Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
868/11.5TABJA.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PEDIDO IMPLÍCITO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Deve entender-se que requereu, ainda que implicitamente, a sua constituição como assistente o queixoso, com obrigatoriedade de se constituir como assistente que, no decurso do prazo estabelecido para a prática do ato processual previsto no artigo 285º do C. P. Penal, deduziu acusação particular, e, não tendo embora pedido no mesmo, formal e expressamente, a sua constituição como assistente, invocou nele, sempre, esse estatuto, e juntou prova documental que havia pago a taxa de justiça devida, encontrando-se devidamente representado por advogado, assim demonstrando, portanto, que reunia todos os requisitos de que dependia a sua admissão nessa qualidade.
II - Não deve, nas apontadas circunstâncias, apenas com fundamento na falta de pedido expresso de constituição como assistente, ser rejeitada a acusação particular.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

No âmbito da instrução nº 868/11.5TABJA, a correr termos na secção competência genérica – J1, da instância local de Ourique, comarca de Beja, foi proferido pelo JIC despacho que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguidos OMR e AMGS, devidamente identificados nos autos, no sentido de que fosse declarada a falta de um dos pressupostos de que depende o prosseguimento dos autos por o queixoso, apesar de ter apresentado acusação particular, não ter requerido a sua constituição como assistente.
Inconformados com tal despacho, dele interpuseram recurso os arguidos, pretendendo a sua revogação e substituição por outro que, com fundamento na invalidade da acusação particular por falta de legitimidade do queixoso para a prática desse acto, determine o arquivamento dos autos, para o que formularam as seguintes conclusões:

1. O Queixoso, ora Recorrido, veio deduzir acusação particular contra os Arguidos, Recorrentes, imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de difamação (p.p. art. 180.º do CP), sem, no entanto, alguma vez ter requerido a respetiva constituição de Assistente nestes autos;
2. Inconformados, os Arguidos, Recorrentes, requereram a abertura de instrução, arguindo a nulidade deste procedimento criminal;
3. Não obstante, o Meritissimo Senhor Juiz de Instrução ad quo, veio considerar, que o Queixoso, ainda assim, teria legitimidade para deduzir Acusação Particular, concluindo pela respetiva validade;
4. Acudindo à nossa jurisprudência, na decisão judicial em apreciação, o Meritissimo Senhor Juiz ad quo, invocou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 4677/02-3, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo 21766/99, e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 0004973.
5. No entanto, impõe-se a referência ao Acórdão Fixador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 966/08.2GBMFR.L1, que clarificou esta matéria: “A constituição como assistente, a queixa e a acusação particular são pois condições de procedibilidade cuja não verificação acarreta a ilegitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal”; “Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal.”
6. Ora, atento o circunstancialismo presente neste caso concreto, e sendo certo que (i) a constituição como Assistente é requisito legal imperativo para o prosseguimento de qualquer processo criminal desta natureza (art.º 50º nº1 CPP), (ii) articulado com o facto de ser perentório o prazo estipulado para esse mesmo efeito, o qual (iii) já caducou nestes autos, somos forçados a concluir que naquela mesma data em que operou a caducidade do prazo, ficou absolutamente precludida a hipótese do Queixoso, ora Recorrido, se vir constituir Assistente.
7. E que, simultaneamente, passou a impender sobre o Ministério Público a obrigatoriedade de proceder ao arquivamento dos autos, porquanto, carecia de legitimidade para fazer os mesmos prosseguir regularmente (277º, última parte).

O recurso foi admitido.
Na resposta, o MºPº pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, defendendo a manutenção do despacho recorrido, para o que concluiu como segue:

1. O douto despacho colocado em crise não merece qualquer reparo.
2. Nos presentes autos o ofendido ofereceu requerimento subscrito por advogado, embora sem apresentação (tempestiva) de procuração, pagou a respectiva taxa de justiça e apresentou-o no prazo legal.
3. A constituição de assistente materializada daquele modo não poderá ser considerada inexistente, dado que ali se lê “AJP, assistente nos autos à margem indicados vem ao abrigo do artigo 50.º, 285.º e 77.º do C.P. Penal…”.
4. O requerente tinha o propósito da sua constituição como assistente, embora vertida de modo imperfeito, mas implicitamente materializada, isto é, na lógica e no encadeamento das expressões referidas, na conclusão 3, naquele requerimento, sempre se alcança o desiderato da (prévia) constituição de assistente no prazo legal pelo ofendido.
5. Tal não afronta os artigos 50.º, 68.º, 70.º, 246.º, n.º 4, todos do Código Processo Penal.
6. E, não se afasta da jurisprudência fixada no aresto de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 966/08.2GBMFR.L1.

Nesta Relação a Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no qual, admitindo que o pedido de constituição de assistente deve, em princípio, ser formulado de modo explícito e que o ofendido não o formulou de forma expressa, considera, à semelhança do entendimento seguido no despacho recorrido e conforme defendido na resposta do MºPº na 1ª instância, à qual adere, que a inexistência de uma formulação explícita desse pedido não determina, por si só, que sejam desencadeadas as consequências da falta de legitimidade enquanto assistente, devendo entender-se, no caso, que o ofendido, que reunia os requisitos de que dependia a sua constituição como tal, ao invocar esse estatuto e demonstrando ter pago a taxa de justiça devida para o efeito, o requereu implicitamente, pelo que a prevalência dos elementos substanciais justifica a admitida constituição e intervenção como assistente do mesmo, não colhendo por isso a tese defendida no recurso, por cuja improcedência se pronunciou.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., tendo os recorrentes apresentado resposta na qual, manifestando a sua discordância em relação à posição concordante do MºPº em ambas as instâncias, retomaram a argumentação com que sustentaram a sua pretensão recursiva.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
Revestem-se de interesse para a decisão do recurso as seguintes ocorrências processuais:
- o ofendido apresentou, em 14/11/11, queixa contra os arguidos, imputando-lhes a prática de factos susceptíveis de integrar crime de difamação através dos meios de comunicação social (fls. 4-7);
- realizadas as diligências de investigação consideradas como pertinentes, o MºPº, considerando que o crime indiciariamente praticado pelos arguidos tem natureza particular, dependendo o respectivo procedimento criminal de acuação particular em face do disposto no nº 1 do art. 188º do C. Penal, determinou, em 21/5/13, que o queixoso e o seu mandatário fossem notificados “para, em 10 dias, querendo, requerer a sua constituição como assistente nos autos, sob pena do processo ser arquivado quanto aos crimes de injúrias – cfr. art.ºs 68º, n.º 2, 246º, n.º 4, e 50º, n.º 1, todos do C.P.P.” ( fls. 234 );
- no cumprimento desse despacho, foi o mandatário do ofendido notificado por via postal registada enviada em 29/5/13 ( fls. 235 ) e o seu constituinte através de carta registada com prova de recepção, na qual vinha indicado o valor da taxa de justiça a pagar e esclarecidos todos os procedimentos a seguir, que foi enviada na mesma data e recebida no dia imediato ( fls. 236- 237vº );
- em 12/6/13 deu entrada em juízo a acusação particular e o pedido de indemnização civil deduzidos pelo ofendido, que aí logo se identificou com o nome seguido da expressão “assistente nos autos à margem identificados” e também sempre se autodenominou como “assistente” ao longo da descrição fáctica constante da acusação, mencionando afinal a junção de “comprovativo do pagamento da taxa de justiça” ( fls. 238-244 );
- tal comprovativo ( fls 246 ), que acompanhou aquela peça, descreve a taxa de justiça como relativa a “Constituição de assistente” e o montante pago, em 7/6/13, de “102 €”, corresponde, efectivamente, ao valor devido para aquele efeito, aliás coincidente com o que ao ofendido já havia sido indicado aquando da notificação acima referida;
- na sequência, o MºPº determinou a apresentação dos autos ao JIC “para apreciação e decisão sobre a requerida constituição de assistente”, à qual nada opôs por considerar mostrarem-se preenchidos todos os pressupostos legais ( fls. 249 );
- ordenado que foi o cumprimento do disposto no art. 68º nº 4 do C.P.P. ( fls. 251 ), e cumprido ( fls252 e 253 ), só o arguido OMR veio informar nada ter a opor à constituição de assistente “desde que cumpridos os formalismos previstos no disposto no art. 68.º, n.º 2 do Código de Processo Penal” e desde que o pedido não tenha sido intempestivo ( fls. 256 );
- foi, então, em 4/11/13, proferido despacho que admitiu a intervenção do ofendido nos autos com a qualidade de assistente ( fls. 264 ), que foi notificado aos defensores dos arguidos por via postal registada enviada em 5/11/13 ( fls. 266 e 267 );
- no fim do inquérito, os arguidos vieram, em 4/12/13, requerer a abertura da instrução, suscitando várias questões de facto e de direito, nenhuma das quais relacionada com a admissão do ofendido como assistente ( fls. 285-303 );
- só em 30/10/14, na acta de inquirição de testemunhas e debate instrutório ( fls. 496-498 ), apresentaram requerimento (?) nos seguintes termos: “Está em causa um processo de natureza particular que nos termos da Lei Penal impõe queixa, constituição de assistente e apresentação de uma acusação particular. Nos presentes autos, embora tenha apresentado uma acusação particular o lesado não requereu a sua constituição como assistente, faltando um dos pressupostos do qual depende o prosseguimento dos presentes autos, entendem assim os arguidos que deverá ser proferido despacho de não pronúncia.
Mais se diga que o facto ora invocado só hoje foi do conhecimento arguidos, uma vez que estes não tinham sido notificados de qualquer requerimento com o pedido da constituição de assistente, até porque, tendo em conta o acima referido este nunca foi solicitado.”;
- cumprido o contraditório, tanto o MºPº como o assistente se vieram pronunciar no sentido da ausência de razão da parte dos arguidos, o primeiro considerando que alguma irregularidade que eventualmente possa ter existido já estaria sanada por não ter sido atempadamente arguida ( fls. 525 ), e o segundo sustentando que nos casos, como o presente, em que a constituição como assistente é obrigatória, não é necessário requerê-la ( fls. 526 )
- foi, de seguida, proferido o despacho recorrido, cujo teor, na parte que apara aqui interessa, é o seguinte:

O presente processo teve origem em queixa apresentada por AJP contra os arguidos, em 11/11/2011.
O Ministério Público, em 21/05/2013 determinou a notificação do queixoso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 246.º do Código de Processo Penal.
Posteriormente, o queixoso, apresentou requerimento onde deduz, na qualidade de assistente, “acusação particular”, bem como pedido de indemnização civil.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 68.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, tendo os arguidos manifestado a sua não oposição à constituição como assistente por bando do queixoso, cumpridos que fossem os requisitos do artigo 68.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
A constituição como assistente foi admitida por despacho transitado em julgado de fls. 264.
Os arguidos requereram a abertura de instrução, e já em sede de diligência com vista à inquirição de testemunhas, que precedia o debate instrutório vieram alegar que o queixoso não requereu formalmente a sua constituição como assistente, pressuposto do qual depende o prosseguimento dos autos.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a existir alguma irregularidade a mesma se encontraria sanada, cfr. fls. 525.
E o queixoso/assistente alegou que sendo a constituição como assistente obrigatória no caso de crime de natureza particular como o dos presentes autos, nada havia que requerer bastando efectuar o pagamento da taxa de justiça devida, cfr. fls. 526.
Apreciando e decidindo,
AJP apresentou oportunamente queixa contra os arguidos, OMR e AMGS.
O Ministério Público, findo o inquérito notificou o queixoso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 246.º do Código de Processo Penal atenta a natureza particular dos crimes em causa.
Em 12/06/2013 AJP deu entrada requerimento dirigido ao “Exmo Senhor Doutor Procurador Adjunto”, no qual AJP, “assistente nos autos à margem identificados, vem, ao abrigo do disposto nos arts.º 50.º, 285.º e 77.º do C.P.Penal, e do art.º 188.º do C. Penal deduzir acusação particular”.
No aludido requerimento, o queixoso já se reporta a si próprio como assistente.
Conclui o respectivo requerimento pretendendo que a acusação deverá ser julgada procedente por provada, e em consequência serem os arguidos julgados e condenados pela prática de crime de difamação, com publicidade, bem como condenados no pagamento do pedido de indemnização civil supra formulado.
Procede depois à indicação dos meios de prova e à junção de procuração forense e de talão comprovativo do pagamento de “taxa de justiça devida pela constituição de assistente”.
Ora, na situação em apreço é manifesto que o queixoso não requereu a sua constituição como assistente em momento anterior ao da dedução da acusação particular nem, tão pouco, neste mesmo requerimento, solicitou tal tipo de intervenção – aduz é já possuir tal qualidade sem, contudo, existir qualquer decisão judicial nesse sentido.
Nos termos do artigo 68.º do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos, bem como as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento.
Ainda de acordo com aquela norma, os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento e, nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos. O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho, que é logo notificado àqueles.
Os assistentes são sempre representados por advogado e podem ser por este acompanhados nas diligências em que intervierem – artigo 70.º do Código de Processo Penal.
A constituição de assistente dá lugar ao pagamento de taxa de justiça (cf. artigos 519.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais).
A redacção actual do artigo 68.º do Código de Processo Penal, veio estabelecer de forma explícita que Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º.
Daqui decorre que, apresentada acusação particular e requerida, em simultâneo, a constituição de assistente, a apreciação daquele requerimento dependa da prévia apreciação do pedido de constituição de assistente, com respeito pela formalidade estabelecida no n.º 4 do artigo 68.º do Código de Processo Penal – na certeza de que, caso se conclua no sentido da inadmissibilidade da constituição de assistente, fica necessariamente prejudicada a procedência da acusação particular.
Em princípio, o pedido de constituição de assistente é formulado de modo explícito.
Não se afigura no entanto que a inexistência de formulação explícita desse pedido determine, por si só, que sejam desencadeadas as consequências da falta de legitimidade enquanto assistente.
Mesmo no âmbito do direito processual e sem prejuízo das normas que estabelecem regras imperativas e de preclusão, deve prevalecer a substância em detrimento da forma.
Neste mesmo sentido vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 4677/02-3, ou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo 2176/99, ou ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 0004973.
Ora, não pode deixar de entender-se que requereu, ainda que implicitamente, a sua constituição como assistente o queixoso, com obrigatoriedade de se constituir como assistente que, no decurso do prazo estabelecido para a prática do acto processual previsto no artigo 285.º, do Código de Processo Penal, deduziu acusação particular e, não tendo embora pedido no mesmo, formal e expressamente, a sua constituição como assistente, invocou nele, sempre, esse estatuto e juntou prova documental que havia pago a taxa de justiça devida, encontrando-se devidamente representado por advogado, assim demonstrando, portanto, que reunia todos os requisitos de que dependia a sua admissão nessa qualidade; não deve nas apontadas circunstâncias, apenas com fundamento na falta de pedido expresso de constituição como assistente, ser rejeitada a acusação particular.
Entendemos pois que não se verifica qualquer irregularidade sendo admissível, nos termos em que o foi, a constituição de assistente por parte do queixoso AJP, e, ainda que tal pretensão não se mostre expressamente formulada, termos em que se indefere o requerido pelos arguidos.
Notifique.

- posteriormente, veio a ser proferida decisão instrutória, de não pronúncia relativamente ao arguido OMR e de pronúncia quanto ao arguido AMGS ( fls. 539-547 ), da qual não foi interposto recurso.



3. O Direito
Atentas as conclusões do recurso, a única questão submetida à nossa apreciação reside em determinar se, no caso, a ausência de requerimento expresso do ofendido para se constituir como assistente acarreta a ilegitimidade do MºPº para exercer a acção penal, inquinando a acusação particular em virtude de, ultrapassado o prazo peremptório estipulado para o efeito, se mostrar precludida a possibilidade de se vir a constituir como tal.

Antes de entrarmos no conhecimento do recurso, coloca-se uma questão prévia, que se prende com o facto de também o arguido OMR figurar como recorrente no recurso que tem unicamente como objecto o despacho acima transcrito, embora a sua eventual procedência pudesse reflectir-se na decisão instrutória.
Sucede que, tendo o referido arguido, antes mesmo da data em que foi interposto o recurso, sido despronunciado ( com o consequente arquivamento dos autos quanto a ele ), por decisão que, em relação a ele, transitou, deixou de ter necessidade de usar o recurso como meio processual de procurar realizar a sua pretensão, que no caso se materializava na não submissão a julgamento pela prática do crime que lhe vinha imputado na acusação particular. Ou seja, obtido o efeito pretendido com o RAI, este arguido deixou de ter interesse em agir.
Assim sendo, e visto o disposto no nº 2 do art. 401º do C.P.P., não reúne as condições necessárias para recorrer. Pelo que o recurso, na parte que lhe respeita, não devia de ter sido admitido em face do disposto no nº 2 do art. 414º nº 2 do C.P.P. Mas, tendo-o sido, e porque a decisão que o admitiu não vincula este tribunal, como expressamente estatuído no nº 3 desse preceito, tem de ser rejeitado na parte que lhe respeita.

O recorrente defende que, sendo a constituição como assistente imperativo legal para o prosseguimento dos autos por crime de natureza particular, e sendo peremptório o prazo estabelecido na lei para a formulação do correspondente requerimento, o facto de o ofendido não ter requerido a sua constituição como tal durante esse prazo implica a preclusão do direito à prática do acto em questão, pelo que o MºPº carecia de legitimidade para fazer prosseguir os autos, devendo ter procedido ao respectivo arquivamento.
Diferentemente, o despacho recorrido, apesar de reconhecer que o requerimento para que o ofendido seja admitido a intervir nos autos como assistente, imprescindível quando, como é o caso, esteja em causa crime de natureza particular, deva ser, em princípio, formulado de modo explícito, considera que a simples falta de pedido expresso, quando o ofendido demonstrou reunir todas as condições para se constituir como assistente, invocando essa qualidade na acusação particular que deduziu e tendo pago a taxa de justiça devida, não constitui fundamento para a rejeição de tal acusação.

São singelas as razões pelas quais concordamos com o entendimento seguido no despacho recorrido.
Em primeiro lugar, o caso não se configura como falta de legitimidade do MºPº para exercer a acção penal, uma vez que o ofendido foi admitido a intervir nos autos como assistente e deduziu acusação particular. Nessa medida, o vício que o recorrente aponta situa-se a montante, antes do despacho que o admitiu a intervir como tal. Consistiu, em concreto, na ausência de pedido expresso nesse sentido. Falha essa que, não se encontrando expressamente cominada na lei como nulidade, não passará de uma mera irregularidade por força das disposições conjugadas dos nºs 1 e 2 do art. 118º do C.P.P. Não se vislumbrando que a mesma pudesse afectar o valor do acto praticado, tanto mais que o ofendido tinha legitimidade para se constituir como assistente e procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida para o efeito, tal irregularidade devia ter sido arguida, de acordo com o estabelecido no nº 1 do art. 123º do C.P.P., “nos três dias seguintes a contar daquele em que [os interessados, que a ele não assistiram] tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”. Ora, resulta da resenha dos autos que acima fizemos, que a arguição, feita apenas quando já decorria a instrução, é claramente intempestiva, e de nada serve aos arguidos o protestado desconhecimento que fazem decorrer do facto de não terem sido notificados de qualquer requerimento com o pedido de constituição de assistente. Não o foram, nem teriam de ser, não impondo o disposto no nº 4 do art. 68º do C.P.P. o envio de cópia do requerimento, mas sim, e apenas, que lhes seja dado conhecimento da sua existência, para que tenham possibilidade de se pronunciarem sobre a admissibilidade da pretensão, assim se cumprindo plenamente o contraditório. Além disso, se alguma dúvida houvesse, sempre poderiam ter procedido à consulta dos autos.
Assim sendo, é forçoso concluir que a irregularidade há muito que já se encontrava sanada no momento em que foi arguida.
Mas, ainda que assim se não entendesse, há que ter em atenção que o que a lei visa, ao impor, nos crimes de natureza particular, a constituição como assistente, a queixa e a acusação particular como condições de procedibilidade de cuja verificação depende a legitimidade do MºPº para exercer a acção penal, é engajar o ofendido na tramitação processual quando esteja em causa uma criminalidade de menor gravidade, em que devem prevalecer interesses de natureza particular, ficando a respectiva perseguição criminal na sua disponibilidade.
Exige-se, pois, que através daqueles actos o assistente demonstre de forma inequívoca que pretende a instauração e o prosseguimento dos autos em ordem à submissão a julgamento do(s) agente(s) do(s) crime(s).
Ora, essa intenção resulta claramente dos actos praticados pelo ofendido, ao autodenominar-se como assistente na acusação particular que deduziu e ao proceder ao pagamento da taxa devida pela constituição como assistente, como também foi entendida pelo titular do inquérito, ao determinar a apresentação dos autos à JIC “para apreciação e decisão sobre a requerida constituição sobre a constituição de assistente”, e por esta ao ordenar o cumprimento do disposto no nº 4 do art. 68º do C.P.P. e, subsequentemente, ao admitir a intervenção do ofendido nos autos com essa qualidade.
Dir-se-á, acompanhando o que já se disse no despacho recorrido, que o pedido de constituição de assistente, deve ser formulado, em princípio, de modo explícito, desde logo porque a lei fala em “requerimento”. No entanto, não vemos que, para a consubstanciação desse acto, tenha necessariamente de haver uma exigência maior do que aquela que comumente se faz em relação à queixa. Se, em relação a esta, o C. Penal não exige uma forma específica, bastando que da forma utilizada resulte a intenção inequívoca do titular do direito de que seja instaurado procedimento criminal relativamente aos factos através dela transmitidos, cremos também não haver fundamento para que não se possa deduzir, dos actos concludentes praticados em concreto pelo ofendido, que a intenção deste era, efectivamente, tal como foi percepcionada, e sem margem para dúvidas, a de se constituir como assistente[1].
Por último, deixa-se consignado que, ao contrário do que pretende o recorrente, a interpretação subjacente ao despacho recorrido em nada contraria a jurisprudência que o AUJ 1/2011[2] fixou no sentido de que “em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal.” A questão ali tratada não é a mesma que constitui o objecto do presente recurso. Enquanto que ali se tratava de saber se, em procedimento dependente de acusação particular, a não apresentação do requerimento para constituição como assistente, no prazo de 10 dias, a contar da advertência contida no n.º 4 do art. 246º do C.P.P., precludia, ou não, o direito de o ofendido se constituir como assistente, o que aqui se cuidou de apreciar foi, tão-só, saber se um requerimento dessa natureza tinha necessariamente, de ser formulado de modo explícito, ou se podia ser inferido de actos inequivocamente demonstrativos de que era essa a pretensão do ofendido, sendo certo que estes foram praticados dentro do prazo acima aludido.
Tendo concluído neste segundo sentido, e pelas demais considerações antes expendidas, não pode ser atendida a pretensão do recorrente.


4. Decisão
Pelo exposto, rejeitam o recurso, no que ao arguido OMR concerne, e julgam-no, quanto ao mais, improcedente, mantendo na íntegra o despacho recorrido.
Vai cada um dos recorrentes condenado em 3 UC de taxa de justiça

Évora, 16 de Junho de 2015

Maria Leonor Esteves

António João Latas

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[1] Em sentido idêntico, o c. RE 5/11/09, proc. nº 36/07.0TASLV-A.E1 ( “1. É de entender-se que existe um pedido implícito de constituição de assistente quando a ofendida dispondo de legitimidade para o efeito e no decurso do prazo estabelecido no art. 287.º, n.º1, alin. b) do CPP requereu a abertura da instrução e invocou nele sempre esse estatuto, demonstrando ainda ter efectuado o pagamento da taxa de justiça devida por tal constituição e estar representada por advogado. 2. Evidenciando-se que a recorrente reunia os requisitos de que dependia a sua admissão como assistente, apesar de não ser esta a forma recomendável para deduzir tal pretensão, a prevalência dos elementos substanciais justifica que, estando inequivocamente evidenciada a pretensão e cumpridos os demais pressupostos, deva conhecer-se a mesma.” )
[2] D.R. 1ª s. de 26/1/11.