Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1011/16.0T8STB.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O instituto jurídico da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1011/16.0T8STB.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum, a correr termos em Secção Cível da Instância Local de Setúbal da Comarca de Setúbal, instaurada pelo Ministério Público (MºPº) contra (…) e mulher, (…), e (…) e marido, (…), foi pelo A. alegado que os 1os RR. e os 2os RR. obtiveram, respectivamente, mediante escrituras de justificação notarial (datadas de 2/1/2015), o reconhecimento de posse prolongada em relação a parcelas de terreno integradas em prédio rústico, sem que tal situação correspondesse à verdade e de modo a obter o destaque de prédios com áreas inferiores à área de cultura mínima (de 7,5 hectares, para terreno de sequeiro – ou mesmo de 0,5 hectares, se dever ser classificado como terreno hortícola de regadio –, conforme Portaria nº 202/70, de 21/4), o que é proibido à luz do artº 1376º, nº 1, do C.Civil, e, nessa base, pediu o A. a declaração de nulidade dos referidos actos.

Na contestação, os RR. impugnaram o pedido, alegando que os dois prédios em causa foram adquiridos por usucapião, face a posses, de uns e outros respectivamente, que se prolongam desde pelo menos 1988, o que impede a aplicação do condicionalismo da área mínima, conforme tem entendido a jurisprudência – pelo que deve a presente acção improceder.

Após o saneamento do processo e a prolação de despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, teve lugar o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (a fls. 73-81) que julgou improcedente a acção. Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto provada resultou que se mostram verificados factos bastantes para configurar posses pacíficas, públicas e de boa fé dos RR. desde 1988, pelo que se deve entender que adquiriram por usucapião direito de propriedade sobre os prédios a que se referem as escrituras em causa; ainda que aplicável o regime da unidade mínima de cultura, faltou ao A. demonstrar a que finalidade agrícola se destinavam esses prédios, para aferir qual a área a considerar, pelo que, por aqui, logo deve improceder a acção; e tendo os RR. a posse e o animus de posse, por mais de 30 anos, relativamente a esses prédios, são verdadeiras as declarações inscritas nas escrituras, pelo que também por esta via deve improceder a acção.

Inconformado com tal decisão, dela apelou o A., formulando as seguintes conclusões:

«– Ainda que se tenha verificado a usucapião, tal instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima;

– Estas últimas normas constituem a disposição legal em contrário, mencionada no próprio art.º 1287º do Código Civil;

– Assim, os negócios jurídicos titulados pelas escrituras juntas os autos são anuláveis, por ofensa do disposto no art.º 1376º do Código Civil.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do apelante resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto da sentença recorrida, quanto ao entendimento do tribunal a quo (contrário ao do MºPº, enquanto autor da acção) de que o instituto da usucapião, aplicável em função da matéria provada à situação de posse dos RR., prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima.

Cumpre apreciar e decidir.

*


II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. Os 1.º e 2.º Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Setúbal de Sandra Morais Teles Bolhão, no dia 02.01.2015, exarada de fls. 82 a fls. 87 do Livro de escrituras diversas n.º 11-A, na qualidade de justificantes.

2. Na escritura id. em 1., os 1.º e 2.º Réus declararam:

2.1 Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do: prédio rústico, com a área total de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, que confronta a norte com (…), a sul com (…), a nascente com caminho público e poente com (…), ao qual atribuem o valor de € 250,00.

2.2 Que o indicado prédio rústico está ao presente inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo (…), da secção (…), que proveio do artigo (…) e este do (…) da secção (…) da freguesia de Palmela, sendo na matriz seus titulares para efeitos fiscais, o justificante marido e sua irmã (…).

2.3 Que o mencionado prédio rústico, na Conservatória competente é parte do ora descrito sob o número (…) de treze de Outubro de dois mil e dez da referida freguesia de Palmela, extratação do descrito sob o número (…), do Livro B-34, com inscrição de aquisição, em comum e partes iguais a favor de:

a) (…) e mulher, (…), e;

b) (…) e marido, (…), casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes em (…), Palmela, pela inscrição requisitada pela apresentação (…) de vinte e um de Fevereiro de dois mil, extratação da inscrição número (…) a folhas (…), do Livro G-81.

2.4 Que o referido (…) que também usou (…), faleceu no dia vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro, no estado de casado com (…) no regime de comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como herdeiros a então cônjuge sobreviva, presentemente falecida, sucedendo-lhes os filhos de ambos, (…) e (…).

2.5 Que por morte do mencionado (…), se procedeu a inventário que correu seus termos no Tribunal de Círculo e Comarca de Setúbal, com o número sessenta e dois barra oitenta do então quarto juízo, segunda secção, e nele o prédio rústico, ora a usucapir constituía verba número sete e nesse título foi adjudicado em comum e partes iguais, aos dois filhos do “de cujus”, (…) e (…), esta então menor, por sentença transitada em julgado a treze de Outubro de mil novecentos e oitenta e sete, e finda a partilha, no caso judicial, cada um dos dois referidos herdeiros, foi considerado, desde a abertura da herança, titular do direito a ele adjudicado no inventário.

2.6 Que, assim os dois referidos herdeiros, (…) e (…), são titulares do prédio a eles adjudicado em comum e partes iguais, desde vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro.

2.7 Que no primeiro trimestre de mil, novecentos e oitenta e oito, os ora primeiros outorgantes e a outra comproprietária (…), intervindo nesse acordo a sua representante legal, sua mãe, acordaram as partes verbalmente não continuar na situação de compropriedade resultante do inventário e, assim, por acordo, também verbal, dividiram o prédio de que eram co-proprietários, em dois novos prédios, sendo um deles o prédio no início identificado, que foi adjudicado a estes, ora usucapientes.

2.8 Que logo nessa data, ela primeira outorgante e posteriormente ela e seu marido o demarcaram, limparam, trataram e podaram as árvores neles existentes, plantando batatas e semeando outros produtos hortícolas, substituíram cepas velhas por novas, colheram as uvas e frutos.

2.9 Que desde a data do apossamento referida, eles primeiros outorgantes, entraram na posse efectiva e material do referido prédio rústico, usando de todas as utilidades por ele proporcionadas com o ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecidos como donos por toda a gente, fazendo de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.

2.10 Que a referida (…) quando atingiu a maioridade, por acto unilateral, confirmou a divisão verbal antes acordada, sanado assim o vício inicial de anulabilidade, dado tal acordo lhe ser conveniente.

2.11 Que a posse por eles usucapientes manifestada nos actos possessórios mencionados retrotrai os seus efeitos à data do apossamento atrás mencionado, ou seja, ao primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito.

2.12 Que a usucapião invocada, faculdade que cabe a eles justificantes por exercerem uma posse de boa fé pública e pacífica, é uma forma originária de aquisição de um direito real novo, ora invocado, distinto do anterior que se extinguiu, e rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio. (…)

2.13 Que os efeitos da usucapião ora invocada retrotraem à data do início do apossamento, (…).

2.14 Que assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, (…) e mulher (…) adquiriram por usucapião, com efeitos retrotraídos à data do primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura e nela está devidamente identificado.

3. Na escritura id. em 1., (…), (…) e (…) declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.

4. Os 3.º e 4.º Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Setúbal de Sandra Morais Teles Bolhão, no dia 02.01.2015, exarada de fls. 76 a fls. 81 do Livro de escrituras diversas n.º 11-A, na qualidade de justificantes.

5. Na escritura id. em 4., os 3.º e 4.º Réus declararam:

5.1 Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do: prédio rústico, com a área total de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, que confronta a norte com (…), a sul com (…), a nascente com (…) e a poente com caminho público, ao qual atribuem o valor de € 250,00.

5.2 Que o indicado prédio rústico está ao presente inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo (…), da secção (…), que proveio do artigo (…) e este do (…) da secção (…) da freguesia de Palmela, sendo na matriz seus titulares para efeitos fiscais, a justificante mulher e seu irmão (…).

5.3 Que o mencionado prédio rústico, na Conservatória competente é parte do ora descrito sob o número (…) de treze de Outubro de dois mil e dez da referida freguesia de Palmela, extratação do descrito sob o número (…) do Livro B-34, com inscrição de aquisição, em comum e partes iguais a favor de:

c) (…) e mulher, (…), e;

d) (…) e marido, (…), casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes em (…), Palmela, pela inscrição requisitada pela apresentação (…) de vinte e um de Fevereiro de dois mil, extratação da inscrição número (…) a folhas (…), do Livro G-81.

5.4 Que o referido (…) que também usou (…), faleceu no dia vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro, no estado de casado com (…) no regime de comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como herdeiros a então cônjuge sobreviva, presentemente falecida, sucedendo-lhes os filhos de ambos, (…) e (…).

5.5 Que por morte do mencionado (…), se procedeu a inventário que correu seus termos no Tribunal de Círculo e Comarca de Setúbal, com o número sessenta e dois barra oitenta do então quarto juízo, segunda secção, e nele o prédio rústico, ora a usucapir constituía verba número sete e nesse título foi adjudicado em comum e partes iguais, aos dois filhos do “de cujus”, (…) e (…), esta então menor, por sentença transitada em julgado a treze de Outubro de mil novecentos e oitenta e sete, e finda a partilha, no caso judicial, cada um dos dois referidos herdeiros, foi considerado, desde a abertura da herança, titular do direito a ele adjudicado no inventário.

5.6 Que, assim os dois referidos herdeiros, (…) e (…), são titulares do prédio a eles adjudicado em comum e partes iguais, desde vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro.

5.7 Que no primeiro trimestre de mil, novecentos e oitenta e oito, os ora primeiros outorgantes e a outra comproprietária (…), intervindo nesse acordo a sua representante legal, sua mãe, acordaram as partes verbalmente não continuar na situação de compropriedade resultante do inventário e, assim, por acordo, também verbal, dividiram o prédio de que eram co-proprietários, em dois novos prédios, sendo um deles o prédio no início identificado, que foi adjudicado a eles, ora usucapientes.

5.8 Que logo nessa data, ela primeira outorgante e posteriormente ela e seu marido o demarcaram, limparam, trataram e podaram as árvores neles existentes, plantando batatas e semeando outros produtos hortícolas, substituíram cepas velhas por novas, colheram as uvas e frutos.

5.9 Que desde a data do apossamento referida, eles primeiros outorgantes, entraram na posse efectiva e material do referido prédio rústico, usando de todas as utilidades por ele proporcionadas com o ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecidos como donos por toda a gente, fazendo de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.

5.10 Que a referida (…) quando atingiu a maioridade, por acto unilateral, confirmou a divisão verbal antes acordada, sanado assim o vício inicial de anulabilidade, dado tal acordo lhe ser conveniente.

5.11 Que a posse por eles usucapientes manifestada nos actos possessórios mencionados retrotrai os seus efeitos à data do apossamento atrás mencionado, ou seja, ao primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito.

5.12 Que a usucapião invocada, faculdade que cabe a eles justificantes por exercerem uma posse de boa fé pública e pacífica, é uma forma originária de aquisição de um direito real novo, ora invocado, distinto do anterior que se extinguiu, e rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio. (…)

5.13 Que os efeitos da usucapião ora invocada retrotaem à data do início do apossamento, (…).

5.14 Que assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, (…) e (…) adquiriram por usucapião, com efeitos retrotraídos à data do primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura e nela está devidamente identificado.

6. Na escritura id. em 4., (…), (…) e (…) declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.

7. As áreas dos prédios destacados são de 3787,00 m2 cada um.

8. Nos autos do processo inventário supra referido o prédio rústico mãe, foi adjudicado aos interessados (…) e mulher, e (…), ora Réus, “na proporção de metade para cada um“, em 1985.

9. Mas, já em 1980, o Réu (…) agia como se proprietário fosse da sua parcela ao requerer um licenciamento camarário (E- 517/80) de uma moradia a implantar/construir no prédio rústico.

10. Em meados do primeiro trimestre de 1988, a mãe dos Réus voltou a evidenciar a divisão verbal, só que nunca foi reduzida a escrito.

11. Nesta data, a mãe dos RR., (…), por acordo verbal com os filhos, procederam à divisão verbal e fáctica do prédio, ao ter medido, demarcado, vedado e separado fisicamente o prédio rústico em duas parcelas distintas e autónomas, os atuais dois prédios, conforme já tinha sido acordado já em 1980 “na proporção de metade”.

12. A partir de Março 1988, os RR. mediram e vedaram as parcelas e passaram a fruir/possuir a parcela de terreno a eles adjudicada como se fosse sua, sem qualquer oposição, pacificamente, à vista de toda a gente, de boa fé, cultivando construindo, edificando, limpando o terreno, plantando arvores de fruto e horta, colhendo os respectivos produtos.

13. Sempre assim o fizeram sem qualquer interrupção, continuamente durante mais de 30 anos, sendo conhecidos por todas as gentes da terra.»


B) DE DIREITO:

Comece-se por salientar que o A. apelante não procedeu à impugnação da matéria de facto, devendo ter-se por intocada a factualidade declarada como «provada» pelo tribunal recorrido – pelo que o objecto do presente recurso se situa no estrito plano da impugnação de direito.

E, nesse plano, apenas se pretende discutir, como vimos, o seguinte: se a situação de usucapião configurada em benefício dos RR. permite reconhecer a propriedade destes sobre as parcelas de terreno em causa, apesar de estas terem área inferior à unidade de cultura – o que se traduziria na prevalência das regras que contemplam a aquisição da propriedade por usucapião sobre as que impedem o fraccionamento de prédios rústicos aquém daquela unidade de cultura.

O A. apelante sustenta a resposta negativa a essa questão, argumentando no sentido de que a usucapião deve ceder perante norma imperativa que a ela obste, como será o caso do artº 1376º do C.Civil. E invoca em defesa dessa tese dois arestos do STJ: concretamente os Acs. STJ de 6/3/2014 e de 26/1/2016, Procs. 1394/04.4PCAMD.L1.S1 e 5434/09.2TVLSB.L1.S1, respectivamente (in www.dgsi.pt).

Refira-se, desde logo, que, em ambos os arestos estava em causa um fracionamento em eventual violação de regras respeitantes a operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (ou seja, normas imperativas de direito público). No primeiro deles pode ler-se: «A usucapião sobre parcela de propriedade pressupõe o seu destaque dessa propriedade; o destaque pode constituir ou não uma operação de loteamento, como se viu. Se constituir operação de loteamento violador de regras urbanísticas determinativas de atos e negócios nulos (artigos 294.º e 295.º do Código Civil), a usucapião não pode ser decretada». E no segundo afirma-se: «Na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (artigos 3.º, alínea a), 5.º, 53.º, n.º 1 e 56.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, republicado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28-12, aplicáveis na data da celebração da escritura), não podem os actos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião, na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil), sendo nula a escritura de justificação que a titula».

No caso em presença não está implicada na usucapião pretendida valer uma situação de loteamento ilegal, mas apenas, e tão-só, a extensão da área abrangida por essa usucapião, que se mostra reduzida face à área mínima da unidade de cultura respectiva, e respeitante a parcelas de terreno integradas em prédio rústico e que mantiveram essa natureza rústica.

Se se pode afirmar que as normas (cfr. Portaria nº 202/70) que fixam essa área mínima ainda são normas de direito público (ainda que o mesmo já não se possa dizer da proibição de fraccionamento, que essa já é de direito privado, por prevista apenas no artº 1376º do C.Civil), o certo é que os interesses que se visam acautelar com tal fixação já não relevam do domínio da ordem pública (como, ao que se julga, os relativos a loteamentos ilícitos), sendo antes de cariz essencialmente económico, na medida em que se prendem com o desenvolvimento e competitividade da actividade agrícola nacional (como se pode ver do preâmbulo do Decreto-Lei nº 384/88, de 25/10, diploma que regia sobre o emparcelamento rural e cujo Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 103/90, de 22/3, manteve, no seu artº 53º, os valores das unidades de cultura constantes daquela Portaria de 1970 – situação ainda inalterada, à luz do novo regime da estruturação fundiária, aprovado pela Lei nº 111/2015, de 27/8, que revoga aquela legislação anterior). Nesse conspecto, deve entender-se que as normas impeditivas do fracionamento não se situam, manifestamente, em plano de prevalência sobre as relativas à usucapião.

Se é de conceder que o instituto da usucapião deva ceder perante normas imperativas públicas de especial relevo (e que, designadamente, impeçam expressamente a usucapibilidade), também é certo que a generalidade da jurisprudência sustenta solução inversa à que o MºPº, enquanto A. apelante, aqui propugna – e surpreende mesmo a propositura da presente acção nesse contexto tão desfavorável.

Com efeito, a avaliar pelos arestos publicados dos diferentes tribunais superiores, pode considerar-se praticamente pacífico o entendimento de que a usucapião prevalece sobre o regime do artº 1376º, nº 1, do C.Civil.

Começando pelo nosso mais Alto Tribunal, citem-se, a título exemplificativo, os Acs. STJ de 19/10/2004 e, entre os mais recentes, de 4/2/2014 (Procs. 04A2988 e 314/2000.P1.S1, respectivamente, idem). No primeiro (que se louva noutros arestos), discorre-se como segue: «Mesmo que houvesse fraccionamento ilegal, nos termos do art. 1376, nº1, do C.C., desde que esteja invocada a usucapião e se verifiquem os respectivos pressupostos (pressupostos que resultaram apurados no caso presente), procede a aquisição do direito de propriedade, com base na usucapião, relativamente ao prédio dos autores. É que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária. A lei, ponderando determinados aspectos que considerou relevantes, assumiu que certas situações de facto pudessem converter-se em verdadeiro direito, como acontece quando a posse se prolonga por um período de tempo significativo. A usucapião é o instrumento capaz de se sobrepor a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais, relativamente a actos de alienação ou de oneração de bens. Através da usucapião, o sistema jurídico, provada que seja a realidade substancial de que depende, confere a legitimidade de que carecia o possuidor, independentemente da natureza do vício que afecta a sua posição face ao bem. Consequentemente, só resta concluir que, das regras da usucapião, decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo e, por isso, está imune aos vícios que anteriormente pudessem ser apontados (…)». E no segundo, na mesma linha, conclui-se: «(…) o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fraccionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respectiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído “ex novo”, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respectiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada».

Por sua vez, são de assinalar vários arestos dos diferentes tribunais de 2ª instância, a começar por este nosso Tribunal, em que avulta relevantemente o Ac. RE de 26/10/2000 (in CJ, tomo IV, pp. 272 ss.), assim sumariado: «São usucapíveis as parcelas com área inferior à unidade de cultura, resultantes de divisão, efectuada por partilha verbal, de um prédio rústico apto para fins agrícolas».

Mencionem-se ainda os Acs. RC de 25/2/2014 e de 3/3/2015 (Procs. 1350/11.6TBGRD.C1 e 5730/06.0TBLRA.C1, respectivamente, idem). No primeiro, que contém extensa referência a outros arestos, sintetiza-se assim a sua doutrina: «Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens – por ex. o caso dos baldios – artigo 2.º do do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro/ por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro – e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação – Lei 107/2001 de 8/09 – que, através do seu artigo 34.º, torna insusceptível de aquisição, por usucapião, são afloramentos de tal princípio –, os Tribunais têm dado preferência à usucapião, como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais. (…) Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal, não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. (…) A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem». E o segundo regista no seu sumário a seguinte afirmação: «A usucapião é uma aquisição originária, genética e endógena baseada na sua causa (posse). Não se pode, pois, dizer, com rigor, que pela invocação da aquisição do direito (usucapião) se realize um destaque, um loteamento, uma divisão em prédios com área inferior à unidade de cultura: já que a coisa é possuída como autónoma e é essa posse dessa coisa possuída, como autónoma, que é causa de usucapião».

Também destacamos, no mesmo sentido, o recente Ac. RL de 15/10/2015 (Proc. 1737/11.4TBALM.L1-6, idem), com a seguinte declaração: «(…) vem sendo pacificamente entendido, tanto doutrinária como jurisprudencialmente, que a dita proibição do fraccionamento da propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à aquisição das mesmas por usucapião, uma vez que, decorrendo das regras deste instituto que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, originariamente, está imune aos vícios que lhe pudessem ser anteriormente apontados».

No balanço dos pontos de vista em confronto, propendemos, sem qualquer dúvida, para a orientação dominante na jurisprudência que vimos de explanar. Afigura-se-nos decisivo o mencionado argumento fundado na aquisição originária da propriedade como decorrência da usucapião. E acresce o seguinte: essa constituição ex novo do direito de propriedade, por efeito da usucapião, configura o reconhecimento da estabilidade de uma situação jurídica duradoura, em que o beneficiário legitimamente confiou, por ser tutelada pelo direito, e cuja afectação, por aplicação de regras de fundamento economicista, seria injustamente penosa para o beneficiário (e até, eventualmente, perturbadora da sua própria subsistência, quando esta dependa da actividade agrícola desenvolvida pelo usucapiente na parcela assim adquirida).

Em conformidade, entende-se merecer adesão a solução adoptada pelo tribunal a quo, no sentido de recusar a prevalência das regras relativas ao fraccionamento rural sobre o instituto da usucapião – e de que resultou a improcedência da presente acção.

Acolhem-se, assim, os fundamentos da decisão recorrida e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: o tribunal a quo não violou qualquer disposição legal, pelo que se concorda com o juízo decisório pelo mesmo formulado, não merecendo censura a decisão sob recurso.


III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o MºPº, enquanto A. apelante (artos 527º do NCPC e 4º, nº 1, al. a), do RCP).

Évora, 08 / 06 / 2017
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)