Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
207/14.3PATVR.E2
Relator: JOSÉ PROENÇA DA COSTA
Descritores: PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – O princípio do in dubio pro reo só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido;
II – As declarações para memória futura devem garantir certas prorrogativas na sua tomada, nomeadamente a garantia do funcionamento do princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo e forma de garantia dos direitos de defesa, art.º 32.º, n.º 5, da CRP.
III – Se tiverem sido tomadas sem integral respeito pelo contraditório, só valem como prova em julgamento se ali forem lidas.
IV – A não permissão da arguida/recorrente formular a uma testemunha mais perguntas do que aquelas que formulou configura uma irregularidade, que deve ser arguida no próprio acto, sob pena de ficar sanada (artigo 123.º do CPP).
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 207/14.3PATVR.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Processo Comum Singular, com o n.º 207/14.3PATVR, a correrem termos pela Comarca de Faro – Instância Local de Tavira – Secção de Competência Genérica – J1, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida:
BB, nascida a (…);
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, alínea i), do Código Penal.

CC formulou pedido de indemnização civil, no montante global de € 5.050,00 (cinco mil e cinquenta euros), sendo € 5.050,00 a título de danos patrimoniais e que os danos não patrimoniais sejam fixados equitativamente nos termos do art.º 496.º, n.º 4, do Código Civil.

A arguida contestou, alegando não ter praticado os factos constantes da acusação (fls 180 a 185) e pediu que o pedido de indemnização civil seja julgado improcedente e a demandada absolvida (fls 217); apresentou rol de testemunhas.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, vindo-se, no seu seguimento, a prolatar pertinente Sentença, onde se Decidiu:
1) Condenar a arguida BB pela prática de um crime de furto qualificado na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 30.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, alínea i), do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 5,00;
2) Condenar a arguida no pagamento das custas criminais, mas tendo-se em atenção o benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido;
4) Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado pela demandante CC, e em consequência, condenar a demandada BB no pagamento de € 5.050,00 (cinco mil e cinquenta euros) à demandante a título de danos patrimoniais acrescida de juros de mora à taxa legal a computar desde a notificação do pedido até integral e efectivo pagamento, absolvendo a demandada do restante do pedido;
5) Custas na parte civil por demandante (1/5) e demandada (4/5), mas tendo-se em atenção o benefício do apoio judiciário que foi concedido à demandada.

Inconformada com o assim decidido recorreu a arguida BB pugnando pela sua absolvição do crime de furto qualificado pelo qual foi condenado e, consequentemente, absolvida do pedido de indemnização cível.

Por Aresto deste Tribunal, datado de 11 de Outubro de 2016, foi declarada nula a Sentença - por falta de exame crítico da prova, nos termos dos art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º1, al. a), ambos do Cód. Proc. Pen., - e ordenada a sua substituição por outra que suprisse a nulidade em causa, vindo-se decidir em conformidade.

Remetidos os autos à 1.ª Instância, veio prolatar-se pertinente Sentença, onde se veio a Decidir:
a) Julgar procedente por provada a prática pela arguida do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 1, al.ª i), do Cód. Pen., na sua forma continuada cfr. art.º 30.º, n.º 2, do Cód. Pen., e, em consequência, condenar a arguida BB na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 5,00 € (cinco Euro), o que perfaz a quantia de € 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta Euro);
b) Condenar a demandada no pagamento à demandante a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 5.050,00 (cinco mil e cinquenta Euro) acrescido de juros à taxa legal desde a data de notificação do pedido cível até integral pagamento e de € 750,00 (setecentos e cinquenta Euro) por danos não patrimoniais acrescidos de juros legais contados desde a data do trânsito da presente sentença até integral pagamento;
c) Condenar a arguida nas custas penais do processo, que se fixam em 2 Ucs – art.º 8.º, n.º 9, RCP com referência à tabela anexa IIIA;
d) Custas cíveis pela demandada, tendo, porém, em conta o apoio judiciário de que beneficia - nos termos do art.º 446.º, CPC, ex viram art. 523.º, CPP.

Inconformada com o assim decidido traz a arguida BB o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
(…)
I. Por exigência do princípio do contraditório, as provas devem, em princípio, ser produzidas perante o arguido, em audiência pública.
II. Tal princípio, porém, comporta excepções, pois verificada a impossibilidade de reiterar as declarações prestadas no inquérito ou na instrução, seja por ausência ou morte do declarante, seja por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa, podem essas declarações ser valoradas na audiência de julgamento.
III. É que o princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo ou em cross-examination.
IV. O modo de prestar declarações para memória futura respeita no essencial o princípio do contraditório.”
Veja-se nesse sentido também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2012:
1. As declarações para memória futura constituem uma excepção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram;
2. Constituem requisitos da tomada de declarações para memória futura:
- Que a testemunha a inquirir esteja afectada por doença grave ou que tenha que se deslocar para o estrangeiro;
- Que seja previsível, quer por causa da doença, quer por causa da deslocação, que a testemunha esteja impedida de depor em julgamento;
3. Tais requisitos são válidos para todos os crimes, com excepção dos crimes sexuais e, actualmente, com excepção dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual. Nestes casos, as vítimas podem ser ouvidas em declarações para memória futura [os ofendidos menores de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual sê-lo-ão sempre, nos termos do nº 2, vigente], sem exigência da verificação daqueles requisitos;
4. Estando indiciado um crime de lenocínio, crime de natureza sexual, em que está em causa a liberdade sexual das mulheres a quem se pretende tomar declarações, a decisão da tomada de declarações para memória futura não tem de estar fundamentada na previsibilidade de as testemunhas não estarem presentes em julgamento em razão de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro.”
E o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-05-2017:
“I - Mesmo com a actual redacção do art.º 271º do CPP, a tomada de declarações para memória futura pode ser feita, verificadas determinadas circunstâncias (nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste) antes de haver Arguido constituído, sem que isso ponha irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, desde que ao Arguido seja posteriormente dada a real possibilidade de contraditar e/ou confrontar o autor de tais declarações.
II - A falta de notificação do arguido ou do suspeito para tal diligência constitui mera irregularidade, que, não sendo atempadamente arguida, se considera sanada.”
E o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que sustenta:
“A validade da prova para memória futura não depende da leitura das declarações em audiência, nem esta é necessária para o exercício do contraditório.”
54. Efectivamente, detectam-se no processo de avaliação da prova desenvolvido, distorções graves e erros que imponham qualquer alteração ao decidido.
55. Há assim que concluir pela existência de uma desconformidade entre os elementos de prova disponíveis produzidos em julgamento e a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos concretos pontos impugnados pela recorrente.
(…)
60. Não há nada de objectivo e qualquer prova que ligue o crime (pelo menos nos 42 primeiros levantamentos) que é objecto do presente recurso (crime de furto qualificado) à arguida BB.
61. Dos factos provados, jamais se poderia imputar à arguida as condutas integradores do crime pela qual foi condenado.
62. Trata-se de uma exigência constitucional que visa permitir o conhecimento das razões de facto e de direito que conduziram, a uma determinada decisão, possibilitando desde logo, o exercício do direito ao recurso.
63. Disposições violadas: As supra-referidas e as demais que V. Exas. suprirão, nomeadamente as contidas nos artigos 203°, n.º 1 e 204°, n.º 1, al. e), do Código Penal e ainda os artigos 118°, 125°, 127°, 157º, 163º, 340°, 355°, 374°, 379°, 410º nº 2 do Código de Processo Penal e os artigos 205° e 32° da Constituição da República Portuguesa.»
Termos em que,
Pelo exposto e pelos demais de Direito que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso por provado, e, em consequência revogar-se a decisão proferida e absolver a arguida do crime de furto qualificado pelo menos no que diz respeito aos primeiros 42 levantamentos (levantamentos até ao dia 1 de Julho de 2014) devendo ainda ser declarada nula a sentença e ordenada a sua reforma.
Sendo absolvida do crime, também deverá ser a arguida absolvida do pedido de indemnização cível (ao abrigo do princípio da adesão) - pelo menos no que se refere aos primeiros 42 levantamentos até ao dia 1 de Julho de 2014 – e pelos danos morais em que se encontra demandada fazendo-se deste modo a acostumada justiça.

Respondeu ao recurso o Magistrado do Ministério Público, Dizendo:
(…)
11. Bem andou o Meritíssimo Juiz ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto dada como provada, porquanto resultou da prova produzida em audiência de julgamento que a versão apresentada pelo assistente é a que melhor se adequa à prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

Nesta Instância, o Sr. Procurador Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados:
1. Em data não concretamente apurada do ano de 2014 mas anterior a 12 de Março, a arguida começou a efectuar limpezas na residência de CC, sita na Rua ….
2. CC é pensionista, auferindo mensalmente a título de pensão a quantia de €497,26, quantia essa que lhe é paga através de transferência para a conta de que é titular na Caixa Geral de Depósitos, com o n.º …, sendo com essa quantia que, em 2014 e 2015, fazia face às suas despesas quotidianas.
3. Para efectuar levantamentos a partir da referida conta bancária, CC utilizava então a caderneta que a aludida entidade bancária emitiu em seu nome, quer ao balcão, quer até 6 Agosto de 2013 nas caixas ATM, introduzindo então a caderneta nas mesmas, e digitando o código pessoal que a entidade bancária lhe forneceu;
4. A arguida, efectuando limpezas na residência de CC, pôde verificar que a caderneta ali se encontrava, juntamente com o código que permite efectuar operações, manuscrito pela ofendida na própria caderneta.
5. Nessa senda, sem autorização da sua respectiva dona, a arguida retirou a caderneta àquela do interior da sua residência e deslocou-se às máquinas ATM existentes na agência da Caixa Geral de Depósitos em …, introduziu a caderneta e digitou o código pessoal atribuído à ofendida para efectuar operações com a dita caderneta, tendo procedido aos seguintes levantamentos:
(…)
6. A arguida fez suas, sempre sem autorização e contra a vontade da respectiva dona, as aludidas quantias.
7. A arguida bem sabia que a conta era titulada pela ofendida e que as quantias naquela depositadas, a esta pertenciam, e, não obstante, quis e conseguiu subtrair-lhe a caderneta para efectuar levantamentos de quantias que fez suas, bem sabendo que agia contra a vontade e sem autorização da ofendida, o que lhe foi indiferente por ter sido querida a sua conduta.
8. Mais sabia a arguida, o que também lhe foi indiferente por ter sido querido tal resultado, que era com essas quantias que a ofendida fazia face às suas despesas quotidianas, bem como sabia que a assistente habitava sozinha.
9. Agiu a arguida aproveitando-se da situação de efectuar trabalhos de limpeza na residência da ofendida, onde se encontrava a caderneta e ainda do facto de, na caderneta, estar anotado o código destinado a ser introduzido no ATM para permitir efectuar operações bancárias com tal documento.
10. Agiu sempre da mesma forma, retirando a caderneta da residência da ofendida, retirando ainda vantagem da idade avançada daquela e do facto de habitar sozinha, bem sabendo que poderia não verificar, como não verificou, nem a ofendida, nem terceiro seu familiar ou próximo, que a caderneta tinha sido subtraída e as quantias levantadas da sua conta bancária.
11. Em tudo a arguida agiu livre, voluntária, e conscientemente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
12. A ofendida e demandante, CC, é uma pessoa de idade avançada, nascida a … 1931, apresentando dificuldades de saúde, designadamente de visão;
13. A arguida, ao subtrair as quantias que resultaram dos levantamentos dados como provados, sabia que a ofendida não teria outros meios para subsistir por si própria, e que a deixaria nessa situação, o que acabou por acontecer.
14. Na sequência dos levantamentos efectuados pela arguida a demandante viu-se sem qualquer quantia monetária na sua conta bancária para fazer face às suas despesas pessoais.
15. Em virtude do facto supra-descrito a demandante sentiu-se dependente e humilhada, perdeu o ânimo, criando-lhe aquele perturbação do equilíbrio social, psíquico e emocional.
16. A arguida trabalha num quiosque onde recebe € 570 mensais, vive com o companheiro que aufere € 1220, e tem 3 filhos menores a cargo, vivendo todos numa casa camarária pela qual pagam a renda de € 42. A arguida tem o 7º ano de escolaridade e já foi condenada pela prática de um crime de falsidade de testemunho na pena de 130 dias de multa, num montante global de € 520, decisão que transitou em 18Mai2007, tendo a pena sido declarada prescrita em 10Mai2011.

Factos não Provados:
(…)
Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
(…)

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Como flui das conclusões retiradas pela recorrente várias são as questões por si trazidas á consideração deste tribunal recurso.
Porém, antes de nos adentrarmos na análise das sobreditas questões, teremos de iniciar o conhecimento do recurso por outras matérias, mormente aquelas que venham respeitar á estabilidade do objecto do processo.

E entre elas, temos a suscitada pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto e se prende com a existencia na Sentença revidenda de lapso de escrita que a afectava e, daí, a sua correcção, fazendo-se intervir, para tanto, o que se dispõe no art.º 380.º, n.ºs 1, al.ª b) e 2, do Cód. Proc. Pen.
Para dilucidar a questão em aberto, importa fazer intervir o que se estatui no art.º 380.º, n.º 1, al.ª b), retro citado, onde se diz que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
Dizendo-se no seu n.º 2 que se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
Como se vem entendendo, o preceito em apreço regula os vícios da sentença que constituem meras irregularidades susceptíveis de correcção, não determinando a sua invalidade.
Prevendo-se na al.ª b) situações de correcção de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade, cuja eliminação não importe uma modificação substancial da sentença.
Como refere Maia Gonçalves, esta modificação essencial afere-se em relação ao que estava no pensamento do tribunal decidir, e não em relação ao que ficou escrito; por isso se incluem aqui os erros materiais ou de escrita.[1]
Pressupondo, desta feita, a correcção da sentença uma menor inteligibilidade da decisão a corrigir, em função de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade.
Reportando-se essa ininteligibilidade não ao conteúdo, ou mérito, do julgado mas sim, e tão-somente, à sua exteriorização formal, ao discurso qua tale, podendo perfilar-se situações de ambiguidade expositiva, de obscuridade, de excessivo gongorismo impeditivo de univocidade ou, no limite, de meros lapsos ou erros de escrita.[2]
Nestas situações, o conteúdo da decisão emitida é perfeitamente conhecido, porém entende-se que a mesma enferma de um erro ou lapso.
Dirigindo-se o poder de correcção do juiz a situações de erro ou lapso e não a situações que envolvam o mérito do julgado.
Tudo, por, de harmonia com o estatuído no art.º 666.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civ., aplicável ex vi art.º 4.º, do Cód. Proc. Pen., proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (ver art.º 613.º, do novel Cód. Proc. Civ).
Pelo que todo o acto que venha importar intromissão no conteúdo do decidido, ainda que a pretexto de simples correcção da sentença, esteja vedado ao julgador. Daí que os erros de julgamento, ou as suas omissões, estejam subtraídos à disciplina sumária da correcção de vícios ou erros materiais da sentença, até por uma razão lógica intuitiva: evitar que uma ponderação sumária e, portanto mais abreviada, deite por terra os fundamentos de uma sentença, necessariamente mais densamente elaborada.[3]
Erros que terão de ser ostensivos e decorrerem do contexto da sentença, ver, entre o mais, o que se dispõe no art.º 249.º, do Cód, Civ., aplicável ex vi do disposto no art.º 4.º, do Cód. Proc. Pen.
Lê-se na Sentença revidenda – em sede de fundamentação da decisão de facto – o seguinte: Quanto aos levantamentos de dias 5 e 7 de Julho de 2017, face à falta de reconhecimento – e pese embora a similitude de situações com os dias antes mencionados de menores acompanharem a autora dos levantamentos – o Tribunal considera os mesmos insuficientes para prova definitiva destes últimos.
E na mesma peça processual - em sede de factos provados - o seguinte:
5. Nessa senda, sem autorização da sua respectiva dona, a arguida retirou a caderneta àquela do interior da sua residência e deslocou-se às máquinas ATM existentes na agência da Caixa Geral de Depósitos em …, introduziu a caderneta e digitou o código pessoal atribuído à ofendida para efectuar operações com a dita caderneta, tendo procedido aos seguintes levantamentos:
rr) 5 Jul.2014 pelas 11h57m, a quantia de € 20,00;
ss) 7 Jul. 2014 pelas 10h19m, a quantia de € 10,00.
Erros de escrita de tal forma ostensivos – já que toda a actividade descrita nos auto ocorreu no ano de 2014, e tão só - que carecem da intervenção deste Tribunal de recurso, de modo a que fique a constar da Sentença revidenda – em sede de fundamentação da decisão de facto – o seguinte: Quanto aos levantamentos de dias 5 e 7 de Julho de 2014, face à falta de reconhecimento – e pese embora a similitude de situações com os dias antes mencionados de menores acompanharem a autora dos levantamentos – o Tribunal considera os mesmos insuficientes para prova definitiva destes últimos.
Assim se acolhendo a pretensão formulada pelo Sr. Procurador Geral-Adjunto.

(…)

Cabe, de seguida, descortinar se a decisão sob censura violou, ou não, o princípio do in dubio pro reo.
Como é sabido, tal princípio é o correlato processual do princípio de presunção de inocência do arguido, princípio com dignidade constitucional, como decorre do art.º 32.º, n.º1, da C.R.P.
Constituindo um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação á prova da matéria de facto deve ser sempre valorada favoravelmente ao arguido.
Para lá de ser uma garantia subjectiva, o princípio deve ser visto e entendido como uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza absoluta sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Sobre o sentido e conteúdo do princípio em apreço, damos a palavra ao Prof. Figueiredo Dias, ao referir que á luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitam ao facto criminoso, quer á pena) que, apesar de todas a prova recolhida, não possam se subtraídos “à dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como “ provados”. E, se por um lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias á decisão, logo se compreende que a falta delas não possa de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova- não permitindo nunca ao juiz como se sabe, que omita a decisão- tem de ser sempre valorada a favor do arguido[26].
Ainda na lição do Mestre, o princípio in dubio pro reo aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena, bem como às circunstâncias atenuantes.
Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova da circunstância favorável ao arguido[27].
Pelo que o princípio em causa só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido [28].
Ora, face ao que vem sendo tecido e o modo como foi suscitada a questão em análise, é de concluir ter o tribunal a quo obtido uma convicção plena e segura, já que subtraída a qualquer dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos.

Cabe, por fim, descortinar se o Tribunal revidendo andou bem, ou não, ao não fazer uso das declarações para memória futura tomadas à ofendida CC.
Fundamentou o Tribunal tal decisão, como segue:
(…) O Tribunal não atribuiu importância às declarações para memória futura prestadas pela ofendida a fls. 40, assim como também não sentiu necessidade de ouvir a mesma em julgamento. Verifica-se que as referidas declarações para memória futura foram efectuadas com ausência do contraditório, quando é certo que tal contraditório o impõe o art. 356.2.a) CPP ex vi do art. 271 CPP assim como o art. 6º (direito a processo equitativo) da CEDH. Se é certo que a lei portuguesa não impede a priori declarações para memória futura com ausência de contraditório prestadas em sede de inquérito (desde que não haja ainda sido constituído arguido), o contraditório impõe-se todavia quando o arguido já devesse ter sido constituído e, por motivos que ora não cumpre sindicar, ao tempo ainda não o havia sido. Não satisfeito o requisito do contraditório em declarações para memória futura, sempre ficaria vedado o seu uso pelo art. 356.2.a) CPP, e assim, embora reproduzidas em audiência, o tribunal não fundamentou a sua decisão em tais declarações, não as tendo por isso considerado na sua decisão. Por outro lado, a importância probatória das referidas declarações é objectivamente despicienda no seu conteúdo nada acrescentando de substancial à queixa apresentada cfr. fls. 4v e 5 dos autos, pelo que seria também despicienda a inquirição da ofendida, não se tendo verificado quaisquer dúvidas que houvessem sido suscitadas e que se cumprisse clarificar, uma vez que em sede de contestação a arguida limitou-se a negar a prática dos factos e em audiência optou pelo silêncio.
Como se vem entendendo as declarações para memória futura configuram-se como uma antecipação do julgamento, porquanto as mesmas podem vir a ser utilizadas pera formar a convicção do tribunal.
Daí que se tenham de garantir certas prorrogativas na sua tomada, nomeadamente a garantia do funcionamento do princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo e forma de garantia dos direitos de defesa, art.º 32.º, n.º 5, da CRP.
O que foi preocupação do legislador, bem traduzida na exposição de motivos da proposta de lei n.º 109/X, que esteve na origem da Lei n.º 48/2007, de 29.08, que veio introduzir alterações na Lei Processual Penal, entre outras do art.º 271.º, que regula tal instituto. Dando-se, a respeito, nota de que em todos os casos de declarações para memória futura, passa a garantir-se o contraditório na sua plenitude, uma vez que está em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento.
Dando corpo ao almejado na exposição de motivos veio alterar-se o art.º 271.º, do Cód. Proc. Pen., e, dessa feita, a tornar obrigatória na prestação de depoimento quer a presença do MP, quer a presença do defensor, seu n.º 3.
E que apesar da inquirição estar a cargo do Juiz, o MP, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, seu n.º 5.
Daí o teor do AFJ, n.º 8/2017, de 11 de outubro de 2017, no DR, I.ª Série, de 2017-11-21, ao firmar entendimento de que «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»
No caso em que tal cuidado com o princípio do contraditório não foi tido, haverá que proceder à leitura das declarações em audiência e, dessa via, assegurar o contraditório, sob pena de não poderem ser usadas para fundamentar a convicção do juiz.
No sentido do acabar de tecer vemos o Acórdão da Relação do Porto, de 29.10.2008, no Processo n.º 0814505, onde se firmou entendimento de que as declarações para memória futura, se tiverem sido tomadas sem integral respeito pelo contraditório, só valem como prova em julgamento se ali forem lidas.
Porquanto, o que se exige é que a prova que fundamenta a convicção do juiz, seja qual fora o momento em que se produziu, tenha sido sujeita do exercício do contraditório e do direito de defesa.
Ora, tendo as declarações sido tomadas sem se assegurar o respeito pelo princípio do contraditório e sem que em sede de audiência viesse a ser inquirida a ofendida ou lidas as preditas declarações, é indubitável concluir que as mesmas não podem servir para fundamentar a convicção do Tribunal recorrido.
Daí que bem andou o Tribunal recorrido ao não se servir das preditas declarações para fundar a sua convicção.
Torna-se, assim, imodificável por este tribunal a matéria de facto considerada pela Sentença recorrida.

Quanto à invocada questão de a recorrente ter sido impedida de formular perguntas à testemunha ….
Desde logo, reter que a defesa teve direito a interrogar a mencionada testemunha. Se de alguma forma veio a ser impedida, como refere, de poder levar mais alá a inquirição da testemunha, cometeu-se uma irregularidade do art.º 123.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen. Irregularidade que deveria ter sido arguido no próprio acto, sob pena de ficar sanada.
Não tendo a arguida/recorrente agido em conformidade, por sanada se deve ter a alegada irregularidade.

Termos são em que Acordam em:
1. Proceder à rectificação da mencionada passagem constante da fundamentação da decisão de facto e nos termos ordenados;
2. Proceder à alteração da base factual e nos termos retro mencionados;
3. No mais, negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 5 Ucs a taxa de justiça devida.


(texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora, 18 de Outubro de 2018
José Proença da Costa (relator)
Alberto Borges
__________________________________________________
[1] Ver, Código de Processo Penal Anotado,16.ª edição, pág. 805.
[2] Ver, Acórdão do S.T.J., datado de 2.07.2008, no Processo n.º 08P1621
(...)
[26] Ver, Direito de Processo Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, págs. 35.
[27] Ver, Direito Processual Penal, págs. 215.
[28] Cfr., Ac. S.T.J., de 18.03.98, no Processo n.º 1543/97.