Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MÁRIO SERRANO | ||
Descritores: | FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA USUCAPIÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/08/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | O instituto jurídico da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. nº 1011/16.0T8STB.E1-2ª (2017) Apelação-1ª (2013 – NCPC) (Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC) ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: I – RELATÓRIO: Na presente acção de processo comum, a correr termos em Secção Cível da Instância Local de Setúbal da Comarca de Setúbal, instaurada pelo Ministério Público (MºPº) contra (…) e mulher, (…), e (…) e marido, (…), foi pelo A. alegado que os 1os RR. e os 2os RR. obtiveram, respectivamente, mediante escrituras de justificação notarial (datadas de 2/1/2015), o reconhecimento de posse prolongada em relação a parcelas de terreno integradas em prédio rústico, sem que tal situação correspondesse à verdade e de modo a obter o destaque de prédios com áreas inferiores à área de cultura mínima (de 7,5 hectares, para terreno de sequeiro – ou mesmo de 0,5 hectares, se dever ser classificado como terreno hortícola de regadio –, conforme Portaria nº 202/70, de 21/4), o que é proibido à luz do artº 1376º, nº 1, do C.Civil, e, nessa base, pediu o A. a declaração de nulidade dos referidos actos. Na contestação, os RR. impugnaram o pedido, alegando que os dois prédios em causa foram adquiridos por usucapião, face a posses, de uns e outros respectivamente, que se prolongam desde pelo menos 1988, o que impede a aplicação do condicionalismo da área mínima, conforme tem entendido a jurisprudência – pelo que deve a presente acção improceder. Após o saneamento do processo e a prolação de despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, teve lugar o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (a fls. 73-81) que julgou improcedente a acção. Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto provada resultou que se mostram verificados factos bastantes para configurar posses pacíficas, públicas e de boa fé dos RR. desde 1988, pelo que se deve entender que adquiriram por usucapião direito de propriedade sobre os prédios a que se referem as escrituras em causa; ainda que aplicável o regime da unidade mínima de cultura, faltou ao A. demonstrar a que finalidade agrícola se destinavam esses prédios, para aferir qual a área a considerar, pelo que, por aqui, logo deve improceder a acção; e tendo os RR. a posse e o animus de posse, por mais de 30 anos, relativamente a esses prédios, são verdadeiras as declarações inscritas nas escrituras, pelo que também por esta via deve improceder a acção. Inconformado com tal decisão, dela apelou o A., formulando as seguintes conclusões: «– Ainda que se tenha verificado a usucapião, tal instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima; – Estas últimas normas constituem a disposição legal em contrário, mencionada no próprio art.º 1287º do Código Civil; – Assim, os negócios jurídicos titulados pelas escrituras juntas os autos são anuláveis, por ofensa do disposto no art.º 1376º do Código Civil.»
* II – FUNDAMENTAÇÃO: A) DE FACTO: O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir: «1. Os 1.º e 2.º Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Setúbal de Sandra Morais Teles Bolhão, no dia 02.01.2015, exarada de fls. 82 a fls. 87 do Livro de escrituras diversas n.º 11-A, na qualidade de justificantes. 2. Na escritura id. em 1., os 1.º e 2.º Réus declararam: 2.1 Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do: prédio rústico, com a área total de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, que confronta a norte com (…), a sul com (…), a nascente com caminho público e poente com (…), ao qual atribuem o valor de € 250,00. 2.2 Que o indicado prédio rústico está ao presente inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo (…), da secção (…), que proveio do artigo (…) e este do (…) da secção (…) da freguesia de Palmela, sendo na matriz seus titulares para efeitos fiscais, o justificante marido e sua irmã (…). 2.3 Que o mencionado prédio rústico, na Conservatória competente é parte do ora descrito sob o número (…) de treze de Outubro de dois mil e dez da referida freguesia de Palmela, extratação do descrito sob o número (…), do Livro B-34, com inscrição de aquisição, em comum e partes iguais a favor de: a) (…) e mulher, (…), e; b) (…) e marido, (…), casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes em (…), Palmela, pela inscrição requisitada pela apresentação (…) de vinte e um de Fevereiro de dois mil, extratação da inscrição número (…) a folhas (…), do Livro G-81. 2.4 Que o referido (…) que também usou (…), faleceu no dia vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro, no estado de casado com (…) no regime de comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como herdeiros a então cônjuge sobreviva, presentemente falecida, sucedendo-lhes os filhos de ambos, (…) e (…). 2.5 Que por morte do mencionado (…), se procedeu a inventário que correu seus termos no Tribunal de Círculo e Comarca de Setúbal, com o número sessenta e dois barra oitenta do então quarto juízo, segunda secção, e nele o prédio rústico, ora a usucapir constituía verba número sete e nesse título foi adjudicado em comum e partes iguais, aos dois filhos do “de cujus”, (…) e (…), esta então menor, por sentença transitada em julgado a treze de Outubro de mil novecentos e oitenta e sete, e finda a partilha, no caso judicial, cada um dos dois referidos herdeiros, foi considerado, desde a abertura da herança, titular do direito a ele adjudicado no inventário. 2.6 Que, assim os dois referidos herdeiros, (…) e (…), são titulares do prédio a eles adjudicado em comum e partes iguais, desde vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro. 2.7 Que no primeiro trimestre de mil, novecentos e oitenta e oito, os ora primeiros outorgantes e a outra comproprietária (…), intervindo nesse acordo a sua representante legal, sua mãe, acordaram as partes verbalmente não continuar na situação de compropriedade resultante do inventário e, assim, por acordo, também verbal, dividiram o prédio de que eram co-proprietários, em dois novos prédios, sendo um deles o prédio no início identificado, que foi adjudicado a estes, ora usucapientes. 2.8 Que logo nessa data, ela primeira outorgante e posteriormente ela e seu marido o demarcaram, limparam, trataram e podaram as árvores neles existentes, plantando batatas e semeando outros produtos hortícolas, substituíram cepas velhas por novas, colheram as uvas e frutos. 2.9 Que desde a data do apossamento referida, eles primeiros outorgantes, entraram na posse efectiva e material do referido prédio rústico, usando de todas as utilidades por ele proporcionadas com o ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecidos como donos por toda a gente, fazendo de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém. 2.10 Que a referida (…) quando atingiu a maioridade, por acto unilateral, confirmou a divisão verbal antes acordada, sanado assim o vício inicial de anulabilidade, dado tal acordo lhe ser conveniente. 2.11 Que a posse por eles usucapientes manifestada nos actos possessórios mencionados retrotrai os seus efeitos à data do apossamento atrás mencionado, ou seja, ao primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito. 2.12 Que a usucapião invocada, faculdade que cabe a eles justificantes por exercerem uma posse de boa fé pública e pacífica, é uma forma originária de aquisição de um direito real novo, ora invocado, distinto do anterior que se extinguiu, e rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio. (…) 2.13 Que os efeitos da usucapião ora invocada retrotraem à data do início do apossamento, (…). 2.14 Que assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, (…) e mulher (…) adquiriram por usucapião, com efeitos retrotraídos à data do primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura e nela está devidamente identificado. 3. Na escritura id. em 1., (…), (…) e (…) declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem. 4. Os 3.º e 4.º Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Setúbal de Sandra Morais Teles Bolhão, no dia 02.01.2015, exarada de fls. 76 a fls. 81 do Livro de escrituras diversas n.º 11-A, na qualidade de justificantes. 5. Na escritura id. em 4., os 3.º e 4.º Réus declararam: 5.1 Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do: prédio rústico, com a área total de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, que confronta a norte com (…), a sul com (…), a nascente com (…) e a poente com caminho público, ao qual atribuem o valor de € 250,00. 5.2 Que o indicado prédio rústico está ao presente inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo (…), da secção (…), que proveio do artigo (…) e este do (…) da secção (…) da freguesia de Palmela, sendo na matriz seus titulares para efeitos fiscais, a justificante mulher e seu irmão (…). 5.3 Que o mencionado prédio rústico, na Conservatória competente é parte do ora descrito sob o número (…) de treze de Outubro de dois mil e dez da referida freguesia de Palmela, extratação do descrito sob o número (…) do Livro B-34, com inscrição de aquisição, em comum e partes iguais a favor de: c) (…) e mulher, (…), e; d) (…) e marido, (…), casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes em (…), Palmela, pela inscrição requisitada pela apresentação (…) de vinte e um de Fevereiro de dois mil, extratação da inscrição número (…) a folhas (…), do Livro G-81. 5.4 Que o referido (…) que também usou (…), faleceu no dia vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro, no estado de casado com (…) no regime de comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como herdeiros a então cônjuge sobreviva, presentemente falecida, sucedendo-lhes os filhos de ambos, (…) e (…). 5.5 Que por morte do mencionado (…), se procedeu a inventário que correu seus termos no Tribunal de Círculo e Comarca de Setúbal, com o número sessenta e dois barra oitenta do então quarto juízo, segunda secção, e nele o prédio rústico, ora a usucapir constituía verba número sete e nesse título foi adjudicado em comum e partes iguais, aos dois filhos do “de cujus”, (…) e (…), esta então menor, por sentença transitada em julgado a treze de Outubro de mil novecentos e oitenta e sete, e finda a partilha, no caso judicial, cada um dos dois referidos herdeiros, foi considerado, desde a abertura da herança, titular do direito a ele adjudicado no inventário. 5.6 Que, assim os dois referidos herdeiros, (…) e (…), são titulares do prédio a eles adjudicado em comum e partes iguais, desde vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro. 5.7 Que no primeiro trimestre de mil, novecentos e oitenta e oito, os ora primeiros outorgantes e a outra comproprietária (…), intervindo nesse acordo a sua representante legal, sua mãe, acordaram as partes verbalmente não continuar na situação de compropriedade resultante do inventário e, assim, por acordo, também verbal, dividiram o prédio de que eram co-proprietários, em dois novos prédios, sendo um deles o prédio no início identificado, que foi adjudicado a eles, ora usucapientes. 5.8 Que logo nessa data, ela primeira outorgante e posteriormente ela e seu marido o demarcaram, limparam, trataram e podaram as árvores neles existentes, plantando batatas e semeando outros produtos hortícolas, substituíram cepas velhas por novas, colheram as uvas e frutos. 5.9 Que desde a data do apossamento referida, eles primeiros outorgantes, entraram na posse efectiva e material do referido prédio rústico, usando de todas as utilidades por ele proporcionadas com o ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecidos como donos por toda a gente, fazendo de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém. 5.10 Que a referida (…) quando atingiu a maioridade, por acto unilateral, confirmou a divisão verbal antes acordada, sanado assim o vício inicial de anulabilidade, dado tal acordo lhe ser conveniente. 5.11 Que a posse por eles usucapientes manifestada nos actos possessórios mencionados retrotrai os seus efeitos à data do apossamento atrás mencionado, ou seja, ao primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito. 5.12 Que a usucapião invocada, faculdade que cabe a eles justificantes por exercerem uma posse de boa fé pública e pacífica, é uma forma originária de aquisição de um direito real novo, ora invocado, distinto do anterior que se extinguiu, e rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio. (…) 5.13 Que os efeitos da usucapião ora invocada retrotaem à data do início do apossamento, (…). 5.14 Que assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, (…) e (…) adquiriram por usucapião, com efeitos retrotraídos à data do primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura e nela está devidamente identificado. 6. Na escritura id. em 4., (…), (…) e (…) declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem. 7. As áreas dos prédios destacados são de 3787,00 m2 cada um. 8. Nos autos do processo inventário supra referido o prédio rústico mãe, foi adjudicado aos interessados (…) e mulher, e (…), ora Réus, “na proporção de metade para cada um“, em 1985. 9. Mas, já em 1980, o Réu (…) agia como se proprietário fosse da sua parcela ao requerer um licenciamento camarário (E- 517/80) de uma moradia a implantar/construir no prédio rústico. 10. Em meados do primeiro trimestre de 1988, a mãe dos Réus voltou a evidenciar a divisão verbal, só que nunca foi reduzida a escrito. 11. Nesta data, a mãe dos RR., (…), por acordo verbal com os filhos, procederam à divisão verbal e fáctica do prédio, ao ter medido, demarcado, vedado e separado fisicamente o prédio rústico em duas parcelas distintas e autónomas, os atuais dois prédios, conforme já tinha sido acordado já em 1980 “na proporção de metade”. 12. A partir de Março 1988, os RR. mediram e vedaram as parcelas e passaram a fruir/possuir a parcela de terreno a eles adjudicada como se fosse sua, sem qualquer oposição, pacificamente, à vista de toda a gente, de boa fé, cultivando construindo, edificando, limpando o terreno, plantando arvores de fruto e horta, colhendo os respectivos produtos. 13. Sempre assim o fizeram sem qualquer interrupção, continuamente durante mais de 30 anos, sendo conhecidos por todas as gentes da terra.»
|