Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
113/10.0TAVVC.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 01/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1 - O crime de violência doméstica - crime específico impróprio ou impuro e de perigo abstracto – pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coacção (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)]

2 - O bem jurídico tutelado pelo tipo é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela.

3 - A expressão “maus tratos”, fazendo apelo à “imagem global do facto”, pressupõe, no pólo objectivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.

4 - A “micro violência continuada” é punível pelo artigo 152.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial de Vila Viçosa correu termos o processo abreviado supra numerado no qual foi julgado M, casado, professor, ao qual tinha sido imputada a prática, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal.
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IC, ofendida nos presentes autos, foi admitida a intervir nos autos como Assistente por despacho de fls. 270, a fls. 306, a Assistente aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público, bem como deduziu contra o Arguido pedido de indemnização civil, no valor total de 12 264,66 €, sendo 10.000,00 € respeitantes a danos não patrimoniais e € 2 264,66 referente a danos patrimoniais.
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A final - por sentença lavrada a 29 de Junho de 2012 - veio a decidir o Tribunal recorrido, julgar procedente por provada a acusação pública e, em consequência decidiu:

a) Julgar a acusação procedente, por provada, e, consequentemente, condenar o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão.

b) Suspender a execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão aplicada ao Arguido por igual período de duração, sujeita a regime de prova, a desenvolver pela DGRS, com acompanhamento da mesma Direcção-Geral, bem como impor ao arguido, pelo tempo de duração da
suspensão da pena de prisão aplicada, as seguintes regras de conduta:


- Proceder ao pagamento de uma quantia que se fixa em € 500,00 (quinhentos euros) à Associação de Apoio à Vítima;

- Proibição de contactar IC, por qualquer meio, e bem assim de frequentar e/ou permanecer junto à residência daquela.

c) Condenar o Demandado no pagamento à Demandante IC de € 4 000,00 (quatro mil euros) a título de danos não patrimoniais; absolvendo aquele do pagamento do demais contra si peticionado.

d) Condenar o Arguido no pagamento das custas criminais do processo fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513.º, n.º1, e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).

e) Condenar a Demandante IC e o Demandado no pagamento das custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento (artigos 523.º do Código de Processo Penal e 446.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, com as seguintes conclusões:

1) O Tribunal julgou a acusação procedente, por provada, e, consequentemente, condenar o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão. (ii) Suspender a execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão aplicada ao Arguido, por igual período de duração, sujeita a regime de prova, a desenvolver pela DGRS, com acompanhamento da mesma Direcção-Geral, bem como impor ao arguido, pelo tempo de duração da suspensão da pena de prisão aplicada, as seguintes regras de conduta: - Proceder ao pagamento de uma quantia que se fixa em € 500,00 (quinhentos euros) à Associação de Apoio à Vítima; e a proibição de contactar IC, por qualquer meio, e bem assim de frequentar e/ou permanecer junto à residência daquela.

2) Da prova arrolada, e erradamente julgada como provada, não nos parece que esteja preenchido o tipo de crime de violência doméstica.

3) As declarações e regras da experiência apenas poderiam levar o tribunal a dar como não provados os factos provados 5, 6, 11, 19, 20, 21, 22, 25, 26 e 28 da sentença, tendo sido por isso incorrectamente julgados pelo tribunal como provados.

4) O arguido não cerceou a Assistente na sua vida nem atentou à sua dignidade, do depoimento da Assistente resulta que o arguido não criou condições de humilhação e atentado à dignidade humana. A tristeza da Assistente resulta do falhanço da relação e as discussões são o resultado do ciúme e personalidades do arguido e Assistente.

5) Apesar de algumas discussões terem estados de alma alterados, é a própria Assistente que declara que ela retorquia e por isso não pode haver enquadramento do tipo crime de violência doméstica quando a Assistente

6) A Assistente telefonava a quem queria e quando queria, mesmo que o arguido lhe pedisse que não o fizesse e visitava quem queria, recebia visitas em casa onde ambos residiam.

7) É evidente que a Assistente tinha expectativas em relação ao casal, que isso não foi possível, sendo certo que declarou firmemente que não se sentia limitada, e que fazia o que queria, enfrentando o arguido e tentando dar à relação o rumo que ela queria.

8) A Assistente demonstrou essencialmente sentimentos de frustração e irritação por a relação não ter tido um final feliz.

9) Não ficou demonstrado de nenhuma forma que o arguido quis maltratá-la psicologicamente ou fisicamente. E a Assistente não temeu pela sua vida ou futuro, ela mesma o declarou. E nenhuma testemunha declarou que isso se tenha passado

10) As discussões aparecem depois de a Assistente assumir uma relação passada com um homem mais novo, é esse o facto que rodeia as discussões.

11) As discussões não são iniciadas pelo arguido e em particular sobre os factos do dia 26 de Setembro de 2010, e as consequências dadas como provadas pelo tribunal são incompatíveis com as declarações da Assistente conjugadas com a da testemunha AL, GNR no local que depois de indagar sobre o estado da Assistente não viu sinais de violência ou agressões.

12) Para que exista crime de violência doméstica é o estado de agressão reiterado que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio de poder, proporcionada pelo âmbito familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante e isolada.

13) Ora, a Assistente, tendo em conta o seu depoimento gravado e em particular os trechos já detalhados na motivação deste recurso não esteve em nenhum momento numa situação de isolamento e indefesa.

14) Na verdade, e na perspectiva da Assistente, ela fazia o que queria, quando queria apesar das discussões. Ainda que as discussões causassem tristeza, essa tristeza é fruto da frustração e não da acção directa do arguido.

15) Diga-se na verdade que uma relação conturbada e que não resulta, pode dar um estado de alma de tristeza, mas configurar tal estado de alma como fruto da pressão do controlo e pressão do arguido, é no caso concreto excessivo.

16) Fica demostrado com a individualização dos trechos na motivação que a Assistente não estava indefesa, retorquia e fazia o que queria, o que por si só afasta o tipo do crime de violência doméstica.

17) A existência das discussões é evidente, e a existência de uma relação falhada também, no contexto da relação dos autos e da descrição da própria Assistente, nas discussões ainda que tenha existido algum confronto físico não são fundamento para a tipificação do crime de violência doméstica, nem todas as acções são susceptíveis de enquadrar o tipo de crime,“ ..mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que fundamentalmente traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente”. – cfr. acórdão do STJ, de 14-11-1997, CJ, ASTJ, ano V, 3.º, pág. 235

18) No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02.07.2008, Processo n.º 07P3861, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, referindo que «a conduta maltratante» deve ser «especialmente grave», do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.09.2010, Processo n.º 179/09.6TAMLD.C1, que faz referência ao «acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana», e 17.11.2010, Processo n.º 638/09.0PBFIG.C1, apelando «à intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado» para qualificar a violência doméstica, do Tribunal da Relação de Évora de 25.03.2010, Processo n.º 345/07.9PAENT.E1, que integra nos maus tratos tão-só as condutas que «revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação», do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.05.2010, Processo n.º 1379/07.9PBGMR.G1, que faz uso das expressões “especial desvalor da acção” ou “particular danosidade social do facto” para fundamenta a especificidade do crime de violência doméstica, do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.03.2011, Processo n.º 938/08.7PCCSS.L1-3, que defende que o crime de violência doméstica pressupõe, além do mais, «a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física, psíquica ou emocional, do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal», e do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2010, Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1, no qual se consigna que no crime em causa estão actos «reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima»

Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida que condenou o arguido pelo crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal
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O Digno magistrado do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, com as seguintes conclusões:

A. Nos termos do art. 127º do C.P.P., “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

B. Ou seja, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência comum e dos conhecimentos científicos;

C. A douta sentença, assentou a sua convicção acerca da factualidade dada como provada, na conjugação de toda a prova produzida e examinada em julgamento com as regras da experiência comum e normalidade da vida, tendo para o efeito recorrido ao cotejo entre os factos provados, a prova indirecta e as regras da experiência.

D. As declarações do arguido em sede de julgamento foram frontalmente contraditórias com as da ofendida e das testemunhas, limitando-se o arguido a negar quase em absoluto a prática dos factos por que vem acusado, com excepção que discutia frequentemente com a ofendida, sobre assuntos do quotidiano.

E. O Tribunal recorrido, valorou as declarações da ofendida porque credíveis de acordo com as regras da experiência comum e porque corroboradas pelas declarações das testemunhas A, B, C e D, que presenciaram parte dos factos imputados ao arguido e dados como provados.

F. Resultou provado que o arguido cerceava os movimentos da ofendida, não gostando que esta convivesse com os seus amigos, fosse ao café ou lhes telefonasse, e o facto de a ofendida admitir que muitas vezes acabou por ir mesmo contra a vontade do arguido, não afasta o desvalor da conduta do arguido, nem tão pouco afasta a angústia e o sofrimento da ofendida ao se sentir limitada e oprimida.

G. Resultou ainda provado sem qualquer dúvida que o arguido retirou o telemóvel à ofendida, de maneira a impedi-la de contactar os seus amigos e familiares, “emprestando-lhe” o mesmo ocasionalmente, ora tal facto faz todo o sentido sobretudo quando entrecruzado com o descrito em F, sendo o resultado necessário de toda a conduta assumida pelo arguido.

H. É no mínimo ridículo a posição assumida pelo arguido de acordo com a qual só ficou na posse do telemóvel da ofendida porque lho comprou – inclusive com o cartão SIM – na medida em que lhe queria oferecer um telemóvel novo, mais moderno.

I. A amiga da ofendida e aqui testemunha, EB, que prestou depoimento com sinceridade e foros de veracidade, confirmou que o arguido numa das vezes que se dirigiu com a ofendida ao seu salão disse sobre a ofendida à sua frente e para esta ouvir, “puta! Só queres é forrobodó. Andaste com um homem casado”. A testemunha A, Cabo da GNR de B, afirmou que se deslocou à residência de ambos no dia 5 de Setembro de 2010, na sequência de uma chamada telefónica, tendo a ofendida nesse momento declarado que o ofendido lhe deu uma chapada e apresentava a face esquerda vermelha, tendo o arguido declarado que “ela não sabe o que diz”.

J. A testemunha P, colega e amiga da ofendida, no agrupamento de escolas onde ambas trabalhavam, declarou que a ofendida durante o período em que se relacionou com o arguido, chorava muito nas aulas, à frente dos alunos, mostrava-se confusa e desorganizada, retraída socialmente, menos alegre e convivendo menos com colegas e amigas.

K. As testemunhas EP e D relataram ambas uma situação em que o arguido se deslocou às suas casas, sozinho e propositadamente, com fotografias da ofendida e um outro homem, nas suas palavras, “fotografias indecentes da D. I, para ficar a saber quem ela é”.

L. Ora de todos os factos dados como provados e devidamente motivados na sentença recorrida, resulta que o arguido cometeu o crime pelo qual foi condenado, pois tais factos integram os elementos objectivos que o tipo legal do mesmo tem por pressuposto, tendo resultado provado que os actos perpetrados pelo arguido e dados como provados eram adequados a infligir maus-tratos físicos e psíquicos à ofendida, injuriando-a frequentemente no período em que viveram juntos.

M. Nem se diga que o arguido não assumia um ascendente sobre a vítima pois resultou sobejamente provado das declarações das testemunhas e da própria, que o arguido lhe retirou o telemóvel, não queria que esta fosse ao café ou convivesse com os amigos e ainda que a levava ao trabalho, a acompanhava à missa, ao cabeleireiro…., tendo ainda resultado provado que em diversas ocasiões o arguido injuriou a ofendida, exibiu fotos suas sem o seu consentimento para a humilhar e vexar, e ainda que foi ofendida na sua integridade física em diversas ocasiões pelo arguido.

Por tudo o que fica exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida nos seus exactos termos, mantendo-se a condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, na pena única de 2 anos e dez meses de prisão, suspensa por 2 anos e 10 meses, sujeita a regime de prova bem como impor ao arguido durante o período da suspensão da pena as seguintes regras de conduta: proceder ao pagamento de €500,00 à Associação de Apoio à vítima e proibição de contactar IC (vítima), por qualquer meio e/ou permanecer junto à residência daquela.

O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.

B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1.O arguido é professor do ensino básico e Secundário
exerceu funções na Escola Básica Integrada de VB.


2. A assistente/ofendida é também professora e exerce funções na Escola Básica
nº 1 da M em E.


3. Arguido e ofendida conhecerem-se no dia 6 de Setembro de 2008 e em Dezembro desse mesmo ano passaram a viver em união de facto na residência da ofendida sita na Rua 1.º de Maio em RM.

4. Passado pouco tempo de iniciarem a vida em comum, o relacionamento pessoal e afectivo entre o arguido e a sua companheira começou a deteriorar-se.

5. Assim, em diversas ocasiões, desde início de 2009, sobretudo na casa onde têm residido, ou no interior dos veículos de que cada um era proprietário, após ter tomado conhecimento de um relacionamento afectivo da ofendida com um homem bastante mais novo do que ela, o arguido proferiu expressões e palavras atentatórias da sua honra e consideração, tais como “porca”, “mentirosa” e “vaca”, “esfregas-te por toda a gente”, “foste uma frustrada na vida”, “só queres é forrobodó”, “não te envergonhas de ter andado com um homem que tem idade para ser teu filho”, “cadela”, “não vales nada”.

6. Dizia-lhe ainda “ és uma deficiente” devido ao facto da ofendida ter retirado uma mama por sofrer de cancro, bem como afirmava que tinha nojo da mãe da ofendida, que vivia com aquela.

7. O arguido passou também a cercear os movimentos e os telefonemas da sua companheira IC, nomeadamente acompanhando-a de automóvel a outras localidades para irem à missa e não chegando a permitir que esta saísse do referido veículo.

8. No que respeita a telefonemas, retirava-lhe o telemóvel que esta habitualmente utilizava (de marca Samsung”, cor cinzenta com o cartão nº ) para impedir que esta o utilizasse, chegando a efectuar uma lista dos contactos telefónicos daquela.

9. O Arguido, em datas não concretamente apuradas, procurou amigas da ofendida, designadamente D e EB, a quem mostrou fotografias desta, que revelara sem o seu consentimento, com o homem mais novo com quem aquela se relacionara.

10. Ao mesmo tempo que exibia as fotografias, dizia:“Trago aqui umas fotografias indecentes para lhe mostrar para ficarem a saber quem é a I”, “ é para ficarem a saber quem é a I”, referindo-se à ofendida.

11. Em data não concretamente apurada do ano de 2009, a ofendida deslocou-se ao salão de cabeleireiro de EB em RM acompanhada pelo arguido e ali chegados, o arguido, em tom de voz alterado, dirigiu-se à dona daquele estabelecimento dizendo: “A Dona I é uma puta, só quer forrobodó”, o que deixou a ofendida nervosa, triste e a fez chorar bastante.

12. No dia 7 de Julho de 2010, o arguido ofereceu-se para levar a ofendida ao seu local de trabalho de automóvel e deu propositadamente diversas voltas em E para que esta chegasse atrasada.

13. Nessa ocasião e procurando evitar que a ofendida telefonasse para uma pessoa sua amiga, agarrou-lhe nos antebraços junto aos pulsos, provocando-lhe arranhões e dores.

14. Noutra ocasião, em 4 de Setembro de 2010, no quarto do casal da residência em que viviam, na sequência de uma discussão, o arguido desferiu um empurrão no peito da ofendida, fazendo com que caísse no chão.

15. No dia seguinte, o arguido pretendeu acompanhar a ofendida à missa que iria ter lugar em B.

16. Na sequência da discussão que encetaram acerca do veículo em que se deslocariam, a ofendida disse ao arguido que queria que ele saísse de casa.

17. Nesse momento, o arguido desferiu-lhe uma bofetada na face esquerda do rosto.

18. Em consequência directa e necessária de tais actos, IC sofreu traumatismo da face esquerda, traumatismo do terceiro dedo da mão direita, hematoma na face lateral direita da perna esquerda que determinaram um período de doença de 37 dias sem afectação da sua capacidade para o trabalho
em geral e profissional em especial.


19. No dia 26 de Setembro de 2010, por volta das 08h, no interior da residência de ambos, arguido e ofendida iniciaram uma discussão relacionada com a lavagem de camisas do arguido e no decurso dessa mesma discussão, ambos dirigiram-se ao quarto do casal, o arguido espalhou em cima da cama toda a roupa que a ofendida tinha no roupeiro e esta foi buscar uma máquina fotográfica para registar tal acto, tendo o arguido conseguido evitá-lo, retirando-lhe a máquina em causa e desferindo-lhe uma pancada com as mãos nas costas.

20. Então, a ofendida procurou recuperar a referida máquina fotográfica que já se encontrava no bolso do casaco que o arguido trazia vestido.

21. Porém, este impediu-a, agarrando-lhe com as suas mãos a mão direita e torcendo o braço direito, depois puxou-lhe os cabelos com força.

22. Em consequência directa e necessária de tal acto, IC sofreu contusões várias de ambos os antebraços, contusão do couro cabeludo, contusão com equimose do terceiro dedo da mão direita, dor na região costal esquerda, contusão da região costal, contusão da parte esquerda do nariz e escoriação da face esquerda, sem afectação da sua capacidade para o trabalho em geral e profissional em especial.

23. No dia 27 de Setembro a horas não concretamente apuradas, no interior da residência em que ambos habitavam, arguido e ofendida encetaram nova discussão, na sequência da qual foi solicitada a comparência de uma patrulha da GNR de B.

24. Nessa data, o arguido saiu da residência da ofendida e não mais tornaram a viver juntos.

25. Por todos estes actos, o arguido assumiu grande controlo da vida e pessoa da ofendida, definindo o que podia e não podia fazer, tendo, a certa altura, imposto constantemente a sua presença e condicionando a liberdade de movimentação daquela, exercendo grande e prolongada pressão psicológica sobre aquela.

26. Em resultado de tais actos, IC passou a sentir grande humilhação, bem como subjugada e cerceada na sua liberdade, apresentando-se triste e apática, chorando facilmente e tendo dificuldades em desempenhar a sua profissão.

27. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e conscientemente.

28. Com a sua actuação no tempo, dirigindo-se à sua companheira IC da forma descrita, o arguido quis maltratá-la psicologicamente, no seu corpo e na sua saúde, causar-lhe dores, ferimentos e bem assim inquietá-la, atingindo-a na sua honra e dignidade, o que efectivamente conseguiu.

29. Não se coibiu de praticar tais actos na residência em que ambos habitavam.

30. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

31. A assistente passou a ter grande dificuldade de concentração, passando a sentir-se e apresentar-se frequentemente desorientada e inquieta, com prejuízos graves para a sua vida pessoal e profissional.

32. A assistente que sempre foi uma pessoa alegre e extrovertida, em consequência directa e necessária da conduta descrita do arguido, passou a sentir-se sempre profundamente triste, amargurada e revoltada, chorando frequentemente, mesmo quando não havia uma razão aparente para isso.

33. A assistente, em consequência directa e necessária da conduta do arguido, sofreu perturbação ansiosa com crises de pânico e labilidade emocional, razão pela qual teve que procurar apoio psicológico de técnico da especialidade.

34. A assistente, que sempre se relacionara facilmente e convivera frequentemente com amigos e colegas, saindo com outras pessoas para passeio e diversões, em consequência da descrita conduta do arguido, deixou de sair com colegas e amigos, deixou de conviver com outras pessoas que não o arguido, tendo ficado isolada de todos com quem, até viver em união de facto com o arguido, convivia.

35. As imputações feitas pelo arguido à Assistente e expressões supra descritas que lhe dirigiu e que dirigiu a terceiros, reportando-se àquela, causaram à demandante grande humilhação e vexame, sofrimento e mágoa, que ainda perduram, por se ver ferida na sua honra, dignidade, bom nome e reputação, perante sua mãe, familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e conhecidos.

36. A descrita conduta do arguido consubstanciou inaceitável devassa da vida e intimidade da assistente, por ter exposto, sem o consentimento, desta e bem sabendo que o fazia contra a sua vontade, fotografias e factos da vida privada da assistente, nomeadamente relacionamentos afectivos anteriores da assistente, tendo a assistente, em consequência, sentido grande humilhação e mágoa por ver violada a sua intimidade.

37. Em consequência directa e necessária das agressões perpetradas pelo arguido e de que a assistente foi vítima sofreu esta traumatismo da face esquerda, traumatismo do terceiro dedo da mão direita, hematoma na face lateral direita da perna esquerda, que determinaram um período de doença de 37 dias, contusões várias de ambos os antebraços, contusão do couro cabeludo, contusão com equimose do terceiro dedo da mão direita, dor na região costal esquerda, contusão da região costal, contusão da parte esquerda do nariz e escoriação da face esquerda.

38. Como consequência dessas agressões a assistente sofreu dores e sentiu profunda humilhação e mágoa.

39. Com a sua conduta o arguido prejudicou gravemente a assistente na sua saúde física e psíquica, no seu bom nome, honra e consideração, na sua auto-estima, na sua liberdade, no seu direito à intimidade e à segurança, danos sofridos pela assistente em consequência directa e necessária da conduta do arguido sub judice e que ainda perduram.

40. A conduta descrita do arguido causou à assistente particular sofrimento, pois, como aliás bem sabia aquele, estava aquela a recuperar dos efeitos de doença do foro oncológico em virtude da qual se submetera a amputação da mama.

41. A Assistente com consultas médicas despendeu a quantia de € 300,44 (trezentos euros e quarenta e quatro cêntimos).

42. Em medicamentos e tratamentos despendeu a quantia de € 1.024,22 (mil e vinte e quatro euros e vinte e dois cêntimos).

43. A demandante começou a ser acompanhada em psicologia em Julho de 2011 e depois passou a ser seguida em psiquiatria e tem mantido as consultas de psicologia e psiquiatria.

44. É actualmente acompanhada pela psiquiatra Dra. HE e está medicada com antidepressivos e estabilizador de humor.

45. Há 36 anos, na altura do óbito do seu pai, a Demandante sofreu um episódio depressivo, para o qual foi tratada.

46. Há 17 anos a demandante sofreu novo episódio depressivo, na sequência da morte do seu irmão.

47. A Demandante esteve internada no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental no Hospital, entre 16 a 24 de Julho de 2011, tendo sido dado o diagnóstico de perturbação de humor.

48. A Demandante sofre de hipertensão, diabetes e displidemia.

49. Foi sujeita a uma mastectomia em 2004 e é seguida no IPO.

50. A Demandante apresenta um quadro clínico compatível com o diagnóstico de perturbação de adaptação com humor deprimido e ansioso.

51. O Arguido é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português-Francês.

52. É professor do 3.º ciclo e do Secundário, auferindo mensalmente € 1380,00 (mil trezentos e oitenta euros).
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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:

1. O Arguido procurava evitar que a ofendida convivesse com a sua família, nomeadamente com a mãe.

2. O Arguido, por vezes, contactava colegas da ofendida solicitando-lhes que não lhe telefonassem.

3. Também por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido procurou colegas da ofendida a quem mostrou fotografias desta, que revelara sem o seu consentimento, com o homem mais novo com quem se relacionara.

4.Após essa data, em dias e horas não concretamente apurados, o arguido, conduzindo o seu veiculo automóvel passou a seguir a ofendida quando esta se deslocava a pé ou no seu automóvel para o seu local de trabalho ou noutras deslocações.

5. Também passou a estacionar o seu veículo em frente da escola em que a ofendida exercia funções, mantendo-se no seu interior, procurando ver quando a ofendida saía, com quem e para onde se dirigia.

6. Em resultado de tais actos, IC passou a sentir-se receio pela sua vida, integridade física.

7. Com a sua actuação no tempo, dirigindo-se à sua companheira IC da forma descrita, o arguido quis fazer a ofendida temer pela sua vida e pelo seu futuro.

8. Como consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido a assistente sofreu de grave quadro de perturbação psicológica emocional que perdura, tendo que receber assistência médica da especialidade e chegando mesmo a ser internada.

9. Como consequência directa da conduta do arguido a assistente teve que procurar ajuda de familiares, por estar, em virtude do seu estado de doença psíquica, incapaz de tratar de si própria, tendo estado cerca de um mês em casa de familiares que da assistente cuidaram por não estar a assistente em condições de prover à satisfação das suas necessidades de alimentação e cuidados elementares pelos seus próprios meios.

10. Por causa da conduta do arguido, durante o período em que a assistente esteve ao cuidado dos seus familiares e internada, esta teve que internar a sua mãe de 87 anos, que com ela vive, num Lar em Borba.

11. A Assistente, como consequência directa e necessária da conduta do arguido, sofre e sofre ainda de um quadro de depressão que suscita cuidados de saúde e vigilância.

12. Por causa da descrita conduta do arguido a assistente passou a sofrer de elevada pressão ocular, como, em virtude de ter que tomar muita medicação, passou a sofrer frequentes dores de estômago e problemas intestinais.

13. A assistente que sempre fora uma pessoa segura, em consequência directa e necessária da conduta descrita do arguido, passou a viver permanentemente insegura e assustada, permanentemente receosa de estar a ser seguida e observada pelo arguido e com medo de que este lhe aparecesse, a contactasse ou contactasse os seus amigos ou colegas. A descrita conduta do arguido cerceou a liberdade da ofendida que passou a ter medo de circular livremente.

14. A assistente, que sempre fora uma pessoa autónoma, determinando-se livremente, em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido passou a ser dependente, a sair apenas acompanhada pelo arguido e a ir apenas onde e quando este permitisse que aquela fosse, vivendo completamente submetida à vontade daquele.

15.Como consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido a assistente sofreu grave doença do foro mental que determinou mesmo o internamento da assistente, pelo período de cerca de 10 dias,

16. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido a assistente teve um período de doença com incapacidade para trabalho desde o dia 06/06/2011 e que ainda perdura.

17.A actuação descrita do arguido teve na vida da assistente efeitos devastadores, com a completa destruição do equilíbrio físico, psíquico e emocional desta, bem como da sua vida social e profissional, efeitos que ainda perduram.

18. Com efeito, por causa da conduta descrita do arguido, a assistente não conseguiu ainda retomar a sua vida normal, sendo previsível que muito tempo falta ainda para que o possa fazer e para que possa retomar, nomeadamente, a sua vida profissional.

19. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido a assistente sofre desde 06/06/2011 de incapacidade temporária para o trabalho, encontrando-se em situação de baixa por motivo de doença.

20. Em deslocações para consultas e tratamentos médicos a Demandante despendeu, pelo menos, a quantia de € 1.300,00 (mil e trezentos euros).

53. O Arguido despende mensalmente a importância de € 150,00 de renda de casa, € 135,00 de arrendamento de uma garagem, consumos de electricidade de € 30,00 e de água entre € 5,00 a €10,00.

54. A Arguido é uma pessoa simples, acessível e afectuosa.

55. O Arguido não possui antecedentes criminais.
*
B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes motivos, considerando-se irrelevantes as apreciações de direito sobre matéria de facto:

“ …… Assim, no caso presente dos autos, a factualidade dada como assente resultou da concatenação crítica das declarações do Arguido, que negou, no essencial, a prática dos factos pelos quais vem acusado, com as declarações da ofendida/assistente e os depoimentos das testemunhas A, B, C, D, E, AB, bem como com a prova documental e pericial junta aos autos, analisada em sede de audiência de julgamento.

Com efeito, o Arguido, não obstante ter confirmado as circunstâncias de tempo e lugar indicadas na acusação, negou, quase em absoluto, a prática dos factos por que vem acusado, com excepção de assumir que discutia frequentemente com a ofendida, sobre assuntos do quotidiano.

O Arguido define a ofendida como sendo uma pessoa muito nervosa - “há mais de 30 anos que toma medicamentos para os nervos” (sic) - que gritava com frequência e se mostrava muito instável consigo.

Nega ter batido alguma vez na ofendida, sendo que afirma que a mesma, nas discussões, muitas vezes avançava na sua direcção e que o Arguido segurava-lhe as mãos ou empurrava-a, para não ser agredido por aquela.

De igual forma, o Arguido nega ter dito à ofendida as expressões que lhe são imputadas, admitindo, contudo, dizer que a mesma “só queria forrobodó”, no sentido de só querer festas, actividade a que o Arguido não atribuía valor.

Apesar de admitir que considerava que a higiene da casa da ofendida não ser “grande coisa” (sic), nega que alguma vez tenha dito ter nojo da mãe daquela.

Quanto ao telemóvel da ofendida, o Arguido admite ter ficado na posse do mesmo, mas porque lho comprou - inclusive com o cartão SIM - na medida em que decidiu oferecer àquela um telemóvel novo, “mais moderno” (sic).

Contudo, o Arguido admite ter mostrado fotos da ofendida com um antigo namorado desta - que havia lá em casa - a amigas da ofendida, designadamente EB porquanto esta estaria a ser ameaçada por aquele, não explicando, todavia, em que medida é que mostrar as fotos à amiga da sua companheira à data ajudaria num eventual processo crime contra aquele.

Acresce ainda que o arguido admite ter acompanhado a ofendida para quase todos os lugares onde esta se dirigia, como por exemplo deslocações para o trabalho, à missa, ao cabeleireiro da testemunha acima aludida.

Refere recordar-se de ter tido com a ofendida uma discussão nesse local - “discussãozita” (sic) - negando contudo ter-lhe chamado qualquer nome, apesar de admitir como possível que nessas circunstâncias a ofendida tenha chorado, pois esta “chorava muito” (sic).

O Arguido atestou ainda que numa ocasião “deu mais uma voltita de carro” com a ofendida, quando a levava ao trabalho, em vez de a levar directamente, por esta estar chateada e a chorar e não ir para o trabalho com “cara de choro”.

O Arguido confirmou, de igual forma, que discutiu com a ofendida no quarto de ambos, por conta de umas camisas e que quando disputavam entre si uma máquina fotográfica “pôs a mão” e a ofendida terá caído, porque o quarto é muito apertado.

Ora, com efeito, considerando a súmula de declarações do Arguido, acima aludidas, inter alia, é patente que este apresentou um discurso confuso, desconexo, omisso em parte quanto à ilicitude dos factos que nega ter praticado.

Embora admita terem ocorrido as situações/discussões em causa, justificando-as sempre de forma pouco plausível, hesitante e desculpativa.

Por sua vez, IC, ofendida, narrou outra versão mais credível dos factos, tendo sido confirmada, designadamente pelos depoimentos de A, B, C e D, que presenciaram, em parte, os factos imputados ao Arguido.

Se não vejamos.

IC prestou um depoimento espontâneo, coerente, circunstanciado, no essencial, atento o decurso do tempo, que se compreende, descrevendo os factos por si vivenciados.

Com efeito, a ofendida/assistente narrou, pormenorizadamente as diversas expressões injuriosas que o Arguido lhe dirigiu nas discussões entre ambos travadas, no domicílio daquela, onde o casal vivia, que aqui nos dispensamos de reproduzir, constantes do libelo acusatório, bem como as agressões físicas e por si vivenciadas, no contexto das discussões, fazendo-o, na medida do possível, através da indicação de datas e lugares, correspondentes àqueles da acusação, que, necessariamente, foram dados como provados.

Designadamente, a ofendida deu conta que o relacionamento com o Arguido ao longo do primeiro ano correu sem incidentes de maior, apesar deste não gostar/querer que a ofendida convivesse socialmente ou frequentasse a casa de amigos, lhes telefonasse ou fosse a cafés.

Para o efeito, metia-se à sua frente, para a impedir de ir ao café, sendo que a ofendida admite que umas vezes “ia à mesma sozinha” ou o arguido acabava por a acompanhar.

IC atestou que discutia, invariavelmente, com o Arguido, tanto em casa, como no carro, todas as semanas, em que este lhe dirigia os impropérios constantes da acusação, sendo que a ofendida gritava com este, mandava-o sair de casa e batia com as portas; admitindo que o arguido lhe dirigia as palavras constantes do libelo acusatório, mas, em regra, em tom baixo, para não se fazer ouvir.

A Assistente declarou ainda que, contrariamente ao afirmado pelo Arguido, este tirou-lhe o telemóvel da sua propriedade, para a impedir de contactar com os seus amigos, colegas e familiares, “emprestando-lho” ocasionalmente, sendo que lhe deu um novo.

Descreveu ainda que tomou conhecimento pelas suas amigas que o Arguido lhes tinha exibido fotografias suas, com um anterior relacionamento amoroso, que estavam por revelar, na sua casa, o que lhe causou muito transtorno e tristeza.

A ofendida deu ainda conta que o Arguido fazia questão de a acompanhar para todo o lado: trabalho, missa, cabeleireiro, e que numa dessas deslocações ao cabeleireiro de EB foi apelidada por aquele de “Puta! Só queres é forrobodó. Andaste com um homem casado”, à frente da cabeleireira. Admite que, nessa ocasião, chorou de irritada com a conduta do Arguido que a vexou perante a sua amiga de largos anos.

Confirmou ainda que na véspera do fim do relacionamento teve uma discussão com o Arguido, dentro do quarto, sobre camisas lavadas, tendo sido agredida por aquele por causa de uma máquina fotográfica, que detinha para registar aquela situação. Nessa ocasião, o Arguido empurrou-a, arranhou-a e torceu-lhe o braço, sendo que em ocasiões anteriores, segundo a ofendida, o Arguido já a teria arranhado nos braços e mãos para lhe retirar o telemóvel, bem como já a teria esbofeteado, noutra ocasião dentro do carro.

Depor sobre este tipo de factos envolve necessariamente uma exposição da vida privada que violentas as pessoas que o fazem, sendo difícil para estas descrever todos os pormenores que ocorreram no meio de discussões acesas, entre pessoas que já sentiram afecto entre si.

Não obstante, IC não caiu em contradição, antes pelo contrário, demonstrando estar a falar verdade.

Nessa medida, as declarações de IC mostraram-se dignas da credibilidade que o Tribunal lhe atribuiu.

Por sua vez, a comprovar a versão dos factos narrada pela ofendida, o Tribunal valorou ainda o depoimento das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, em sede de despacho de acusação.

Com efeito, desde logo, A Cabo da GNR de B, atestou que, em 5 de Setembro de 2010, se deslocou, na sequência de uma chamada telefónica para o posto, à casa da ofendida, onde esta lhe relatou estar a discutir com o companheiro e que este lhe tinha dado uma bofetada, sendo que apresentava a face esquerda vermelha. Nesse momento, o Arguido terá dito para não fazerem caso, “ela não sabe o que diz”, tendo a ofendida sido acompanhada pelo Cabo A ao Centro de Saúde de E

Por seu lado, A, militar da GNR, deu conta que no dia 27 de Setembro de 2010 se deslocou a casa da ofendida, tendo-lhe sido dito para levar de casa o Arguido, que ela já não o queria lá, o que o Arguido fez espontaneamente.

AP, colega e amiga da ofendida, depôs no sentido que lhe foi relatado, enquanto responsável pelo Agrupamento Escolar onde aquela trabalhava, que a ofendida, durante o relacionamento com o Arguido, chorava muito nas aulas, à frente dos alunos, mostrando-se confusa e desorganizada com as obrigações profissionais, sendo que sabia que a mesma estava muito retraída socialmente, menos alegre e convivendo menos com as colegas e amigas.

Deu ainda conta que, em 7 de Julho de 2010, numa reunião na escola, viu arranhões no braço da ofendida, que esta admitiu terem sido feitos pelo Arguido.

Por sua vez, EB, cabeleireira e amiga da ofendida, narrou que conhece esta há muito e que a mesma sempre se mostrou muito sociável, que deixou de ser com o relacionamento com o Arguido.

Referiu que o Arguido acompanhava a ofendida, quase sempre, nas suas deslocações ao cabeleireiro, sendo que numa dessas vezes aquele chamou a IC ”puta” na sua frente, tendo esta chorado, de irritada, e ripostado, enfrentando o Arguido.

A testemunha descreveu ainda uma situação na qual o Arguido se dirigiu à sua casa, sozinho, para lhe mostrar umas “fotografias indecentes da D. I, para ficar a saber quem ela é”, que EB viu e não achou serem “nada de mais”.

Neste mesmo sentido, depôs B que descreveu uma situação por si vivenciada em tudo igual à supra descrita. A testemunha disse ainda que, posteriormente, contou à ofendida aquilo que o Arguido lhe exibiu as fotos em questão.

D, vizinha e amiga de IC, quanto à factualidade constante da acusação, apenas referiu ouvir barulhos na casa daquela, mas que não percebia o que lá se passava, tendo visto, numa ocasião, uma nódoa negra na mão da ofendida.

Descreveu a ofendida como sendo, anteriormente aos factos sub judice, uma pessoa sociável, muito prestável e amiga, encontrando-se agora diferente, muito mais nervosa que antes e chorando.

Por seu lado, E que nenhum conhecimento directo teve dos factos ilícitos em questão apenas deu conta nas alterações pessoais e sociais que a sua amiga e colega Isabel Calado sofreu ao longo da relação com o Arguido, que se traduziam em conviver menos, chorar abundantemente, tendo visto por uma ocasião arranhões no braço direito daquela e nódoas negras.

Tais depoimentos são consentâneos com as declarações da ofendida, sendo que as senhoras testemunhas, têm conhecimento directo dos factos, porque os presenciaram, depuseram de forma clara, espontânea e isenta, sendo merecedoras de credibilidade por parte do tribunal.

Q, vizinho e amigo da ofendida há largos anos, deu conta de ter ouvido na sua casa, com muita frequência - “semanalmente, à noite” - discussões entre o Arguido e IC, nas quais percebia algumas palavras como “puta”, “cadela” e “ordinária”, sendo que a ofendida replicava chamando-o de “ordinário” e mandando-o embora de casa.

Ouvia igualmente objectos a arrojar no chão, portas a bater e a ofendida a “chorar, soluçando, de raiva” (sic).

A testemunha deu ainda conta que a ofendida modificou a sua maneira de ser enquanto esteve com o Arguido, mostrando-se menos sociável.

DL, mulher da testemunha atrás referida, deu igualmente conta de que frequentemente ouviu discussões na casa da ofendida - gritaria, portas a bater, coisas a cair - sendo que contudo afirma não ter nunca percebido o que era dito. A testemunha em consonância com o afirmado pelo seu marido descreveu as alterações na personalidade da ofendida, conforme dado como provado.

No que concerne aos factos relativos ao conhecimento e intenção do Arguido, foram os mesmos dados como provados, por, de acordo com as regras experiência e do senso comum, resultarem dos factos objectivos dados como provados.

No que respeita às condições pessoais e económicas do Arguido, foram tidas em consideração as declarações do mesmo, porquanto prestadas de forma que se afigurou convincente, sendo que quanto à sua personalidade o Tribunal valorou positivamente o depoimento prestado por TL, filho do Arguido, que demonstrou um conhecimento profundo daquele, tendo deposto de forma espontânea e nessa medida credível, sendo que quanto aos factos em questão o mesmo não tinha conhecimento directo dos factos, tendo contactado com o casal em pouquíssimas horas, em duas ou três ocasiões.

Nesta sede, importa esclarecer que não obstante o Tribunal ter dado como provado que o Arguido socialmente assume um comportamento de alguém acessível e afectuoso, certo é que há que distinguir entre aquele que é o comportamento público do Arguido, tanto sozinho como numa dinâmica de casal, e a sua vivência na intimidade do recato do lar, que como o depoimento da ofendida demonstrou se revelou bastante distinto do comportamento público que aquele assumia.

No que concerne à matéria de facto dada como provada quanto ao pedido de indemnização civil a mesma resultou das declarações da ofendida que deu conta dos danos corporais infligidos na sua pessoa pelo Arguido, e do seu estado de alma face a tudo aquilo que lhe aconteceu, designadamente a mágoa e tristeza que sentiu, bem assim o vexame e irritação.

O Tribunal valorou ainda as declarações de AP que atestou a confusão e desorganização profissional da ofendida, na sequência do seu relacionamento com o Arguido, tendo após o seu termo levado que faltasse muito ao serviço, tendo agora regressado, sem turma designada.

A testemunha referiu ainda que a ofendida tem períodos de estabilidade maior que oscilam com outros em que não se mostra capaz de gerir as coisas.

E, amiga de há muitos anos da ofendida, descreveu a ofendida actualmente como uma pessoa triste, que chora muito, que deixou de frequentar alguns sítios, por oposição à pessoa que era antes de se relacionar com o Arguido, embora “faça a sua vida normal”.

Atestou ainda saber que a mesma esteve internada e sujeita a medicação para um problema de saúde psiquiátrico.

As demais testemunhas, designadamente D, Q, e, deram todas contas das alterações de comportamento que a ofendida vivenciou, em conformidade com o dado como provado.

Quanto aos antecedentes criminais do Arguido foi valorado o respectivo Certificado de Registo Criminal de fls. 650.

O Tribunal valorou ainda a prova documental e pericial junta aos autos, designadamente fls. 9 a 14, 22 e 23, 148 a 150, 155 a 157, 162, que corroboram as lesões corporais sofridas pela ofendida na senda dos comportamentos havidos pelo Arguido; fls. 317 a 324, 335 a 382, que atestam as baixas por doença, consultas e medicação da ofendida e a perícia médico-legal de fls. 614.

Por fim, no que respeita à matéria de facto dada como não provada a mesma resultou da ausência de prova nesse sentido.

Se não, vejamos.

No que concerne aos factos aludidos em 1. a 4. o Tribunal deu os mesmos como não provados, uma vez que o Arguido não os admitiu e nenhum dos sujeitos processuais inquiridos, inclusive a Assistente, os presenciou ou tomou conhecimento directo dos mesmos.

No que concerne aos factos referidos em 5. e 6. da matéria de facto dada como não provada a mesma resultou, desde logo, das declarações da Assistente que foi peremptória, tanto na forma como no conteúdo das suas declarações, em atestar que não tinha medo do Arguido.

Tanto assim é que a ofendida, apesar de admitir ter limitado grandemente a sua forma de estar e de conviver com terceiros, afirmou que apesar da vontade contrária do Arguido persistiu em continuar com certas acções - designadamente ir ao café. Por outro lado, a ofendida, bem como designadamente as testemunhas Q e EB, deram conta que a ofendida enfrentava o Arguido nas discussões que viviam, que o mandava embora, para fora de casa.

Tais factos, meramente exemplificativos, são mais que suficientes para se poder concluir, como a própria assistente conclui que a mesma não tinha medo do Arguido ou tampouco receio pela sua vida ou integridade física.

No que concerne à factualidade dada como não provada respeitante ao pedido de indemnização civil, a mesma resultou da ausência de prova do nexo de causalidade entre a acção do arguido e a perturbação/doença mental de que a ofendida sofreu e sofre e que conduziu ao seu internamento hospitalar em Junho de 2011.

De facto, não obstante toda a prova documental e pericial carreada para os autos, não resulta claro que a doença que se veio a manifestar com gravidade quase 9 meses após o termo do relacionamento com o Arguido se deve directa, consequente e exclusivamente às acções do Arguido.

Ora, designadamente na perícia psiquiátrica feita à pessoa da ofendida, ressalta que a mesma tem antecedentes pessoais e familiares de depressão que, indicam de acordo com as regras de experiência comum, uma certa predisposição para este tipo de estado.

Por outro lado, não parece resultar de acordo com as regras de experiência e senso comum que alguém que saia, em Setembro de 2010, de um relacionamento negativo, marcado pelo conflito e pela violência psicológica, deixando de ter qualquer contacto com o agressor, venha, em Junho de 2011, ter um esgotamento nervoso, cujo resultado ainda é a acção daquele.

Tal não parece avisado face às aludidas regras, sendo que em nenhum momento da perícia médico-legal é estabelecido tal nexo de causalidade, tanto mais que a perícia apenas sindica e relaciona os sintomas psicológicos da ofendida com as queixas que ela apresenta, não tendo procurado outra explicação mais verosímil para um colapso emocional e mental, quase 9 meses após o termo dos factos que foram motivo de sofrimento da ofendida.

Nesse sentido, a testemunha D, melhor amiga da ofendida, avançou com uma explicação, na medida em que deu conta que o relacionamento com o Arguido não foi muito sentido por IC e que esta melhorou logo a seguir à separação daquele, embora não tenha ainda voltado ao seu estado “normal”. D referiu ainda que a ofendida chora frequentemente, sendo que não sabe discernir se a tristeza da ofendida se deve apenas aos factos ilícitos perpetrados contra si ou se também se deve ao facto da relação se ter frustrado, uma vez que a ofendida nunca tinha vivido anteriormente com ninguém.

Por sua vez, Q e E, foram unânimes em afirmar que a ruptura da relação entre ofendida e o Arguido, nos termos em que ocorreu, foi objecto de muitos comentários e rumores no meio local onde a ofendida é estimada, o que lhe causou uma pressão e tristeza adicionais, à já decorrente deste próprio processo criminal, que até ao seu desfecho causa incómodo e dificuldades à Assistente.

Destarte, pelo exposto, o Tribunal não poderia deixar de dar como não provada a factualidade constante em 8., 9. e 11. a 19. por não se ter demonstrado cabalmente o nexo de causalidade entre a doença e os seus efeitos - internamento, baixa por doença prolongada - e as acções do Arguido, que terminaram em Setembro de 2010.

No demais, o Tribunal deu igualmente como não provado que por causa da conduta do arguido, durante o período em que a assistente esteve ao cuidado dos seus familiares e internada, esta teve que internar a sua mãe de 87 anos, que com ela vive, num Lar em B, uma vez que nenhuma testemunha depôs nesse sentido, tampouco a Assistente o declarou.

O mesmo sucede com o alegado facto de a ofendida ter despendido em deslocações para consultas e tratamentos médicos a quantia de € 1.300,00 (mil e trezentos euros), que não se demonstrou.”

Cumpre conhecer.

B.2 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Das suas conclusões (18) extrai-se que o recorrente está insatisfeito com a decisão recorrida por dois motivos, que deveriam ser as conclusões: o terem-se dado como provados os factos 5, 6, 11, 19, 20, 21, 22, 25, 26 e 28 da sentença (erro na apreciação da prova, o que consta das suas conclusões 3ª a 16ª) e o ter-se concluído que os factos dados como provados tenham sido considerados suficientes para se ter concluído pelo preenchimento do tipo penal contido no artigo 152º do Código Penal (suas conclusões 2ª, 16ª a 18ª).

Uma questão de facto e uma questão de direito, portanto. Comecemos pela questão de facto, lógica e processualmente precedente.

B.3.1 - É sabido que a impugnação ampla da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, a incidir sobre os erros de julgamento e sobre a prova produzida em audiência de julgamento, apresenta quatro pressupostos essenciais e uma razão de ser:

a) – A observância pelo recorrente do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância – al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

b) - A especificação das provas (reais ou pessoais) em que assenta a impugnação - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

c) - Por referência ao consignado em acta (esta entendida em sentido amplo e, se for o caso – se for indicada prova pessoal - com o significado de “gravações” sonoras, com indicação concreta das passagens em que se funda a fundamentação - nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

d) – Provas essas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Em resumo, ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só é possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º].

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada.

Apreciemos, então, a impugnação de facto do recorrente – a invocação de “imposição de diversa convicção” – assente que indicados estão os pressupostos formais de impugnação.

Estão em causa os factos dados como provados em 5, 6, 11, 19, 20, 21, 22, 25, 26 e 28 da sentença – conclusão 3ª – por feixes de factos e por prova pessoal indicada.

B.3.2 - Para esta invocação o recorrente faz apelo às declarações da assistente no que se refere aos factos 5 e 6.

No essencial alega que a assistente afirma nas suas declarações que “as discussões apenas se intensificaram desde o Natal de 2009”, pondo pois em causa o ter sido dado como provado em 5) que tal tenha ocorrido desde início de 2009.

É certo que a assistente, pouco precisa em datas, referiu que já antes do Natal havia sido insultada e ocorriam discussões, “apenas” acrescentando que se “intensificaram” a partir do Natal de 2009.
Assim, mesmo as declarações da assistente não impõem outra formulação do facto sob 5).

Quanto ao facto 6) em nada é impugnado pelo recorrente, já que nem nas motivações nem nas conclusões o recorrente põe em causa, em substância, o facto ali dado como provado.

Alega (conclusões 5ª e 6º da motivação) o recorrente, nesta sede, que a assistente podia telefonar, o que nada tem a ver com esse facto.

E se é certo que a assistente podia telefonar, também é certo que o arguido lhe retirou o telemóvel, demonstrando-se o acerto do dado como provado em 7) e 8).

Daqui resulta que em nada se pode considerar errada a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido quanto aos pontos 5) e 6).

O mesmo se diga quanto ao facto dado como provado em 11), os factos ocorridos no salão de cabeleireiro de EB. Esta testemunha é clara e assertiva na afirmação do facto dado como provado.

Confirma a ida do casal ao seu salão e as afirmações do arguido: que chamou “puta” à assistente, que afirmou que ela “gostava do forrobodó”, que tinha amantes.

Ou seja, o depoimento da testemunha permitia mais do que aquilo que resultou provado.

Quanto aos factos dados como provados em 19, 20, 21, 22, o recorrente faz apelo às declarações da assistente e aos depoimentos de A, B, c, D, E e Q

Acontece que tais factos, ocorridos no interior da habitação, não foram presenciados pelas testemunhas, o que aliás é confirmado pelas alegações do recorrente. Assim, nunca os seus depoimentos poderiam basear a “imposição” de diversa apreciação probatória.

Quanto aos factos dados como provados em 25), 26) e 28) eles correspondem em termos conclusivos a uma apreciação factual não só possível mas o mais próximo possível do ocorrido em sede de produção de prova em audiência de julgamento.

Aliás impõe-se afirmar que a fundamentação factual do tribunal recorrido é exaustiva no que diz respeito às referências e ao percepcionado pelas testemunhas e ao dito, no essencial, por arguido e assistente, não cabendo dúvidas de que fez uso assisado dos princípios da livre apreciação da prova, da imediação e da oralidade.

Naturalmente que este tribunal, não beneficiando das vantagens concedidas pela imediação e pela oralidade e dando cumprimento ao legalmente determinado, só poderia alterar a apreciação feita pelo tribunal recorrido se as declarações e depoimentos impusessem essa alteração.

Ora, ouvidas as gravações, mais do que as indicadas pelo recorrente, nada impõe diversa apreciação e tudo confirma o acerto apreciativo do tribunal recorrido.

Como é sabido, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Ou seja, “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” – Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 Março 2002 (Rel. Santos Cabral, Processo 3580/01).

O que não ocorre no caso em apreciação.

Não há, portanto, erro na apreciação da prova e, em virtude disso, mantém-se intocada a matéria de facto.
*
B.4.1 – A segunda razão de inconformidade do recorrente prende-se com a consideração de que os factos provados não permitem concluir que ocorreu um crime de violência doméstica, o que se impõe apreciar.

O tipo penal vigente à data da prática dos factos resulta da redacção dada ao artigo 152º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04/09 e reza, no que ora interessa: [1]

“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Mas, no caso em apreço, cabe afirmar a existência de factualidade que permite, ao menos, a integração da conduta do arguido como ofensas corporais simples (artigo 143º, nº 1 do Código Penal), injúrias (artigo 181º), difamação (artigo 180º, nº 1), coacção (artigo 154º), sequestro simples (artigo 158º, nº 1), devassa da vida privada [artigo 192º, nº 1. al. b)], gravações e fotografias ilícitas [artigo 199º, nº 2, al b)].

Deve então o arguido ser punido pelo tipo indicado – violência doméstica – ou pela totalidade dos tipos preenchidos, eis a questão.

Isto por ser certo que não é caso da ponderação do tipo qualificado constante do nº 2 do preceito, nem ser de afastar a regra da subsidiariedade da incriminação na medida em que a conduta do arguido não preenche tipo penal mais gravemente punido, caso em que o crime de violência doméstica perderia autonomia, sendo o arguido punido nos termos estatuídos no tipo mais grave.

E não haverá que cuidar da possibilidade da ocorrência de um crime de violência doméstica por acto isolado que a lei agora expressamente prevê e a jurisprudência já anteriormente construíra, na medida em que vários são os actos praticados pelo arguido com a assistente como vítima. [2]

Assim, a preocupação com a delimitação do minimum tipológico do crime de violência doméstica não se coloca nos presentes autos (qual a natureza e eventual intensidade do acto único integrador do tipo).

Mas coloca-se com a definição do mínimo de violência na pluralidade de actos praticados.

Neste enquadramento factual – pluralidade da conduta e preenchimento de vários tipos penais - pode afirmar-se ser jurisprudência constante a afirmação de que o crime de violência doméstica cria uma relação de concurso aparente de normas e de especialidade com outros tipos penais.

Di-lo o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-05-2010 (Proc. nº 1379/07.9PBGMR.G1, rel. Cruz Bucho), nos seguintes termos e para os factos que apreciou:

I - O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes.

II - Se as condutas apuradas integram os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça mas não satisfazem o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, apenas há que aplicar as normas gerais.

E confirmam-no, pelo menos, os acórdãos da Relação de Coimbra de 15-12-2010 (Proc. 512/09.0PBAVR.C1, relator Alberto Mira) [3], da Relação do Porto de 14-04-2004 (Proc. 0345574, rel. António Gama)[4] e da Relação de Lisboa de 15-10-2003 (Proc. 1500/2003-3, rel. Carlos Sousa).[5]

Naturalmente que esse concurso aparente pode abranger hoje os crimes sexuais, o sequestro simples e o crime de coação, em função da configuração dos factos apurados no processo, dada a magnitude da previsão do tipo (“infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”).

E pode abranger todos os tipos penais preenchidos pelo arguido, a saber, as ofensas corporais simples (artigo 143º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181º), a difamação (artigo 180º, nº 1), a coacção (artigo 154º), o sequestro simples (artigo 158º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199º, nº 2, al b)]

Ora, para estes casos de pluralidade factual integradora de vários tipos penais e no âmbito de uma relação conjugal ou equiparada mas sempre inserido numa relação com carácter de conjugalidade ou de vivência – ou anteriormente inserido e que dêem origem a uma situação de stalking [6] [7] – e de que dão nota as várias alíneas do nº 1 do preceito, previu o legislador um tipo autónomo que se entende tutela específica da vida em relação, que pode fazer nascer uma relação de dependência e, consequentemente, de vítima de violências várias, emocional e psicológica, intimidante (coação e ameaças), física, de isolamento social, de abuso sexual. [8]

E todas estas são realidades de violência relacional que se devem entender abrangidas pela pretensão protectora da norma.

B.4.2 – O que nos reconduz a apurar qual o bem jurídico tutelado pela norma. [9]

Recordando a lição de Figueiredo Dias, bem jurídico é “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”. [10]

Neste contexto, é indubitável que o bem jurídico protegido era, na anterior versão da norma, a saúde física e psíquica da vítima, necessariamente inserida num dos círculos de convivialidade das alíneas do nº 1 do artigo 152º do Código Penal.

Hoje, face à nova redacção do preceito, para além desses bens protegidos teremos que encarar a nova redacção de forma clara e afirmar que também a liberdade pessoal e de autodeterminação sexual, no contexto da relação ou por causa dela, estão tuteladas pois a previsão do tipo é inescapável: “maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. [11]

Pensamos não se poder hoje limitar a noção de bem jurídico protegido à saúde física e psíquica, como fazia Taipa de Carvalho, por tal posicionamento ter sido assumido em 2004, [12] antes da vigência do actual tipo penal que, claramente, alargou a tutela da norma a uma outra realidade das “agressões” na relação.

Por outro lado concorda-se, em absoluto com o sumariado no acórdão da Relação de Coimbra de 29-01-2003 (Proc. 3827/2002, relator Serafim Alexandre) que (1) “não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, (2) o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.

Nesta sequência já nesta Relação de Évora se considerou por acórdão de 03-07-2012 (Proc. 53/10.3GDFTR.E1, relator Sérgio Corvacho) que “a «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Assim, a defesa da dignidade pessoal de pessoa inserida em ambiente de conjugalidade ou equiparada, mesmo que sem coabitação e abrangendo outros, inseridos na convivência ou desta resultantes, é o que se pode afirmar protegido pela norma, tutela que apenas se pode qualificar como complexa – hoje ainda mais complexa - resultado das novas políticas de neocriminalização.

Ou seja, a tónica do crime de violência doméstica deixou de estar centrada na intensidade dos “maus tratos”, para – não olvidando aqueles – se centrar na dignidade da pessoa em relação livremente assumida.

A assunção livre de uma relação de conjugalidade por duas pessoas de igual dignidade e de iguais direitos deve ser sede de completamento pessoal e/ou complementaridade interpessoal, nunca de diminuição de dignidade e de direitos ou de cerceamento de liberdades.

Acresce que a relação de conjugalidade ou equiparada é fonte de deveres - juridicamente consagrados - de respeito, de lealdade e de ajuda mútua, não arena de achincalhamento, humilhação, agressão e controle pessoal.

Na sequência, não se podendo afirmar que bem jurídico tutelado pela norma é a dignidade da pessoa, dada a generalidade da afirmação, nem que é a relação de conjugalidade ou equiparada, dada a sua instrumentalidade (e “meio” de exercício de violência), aquele bem jurídico só pode ser um feixe de interesses mais concretos que se convencionou designar como bem jurídico complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela.

Já o afirmou o acórdão desta Relação de Évora de 14-02-2012 (Proc. 327/07.0GCMMN.E1, relator Martinho Cardoso): “(1.) O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge e a dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa coabitação”.

Em suma podemos afirmar que nos casos das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal (os mais frequentes) é a “pessoa em relação” de conjugalidade ou equiparada a protegida pela norma, por interposto bem jurídico concretizado em aspectos parcelares da sua saúde e bem-estar.

Como bem afirma Nuno Brandão “o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade do individuo no âmbito de uma relação interpessoal próximo, do tipo familiar ou análogo”. [13]

A essencialidade da relação é também sublinhada pelos seguintes acórdãos da Relação de Coimbra:

- de 24-04-2012 (Proc. 632/10.9PBAVR.C1, rel. Orlando Gonçalves):

1.- O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação;

2.- Com a Revisão de 2007, deixou de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objetivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação.

- De 28-01-2010 (Proc. 361/07.0GCPBL.C1, rel. Jorge Dias):

1. Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.

Assim, o bem jurídico protegido pela norma actual – na estrita medida em que se entenda excessivo considerar tutelada a “dignidade da pessoa que é parte de uma relação de conjugalidade” – tem que ser a saúde física, psíquica, emocional e a liberdade de autodeterminação pessoal e sexual de pessoa parte de uma relação de conjugalidade ou equiparada.

B.4.3 – De igual forma se pode concluir tratar-se de crime específico impróprio ou impuro, na medida em que o seu possível agente é determinável em função da relação estabelecida com a vítima à luz da previsão do tipo, que lhe determina um dever que funda a agravação da responsabilidade criminal. [14]

Optamos decididamente por considerar o crime de violência doméstica como um crime de perigo abstracto, [15] tendo presentes as características do tipo – relação com a vítima – a clara intenção de reforço da tutela penal e o necessário contraponto com os restantes tipos do concurso aparente, excluindo-se a possibilidade de o considerar um crime de dano. [16]

A simples constatação de que a consideração do tipo como um crime de dano pode reconduzir a previsão a uma inutilidade confrangedora (na praxis) das pretensões de defesa da integridade e dignidade da pessoa inserida numa relação conjugal ou equiparada é indício do acerto da sua consideração como tipo de perigo abstracto.

Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja “sovada”, objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.

Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.

No que se concorda por fim e em absoluto – na definição da pretensão normativa de protecção - com a tónica colocada na dignidade da pessoa na relação, o que se revela dificilmente compatível com o erigir o tipo penal como um crime de dano. [17]

B.4.4 – Estabelecida uma relação de conjugalidade ou equiparada, “maus tratos” é expressão tipológica que surge, então, como determinante.

No caso concreto tal tarefa está facilitada, pois que provada a existência de injúrias nos factos provados 5) e 6), a coacção e a violação da privacidade nos factos provados 7), 8), 9) e 10); ainda as injúrias e difamação dos factos provados sob 11) e o sequestro dos factos 12) e 13); novas ofensas corporais no facto provado sob 14) e outras nos factos provados sob 17) e 19) a 22), todos eles - assim como outros que, não preenchendo um concreto tipo penal, revelam um maior desvalor das condutas - são factos que dão bem nota dessa pluralidade de ilícitos ocorridos no âmbito da relação estabelecida entre ambos. A reiteração da conduta ilícita no âmbito da relação estabelecida entre arguido e assistente é evidente.

Exigir interpretativamente um “tipo” onde a expressão “maus tratos” assume uma exuberância desmedida quanto à intensidade da lesão e à reiteração, com critérios de exigência temporal apertados é, de forma automática e subconsciente, estar a tratar o tipo penal como um tipo de dano e não como de perigo abstracto.

Que o conceito de “maus tratos” não pode ter apenas o significado descritivo que lhe é dado pelas alíneas do número 1 do artigo 152º-A do Código Penal parece-nos claro.

Por outro lado, contendo o tipo do artigo 152º do Código Penal uma descrição das condutas típicas – inflição de “maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais” – cabe perguntar se o conceito de “maus tratos” se limita à sinonímia de “ofensas”, “agressões” ou se ganha relevo qualitativo por referência à intensidade da violação do bem jurídico protegido, como defende Plácido Conde Fernandes. [18]

Esta é matéria onde parece fazer escola a consideração de que a expressão “maus tratos” tem que revelar alguma intensidade (mínima) de violência.

Que indubitavelmente ele deve revelar alguma “violência” parece incontestável.

Mas “maus tratos” também é expressão com características de generalidade que abrange a pluralidade de factos passíveis de caberem no tipo, sejam as equiparáveis às ofensas corporais, sejam as equiparáveis às ofensas psíquicas e emocionais, as que atentam contra a liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.

Assim, a expressão “maus tratos”, antes de ser uma característica de intensidade de violação de deveres, é expressão que deve conter em si a possibilidade de abranger tudo o que o tipo penal pode abarcar.

Que aquela violência está pressuposta no tipo também nos parece evidente. Que deve ser aferida em função dos dois pólos subjectivos e do pólo objectivo da situação também nos parece ser de impor.

Assim, aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão [19], entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à “imagem global do facto” [20] - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.

E quer-nos parecer que esta questão tem que ser ponderada à luz do equilíbrio que se pretende ver estabelecido entre a afirmação de uma igualdade jurídica consagrada e uma desigualdade de estatuto económico e social que se imponha como realidade factual.

Este desequilíbrio é a pedra de toque para o entendimento do tipo (da sua própria existência) e, logo, da necessidade de sinonímia simples entre “maus-tratos” e “ofensas” ou “agressões” no tipo contido no artigo 152º do Código Penal.

Como se afirma no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 158/2012 (Processo nº 846/11 - 3ª Secção - Relator: Conselheiro Vítor Gomes):

«O legislador tomou em conta que, de um modo geral, a vítima de violência doméstica, pelo contexto relacional, de proximidade espacial e ligação (se não dependência) económica com o agente em que se encontra e frequentemente se mantém no decurso do processo, fica especialmente exposta às consequências da sua duração, não sendo raras as situações de reiteração ou agravamento das condutas agressivas, exacerbadas pela própria pendência do litígio judicial.

Além disso, as necessidades de afirmação pública de efetividade do instrumento penal de proteção mediante a evidência da pronta reação contra violações do bem jurídico protegido por este tipo de crime são aqui particularmente intensas, pelo alarme social com que tais condutas vêm sendo progressivamente encaradas. A relevância do problema da violência doméstica para a comunidade nacional é assumida pela Assembleia da República ao ponto de criar um estatuto particular de vítima e de estabelecer um “Plano Nacional Contra a Violência Doméstica” (artigo 4.º da Lei 112/2009)».

Que é como quem diz, aceite a inexistência de equilíbrio entre a igualdade de dignidades jurídicas pessoais e a real situação de facto numa concreta relação, exigir que o conceito de “maus-tratos” apenas seja preenchido com condutas qualificadas como especialmente repetidas ou intensas, maxime cruéis e desumanas, é desequilibrar ainda mais o concreto objecto de apreciação por interpretação legal e, consequentemente, tornar ineficaz a protecção jurídica.

Como nota, bem, Nuno Brandão, através das últimas alterações legislativas “foi o sistema penal português dotado de um regime de tutela específica reforçada em todas as dimensões possíveis do fenómeno da violência doméstica”, referindo-se à previsão dos artigos 152º, 132º, nº 2, alínea b) e 145º, nº 2, todos do Código Penal. [21]

Se para os casos mais graves assim é, para os casos em que se revela o concurso aparente não nos parece que se deva pôr a tónica na exigência de “mais violência” do que os exigíveis nos respectivos tipos penais, designadamente de ofensas simples, ameaças, coação e sequestro simples.

Bem pelo contrário, parece-nos líquido que o tipo de violência doméstica permite e aceita casos de menor violência do que aqueles contidos nesses tipos.

Não nos parece, pois, que a essência deste tipo penal se quede pela natureza das “ofensas”/agressões”, mas aceitamos que é necessário delimitar o mínimo punível.

Assim, da práxis resulta claro que têm sido considerados:

Como maus tratos físicos, murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objectos ou armas (mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada); também empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos; como maus tratos psíquicos os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum; as privações da liberdade; as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. – v. g. Nuno Brandão, 18-21 e André Lamas Leite, ob. cit, 44-46 e notas;

O “agarrar pelos cabelos, puxando e arrastando para pôr água fria a correr em cima da cabeça” - Ac. do TRP de 30-01-2008 (Proc. 0712512, Maria Leonor Esteves);

Agressões físicas, ameaça de morte e proibição de acesso à garagem, à caixa de correio e de utilização do veículo automóvel - Ac. do TRL de 26-10-2004 (Proc. 3988/2004-5, rel. Marques Leitão);

Injúrias proferidas em voz alta ao longo de meses, a ameaça e o repetido bater com força a porta do frigorífico e as loiças, a provocar «estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição …». Os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional - Acórdão do TRL de 27-02-2008 (Proc. 1702/2008-3, rel. Carlos Almeida);

Injúrias, ameaças de morte (a mulher e filhos), empurrões, bofetadas, pontapés e pauladas com uma colher de pau, ameaças de suicídio, ameaças com faca, espingarda e lata de gasolina, agressão com um tacho - Acórdão TRC de 07-10-2009 (Proc. 317/05.8GBPBL.C2, rel. Mouraz Lopes);

Injúrias, bofetadas, empurrões contra objectos - Acórdão do TRE de 03-07-2012 (Proc. 53/10.3GDFTR.E1, rel. Sérgio Corvacho);

Após separação, por três vezes apertar pescoço da ofendida, numa das vezes arrastando-a pelo corredor, na presença do filho de ambos; noutra ocasião elevando-a e encostando-a às paredes do elevador enquanto encostava o seu corpo ao corpo da ofendida e lhe dizia em tom alto e com foros de seriedade: “tu comigo não gozas”, continuando a apertar o pescoço até aquela desfalecer e cair, sem sentidos - Acórdão do TRE de 18-09-2012 (Proc. 127/09.3PBSTB.E2, rel. Carlos Berguete Coelho):

E, por fim, há que referir como abrangidos pelo tipo penal os casos de “micro violência continuada”, que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão … exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”.

É o caso abordado pelo acórdão do TRC de 07-10-2009 (Proc. 317/05.8GBPBL.C2, rel. Mouraz Lopes) em que a “ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa”.

No caso sub judicio temos que o arguido levou a cabo as seguintes acções (indo entre parêntesis a referência aos factos provados):

(5.) O arguido referindo-se à ofendida dizia “porca”, “mentirosa” e “vaca”, “esfregas-te por toda a gente”, “foste uma frustrada na vida”, “só queres é forrobodó”, “não te envergonhas de ter andado com um homem que tem idade para ser teu filho”, “cadela”, “não vales nada”;

(6.) Dizia-lhe “és uma deficiente” (devido ao facto da ofendida ter retirado um peito por sofrer de cancro);

(7.) Cerceou os movimentos e os telefonemas nomeadamente acompanhando-a de automóvel a outras localidades para irem à missa e não chegando a permitir que esta saísse do referido veículo.

(8.) Retirou-lhe o telemóvel que esta habitualmente utilizava para impedir que esta o utilizasse (e tivesse acesso aos números de telefone dele constantes), chegando a efectuar uma lista dos contactos telefónicos daquela.

(9.) Procurou amigas da ofendida a quem mostrou fotografias desta, que revelara sem o seu consentimento, com o homem mais novo com quem aquela se relacionara.

(10.) Exibia as fotografias e dizia:“Trago aqui umas fotografias indecentes para lhe mostrar para ficarem a saber quem é a I” e “é para ficarem a saber quem é a I”, referindo-se à ofendida.

(11.) O arguido dirigiu-se à dona de um estabelecimento dizendo: “A Dona I é uma puta, só quer forrobodó”.

(12.) Oferecendo-se para levar a ofendida ao seu local de trabalho de automóvel e deu propositadamente diversas voltas em E para que esta chegasse atrasada.

(13.) Procurando evitar que a ofendida telefonasse para uma pessoa sua amiga, agarrou-lhe nos antebraços junto aos pulsos, provocando-lhe arranhões e dores.

(14.) Empurrão no peito da ofendida, fazendo com que caísse no chão.

(17.) Uma bofetada na face

(19.) Pancada com as mãos nas costas.

(21.) Agarrando-lhe com as suas mãos a mão direita e torcendo o braço direito, puxou-lhe os cabelos com força.

E isto ocorreu desde o início de 2009 e até 27 de Setembro de 2010, um tempo suficientemente longo e um conjunto de factos suficientemente intensos e diferenciados que, analisados globalmente, não revelando uma exponencial violência, demonstram aquela violência física mínima e uma violência psíquica e emocional relevante, as suficientes para integração no tipo.

De facto, há agressões, humilhações, ameaças, injúrias, coações, sequestro e um conjunto de actos e afirmações claramente violadores da intimidade da ofendida, através do uso de fotografias ilícitas e de devassa da vida privada. Com reflexos na sua saúde psíquica e emocional, como os factos revelam.

Se é certo que nenhum dos actos, de per si, envolve gravidade significativa, o conjunto, a reiteração, o propósito, os reflexos na dignidade da ofendida, dão-lhe uma gravidade significativa na relação à data estabelecida entre ambos.

Por isso, bem andou o tribunal recorrido na tarefa de subsunção dos factos ao direito.

C – Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto.

Custas pelo arguido com 3 (três) Ucs. de taxa de justiça.
Notifique.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 08 de Janeiro de 2013

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz
________________________________________________
[1] - Agora apelidado de “violência doméstica” em contraposição com o estranho tipo de “maus tratos” em que o cônjuge ou equiparado era, estranha e sistematicamente, igualado a menores, incapazes, assalariados, diminuídos por razão de doença, deficiência física ou psíquica e tutelados, pela inclusão no mesmo tipo penal.

[2] - V. g. Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processo penal”, Revista do CEJ, nº 8 (especial), págs. 306-308 e jurisprudência citada na nota 27.

[3] - “Entre o crime do artigo 152.º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus tratos/violência doméstica”.

[4] - “O crime de maus tratos pode concorrer com o de sequestro”.

[5] - “O crime de maus tratos a cônjuge encontra-se numa relação de especialidade com o crime de injúrias sendo aquela a norma prevalente”.

[6] - Perseguição persistente; alguém que importuna de forma insistente e obsessiva uma outra pessoa.

[7] - V. g. Cláudia Coelho e Rui Abrunhosa Gonçalves in “Stalking: uma nova dimensão da violência conjugal”, RPCC, nº 17, nº 2, Abril-Junho 2007, passim.

[8] - V. g. “O crime de violência doméstica: a al. b) do artigo 152º do Código Penal”, Carlos Casimiro Nunes e Maria Raquel Mota, Revista do Ministério Público, nº 122 – Abr-Jun 2010 - págs. 141-143 (133-175).

[9] - Neste Âmbito ver Taipa de Carvalho, in anotação ao artigo 152º do “Comentário Conimbricense do Código Penal”, pag. 332, Coimbra Editora, Coimbra, 1999; Jorge dos Reis Bravo In “A actuação do Ministério Público no âmbito da violência doméstica”, Revista do Ministério Público, nº 102 – Abr-Jun 2005, pag. 66 (45-78); Ricardo Jorge Bragança de Matos in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?” Revista do Ministério Público, nº 107 – Jul-Set 2006, pag. 94-96 (89-120); André Lamas Leite, “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, Julgar, nº 12 – Especial – 2010, pag. (25-66) 49 e nota 83.

[10] - Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal – Parte Geral”, vol. I, pag. 291, Coimbra Editora, 2004.

[11] - No que se concorda com Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica, 2008, anotação ao artigo 152.

[12] - O que justificou a definição de “bem jurídico” então feita por Taipa de Carvalho, in anotação ao artigo 152º do “Comentário Conimbricense do Código Penal”, pag. 332, Coimbra Editora, Coimbra, 1999

[13] - Ob. cit. pág.

[14] - Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal – Parte Geral”, vol. I, pag. 287, Coimbra Editora, 2004.

[15] - Nuno Brandão, “A tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, nº 12 – Especial – 2010, págs. (9-24) 17 e 18.

[16] - Taipa de Carvalho, in anotação ao artigo 152º do “Comentário Conimbricense do Código Penal”, pag. 334, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, o que se compreende dado que o tipo então vigente, sob a epígrafe “Maus tratos e infracção de regras de segurança” tinha a redacção dada pela Lei nº 65/98, de 02-09 e André Lamas Leite, ob. cit. pág. 43.

[17] - “O crime de violência doméstica: a al. b) do artigo 152º do Código Penal”, Carlos Casimiro Nunes e Maria Raquel Mota, Revista do Ministério Público, nº 122 – Abr-Jun 2010 - págs. 146-147.

[18] - Ob. cit., pág. 307.

[19] - Ob. cit. pág. 22.

[20] - Nuno Brandão, ob. cita. pág. 19
[21] - Ob. cit., pág. 23.