Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
706/13.4TBABT.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
CÔNJUGE
CITAÇÃO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os cônjuges dos herdeiros são sempre citados para o inventário quando do património da herança façam parte bens imóveis ou estabelecimento comercial, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, nesse sentido carecendo a concretização da partilha de consentimento conjugal, nos termos do nº 1 do artº 1692º-A do C. Civil.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 706/13.4TBABT.E1 (2ª Secção Cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


Nos autos de inventário que presentemente correm termos na Comarca de Santarém (Juízo Local Cível de Abrantes) e a que se procedeu por óbito de (…) e (…) em que é cabeça de casal (…), veio (…), casada em comunhão de adquiridos com o herdeiro testamentário (…), veio interpor recurso da sentença homologatória da partilha, bem como do despacho de 01/04/2013 pelo qual se julgou improcedente uma nulidade processual, de falta de convocação para a conferência de interessados, por si arguida, e cujo teor é o seguinte:
Da nulidade invocada por (…), cônjuge do interessado (…):
Como a própria alega e consta do assento de casamento junto aos autos, a mesma é casada com o interessado no regime de comunhão de adquiridos.
Assim, os bens que o interessado venha a adquirir através do presente inventário são bens próprios do mesmo, ainda que lhe advenham depois do casamento por sucessão, nos termos do disposto no artº 1722º, nº 1, al. b), do C.C.
Para além disso, dispõe o art° 1683º, nº 1, do C.C., que os cônjuges não necessitam do consentimento, um do outro, para aceitar as heranças, assim como as doações ou os legados. Por conseguinte, o cônjuge do herdeiro casado no regime de comunhão de adquiridos, não sendo interessado, direto ou indireto, na partilha, até nem tinha que ser citado para os termos do inventário e, seguramente, não teria que ser convocado – como aconteceu no presente caso – para a conferência de interessados, não constituindo, por isso, a falta da sua citação, ou da sua convocação para a conferência de interessados, qualquer invalidade processual (neste mesmo sentido, cfr. AC RP de 14/2/2013 - Proc. n° 1625/09.4TBPNF-A.P1 - www.dgsi.pt. ).
Pelo exposto, julgo improcedente a nulidade invocada pela requerente, não havendo fundamento legal para convocar nova conferência de interessados.
Custas pela requerente, com duas UC 'S de taxa de justiça.”
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No recurso interposto foram apresentadas as respectivas alegações, terminando a recorrente por formular as seguintes conclusões que se passam a transcrever:
1 – A recorrente está casada no regime de comunhão de adquiridos com (…).
2 – O inventário que constitui este processo foi instaurado para partilha dos bens deixados pelos pais do seu marido.
3 – Foi realizada nos autos a conferência de interessados prevista na lei,
4 – Mas a recorrente não foi convocada para tal conferência, nem foi notificada da data da mesma nem do seu objeto – porque se entendeu que a recorrente não seria interessada no inventário, apesar de, até então, ter sido sempre tratada como tal: foi citada para os termos do inventário e foi notificada da relação de bens, para efeitos do disposto no artº 1348º-1 do CPC anterior.
5 – E essa conferência realizou-se sem a participação da recorrente, tendo-se nela tomado decisões que se traduziram na alienação de imóveis (ou, se se preferir, de direitos reais inerentes a imóveis, que tanto dá, porque a alienação de imóveis referida no artº 1682º-A do CC, face ao disposto na al. d) do nº 1 do artº 204º do CC, alcança e abrange a alienação de qualquer direito real inerente a imóveis.
6 - Mas, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artº 1682º-A do CC, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens – o que não é o caso, dado que, como se referiu, a recorrente está casada com o herdeiro (…) no regime de comunhão de adquiridos.
7 – A recorrente arguiu a nulidade resultante de não ter sido convocada para aquela conferência (omissão de formalidade prescrita na lei suscetível de influir na decisão da causa) e requereu que se realizasse nova conferência de interessados para que fosse devidamente convocada.
8 – Contudo, o Mº Juiz a quo entendeu que a recorrente não era interessada direta ou indireta na partilha, nos termos constantes no douto despacho recorrido.
9 – Sem razão, porém, no entender da recorrente, porque se nas conferências de interessados se permitisse que as decisões sobre o destino dos imóveis comuns ou próprios do cônjuge herdeiro ou dos direitos reais inerentes a tais imóveis fossem tomadas à revelia do respetivo cônjuge, sem consentimento dele, afrontava-se a violava-se o disposto na al. a) do nº 1 do artº 1682º-A do CC (proibição de alienação de bens próprios dum dos cônjuges sem consentimento do outro),
10 – Escancarando-se assim uma porta por onde poderiam passar quantos quisessem contornar aquela proibição.
Dado que,
11 - Na conferência de interessados pode-se acordar na venda total ou parcial dos bens e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados (al. c) do nº 1 do artº 1353º do CPC anterior que foi integralmente transferido para o artº 48º do Regime Jurídico do Processo de Inventário – Lei nº 23/2013, de 5 de Março).
12 - E a doutrina do douto despacho recorrido patrocinaria objetivos imorais e ilegais: basta pensar num casal em crise conjugal em que um dos cônjuges se mancomunasse com os outros herdeiros para subtrair ao seu casal todos os imóveis ou a parte mais rendosa deles, para que o seu cônjuge nada herdasse desses bens ou não gozasse dos seus rendimentos.
13 - E a lei (artº 1352º do CPC, que se aplica neste processo) manda convocar todos os interessados.
14 – A nossa jurisprudência não sufraga o entendimento do despacho recorrido.
15 – São esclarecedores e de conteúdos contrários o Ac. da Relação do Porto de 22.6.2010 e o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2010 que se transcreveram.
16 – A lei não pode consentir o detrimento das bases de sustentação dos casais – tanto mais que o disposto no nº 1 do artº 1682º-A do CC foi determinado pela preocupação de proteger a família, de todo desprotegida no entendimento da douta decisão recorrida.
Acresce que
17 – Os argumentos do Acórdão em que se louvou a decisão recorrida (Ac. TRP de 14.2.2013) foram certeiramente rebatidos no douto Ac. do TRP de 5.11.2015;
18 – Onde se conclui acertadamente que a partilha da herança, da qual façam parte imóveis, carece de consentimento do cônjuge casado com um dos herdeiros no regime de comunhão de adquiridos, por aplicação analógica do artigo 1682º-A-1-a) do Código Civil.
19 – A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1352º do CPC aplicável e nos artigos 11º-2 e 1682º-A-1-a) do Código Civil.
Dado que
20 - As referidas normas jurídicas deveriam ter sido aplicadas e interpretadas no sentido de julgar procedente a nulidade invocada pela recorrente.
Pelo exposto,
21 – Deve declarar-se a nulidade da conferência de interessados realizada – com a consequente anulação de todos os atos subsequentes praticados no processo, designadamente da sentença que homologou a partilha.
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A cabeça de casal (…) veio contra-alegar pugnando pela manutenção dos julgados.
Cumpre apreciar e decidir
O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso
Tendo por alicerce as conclusões, a questão a decidir consiste em determinar se existia (ou não) fundamento para declarar nula a conferência de interessados que se realizou no âmbito do presente processo de inventário no dia 08/02/2016, nulidade que a reconhecer-se implicará a anulação dos atos subsequentes, designadamente a sentença homologatória da partilha.

Para apreciação da questão há que ter em conta no relatório, designadamente os factos que emergem do, transcrito, despacho impugnado.
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Conhecendo da questão
(…), casada com o herdeiro testamentário (…), no regime de comunhão de adquiridos, veio aos autos dizer que não foi convocada para a conferência de interessados realizada no dia 08/02/2016, nem notificada da data da mesma, nem do seu objeto, tal como não foi notificada nos termos do nº 4 do artº 1352º, do CPC.
Consequentemente, na sua opinião, gerou-se a nulidade da referida conferência, por se terem sido omitidas formalidades prescritas na lei suscetíveis de influir no exame e na decisão da causa, nos termos dos artºs 195º do NCPC e 201º do CPC anterior.
Requereu, assim, que se declarasse nula e sem efeito a conferência de interessados e que fosse designada nova data, devendo a requerente ser convocada e notificada nos termos do artº 1352º do anterior CPC.
Notificados os interessados do teor do requerimento da requerente, apenas veio responder a cabeça de casal (…), referindo que o cônjuge do herdeiro casado no regime de comunhão de adquiridos não é legalmente considerado interessado direto na partilha, mormente para efeitos de inventário, não sendo sequer considerado, nesse âmbito, como interessado indireto ou reflexo.
Pelo que não tem a requerente que ser citada para o processo, nem sequer convocada para qualquer ato no seu âmbito.
Sendo a conferência de interessados realizada completamente válida.
Não obstante a argumentação usada no despacho recorrido, somos do entendimento que assiste razão à recorrente.
A recorrente está casada no regime de comunhão de adquiridos com (…).
O presente inventário foi instaurado para partilha dos bens deixados pelo falecido (…), avô do marido da recorrente.
Concorrem ao presente inventário, … (cabeça de casal), filha do falecido (…) e os seus dois filhos, (…), casado com a recorrente sob o regime de comunhão de adquiridos, e (…), casado com (…), sob o regime de comunhão de adquiridos.
Quando a cabeça de casal apresentou a relação de bens foram todos os interessados notificados da mesma, incluindo a aqui recorrente.
Para a conferência de interessados a mesma já não foi convocada, nem notificada da sua realização.
Os bens que constam da relação de bens que foi apresentada pela cabeça de casal e que se encontra junta aos autos a fls. 159 a 164, são móveis e imóveis.
Atento o disposto no artº 1682º-A do CC, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens.
No caso em apreço, entre os cônjuges não vigorava o regime de separação de bens, mas sim o regime de comunhão de adquiridos, pelo que teria de haver sempre o consentimento de ambos os cônjuges, para os aludidos fins.
Segundo João António Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais, vol. I, 4ª ed. fls. 386/387, a citação do cônjuge do herdeiro tem sido objeto de disciplina processual pouco uniforme; assim também na doutrina e na jurisprudência.
A questão, por assim dizer, só era posta quando na herança se compreendiam bens imóveis.
No domínio do Código de 1876 sustentaram-se as duas teses e, perante esta incerteza, e querendo pôr-lhe termo, já que o Projeto do Código de 1939 a deixava em aberto, a Comissão Revisora veio a deliberar que era sempre necessária a citação do cônjuge, salvo se o casamento fosse com separação de bens.
Na revisão a que se procedeu em 1961, o cônjuge do herdeiro passou a ser sempre citado para os termos do inventário, quer na herança se compreendessem ou não bens imóveis e fosse qual fosse o regime do seu casamento com o próprio herdeiro (CPC, artº 1329º, nº 1).
O C. Civil de 1967 modificou radicalmente os poderes de disposição dos cônjuges, permitindo aos que contraíram matrimónio segundo o regime de separação a livre alienação dos seus bens próprios ou comuns (artºs 1682º, nº 1 e 2 e 1682º-A).
No entanto, o Dec-Lei nº 48690 não modificou nessa parte e na respetiva conformidade o dito artº 1329º nº1 do CPC.
O que tudo vale por dizer que, na coerência da lei civil, o regime de separação de bens afastará de futuro a citação do cônjuge do herdeiro para o inventário; não assim nos regimes de comunhão de adquiridos ou de comunhão geral (no mesmo sentido v. Augusto Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais, 6ª edição, vol. I, pág. 543)
Assim, para o ilustre tratadista, serão sempre citados os cônjuges dos herdeiros para o inventário, desde que não sejam casados no regime de separação de bens.
Nesta perspectiva cônjuge do herdeiro apenas será de considerar interessado direto na partilha e apenas terá de ser citado, quando tiver interesse na mesma, o que depende do regime de bens do casamento.
No caso dos presentes autos, tendo a recorrente celebrado casamento sob o regime de comunhão geral de adquiridos, com o herdeiro terá interesse direto na partilha, já que o direito à herança faz parte do património comum, conforme art.º 1732ª do Cód. Civil (v. Ac. do TRC de 03/07/2012, no proc.45/10.2TJCBR-B-C1, in www.dgsi.pt).
Também no Ac. do TRP de 22/06/2010, no proc.1418/06.OTBCHV.P1, in www.dgsi.pt se considerou: “O cônjuge do herdeiro, no regime da comunhão de adquiridos, é interessado no inventário, atendendo a que os artºs 1682º, nº 3 e 1682º-A do Cód. Civil, impõem a necessidade do consentimento de ambos os cônjuges em diversas situações de alienação ou oneração de bens próprios”.
Os cônjuges dos herdeiros são sempre citados para o inventário quando do património da herança façam parte bens imóveis ou estabelecimento comercial, salvo se entre os cônjuges vigorar o regime de separação de bens, no sentido de que vigorando entre os cônjuges o regime de comunhão de adquiridos e fazendo parte da herança a partilhar, imóveis ou estabelecimento comercial, a concretização da partilha carece de consentimento conjugal nos termos do nº 1 do artº 1692º-A do C. Civil (cfr Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. II, 2ª Ed., Almedina 2004, 246.
Nestes termos, a razão está do lado da recorrente, pelo que a apelação haverá de proceder.
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DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação, e em consequência, revoga-se a decisão recorrida, proferida em 01/04/2013, e reconhece-se à recorrente o direito de ser citada para os termos do inventário e convocada para a conferência de interessados, anulando-se a que foi realizada, bem como os actos subsequentes, nomeadamente a sentença homologatória da partilha, devendo designar-se nova conferência, com a convocação, da ora recorrente, para a mesma,
Custas pela interessada (…).
Évora, 08-06-2017
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Mário António Mendes Serrano