Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
158/15.4PBFAR.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: FURTO
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 06/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Para a consumação do crime de furto não é suficiente a remoção da coisa do lugar onde se encontra, exigindo-se a transferência da coisa para fora da esfera de domínio do sujeito passivo;
II – A consumação do crime de furto exige que a coisa entre, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infração.
III – Por isso, comete o crime de furto simples, na forma tentada – e não na forma consumada – o arguido que, com o intuito de fazer seus determinados objetos os retira das prateleiras de um hipermercado, os coloca dentro de um saco, passa nas caixas registadoras da loja sem os mostrar a qualquer dos funcionários que aí operam e sem efetuar o respetivo pagamento, tendo, todavia, logo após ter passado as caixas e ter acionado os alarmes existentes nas mesmas, sido abordado pelos seguranças da loja, que o intercetaram e recuperaram os objetos que trazia consigo.
Decisão Texto Integral: Proc. 158/15.4PBFAR.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal da Comarca de Faro (Faro, Instância Local, Secção Criminal, J1) correu termos o Proc. Comum Singular n.º 158/15.4PBFAR, no qual foi julgado o arguido BB (…) pela prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203 n.º 1 do Cód. Penal.
A final veio a ser condenado, pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203 n.ºs 1 e 2, 22 n.ºs 1 e 2 alínea a), 23 e 73 n.º 1 al.ª c), todos do Cód. Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz o quantitativo global de €800,00 (oitocentos euros).
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2. Recorreu o Ministério Público dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - Por sentença depositada em 10.11.2016 foi o arguido BB condenado, pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 203 n.ºs 1 e 2, 22 n.ºs 1 e 2 alínea a), 23 e 73 n.º 1 al.ª c), todos do Cód. Penal, na pena de 160 dias (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, no valor global de 800,00 euros.
2 - Entendemos que o arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de furto consumado.
3. Os factos provados do ponto 1 a 6 integram a prática de um crime de furto consumado e, não tentativa.
4. O tribunal, ao decidir como decidiu, salvo o devido respeito, confundiu o momento em que o arguido é intercetado na posse dos objetos subtraídos, bem como o momento em que o antigo detentor conhece as verdadeiras intenções do arguido, com a tentativa.
5 - Efectivamente o arguido, colocou os objetos num saco preto e opaco que levava consigo.
6 - De seguida ultrapassou a zona das caixas registadoras, sendo este o momento crucial para a consumação do crime.
7 - Salvo o devido respeito, atualmente, nem a jurisprudência nem a doutrina, incluindo FARIA COSTA, defendem que o conceito jurídico de subtração exige a posse tranquila e em pleno sossego.
8 - Pelo contrário, a consumação do crime basta-se com o início da investidura na situação possessória.
Ainda no mesmo sentido o acórdão do TRC, proferido no Proc. 41/09.2GCBR.C1, no dia 09.09.2009, relator Alberto Mira, onde se pode ler:
1. No crime de furto a consumação formal ocorre no momento em que a coisa alheia entra na esfera patrimonial do arguido, não sendo necessário que este a detenha em pleno sossego e tranquilidade.
2. No referido crime está presente o simples fenómeno da detenção das coisas, que se perde e se constitui sem estar pressuposta a continuação de actos de utilização, revelando, desde logo, para o conceito normativo de “subtração”, o inicio ou investidura na situação possessória, tomada esta em sentido amplo.
3. Consagra-se o conceito de consumação forma ou jurídico. Os atos posteriores de aproveitamento da coisa ou efeitos materiais do crime, pressupostos como finalidade da acção delituosa, não respeitam já à consumação foram do crime, mas à sua consumação material ou exaurimento”.
9 - Existe erro notório na apreciação da prova, vício de conhecimento oficioso, previsto no artigo 410 n.ºs 1 e 2 al.ª c) do CPP.
10 - Este erro é ostensivo e resulta da leitura da sentença, uma vez que o tribunal deu como provados os elementos objetivos do crime, mas como não provada parte do elemento intelectual, o que contraria as regas da experiência de vida e o normal do acontecer, pois se o arguido ultrapassou a zona das caixas registadoras, não só teve a intenção como conseguiu subtrair os bens que com ele trazia.
11 - Pelo que o facto A) dos factos não provados - “o arguido logrou fazer seus os objetos referidos em 1 dos factos provados, como pretendia” - deveria ter sido considerado provado, pois que, ao atuar como atuou, o que resulta dos factos provados, o arguido incorreu na prática de um crime de furto consumado, pois que os atos de execução, tal como previstos no artigo 22 n.ºs 1 e 2 al.ª a) do CP, foram praticados nos momentos que precederam o momento crucial de ultrapassar as caixas registadoras.
13 - Por outro lado, o tribunal condenou o arguido pela prática de crime de furto, na forma tentada, mas não deu como provada os elementos subjetivos da tentativa, pois que ao dar como não provado o facto A) (facto positivo na sua redação) não deu como provado que o arguido não logrou fazer seus os objetos referidos em 1, por circunstâncias alheias à sua vontade.
14 - Por outro lado, o passado criminal do arguido reclama a aplicação de uma pena de multa mais severa, sem aplicação do regime previsto no artigo 73 do CP, que se deverá situar acima do meio da pena, 260 dias à taxa diária já fixada.
15 - Ao decidir como decidiu o tribunal violou os artigos 203, 73, 22, 23, 40, 70, 71 e 47 n.º 1, todos do CP, e artigo 410 n.º 2 al.ª c) do CPP.
16 - Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que considere provado o facto A) dos factos consideradas não provados e que condene o arguido, pela prática de um crime de furto consumado, numa pena de multa não inferior a 260 dias, à taxa diária já fixada na sentença.
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3. O arguido não respondeu e o Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 200 a 202).
4. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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5. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 19 de fevereiro de 2015, pelas 22h35m, no interior da loja designada …, pertencente ao hipermercado…, no …, em Faro, o arguido retirou das prateleiras onde se encontravam expostos os seguintes objetos, pertencentes à sociedade que explora e é dona da referida loja:
- uma máquina de barbear da marca Braun no valor de €99,90;
- um aparelho da marca Beurer no valor de €29,90;
- um termómetro da marca Beurer no valor de €39,90;
- uma escova de dentes eléctrica da marca Oral B no valor de €47,90;
- um telemóvel da marca Nos, modelo Valencia, no valor de €34,99.
2. Estes produtos têm o valor global de € 259,59, incluindo o valor do IVA.
3. O arguido colocou os mencionados objetos dentro de um saco e passou para além das caixas registadoras existentes na loja sem os mostrar a qualquer dos funcionários que aí operam e sem efetuar o respectivo pagamento.
4. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, no intuito de fazer seus os objectos supra descritos, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que, dessa forma, agia contra a vontade do respectivo dono.
5. O arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei.
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6. Os objetos acima mencionados foram todos recuperados e entregues à proprietária, na sequência da interceção do arguido pelos seguranças da loja, que o abordaram logo após ter passado as caixas e ter acionado os alarmes existentes nas mesmas.
7. No Processo n.º 3869/07.4TDLSB, que correu termos no 5.º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença transitada em julgado em 20/09/2009, o arguido foi condenado na pena de 60 dias de multa, pela prática, em 03/05/2007, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11 n.º 1 al.ª a) do DL n.º 454/91, de 28/12.
8. No Processo n.º 1229/09.1PCAMD, que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de Sintra, por sentença transitada em julgado em 02/11/2011, o arguido foi condenado na pena de 180 dias de multa, pela prática, em 22/09/2009, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11 n.º 1 al.ª a) do DL n.º 454/91, de 28/12.
9. No Processo n.º 5823/07.7TDLSB, que correu termos no 1.º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença transitada em julgado em 25/11/2009, o arguido foi condenado na pena de 60 dias de multa, pela prática, em 20/05/2007, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11 n.º 1 do DL n.º 454/91, de 28/12.
10. No Processo n.º 556/13.8PBFAR, que correu termos nesta Instância Local de Faro, por sentença transitada em julgado em 07/05/2015, o arguido foi condenado na pena de 70 dias de multa, pela prática, em 07/10/2013, de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86 n.º 1 al.ª d) da Lei 5/2006, de 23/02.
11. O arguido padece de perturbação de personalidade e esteve internado diversas vezes no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Algarve por alterações do comportamento, algumas delas na sequência de tentativas de suicídio, encontrando-se atualmente a cumprir a medicação prescrita.
12. É oriundo de um agregado familiar com estrato sócio económico satisfatório, mas marcado pela disfuncionalidade dos progenitores, que vieram a divorciar-se quando o arguido tinha 8 anos de idade.
13. O percurso escolar do arguido está associado a vários insucessos face ao desinteresse e absentismo que registava, culminando no abandono definitivo da escolaridade quando tinha 19 anos e frequentava o 9.º ano.
14. Posteriormente voltou a frequentar o sistema de ensino, tendo concluído o 12.º ano de escolaridade em 2006.
15. Em termos profissionais, com regularidade, apenas desenvolveu funções numa empresa de venda de ferramentas, há cerca de 15 anos.
16. Após o falecimento da mãe, ocorrido em 2007, deixou de beneficiar de apoio de retaguarda em termos familiares e teve de recorrer a apoio institucional ao nível alimentar e de alojamento, tendo integrado a … e a ….
17. Desde 2007, encontra-se reformado por invalidez e a aufere uma pensão no montante atual de €284,00.
18. Reside num quarto arrendado, pelo qual paga a quantia mensal de €180,00.
19. A nível alimentar, conta com o apoio da …Faro.
20. Admitiu a prática dos factos e assume o desvalor da conduta sob apreciação.
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6. E não se provou que:
A) O arguido logrou fazer seus os objetos referidos em 1 dos factos provados, como pretendia.
7. O tribunal formou a sua convicção - escreve-se na fundamentação - na apreciação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência (art.º 127 do CPP).
A nível documental, tomou-se em consideração o talão de fls. 7, o auto de notícia de fls. 8, os fotogramas de fls. 14 a 19, o documento clínico de fls. 95, o relatório social de fls. 112 e ss., o relatório pericial de fls. 151 e ss. e o CRC de fls. 156 e ss.
Foram ainda tidas em consideração as declarações do arguido e os depoimentos espontâneos e genuínos das testemunhas CC e DD.
Para dar como provado que, nas circunstâncias espácio-temporais descritas na acusação pública, o arguido retirou os bens descritos na mesma dos expositores da loja designada … pertencente ao hipermercado …, no …Algarve, e os colocou dentro de um saco e passou para além das caixas registadoras existentes na loja sem efetuar o respectivo pagamento (factos n.ºs 1 a 3), valoraram-se as declarações confessórias do arguido, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, os fotogramas de fls. 17 a 19 e o talão de fls. 7, sendo que todos estes meios probatórios convergiram entre si e não suscitaram quaisquer dúvidas ao tribunal – importando acrescentar unicamente que se deu como provado que o valor do telemóvel subtraído pelo arguido ascendia a €34,99 (e não €39,90), por ser esse o valor que constava do talão de fls. 7 e por a testemunha CC ter explicado que os valores deste talão correspondiam ao do preço dos objetos na data dos factos.
No que tange à recuperação dos objetos e ao momento em que esta teve lugar (facto n.º 6), resultou dos depoimentos prestados que, segundo os seguranças do estabelecimento e as imagens de videovigilância, o arguido acionou os alarmes quando passou nas caixas registadoras, razão pela qual foi imediatamente abordado quando ia a sair, tendo sido retido até à chegada da polícia e à sua revista (cf. auto de fls. 8).
Perante a demonstração de que o arguido não chegou a abandonar pacificamente o estabelecimento e foi detetado e retido à saída do mesmo pelos seguranças, ficou por provar o facto A.
Apesar de a testemunha DD ter referido que o arguido lhe pareceu “um pouco desequilibrado” e de o próprio arguido ter dito que à data dos factos estava sem tomar a medicação que lhe tinha sido prescrita pelo psiquiatra há mais de 2 semanas e estava alterado, resultou do relatório pericial junto a fls. 151 e ss que “na altura da ocorrência dos (…) factos, ainda que tivesse cessado a medicação habitual, teria perfeita noção do bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, apresentando capacidade de se determinar segundo essa avaliação”.
Perante o juízo pericial acerca da capacidade que o arguido tinha de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação, apreciando a factualidade objetiva acima apurada à luz das regras da experiência comum, o tribunal deu como provados os factos n.ºs 4 e 5.
Os antecedentes criminais do arguido (factos n.ºs 7 a 10) tiveram-se por assentes com base na análise do CRC do mesmo, que se encontra junto aos autos a fls. 156 e ss.
Quanto ao facto de o arguido padecer de perturbação de personalidade e ter estado diversas vezes internado no DPSM por alterações de comportamento, inclusive, na sequência de tentativas de homicídio (facto n.º 11), mas estar a cumprir atualmente a medicação, atentou-se no teor do relatório pericial de fls. 151 a 153, conjugado com as declarações daquele.
Finalmente, a prova dos factos atinentes às condições pessoais e económicas do arguido e à (atual) assunção do desvalor da conduta (factos n.ºs 12 a 20), resultou da apreciação conjugada do teor do relatório social junto aos autos, a fls. 112 e ss, e das declarações do arguido.
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8. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito.
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.º 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do Código de Processo Penal, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Atentas as conclusões da motivação do recurso, assim consideradas, delas se extarem as seguintes questões colocadas à apreciação deste tribunal:
1.ª - Se a sentença recorrida enferma do vício de notório na apreciação da prova (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP);
2.ª - Se, considerando que o arguido cometeu o crime de furto que lhe vinha imputado - na forma consumada - deve ser condenado numa pena de multa não inferior a 260 dias, à taxa diária fixada na sentença recorrida.
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8.1. - 1.ª questão
O arguido vinha acusado da prática de um crime de furto, na forma consumada, porquanto, em síntese (além do mais que aqui não releva), “… retirou das prateleiras onde se encontravam expostos os seguintes objetos, pertencentes à firma que explora e é dona da referida loja:

O arguido colocou os mencionados objetos dentro de um saco e passou para além das caixas registadores existentes na loja sem os mostrar a qualquer dos funcionários que aí operam e sem efetuar o respectivo pagamento.
O arguido agiu… com o intuito de fazer seus os objetos supra descritos, o que logrou alcançar…”.
Na sentença recorrida foi dado como não provado que “o arguido logrou fazer seus os objetos referidos em 1 dos factos provados, como pretendia”.
Pretende o recorrente que a sentença recorrida, por dar como não provado tal facto, enferma do vício de erro notório na apreciação da prova, “uma vez que da simples leitura da sentença consta que o arguido ultrapassou as caixas registadores com os artigos constantes do ponto 1 dos factos provados”.
Mas não.
O erro notório na apreciação da prova, enquanto vício da decisão, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP, existirá e será relevante quando, apreciada a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, dela ressalta como evidente, manifesta, uma falha grosseira na análise e valoração da prova, porque se deu como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido.
Dito de outro modo, haverá “um tal erro quando um homem médio, perante oque consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou, mesmo, contraditórios” (Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 4.ª edição, 76).
Tal vício, por outro lado, terá de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado comas regras da experiência comum, sem o recurso a elementos externos à mesma, como expressamente resulta do art.º 410 n.º 2 do CPP.
Ora, apreciada a decisão recorrida, na sua globalidade, designadamente, as razões invocadas pelo tribunal para justificar porque razão deu como não provado tal facto - razões que se apresentam como coerentes e lógicas - não se descortina a existência do erro - notório, evidente, manifesto - na apreciação da prova.
De facto, foi dado como provado - para além do invocado facto (“que o arguido ultrapassou as caixas registadores com os artigos constantes do ponto 1 dos factos provados”) - que os objetos “foram todos recuperados e entregues à proprietária na sequência da interceção do arguido pelos seguranças da loja, que o abordaram logo após ter passado as caixas e ter accionado os alarmes existentes nas mesmas”, por outro lado, o tribunal, relativamente a esta matéria, na fundamentação esclareceu - com base nas provas que aí concretizou - que o arguido “acionou os alarmes quando passou nas caixas registadoras, razão pela qual foi imediatamente abordado quando ia a sair… o arguido não chegou a abandonar pacificamente o estabelecimento e foi detetado e retido à saída do mesmo…”, concluindo, por isso, que não logrou fazer seus aqueles objetos.
E este raciocínio tem lógica, é coerente e mostra-se racionalmente justificado, pelo que carece de fundamento a existência do invocado vício de erro notório na apreciação da prova; saber se, em face desta factualidade, assim descrita - e dada como provada - se tem como consumado o crime de furto imputado ao arguido é questão de direito, que com aquela não se confunde.
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8.2. - 2.ª questão
O tribunal considerou que o crime imputado ao arguido não chegou a consumar-se, pois que “para a consumação do crime de furto não é suficiente a amotio (remoção da coisa do lugar onde se encontra), exigindo-se antes a ablatio (transferência da coisa para fora da esfera de domínio do sujeito passivo)… a consumação do crime de furto exige que a coisa entre, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infração.
Como refere o Professor Faria Costa, não basta o instantâneo domínio de facto, sendo ao menos de exigir um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa, sob pena de se fazer coincidir subtração com domínio do facto, «com consequências desastrosas para a desistência da tentativa».
À aferição do domínio do facto não são alheias as circunstâncias relativas à própria configuração do espaço onde se dá a prática do crime e à vigilância e custódia das coisas nesse mesmo espaço.
… o arguido foi intercetado num momento em que os bens subtraídos ainda se encontravam dentro de um espaço de custódia e vigilância do seu proprietário… não teve os objetos de que se apoderou na sua posse por um mínimo de tempo que lhe permitisse alcançar um efetivo domínio de fato sobre os mesmos.
… ainda se encontrava na fase da prática de atos de execução do crime, nos termos do art.º 22 n.ºs 1 e 2 al.ª a) do Código Penal….”.
E bem se decidiu.
De facto, atentas as circunstâncias em que o arguido é intercetado, no momento em que acaba de se passar as caixas registadoras - por terem disparado os alarmes - só por mera ficção se pode dizer que o arguido teve o domínio de facto sobre tais bens ou que estes chegaram a estar na sua disponibilidade - que não estiveram - pois os mesmos não chegaram a sair da esfera da controlo/vigilância da sua legítima proprietária.
Como bem nos dá conta o Ministério Público junto deste tribunal, em excerto retirado do Trabalho Final para obtenção do grau de mestre em Direito, na Universidade Católica Portuguesa, de André Ribeiro Moreira de Almeida, citando Nélson Hungria, “o furto não se pode dizer consumado senão quando a custódia de vigilância, direta ou indireta, exercida pelo proprietário, tenha sido totalmente iludida. Se o ladrão é encalçado, ato seguido à apprrehentio da coisa e vem a ser privado desta pela força ou por desistência voluntária… o furto deixou de se consumar, não passando da fase da tentativa. Não foi completamente frustrada a posse ou vigilância do dono. Não chegou este a perder, de todo, a possibilidade de contacto material com a res ou de exercício dos eu poder de disposição sobre ela”.
O conceito de esfera de vigilância - escreve aquele autor - “abrange, não só o local imediato onde se encontrava a coisa subtraída, mas também toda a realidade circundante do eventual anterior detentor. Logo, se o lesado persegue o agente infrator, ainda que o faça já fora de sua casa, por exemplo, continua a considerar-se que a coisa está na custódia de vigilância, mediata, do lesado e, portanto, não se deve ter o crime por consumado…”.
Esta posição é sufragada no acórdão deste tribunal de 17.03.2015, Proc. 43/12.1GCLGS.E1, in www.dgsi.pt, de que foi relator o Exm.º Desembargador João Amaro, onde se defendeu que a subtração não é uma apropriação, enquanto “exercício de poderes que formam o contudo do direito de propriedade”, mas “tão só a perda dos poderes de facto do detentor originário e a constituição de uma nova detenção por parte do agente do crime”; e “a investidura nessa situação de nova detenção (por parte do agente do crime) dever-se-á considerar realizada quando o agente passa a controlar, de facto, a coisa, passa a tê-la sob o seu domínio, em exclusividade, o que pressupõe que a coisa foi retirada de facto do anterior detentor, que sobre ela deixou de ter a possibilidade de controlo”, situação que, no caso, pelas razões que se deixaram expostas, não se verificou no caso em apreço.
Consequentemente, em face do que se deixa dito - e porque, em síntese, no caso concreto o arguido não chegou a ter um domínio de facto sobre tais bens, que não chegaram a sair do domínio/controlo/vigilância da sua legítima proprietária - não pode o crime de furto imputado ao arguido ter-se como consumado.
Não deixará de se acrescentar que - contrariamente ao alegado pelo recorrente - a matéria de facto contém, efetivamente, todos os dados de facto que permitem concluir pela prática do crime de furto imputado ao arguido na forma tentada.
Em síntese, o arguido praticou atos de execução de um crime que decidiu cometer (a retirada dos bens das prateleiras “no intuito de fazer seus os objetos supra descritos”), mas - porque, logo “após ter passado as caixas e ter acionado os alarmes existentes nas mesmas”, foi abordado pelos seguranças da loja, que o intercetaram e recuperaram os objetos que trazia consigo - não logrou fazê-los seus, ou seja, não conseguiu fazê-los seus por, em consequência da vigilância a que estava sujeito, ter sido impedido.
Improcede, por isso, o recurso.
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9. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Sem tributação.
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 27/06/2017
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma