Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3182/16.6T8STB.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
PRESCRIÇÃO DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Nos termos do artigo 16.º, nºs. 1 e 2, do DL n.º 522/85, de 31-12, à data em vigor, havendo vários lesados, a seguradora apenas se mostra obrigada ao pagamento das indemnizações aos lesados até ao montante do capital seguro, sendo os valores das várias indemnizações devidas reduzidos proporcionalmente até esgotarem tal montante.
II – Porém, caso a seguradora pague a algum desses lesados valor superior ao que lhe competia, não fica obrigada para com os outros lesados para além do montante do capital seguro, se tiver agido de boa fé e por desconhecimento da existência de outras pretensões.
III – Ou seja, se a seguradora pretender extinguir o direito à indemnização dos lesados ainda não indemnizados, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, terá de alegar e provar os factos extintivos desse direito, concretamente, os factos demonstrativos da sua boa fé e ainda que desconhecia a existência de outras pretensões quando procedeu ao pagamento das indemnizações para além do devido.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3182/16.6T8STB.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
O Estado Português (Autor), representado pelo Ministério Público, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “(…) – Companhia de Seguros, S.A.” (Ré), solicitando, a final, que a ação seja julgada totalmente procedente, devendo, em consequência, ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 62.350,02, relativa ao militar (…) e correspondente aos salários pagos pelo Autor durante o período em que este esteve totalmente incapacitado para o trabalho, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, no dia 04-10-2007, pelas 00h40, (…), cabo fuzileiro, conduzia o veículo pesado misto, de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), da Marinha Portuguesa, no Itinerário Complementar 1, doravante designado IC1, sentido Grândola - Alcácer do Sal, e, no exercício das suas funções, seguia como ocupante, entre outros, sentado num banco da retaguarda, colocado lateralmente ao centro do veículo, o militar 1.º Marinheiro Fuzileiro (…).
Mais alegou que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava na sua traseira, a cerca de 50m, o veículo ligeiro de mercadorias, matrícula (…), propriedade de “Transportes (…), Sucessores, Lda.”, conduzido por (…); e no sentido Alcácer do Sal - Grândola circulava a viatura de matrícula (…), conduzida por (…), sendo que, ao km 58,400 do ICI, quando a viatura de matrícula (…), circulava na sua faixa, o veículo de matrícula (…) invadiu a sua faixa e passou a circular totalmente na metade esquerda da sua faixa de rodagem, tendo o condutor do veículo (…), em virtude do sucedido, desviado o seu veículo para a berma asfaltada, mas ainda assim, o veículo (…) embateu com a sua parte frontal na parte frontal do veículo (…), o que levou a que esta viatura seguisse uma trajetória desgovernada e tivesse capotado pelo menos três vezes até se imobilizar.
Alegou ainda que o veículo (…) embateu igualmente na traseira do veiculo (…).
Em face deste acidente, o militar (…) e os seus camaradas foram sendo projetados violentamente uns contra os outros e para fora do veículo (…), caindo violentamente no solo, tendo o referido militar sofrido politraumatismos, entre os quais, fratura da bacia e traumatismos dos membros inferiores, onde se destaca a luxação de ambos os joelhos, e tido alta clínica em 17-05-2013, ficando portador de uma incapacidade total permanente de 40,0%.
Alegou, por fim, que, entre 04-10-2007 e 17-05-2013, a Marinha Portuguesa pagou, a título de salários, ao militar (…), a quantia de € 62.350,02, sendo que o acidente se ficou a dever, única e exclusiva, ao condutor do veículo (…), que, desse modo, se constituiu na obrigação de indemnizar, nos termos dos artigos 483.º e 487.º do Código Civil, encontrando-se transferida a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação daquela viatura, através da apólice (…), para a Ré.
A Ré “(…) – Companhia de Seguros, S.A.” contestou, solicitando, a final, a procedência das exceções invocadas, devendo a Ré ser absolvida do pedido.
Em síntese, invocou a Ré que celebrou com (…) um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º (…), através do qual transferiu para aquela a sua responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo (…), com o limite de € 600.000,00 no que respeita à responsabilidade civil obrigatória, a que acresciam € 400.000,00 a título de responsabilidade civil facultativa.
Argumentou ainda, por exceção, que, na ocasião do acidente, o veículo (…) havia sido furtado, tendo o seu proprietário apresentado queixa do furto, pelo que se mostra excluída a responsabilidade da Ré relativamente ao seguro facultativo.
Invocou, também, uma vez que o referido acidente causou danos a várias pessoas e entidades, sendo o valor seguro insuficiente para o ressarcimento de todos os danos, no cumprimento do art. 16.º do D.L. n.º 522/85, de 31-12, então em vigor, que chegou a acordo com diversos lesados quanto à redução proporcional das indemnizações, tendo já pago a muitos dos lesados o montante global de € 540.749,89, correspondendo tal valor ao rateio efetuado com os lesados, restando, portanto, disponível do capital da apólice apenas o montante de € 59.250,00, havendo ainda outros lesados a indemnizar, cujos danos excederão este montante, pelo que haverá de proceder ao rateio entre eles do capital disponível.
Argumentou igualmente que o acidente ocorreu em 04-10-2007 e a Ré foi citada em 06-05-2016, pelo que decorreram mais de oito anos entre a data do acidente e a citação da Ré, pelo que os eventuais direitos do Autor se encontram prescritos, nos termos do artigo 493.º do Código Civil.
Alegou ainda que, havendo ainda vários lesados a indemnizar, e sendo provável que o valor das indemnizações ultrapasse o capital disponível, a eventual condenação da Ré não deverá ter como objeto um valor concreto, mas o valor que resultar do rateio com os demais lesados ainda não indemnizados.
Por fim, veio requerer a intervenção principal provocada da Caixa Geral de Aposentações, por ter um direito a indemnização relativa às prestações que efetuou aos vários lesados do acidente, sendo que o capital disponível pela Ré se mostra insuficiente para pagar a indemnização do Autor, à Caixa Geral de Aposentações e a um terceiro de que tem conhecimento, pelo que sempre se terá de proceder ao rateio do capital remanescente.
O Autor, representado pelo Ministério Público, veio responder, alegando, em síntese, que o prazo de prescrição é de 15 anos e que a ação deve prosseguir os seus termos.
Mais alegou, quanto à intervenção solicitada, que se opõe, por considerar não se verificarem os requisitos previsto no artigo 316.º do Código de Processo Civil, e que, quanto ao rateio, a invocada necessidade de rateio do capital disponível não se mostra comprovada, sendo que, caso tenda a Ré liquidado aos outros lesados indemnizações superiores às que lhes competiam por rateio, só ficaria desobrigada do limite do capital se se encontrasse de boa-fé, por desconhecer a existência da pretensão de outros lesados, nos termos do art. 24.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, o que não aprece verificar-se, tanto mais que o Autor tem vindo a interpelar a Ré para o pagamento do montante devido desde 12-11-2013, sendo que num acidente como o dos autos, com vários lesados e com danos tão diversos, a Ré sempre se encontraria obrigada a prever a possibilidade de o capital seguro se mostrar insuficiente, pelo que apenas poderia proceder aos pagamentos de forma proporcional.
O tribunal de 1.ª instância admitiu, por despacho de 14-05-2018, a intervenção da Caixa Geral de Aposentações.
A Caixa Geral de Aposentações, na qualidade de demandante, veio deduzir o pedido de reembolso da importância necessária para suportar o pagamento das prestações por acidente em serviço atribuídas ao subscritor n.º (…), (…), em consequência do acidente de viação e de serviço, ocorrido no dia 04-10-2007, contra a Ré, pedindo, a final, que a presente ação seja julgada procedente e provada, sendo a Ré condenada a pagar-lhe importância correspondente ao capital necessário para suportar os encargos com a pensão vitalícia a favor de (…), como reparação do acidente ocorrido em 2007-10-04, no valor constante de declaração que protestou juntar, acrescida dos juros de mora que se vierem a vencer até integral pagamento.
Em síntese, alegou que o acidente sofrido pelo fuzileiro (…), nas mesmas circunstâncias, modo e lugar das mencionadas na petição inicial apresentada pelo Estado Português, levou a que tal acidente fosse considerado acidente em serviço.
Mais alegou que de tal acidente resultou um morte, sete feridos graves e muito graves e quatro feridos ligeiros, sendo que o veículo (…), responsável pelo acidente encontrava-se segurado pela Ré, sob a apólice (…).
Alegou igualmente que ao fuzileiro (…) foi-lhe atribuído uma IPA para o exercício das suas funções e uma IPP de 71,4%, tendo a Caixa Geral de Aposentações lhe atribuído uma pensão anual vitalícia no valor de € 5.897,33, com efeitos a partir de 23-07-2013, sendo que a Ré já pagou de indemnização ao lesado, a este título, a importância de € 30.666,66, pelo que a Ré apenas se mostra em dívida do montante que ultrapassar esta verba.
Alegou, por fim, quanto à prescrição do direito por si invocado, que o prazo de prescrição apenas se inicia a partir da data em que é proferida decisão definitiva sobre o direito à prestação, nos termos do artigo 46.º, n.º 3, do DL n.º 503/99, o que apenas ocorreu em 04-11-2016, pelo que não se mostra esgotado o prazo prescricional.
Posteriormente, a Caixa Geral de Aposentações indicou que o montante do reembolso é de € 98.155,98, já deduzido o montante recebido pela Ré a título de indemnização por dano patrimonial futuro.
A Ré “(…) – Companhia de Seguros, S.A.” veio contestar, requerendo, a final, a procedência das exceções invocadas e, em consequência, a sua absolvição.
Alegou, em síntese, que apenas restam € 59.250,00 para indemnizar todos os lesados que ainda o não foram, visto que o limite máximo da indemnização devida é de € 600.000,00, pelo que tal montante terá de ser rateado por tais lesados.
Mais alegou a prescrição do direito invocado, por terem decorrido mais de 10 anos desde a data do acidente, e mais de três desde a ocorrência de qualquer ato interruptivo, impugnando ainda os factos invocados.
Em resposta, a Caixa Geral de Aposentações manteve o já por si alegado.
Realizada a audiência prévia, não foi possível a conciliação das partes, tendo sido proferido despacho saneador, onde foi fixado o valor da causa em € 160.506,00, julgada improcedente a exceção da prescrição dos direitos, identificado o objeto do litígio e os temas de prova.
Realizado o julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida sentença em 12-02-2020, com o seguinte teor:
Pelo exposto julgo a ação procedente, por provada e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a Ré (…) – Companhia de Seguros a pagar ao Estado Português a quantia de € 62.350,02 a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação decisão até integral pagamento.
b) Condenar a Ré (…) – Companhia de Seguros, a pagar a Caixa Geral de Aposentações a quantia de € 98.155,98, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.
Custas a cargo da Ré.
Inconformada com a sentença, a Ré “(…) – Companhia de Seguros, S.A.” interpôs recurso, apresentado as seguintes conclusões:
1 – A responsabilidade da ré pelo ressarcimento dos danos resultante do acidente dos autos encontra-se limitada a € 600.000,00.
2 – Desse mesmo acidente resultaram vários lesados.
3 – Entre 21-9-2010 e 5-1-2011, a recorrente pagou a diversos lesados a quantia total de € 540.749,89, restando disponíveis no capital seguro € 59.250,11.
4 – O valor da condenação nos presentes autos excede o valor disponível do capital seguro em € 101.255,90.
5 – Os direitos das ora recorridas apenas se tornaram efectivos e líquidos em 2013, no que ao autor diz respeito e em 2016 no que se refere à interveniente.
6 – A recorrente não poderia aguardar seis ou nove anos para indemnizar total ou parcialmente os restantes lesados.
7 – Quando os pagamentos acima referidos foram fitos, a recorrente não podia conhecer os direitos dos autores por os mesmos não existirem ou pelo menos não se encontravam quantificados.
8 - Assim, estes direitos não podiam ser conhecidos da ré na ocasião dos pagamentos efectuados.
9 – A recorrente quando efectuou os pagamentos referidos não conhecia, nem podia conhecer, o direito das apeladas.
10 - Pelo que não está obrigada perante estas senão até à concorrência do capital seguro.
11 - Por se tratar de prova negativa e como tal impeditiva do direito da apelada, caberia às recorridas o ónus da prova da má fé da recorrente.
12 - A douta sentença recorrida violou os artigos 16.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, as disposições procedimentais do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto e o artigo 341.º do Código Civil
13 – Face ao exposto, a condenação da ré deverá ser limitada ao valor de € 59.250,11, a ratear por ambas as recorridas.
O Autor Estado Português, representado pelo Ministério Público, contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1- A recorrente interpõe recurso da sentença que determinou a sua condenação ao pagamento de indemnizações aos lesados, que excedem em € 101.255,90 o montante limite do capital seguro – de € 600.000,00, com violação do disposto no artigo 16.º do Dec.-Lei 522/81, as disposições procedimentais do DL 291/2007 de 21.08 e o artigo 341.º do C. Civil;
2- A recorrente inicia por discordar de matéria que foi declarada como não provada, sem que, no entanto, tenha impugnado a matéria de facto;
3- Foi o facto da Ré não ter logrado provar que efetuou os pagamentos aos lesados de forma rateada entre eles, associado ao facto de não ter logrado provar que desconhecia da existência de outras pretensões, que determinou a não aplicação do disposto no art.º 16.º, nº 2, do DL 522/81;
4- De acordo com o disposto no artigo 16.º de tal diploma, a recorrente não logrou provar a sua boa fé ou o desconhecimento da existência de outras pretensões;
5- Não podia, pois, deixar de vir a ser condenada nas quantias peticionadas, ainda que as mesmas fizessem ultrapassar o limite do capital seguro;
6- A realização de tal prova cabia à recorrente, Ré nos autos, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do C. Civil;
7- Quando procedeu à contestação do pedido do A. Estado Português, teria de ter invocado e provado os fatos “impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do A.” – o seja a sua boa fé e o desconhecimento da existência de outras pretensões”, o que não fez;
8- A Ré, no âmbito do contrato de seguro, efetuou, no período compreendido entre 21.09.2010 a 05.01.2011 o pagamento da quantia total de € 540.749,88 para ressarcimento dos danos sofridos pelos vários lesados. Mas não provou que as quantias que pagou aos vários lesados tenham sido o correspondente ao rateio entre eles do valor seguro;
9- Por outro lado, quando a Ré efetuou o último dos pagamentos em 05.01.2011, já a Marinha Portuguesa a tinha interpelado para proceder ao pagamento de parte das quantias que ora peticionou, sem que a Ré as tenha pago, não podendo assim, afirmar que desconhecia a existência de outros lesados;
10- Não se mostrando aceitável o argumento de que não procedeu aos pagamentos porque os mesmos não eram líquidos e exigíveis;
11- A Ré tinha conhecimento da extensão dos danos e número de lesados e da sua obrigação em ressarcir os danos por todos sofridos, logo, era sua obrigação acautelar o pagamento parcial a todos eles, de forma a não beneficiar alguns dos lesados, procedendo ao ressarcimento indiscriminado dos danos, em detrimento de outros, por ter esgotado o limite do seguro.
12- A recorrente não pode pretender fazer aplicar o disposto do artigo 16.º, n.º 2, do DL. 522/81, quando, ao longo dos anos foi fazendo pagamentos de forma aleatória, e, quando se aproximava do limite do capital seguro, invoca a necessidade de realizar rateio entre os restantes lesados;
13- Nestes termos, não tendo a Ré alegado e provado a exigência efetuada pelo artigo 16.º, n.º 2, do DL. 522/81, ónus pertencente à Ré, não pode o seu disposto ser aplicável, devendo a Ré ser responsabilizada pelo pagamento dos pedidos dos lesados nestes autos, ainda que a condenação implique a ultrapassagem do limite do capital seguro.
14- Em consequência, deve ser julgado improcedente o recurso apresentado e mantida a sentença proferida, nos seus exatos termos.
Contudo, Vs. Exas. farão a costumada JUSTIÇA!
O tribunal a quo admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos.
Dispensados os vistos legais por acordo, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, a questão que importa decidir é a de saber se se encontra, ou não, limitada a responsabilidade da Ré ao valor do capital seguro.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1) – No dia 4 de Outubro de 2007, pelas 00,40 horas, no Itinerário Complementar 1, ao Km 58,400, em Grândola, ocorreu uma colisão.
2) – Na referida colisão foram intervenientes o veículo pesado misto, de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), da Marinha Portuguesa, o veículo ligeiro de mercadorias, matrícula (…), que seguiam no sentido de marcha Grândola-Alcácer do Sal, e o veiculo ligeiro de passageiros, de marca “Ford”, modelo “Focus”, de matrícula (…), que seguia no sentido de marcha Alcácer do Sal-Grândola.
3) - O veículo pesado misto, de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), da Marinha Portuguesa, circulava à frente do veículo ligeiro de mercadorias, matrícula (…).
4) - Chegados ao Km 58,400 da referido Itinerário Complementar 1, o condutor do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula (…), decidiu deslocar-se para o lado esquerdo, saindo da hemifaixa de rodagem em que circulava e passando a circular na hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia no sentido de marcha Grândola-Alcácer do Sal.
5) - Nas descritas circunstâncias o condutor do veiculo de matrícula (…) foi embater com a parte da frente do veículo por si conduzido no veículo de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), da Marinha Portuguesa.
6) - Perante o aparecimento súbito do veiculo ligeiro de passageiros, de matrícula (…), à sua frente, o condutor do veículo pesado misto, de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), a fim de evitar a colisão, desviou-se para a direita e acionou os órgãos de travagens, contudo, não logrou evitar ser embatido na hemifaixa de rodagem em que circulava.
7) - Nessas circunstâncias o condutor do veículo automóvel matrícula (…), acabou também por não conseguir evitar o embate na traseira do veículo pesado misto, de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), da Marinha Portuguesa.
8 ) - Em consequência da colisão o condutor do veículo pesado misto, de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), da Marinha Portuguesa, perdeu o controlo da viatura que conduzia e acabou por capotar pelo menos três vezes até se imobilizar fora da faixa de rodagem em posição lateral.
9) – Em consequência das colisões o (…) e os demais camaradas que circulavam na caixa do veiculo foram projetados uns contra os outros e ainda contra as paredes laterais e acabaram por cair no solo.
10) - No local a via é composta por uma reta com visibilidade com dois sentidos de trânsito e linha descontínua separadora dos sentidos de trânsito, com 7 metros de largura, bermas asfaltadas de 2 metros de largura.
11) - Naquele local o limite geral de velocidade é de 90 Km/h.
12) – O veiculo de marca “UNIMOG”, de matrícula AP-36-07, seguia no local à velocidade de 70km/hora.
13) - No interior do veículo de marca “UNIMOG”, de matrícula (…), seguia como ocupante, entre outros, o militar 1.º Marinheiro Fuzileiro (…), sentado num banco da retaguarda colocado lateralmente ao centro do veículo.
14)- O (…) seguia fardado, munido de equipamento militar, na companhia de vários camaradas, que se encontravam a participar num exercício militar levado a cabo pela Marinha Portuguesa.
15) - Em consequência direta do referido acidente, o militar 1.º Marinheiro Fuzileiro (…) sofreu várias lesões, nomeadamente politraumatismos, entre os quais, fratura da bacia e traumatismos dos membros inferiores, com luxação de ambos os joelhos.
16) - Em consequência da colisão e atenta a gravidade dos ferimentos o (…) foi internado em unidade hospitalar onde realizou redução das luxações do joelho e posteriormente transferido para o Hospital da Marinha.
17) - Posteriormente, foi submetido a cirurgia do ramo ciático popliteu externo à direita com enxerto de safena em 14/08/2008 na cirurgia plástica.
18) - Necessitou de ligamentoplastia do joelho direito em Julho de 2010 para reparação do ligamento cruzado anterior.
19) –Na sequência dos ferimentos sofridos e dos diversos tratamentos a que teve de ser submetido o (…) manteve-se em situação de incapacidade para o trabalho, tendo estado ausente ao serviço de 4 de Outubro a 17 de Maio de 2013 e apresentava o seguinte quadro:
a- No dia 13.11.2008 (…) sofria de fratura múltipla da coluna e luxação do joelho esquerdo, com incapacidade para o trabalho.
b- No dia 26.01.2009 (…) sofria de luxação do joelho esquerdo e fraturas múltiplas da coluna, com incapacidade para o trabalho.
c- No dia 30.04.2009 (…) sofria de luxação em ambos os joelhos e fraturas múltiplas da coluna, com incapacidade para o trabalho.
d- No dia 13.07.2009 (…) sofria de luxação em ambos os joelhos e fraturas múltiplas da coluna, com incapacidade para o trabalho.
e- No dia 24.09.2009 (…) sofria de luxação em ambos os joelhos e fraturas múltiplas da coluna, com incapacidade para o trabalho.
f- No dia 18.01.2010 (…) sofria de luxação em ambos os joelhos lesão ciático popliteu externo e lesão vascular tibio-peroneal, com incapacidade para o trabalho.
g- No dia 24.06.2010 (…) sofria de luxação em ambos os joelhos lesão ciático popliteu externo, com incapacidade para o trabalho.
h- No dia 26.08.2010 (…) sofria de rotura de ligamento cruzado anterior joelho esquerdo, tendo sido operado, e luxação do joelho esquerdo, tendo sido operado e lesão ciático popliteu externo, com incapacidade para o trabalho.
i- No dia 18.04.2013 (…) sofria de hipotrofia da coxa direita, hipotrofia da coxa esquerda, sequelas de lesões ligamentares joelho direito e esquerdo, com incapacidade para o trabalho.
j- No dia 15.07.2013 (…) sofria de hipotrofia da coxa direita, hipotrofia da coxa esquerda, sequelas de lesões ligamentares joelho direito e esquerdo, com incapacidade para o trabalho.
20) - No período compreendido entre 04.10.2007 e 17.05.2013 o militar (…) foi sujeito a sucessivas avaliações em Junta Médica nos Serviços Clínicos da Marinha Portuguesa, estando inapto para o serviço.
21) - Em consequência das lesões sofridas o (…) ficou portador de uma Incapacidade total permanente de 40,4 por cento de acordo com a Tabela a Nacional de Incapacidades em vigor à data do acidente.
22) – O (…) teve alta clínica em 17 de Maio de 2013 e passou à reserva de Disponibilidade nos termos da alínea c), n.º 2, artigo 300.º do Decreto-Lei n.° 197/2003, de 30 de agosto (EMPAR).
23) - No período compreendido entre 04 de Outubro de 2007 a 17 de Maio de 2013 foram processados pelo Estado – (Marinha Portuguesa) – ao militar (…), vencimentos, subsídios de férias e Natal e abonos no valor global de € 62.350,02.
24) - As quantias aludidas em 23) foram pagas nas respetivas datas de vencimento, ou seja, mensalmente, conforme consta do mapa de fls. 59v a 60 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo o primeiro pagamento tido início em Outubro de 2007 e o último em Maio de 2013.
25) - Na sequência do sinistro, o Estado Português/Marinha Portuguesa interpelou a Ré, em 28/10/2010, 12/11/2013, 14/02/2014 e 16/10/2015, para que esta procedesse à regularização de despesas relacionadas com o mesmo.
26) - Até à presente data, a Ré não procedeu ao pagamento das referidas quantias.
27) - A Caixa Geral de Aposentações, IP, é uma pessoa coletiva de direito público que tem por missão gerir o regime de segurança social público em matéria de pensões de aposentação, de reforma, de sobrevivência e outras de natureza especial.
28) Em janeiro de 2014, foi requerida na Caixa Geral de Aposentações a reparação do acidente a coberto do regime de proteção social em matéria de acidentes e doenças profissionais ocorridos no domínio da Administração Pública.
29) - A Caixa Geral de Aposentações iniciou o procedimento administrativo para reparação das lesões resultantes do referido acidente de trabalho/viação.
30) - O sinistrado foi presente a junta médica da Caixa Geral de Aposentações, a qual, após diversas diligências com vista à verificação da sua situação clínica, reuniu em 19 de maio de 2015, concluindo que, das lesões apresentadas pelo sinistrado, resultou uma incapacidade permanente e absoluta para o exercício das suas funções e uma incapacidade permanente parcial, atribuindo um grau de incapacidade de 71,4%.
31) - O referido auto de junta médica foi homologado por despacho de Direção da CGA de 11 de junho de 2015.
32) - Por decisão proferida a 4 de Novembro de 2016, a Direção da Caixa Geral de Aposentações, fixou ao sinistrado (…) uma pensão por acidente em serviço – pensão anual vitalícia – no valor de € 5.897,33, a que corresponde uma pensão mensal de € 421,24, para reparação das lesões emergentes do acidente de trabalho/viação.
33) - A Ré (...) - Companhia de Seguros, SA, já havia pago ao sinistrado/subscritor (…) o montante de € 46.000,00, sendo a quantia € 30.666,66 relativo ao ressarcimento de danos patrimoniais futuros de deduzida no valor da pensão.
34) – O acidente em discussão nos autos causou danos a vários lesados.
35) - Em consequência do acidente, a Ré, no âmbito do contrato de seguro, efetuou, no período compreendido entre 21/09/2010 a 5/01/2011, o pagamento da quantia total de € 540.749,89 para ressarcimentos dos danos sofridos pelos vários lesados.
36) – Na ocasião do acidente o condutor do veiculo (…) não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir a viatura.
37) - A responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros pela circulação do veículo de matrícula (…), estava ao tempo do acidente transferida para a Ré (…) – Companhia de Seguros, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), com o limite de capital seguro de € 600.000,00.
E deu como não provados os seguintes factos:
a) Os valores pagos por conta das indemnizações aos lesados correspondem ao rateio.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se a responsabilidade da Ré se encontra, ou não, limitada ao valor do capital seguro.
1 – Responsabilidade limitada ao valor do capital seguro
Segundo a Apelada, a responsabilidade da Ré pelo ressarcimento dos danos resultante do acidente dos autos encontra-se limitada a € 600.00,00, pelo que, já tendo despendido a quantia de € 540.749,89 a indemnizar diversos lesados, apenas possui disponível o valor de € 59.250,11 para indemnizar os Apelados, sendo que os direitos destes apenas se tornaram efetivos e líquidos, respetivamente, em 2013 e 2016, não podendo a Apelante aguardar seis e nove anos para indemnizar total ou parcialmente os restantes lesados.
Alegou ainda que, quando efetuou o pagamento a demais lesados não podia conhecer os direitos dos Autores, por os mesmos não existirem ou, pelo menos, não se encontravam quantificados, pelo que apenas está obrigada perante estes até à concorrência do capital seguro.
Por fim, alegou que, por se tratar de prova negativa, e como tal impeditiva do direito da Apelante, caberia às recorridas o ónus da prova da má fé da recorrente.
Apreciemos, então.
Dispõe o artigo 16.º do DL n.º 522/85, de 31-12 (então em vigor), que:
1 - Se existirem vários lesados com direito a indemnizações que, na sua globalidade, excedam o montante do capital seguro, os direitos dos lesados contra a seguradora ou contra o Fundo de Garantia Automóvel reduzir-se-ão proporcionalmente até à concorrência daquele montante.
2 - A seguradora ou o Fundo de Garantia Automóvel que, de boa-fé e por desconhecimento da existência de outras pretensões, liquidar a um lesado uma indemnização de valor superior à que lhe competiria nos termos do número anterior não fica obrigada para com os outros lesados senão até à concorrência da parte restante do capital seguro.

Resulta, assim, do citado artigo que, havendo vários lesados, a seguradora apenas se mostra obrigada ao pagamento das indemnizações aos lesados até ao montante do capital seguro, sendo os valores das várias indemnizações devidas reduzidos proporcionalmente até esgotarem tal montante; porém, caso a seguradora pague a algum desses lesados valor superior ao que lhe competia, não fica obrigada para com os outros lesados para além do montante do capital seguro, se tiver agido de boa fé e por desconhecimento da existência de outras pretensões.
Verifica-se, desde logo, que para que o cálculo errado no pagamento aos lesados efetuado pela seguradora não implique para esta o pagamento de indemnizações em montante superior ao do capital seguro, a seguradora terá de provar (visto que se trata de uma alegação da seguradora para extinguir a realização do direito invocado pelo lesado na ação – art. 432.º, n.º 2, do Código Civil) que agiu de boa fé e por desconhecimento da existência de outras pretensões.
Na realidade, e contrariamente ao alegado pela Apelante, quem pretende extinguir a realização do direito à indemnização dos lesados é a seguradora, e não o contrário, pelo que estamos perante uma situação prevista no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, competindo à seguradora, no caso à Apelante, a alegação e prova dos factos extintivos do direito invocado pelos Apelados.
Para fazer prova de tais factos extintivos, competia à Apelante alegar e provar factos demonstrativos da sua boa fé e que desconhecia a existência de outras pretensões quando procedeu ao pagamento das indemnizações para além do devido.
Ora, na situação em apreço, não só a Apelante não alegou, nem provou, quaisquer factos suscetíveis de serem enquadrados numa situação de boa fé, como se provou especificamente que, relativamente ao Estado Português, foi a Apelante, por aquele, interpelada, em 28-10-2010 (facto 25), para pagar os montantes já devidamente vencidos e liquidados (referentes a vencimentos, subsídios de férias e natal e abonos, pagos mensalmente desde o acidente – factos 23 e 24), não, tendo, porém, procedido a qualquer pagamento (facto 26). Atente-se que essa interpelação ocorreu em momento anterior ao último pagamento efetuado pela Apelante quanto aos demais lesados, o qual apenas se realizou em 05-01-2011 (facto 35), pelo que não pode a Apelante invocar que desconhecia a existência da pretensão do Estado Português ou que tal pretensão, ainda que parcialmente, não se encontrava vencida e liquidada.
Importa ainda mencionar que nem sequer se apurou (o que seria relevante para a apreciação da boa fé da Apelante), porque a Apelante não logrou provar, sendo a si que competia o ónus da prova, se os demais lesados foram integralmente ressarcidos dos seus danos ou se apenas uns o foram e outros o foram parcialmente, ou se todos o foram parcialmente, desconhecendo-se, assim, o critério que presidiu à atribuição dos montantes pagos pela Apelante aos outros lesados, designadamente, se tal atribuição foi puramente arbitrária ou não.
Cita-se, a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 08-10-2015, no âmbito do processo n.º 360/12.0T2AND.C1.S2[2]:
A seguradora demandada que pretende defender-se com a exceção ao direito do lesado demandante, consistente no esgotamento do capital segurado com o pagamento efetuado a outros lesados, tem de alegar e provar que efetuou os pagamentos em causa de boa fé ou no desconhecimento da existência de outros lesados, em obediência ao disposto no n.º 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12.

Efetivamente, o disposto no n.º 2 do artigo 16.º do DL n.º 522/85, de 31-12, tinha por objetivo evitar o favorecimento de uns lesados em detrimento de outros ou pagamentos indemnizatórios puramente arbitrários.
Conforme bem se refere no já citado acórdão do STJ:
Por isso, haveria de se proceder a rateio pelos vários lesados, de modo a que nenhum fosse prejudicado em relação ao outro ou de modo a que o lesante ou sua seguradora não pudessem escolher o lesado que quisesse favorecer com o pagamento integral do respetivo dano com a preterição dos demais lesados por esgotamento do limite com o primeiro pagamento.

Deste modo, apenas nos resta concluir nos mesmos termos da sentença recorrida, improcedendo in totum a pretensão da Apelante.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Notifique.
Évora, 11 de fevereiro de 2021
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira (vota em conformidade, nos termos do art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13-03)
Rui Machado e Moura

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura.
[2] Consultável em www.dgsi.pt.