga a que a lei ordinária respeite, em primeiro lugar, a essencial dignidade da pessoa humana, estando a esta também subordinados os restantes direitos fundamentais, (respeitado que seja o que dispõe o artº 18º/2, que impede qualquer direito fundamental de atingir, anulando-o, o núcleo fundamental de um outro direito fundamental).
Repare-se que o primeiro pilar jusconstitucional é a proteção da dignidade da pessoa humana e não a proteção da família, sem prejuízo da sua consagração constitucional também como direito fundamental. Mas a proteção da família é-o a um nível inferior, dada a sua inserção sistemática.
Isto porque o arranjo dos princípios e normas constitucionais obedece a uma hierarquia decorrente, desde logo, da sua arrumação na lei fundamental, o que se revela novamente na proteção do direito fundamental à identidade pessoal (artº 26º) em fase precedente ao direito fundamental de constituir família (artº. 36º).
Asserção que tem implicações práticas, implicações bem vincadas no voto de vencido da senhora Conselheira Ana Paula Boularot, no Ac. STJ de 18-02-2015, Procº 4293/2010:
Como muito bem se acentua na tese que fez vencimento sic «No caso sob recurso é inquestionável que o Autor é filho de J..., sendo que a paternidade biológica foi afirmada pelo exame ao ADN após a exumação do cadáver.».
Todavia, do teor argumentativo aí explanado decorre à evidência que este argumento de verdade que se prende, no fundo, com princípios fundamentais ligados ao supremo direito do indivíduo à sua identidade pessoal, direito este eminentemente imprescritível, pode ceder perante prazos peremptórios fixados pelo legislador, que o Acórdão considera «razoáveis» para o exercício de um direito de personalidade.
No meu modesto entendimento, a seguir-se a tese defendida poder-se-ia chegar à conclusão de que a pessoa é filha porque tal circunstância decorre de forma inequívoca do exame de ADN, mas não poderá ser reconhecida como tal, porque estão precludidos os prazos para o efeito, esbarrando assim com a ideia de uma justiça que se quer baseada na verdade dos factos e para uma sociedade assente no apanágio do ser e nos direitos que lhe são inerentes.
Nesta asserção, não podem conflituar direitos que são totalmente antagónicos entre si, pois o direito ao conhecimento das origens, não poderá esbarrar com uma limitação temporal a esse mesmo conhecimento: ou ele existe, ou não existe, é uma inerência do «eu» que conduz necessariamente à impossibilidade da limitação temporal do seu exercício – Sublinhado nosso.
Dada a clareza e lógica insofismável, sufragamos integralmente este entendimento, porque, a entender-se de outro modo, permite-se negar a filiação mesmo quando esta não oferece dúvidas.
O direito a constituir família tem ínsito, entre outros, a intenção de manutenção e proteção do património familiar; como se refere no acórdão nº. 488/18 do TC: “A segurança jurídica está, assim, ligada à tutela de interesses patrimoniais, que, quando em conflito com direitos fundamentais pessoais ou de personalidade, devem ceder, por força da primazia da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos de personalidade. Os direitos familiares pessoais como o direito ao estabelecimento da filiação assumem não só uma natureza jusfundamental, como têm sido «despatrimonializados», no sentido em que o direito da filiação, relacionado tradicionalmente com a transmissão do património das famílias dentro do casamento e com a defesa da integridade desse património, está hoje ligado, por excelência, ao estatuto pessoal e à identificação da pessoa com o seu «eu».
Retirando peso à segurança jurídica do investigado e dos seus herdeiros, afirma Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, 2017, p. 153):

«Tanto a vida patrimonial dos indivíduos como a vida comercial das empresas precisam desta segurança.

Mas será que o suposto progenitor merece também esta segurança – a segurança de não ser incomodado a partir de uma certa idade do filho? A segurança de não ser declarado pai, em qualquer momento, merece os mesmos cuidados por parte do sistema jurídico? De duas uma: se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos acabar com a insegurança – perfilhando – e se tem dúvidas pode mesmo promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria insegurança. E se for um dia surpreendido pelas consequências de um “acidente” passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre o dever de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele».

Com o devido respeito por posições contrárias e na nossa modesta opinião, a segurança jurídica do investigado e da sua família tem sido um argumento hipervalorizado e que não tem, face à hierarquia de valores fixada na Constituição e acima descrita, força suficiente para prevalecer sobre os direitos fundamentais, pessoalíssimos, do investigado, nem sobre os interesses de ordem pública relacionados com o estabelecimento da filiação.

C) Os argumentos da vida privada do pretenso pai e da proteção da paz familiar.

O legislador saído da transformação social operada pelo III República, operou, em sede de direito da família, uma revolução.
Desde logo, a extinção dessa figura espúria, vinda de uma sociedade rural, paroquial e próxima da idade média, que constituíam os filhos ilegítimos.
A evolução legislativa de um direito da família adaptado aos grandes princípios enformadores da sociedade ocidental civilizada, proporcionada pelo legislador na Reforma de 1977, obrigou os pais a perfilhar os filhos nascidos fora do casamento e deu o direito aos filhos de serem, como tal, reconhecidos pelos seus pais.
É a partir daqui que o valor concedido pela ordem jurídica ao sossego do pai, relapso, e da sua vida familiar começou a ceder.
Citando ainda o Ac. do TC nº 488/18: “O direito do filho a conhecer e a ver reconhecidos juridicamente aspetos tão determinantes na formação da individualidade deve afastar qualquer pretensão do progenitor no sentido da não assunção do papel de pai, a qual, ainda que apresente conexão com uma eventual tutela da sua própria individualidade, não pode ser colocada no mesmo plano (cf. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das origens Genéticas, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 208).
Note-se que, não existe «um direito a não ser juridicamente reconhecido como pai», mas apenas um interesse ligado à segurança jurídica do investigado e à proteção da paz e intimidade da sua família, os quais, quando em conflito com o direito fundamental do filho a conhecer as suas origens e a ver estabelecida a sua filiação, não têm força jusfundamental para prevalecer sobre os direitos, pessoalíssimos, do filho.
Deve considerar-se, assim, à luz dos direitos fundamentais à identidade e à historicidade pessoal, que «o âmbito de proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar não tutela o eventual interesse do progenitor, que participou num relacionamento biológico e afetivo de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato» (cf. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das Origens…ob. cit., pp. 207-208). É que, na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza, pelo bem-estar da criança nascida, em primeiro lugar, os progenitores biológicos, e tem um interesse de ordem pública, como já foi afirmado, em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa, mesmo para além da maioridade dos filhos.

D) O argumento da perda ou envelhecimento da prova.
Foi este argumento quem envelheceu por si próprio, tendo perdido sentido em face da utilização dos testes de ADN em sede de investigação da paternidade e maternidade, testes que permitem determinar, com uma certeza próxima do absoluto, qual a maternidade e paternidade de uma pessoa, eliminando a incerteza da prova pela vetustez, uma vez que o ADN não envelhece.

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Efetuado este excurso de ordem crítica, aos argumentos que se costumam esgrimir para conferir proporcionalidade e adequação aos prazos previstos na lei ordinária para propositura das ações de investigação da maternidade/paternidade, em detrimento da verdade e realidade biológica, querida, aliás, e, desde logo, pelo legislador de 1977, que a erigiu como estruturante de todo o regime legal numa clara proteção ao direito pessoalíssimo à história de cada indivíduo, concluimos que este direito fundamental não é respeitado na sua real dimensão quando se impõem prazos para que os cidadãos acedam ao seu “eu” integral.
O que equivale a dizer que prevalece este direito ao conhecimento e realização integral do “eu” de cada um, em face da proteção de um mero interesse de tranquilidade do pretenso pai, ou uma alegada segurança jurídica do investigado e do seu agregado familiar.
Esta prevalência implica a inconstitucionalidade material das normas previstas no artº. 1817º/1 e 3 do Código Civil ao estabelecerem prazos limitadores de 10 e 3 anos, respetivamente, por serem tais prazos excessivos e impeditivos do respeito pela essencial dignidade da pessoa humana, do exercício do fundamental direito à identidade pessoal, ao direito de constituir família e ao direito geral de personalidade do investigante, o que se declara. – Artigos 1º, 26º e 36º da CRP e 70º do C. Civil
Em face do exposto, impõe-se revogar a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância e, na medida em que se afasta da ordem jurídica a aplicação do prazo de caducidade de 3 anos, a que alude o artº. 1871º/3 do C. Civil, aplicável ex vi do artº. 1873º do mesmo diploma, única questão que impediu a plena eficácia das provadas presunções a que alude o artº 1871º/1 a), d) e e) do C. Civil, reconhecer a paternidade nos termos peticionados pelas AA., ora recorrentes.
Assim sendo, conclui-se que (…) é pai de (…) e que a ação foi proposta em prazo, dada a sua inexistência.
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DECISÃO
Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga procedente a apelação, revoga a sentença recorrida e decide reconhecer que (…) é pai de (…) para todos os devidos e legais efeitos.
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Custas pelos recorridos – Artº 527º C.P.C..
Notifique
Évora, 08-11-2018
José Manuel Barata (relator)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura