Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/23.1JAPTM-B.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
COMPETÊNCIA
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O Conselho Superior da Magistratura pode, ao abrigo do disposto no art.º 130.º/2-b) e 3 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, atribuir competência a juízos locais ou de competência genérica para exercerem as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado, não contendendo essa possibilidade com quaisquer direitos constitucionais dos arguidos no exercício da respetiva defesa, nem se mostrando tais preceitos violadores de qualquer preceito legal ou constitucional.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisões Recorridas

Nos autos de inquérito nº 23/23.1JAPTM, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica ..., Juiz ..., em que é arguido AA, preso preventivamente desde 02/02/23 e em que são investigados factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de sequestro agravado na forma consumada, p.p., pelo Artº 158 nsº1 e 2 al. b), conjugado com o Artº 243 nº3, ambos do C. Penal, cometidos na pessoa da ofendida BB, veio o MP apresentar requerimento para recolha de declarações para memória futura desta, o que foi objecto de deferimento pelo seguinte despacho judicial (transcrição):

I. Das declarações para memória futura [despacho com a ref. n.º 127206800]
Uma vez que a ofendida BB é de nacionalidade ..., e que estará em Portugal para fazer voluntariado durante o período de 3 meses, devendo regressar à sua terra natal no mês de abril do presente ano, e que tal circunstância poderá previsivelmente impedi-la de ser ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento, considera-se que estão reunidos os requisitos que permitem a sua inquirição para memória futura [cf. art. 271.º, n.º 1 do C.P.P.].
Deste modo, e conforme requerido pelo Ministério Público, para a inquirição de BB, com a finalidade prevista no art. 271.º, n.º 1 do C.P.P., designa-se o próximo dia 01 março de 2023, pelas 14h00m, neste Tribunal.
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Para assistir a vítima na diligência ora determinada, determina-se a nomeação de um técnico especialmente habilitado para a acompanhar no decurso da diligência supra determinada e, após, notifique-se o mesmo para comparência [devendo este comparecer 30 minutos antes da hora designada para a realização da diligência].
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Proceda-se à notificação, através do O.P.C. territorialmente competente, de BB para comparência na aludida diligência [devendo esta comparecer 30 minutos antes da hora designada para a realização da diligência].
Diligencie-se pela nomeação de intérprete da língua inglesa e, após, notifique-se o mesmo para comparência na diligência determinada [devendo também este comparecer 30 minutos antes da hora designada para a realização da diligência].
As declarações da ofendida serão registadas através de sistema de áudio ou audiovisual, nos termos dos arts. 363.º e 364.º ex vi do art. 271.º, n.º 6 do C.P.
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Notifique-se o arguido AA [tendo por referência que se encontra em prisão preventiva – devendo a notificação respeitar o previsto no art. 114.º, n.º 1 do C.P.P.], bem como seu/sua o/a Ilustre Defensor/a [o qual deverá comparecer], e ainda o Ministério Público, do local e da hora designados para a realização da diligência, nos termos dos arts. 271.º, n.º 3 do C.P.P..
O arguido deverá ser notificado com expressa menção de que não é obrigatória a sua presença (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2016, relator: Manuel Soares, disponível em www.dgsi.pt).
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Proceda-se às diligências necessárias.

No dia 01/03/23, data designada para a tomada de declarações para memória futura da ofendida e ainda antes das mesmas, foi apresentado pelo arguido o seguinte requerimento (transcrição):
Do requerimento do Ministério Público e a inquirição da ofendida no decurso do inquérito para tomada de declarações para memória futura, nos termos do art. 271.°, n.os 1 e 2 C.P.P., é da competência do Juiz de Instrução, o que conjugado com o normativo do art. 269.º, n.º 1, al. f) do C.P.P., reafirma que tal competência é da exclusiva competência do Juiz de Instrução, competindo a este decidir e presidir a tal ato.
Termos em que o Juízo de Competência Genérica ..., este Juízo, é absolutamente incompetente, decorrente da violação das regras de competência em função da matéria, pois o crime indiciado nos autos foi praticado no território de ... e que tal concelho está na jurisdição do Juízo de Instrução Criminal ... e, por isso, a competência para a prática de certos atos jurisdicionais, como é o caso das declarações para memória futura, compete ao J.I.C. ....
Não se ignora que a al. b) do n.º 2 do art. 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, estende a competência dos juízos de competência genérica para exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado e que, para esse efeito, o Conselho Superior da Magistratura define, detalhadamente, os atos jurisdicionais a praticar por cada um dos juízos de competência genérica.
Todavia, entende-se que o ato previsto no art. 271.° do C.P.P. é da competência exclusiva do J.I.C., decorrência do art. 269.° do C.P.P., não podendo ser delegado pelo Conselho Superior da Magistratura ou por Juiz Presidente de comarca a outro Juiz.
Termos em que o despacho de 17/02/2023 que deferiu as declarações para memória futura e a presente sessão para tomada de declarações de memória futura é nulo, porque praticado por Juiz materialmente incompetente o que será gerador de nulidade, nos termos do art. 119.°, al. c) do C.P.P.

Este requerimento foi objecto do seguinte despacho judicial (transcrição):

Veio o arguido requerer na presente diligência a incompetência absoluta deste Tribunal para a realização das declarações de memória futura por tal estar incumbido ao Juiz de Instrução Criminal.
Considera o Tribunal que não assiste razão ao arguido, tendo por referência que por despacho do Sr. Conselheiro Vice Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 29/08/2019, nos termos do disposto no art. 130.°, n.º 2, al. b) da Lei de Organização do Sistema Judiciário o Juízo de competência genérica tem competência para a prática de atos jurisdicionais de inquérito entre mais para a tomada de declarações de memória futura, assim verifica-se que o presente Tribunal tem competência para tomada de declarações para memória futura e, portando, indefere-se o requerido, não se considerando este Tribunal materialmente incompetente para a realização da presente diligência.

B – Recurso

Inconformado com o decidido nos dois despachos que se transcreveram, recorreu o arguido, na mesma peça processual com as seguintes conclusões (transcrição):

A) O deferimento e a tomada de declarações para memória futura da ofendida, no decurso do inquérito, nos termos do art. 271,º n.º1 e 2 C.P.P., é da competência exclusiva do Juiz de Instrução, o que conjugado com o normativo do art. 269.º n.º 1, al. f) do C.P.P., só a este compete decidir e presidir a tal ato.
B) Como tal, as decisões recorridas são nulas por violação das regras de competência previstas no artigo 119º, nº1 e artigo 130, nº2, b) ambos da LOSJ, na medida em que este Despacho do Vice-Presidente do CSM (ao abrigo do nº3 do artigo 130º da LOSJ) excedeu os poderes discricionários, por manifesta violação de lei, sendo claramente inconstitucional por lesivo do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, das garantias do arguido, do princípio do juiz natural e do princípio da especialização, decorrentes do artigo 20º, nº4 e 5, 32º e 211.º todos da CRP.
C) Há uma reserva de juiz do JIC no ato de deferimento e tomada de declarações para memória futura, sendo constitucionalmente obrigatória a sua intervenção na fase de inquérito, em todos os atos instrutórios que possam afetar negativamente direitos fundamentais, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, de modo a cumprir-se a exigência contida no artigo 32.º, n.º5, da CRP

C – Resposta ao Recurso

O MP respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, apesar de não ter apresentado conclusões.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que militou pela improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, impostas pelos Artsº 410 e 379 do CPP.
O objecto do recurso cinge-se à questão de saber se assiste, ou não, razão ao recorrente, quando considera que o despacho que deferiu a tomada de declarações para memória futura por parte da ofendida é nulo, bem como, a prestação de tais declarações, na medida em que foram praticadas por juiz materialmente incompetente.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, de carácter eminentemente jurídico, é manifesto que não assiste qualquer razão ao recorrente.
Defende o arguido que o despacho judicial que deferiu a inquirição da ofendida, em declarações para memória futura a prestar junto do Juiz de ... é materialmente incompetente, por se tratar de matéria da exclusiva competência do juiz de instrução (no caso, de ...), cabendo apenas a este deferir e presidir a tal acto, pelo que o referido despacho e acto de prestação das ditas declarações estão feridos de nulidade, nos termos combinados dos Artsº 271 nsº1 e 2, 269 nº1 e 119 nº1 todos do CPP e 139 nº2 al. b) da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).
A ausência de razão do recorrente é manifesta.
Como resulta do que supra se transcreveu, o Mmº Juiz a quo fundamentou a sua competência para o acto em causa no despacho do Exmº Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, datado de 29/08/19, proferido ao abrigo do disposto no Artº 130 nº2 al. b) da Lei de Organização do Sistema Judiciário, onde expressamente se refere que os juízos de competência genérica têm competências para a prática de actos jurisdicionais e de inquérito, entre os quis se inclui a tomada de declarações para memória futura.
Este despacho é, naturalmente, anterior à data da eventual prática do crime dos autos, pelo que, com o devido respeito, não faz sentido alegar a violação do juiz natural.
Por outro lado, não se vislumbra que, em tal despacho, o Exmº Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura tenha violado os seus poderes discricionários, pois o mesmo foi feito ao abrigo de uma disposição da LOSJ.
Igualmente não se constata que do mesmo se produza a violação de qualquer princípio constitucional, como o da especialização, do acesso ao direito ou das necessárias garantias de defesa do arguido, seja pelo facto de a especialização constituir, tão-somente, uma meta a atingir e não, pelo menos por agora, uma regra constitucional, seja pela circunstância óbvia de que quando um juiz de instrução intervém em actos de natureza jurisdicional o fazer, evidentemente, na qualidade de juiz de instrução, assim se garantindo os direitos, liberdades e garantias do arguido e o seu pleno acesso ao direito, ficando aquele impedido de participar no julgamento do arguido se este vier a ser acusado ou pronunciado.
O despacho em causa reporta-se a um acto de mera organização judiciária, que não contende com quaisquer direitos constitucionais do arguido no exercício da sua defesa, nem se mostra violador de qualquer preceito legal ou constitucional.
Nessa medida, nenhuma crítica é de assacar ao despacho recorrido, quando determinou a prestação das declarações para memória futura da ofendida – preenchendo-se quanto a esta, sem nenhuma dúvida, o estatuído no nº1 do Artº 271 do CPP, atento o facto de ser de nacionalidade ..., viver fora de Portugal e apenas estar em território português no período em que tais declarações foram marcadas - e procedeu à sua realização, já que o Mmº Juiz a quo tinha competência material para tanto.
Assim sendo se conclui, sem necessidade de considerados complementares que a singeleza do caso não justifica, pela improcedência do recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido, considerando-se válidas as declarações para memória futura prestadas pela ofendida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça pelo mínimo legal.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 12 de Julho de 2023
Renato Barroso (Relator)
Beatriz Marques Borges (Adjunta)
João Gomes de Sousa (Adjunto)