Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/17.2GANIS-A.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
ÂMBITO DO REEXAME
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - No recurso de despacho que procede a reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o âmbito (do recurso) circunscreve-se ao conhecimento das repercussões de eventuais vicissitudes (processualmente relevantes) ocorridas após prolação do despacho que determinou a medida de coacção que neste se manteve.

II - Assim, não está em causa a rediscussão dos fundamentos da prisão preventiva decretada no primeiro despacho, mas tão só a apreciação da persistência das exigências cautelares que então se reconheceram.

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No processo de Inquérito n.º 5/17.2GANIS, do Tribunal da Comarca de Portalegre (Nisa), o arguido MC interpôs recurso do despacho da Sra. Juíza de Instrução Criminal que, indeferindo-lhe requerimento para realização de relatório tendo em vista a substituição da medida de coacção aplicada por obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica, o manteve em prisão preventiva.

Apresentou as seguintes conclusões:

“1. O Recorrente encontra-se detido preventivamente, na sequência de lhe ter sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, em sede de primeiro interrogatório judicial, por decisão datada de 30/08/2017.

2. O arguido, perante o Mmo Juiz de Instrução Criminal esclareceu a forma como os factos sucederam.

3. Após tomar conhecimento dos factos, o OPC que procedeu às detenções/investigação inicial nos autos, ao invés de os comunicar ao Ministério Público, entendeu por sua autonomia e sem autorização Judicial, permitir a consumação de um crime que até aquele momento, sem a intervenção deste OPC nunca teria ocorrido.

4. Ademais, e sendo um dos fundamentos principais o facto de o arguido residir na área de residência do ofendido que fundamentou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, então, sempre a alteração da sua residência teria que ter tido outra consequência, pois, pelo menos aquele fundamento deixou de existir.

5. E o tribunal a quo, simplesmente ignorou esse fundamento decidindo apenas que nada alterou, quando na realidade alterou e bastante.

6. Ou seja, não fosse a atuação da GNR, e o ofendido nunca teria procedido à entrega de dinheiro aos arguidos.

7. A atuação do OPC fica numa linha de atuação entre o agente Infiltrado e o agente provocador.

8. Segundo jurisprudência recente, o que verdadeiramente importa, para assegurar essa legitimidade – da intervenção do agente infiltrado – é que o funcionário de investigação criminal não induza ou instigue o sujeito à prática de um crime que de outro modo não praticaria ou que não estivesse já disposto a praticar, antes se limite a ganhar a sua confiança para melhor o observar, e acolher informações a respeito das atividades criminosas de que ele é suspeito. E bem assim, que a intervenção do agente infiltrado seja autorizada previamente ou posteriormente ratificada pela competente autoridade judiciária. Ac. TC nº 578/98.

9. Ao concluirmos que a ação foi desencadeada/determinada pelo agente provocador, a prova assim obtida é nula, por inadmissível, por ter sido utilizado meio enganoso, proibido por lei, já que afeta a liberdade de vontade ou de decisão dos arguidos em causa.

10. Mostram-se, assim, violadas as normas constantes dos art.ºs 32º, nº 8 da CRP e 126º n.º 3 do CPP.

11. E isto o arguido veio suscitar aquando a interposição do seu primeiro recurso, o qual ainda não foi decidido.

12.Todavia, certo é, que as questões suscitadas pelo recorrente, são do conhecimento oficioso do tribunal a quo, o qual simplesmente nem sequer se pronunciou sobre as mesmas, mantendo somente a decisão ilegal de manutenção da medida de coação de prisão preventiva.

13. Já vimos que a inadmissibilidade do agente provocador advém da violação do princípio democrático, ou seja, «... o da suprema dignidade da pessoa humana e o da igualdade de todos os cidadãos, igualdade perante a lei, de direitos e deveres, mas também e essencialmente, igualdade de natureza e de dignidade. artºs 1º e 2º, da CRP.

14. Mas também por violar o princípio da lealdade:

“A lealdade, como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, «não é uma norma jurídica autónoma, é sobretudo de natureza essencialmente moral, e traduz uma maneira de ser da investigação e obtenção das provas em conformidade com o respeito dos direitos das pessoas e a dignidade da justiça. ...” , valor supremo que se sobrepõe aos próprios fins da justiça, (1ª parte do n.º 8 do art.º 32º e art.ºs 25º e 26º n.ºs 1 e 2, ambos da CRP, quanto à integridade pessoal física ou moral).

15. Em suma, “... a atividade do agente provocador não pode deixar de ser considerada ilícita e, por isso, as provas assim obtidas são provas proibidas, por inadmissíveis face, desde logo, ao art.º 125º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que, apenas, «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei ”, pois este atua contrariamente aos princípios e às normas próprias de um Estado de direito Democrático e inerentes a um processo penal de estrutura acusatória temperado pelo principio da investigação, e põe em causa o n.º 8 do art.º 32º da CRP, o qual consagra que são nulas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, cuja expressão processual se manifesta nos art.ºs 118º e 126º do CPP.

16. Neste sentido, são nulas, não podem ser utilizadas “a não ser para o seguinte e exclusivo fim: proceder criminalmente contra quem as produziu (agente provocador), nos termos do nº 4 do mesmo preceito legal”.

17. O facto de os agentes, através da sua atuação, determinarem o arguido à prática do crime, induzindo-o e instigando-o, sem o qual o crime não seria cometido. Os agentes atuam, pois, como verdadeiros agentes provocadores, sendo por isso, considerada ilícita, com a consequente nulidade de todas as provas assim obtidas e a punição dos mesmos.

18. E da consulta dos autos, e a forma como os factos que levaram à detenção do arguido em flagrante delito ocorreram, sempre teremos que concluir que o OPC atuou como agente provocador, pois se assim não tivesse atuado, o crime não teria ocorrido, senão vejamos:

19. O ofendido contactou o OPC (GNR) em 24/08/2017 (vd. Fls. 4 - linhas 6 a 12);

20. Informando que já tinha saído do concelho de Nisa nessa data;

21. Em 26/08/2017, o ofendido volta a contactar o OPC (vd. Fls. 4 - linhas 13 e seguintes)

22. Entre o dia 26 e o dia 28 do mês de Agosto de 2017, o OPC ao invés de comunicar os factos ao Ministério Público, resolveu, por sua iniciativa e sem qualquer autorização judicial, provocar a realização de um crime não evitando como lhe era devido a sua realização.

23. Ou seja, o ofendido já estava fora do concelho de Nisa, tendo apenas voltado para o concelho a pedido/mando do OPC; procedido ao levantamento de dinheiro a pedido/mando do OPC; procedido a combinações com os arguidos para se encontrarem a pedido/mando do OPC; permitido a marcação de notas inclusivamente por parte do OPC; procedido à entrega de dinheiro aos arguidos a pedido/mando do OPC, tudo para que os arguidos fossem detidos em suposto flagrante delito da prática de um crime.

24. Ora, antes deste factos ocorrerem, já os arguidos estavam identificados mediante Autos de reconhecimento fotográfico, não existindo qualquer dúvida nas suas identificações.

25. Não se percebe o motivo pelo qual o OPC ao invés de comunicar os factos ao tribunal, mando o ofendido levantar dinheiro para o marcar e depois simular uma entrega deste dinheiro para que os arguidos fossem detidos.

26. Esta situação, é em tudo idêntica às situações de tráfico de droga, em que, determinado OPC determina para que um sujeito contacte o vendedor para depois o intercetar, resultando tudo em prova nula, conforme os nossos Tribunais superiores têm vindo a decidir.

27. A situação dos autos, é precisamente a mesma, ou seja, não fosse a atuação do OPC e o ofendido não tinha regressado a NISA, logo, os factos que motivaram a detenção do arguido, nunca teria ocorrido, quanto muito, estaríamos perante um crime na forma tentada.

28. Assim, apenas se podem declarar nulas todas as provas obtidas através de agente provocador – cfr. artºs 32º, nº 6 da CRP e 126º, n.º 3 do CPP, com exceção para o efeito do nº 4 do art.º 126º do CPP, que se requer que assim seja declarado nos presentes autos.

29. Por outro lado, para além do croqui de acidente junto aos autos (vd. fls. 39), onde se encontra as únicas declarações prestadas até ao momento do 1.º interrogatório judicial pela suposta ofendida nos autos (vd. fls. 42), em momento se afere destas declarações, a existência de qualquer crime ou sequer que a mesma tenha sido agredida.

30. Existem efetivamente no caso dos autos, duas versões em confronto, a do ofendido e a dos arguidos.

31. No entanto, tendo os arguidos neste momento já sido confrontados com os autos, e não existindo qualquer indício ou prova que aponte para a continuação da atividade criminosa, sempre este perigo teria que ser afastado.

32. Por outro lado, também não existe qualquer motivo, ou facto registado no processo, para que se pudesse concluir por outro perigo qualquer em concreto, seja ele o de fuga, de perturbação do inquérito, ou mesmo de alarme social.

33. Isto para dizer, que para a aplicação da medida de coação mais gravosa do nosso ordenamento jurídico, a mesma foi aplicada, sem a existência de qualquer indício forte ou suficiente.

34. Ou seja, salvo melhor opinião, a medida de coação visa salvaguardar os perigos elencados no art.º 204.º, do CPP e não uma antecipação de qualquer pena ou o seu cumprimento.

35. Desta forma, face ao supra expendido, entende o arguido que se encontram reunidos todos os pressupostos, para que lhe tivesse sido aplicada medida de coação não detentiva da liberdade ou mesmo a medida de coação de OPHVE, uma vez que, estas acautelam de forma necessária, adequada e proporcional ao caso os perigos elencados no art.º 204.º do CPP.

36. Fundamentou o Ministério Público, que no caso dos autos, a única medida de coação suscetível de acautelar os perigos que se fazem sentir, nomeadamente o das alíneas b) e c) do art.º 204.º do CPP, é a prisão preventiva.

37. Não existe nos autos notícia que o arguido irá persistir no futuro na continuação da atividade criminosa, bem como irá perturbar a tranquilidade pública uma vez sujeito a medida de coação não detentiva da liberdade.

38. Aliás, e como aflorou o Mmo JIC, com o coarguido F. detido, sendo este o elo de ligação com o ofendido, sempre a continuação da atividade criminosa cessaria de imediato.

39. Não existe no processo qualquer facto concreto que leve a concluir pela existência dos perigos elencados no art.º 204.º, als. b e c) do CPP, e para que estes perigos se verifiquem, os factos teriam sempre que ser concretos e nunca generalizados conforme com todo o respeito se fundamentou a decisão, onde se pode ler “poderão tentar perturbar o decurso do inquérito através de ações junto do ofendido”. Ora, com todo o respeito, poderão tentar, não é de todo um facto concreto, e por isso, suficiente para a aplicação da medida de coação mais grave do nosso ordenamento jurídico, quando outras medidas de coação, de igual forma acautelariam o decurso normal do processo.

40. Sendo a medida de coação mais gravosa, é na prisão preventiva que se afirma, com particular intensidade, os princípios da necessidade e menor intervenção possível, pela natureza estritamente excecional, não obrigatória e residual desta medida cautelar - artigo 9.º e 14.º do Pacto Internacional de Direitos Cívicos e Políticos, de 16.12.66; artigo 5.º e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigos 27.º, n.º 3 e 32.º, n.º 2, da CRP - limitativa da liberdade individual, só aplicável sempre que estão em crise condições essenciais da existência comunitária - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, pág. 59; Costa Andrade, in D.R., n.º 98, p. 3712.

41. Nesta medida, a natureza excecional e residual da prisão preventiva é acentuada nos artigos 193.º, n.º 2 e 202.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, postulando que aquela medida de coação só é aplicável quando as restantes medidas se revelarem inadequadas e insuficientes e houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos.

42. Trata-se de crimes de especial gravidade e que pressupõem a inadequação ou insuficiência das restantes medidas de coação, reconhecida a sua insuficiência nociva sobre os arguidos a ela sujeitos.

43. À sua aplicação presidem princípios de necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade e precariedade, integralmente reproduzidos no artigo 193.º do CPP, ditados pelo princípio da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da condenação - Acs. do TC n.º 35/87, de 20.12.87; n.º 7/87, de 09/01, in DR I Séria, de 09.02.87; J. Castro Sousa, in a Prisão Preventiva e outros meios de coação, in BMJ 337-49; Odete Faria de Oliveira, in As medidas de coação no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, pg. 169 e 182 e ss..

44. A aplicação de qualquer medida de coação deve obedecer, necessariamente, aos princípios da adequação e da proporcionalidade, consagrados no art.º 193.º do C.P.P., sendo que, nos termos do n.º 2 do referido artigo, "a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação".

45. In casu, face aos circunstancialismos supra referidos, entende o requerente que a prisão preventiva se revela inadequada ao caso em apreço.

46. Atento o disposto no art.º 204.º do C.P.P., a existência de indícios da prática de um crime é sempre pressuposto da aplicação de medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência. Mas ainda assim, não bastam os indícios da prática do crime, sendo igualmente necessário que se verifiquem os pressupostos ("pericula libertatis") constantes do art.º 204.º do C.P.P..

47. Por tudo o exposto, o requerente entende que se encontram reunidas as condições que lhe permitam aguardar em liberdade os normais trâmites do processo, ou mesmo sujeito à medida de coação de OPHVE, que parece efetivamente ser a mais adequada e proporcional ao caso concreto.

48. E, deveria com todo o respeito, o Mmo JIC, ter explicado/fundamentado, o motivo pelo qual afastava a aplicação de outra medida de coação não detentiva da liberdade ou mesmo detentiva mas em OPHVE, e assim não o fez, redundando em nulidade a decisão recorrida., o que desde já se argui.

49. Seguramente que em detrimento da prisão preventiva, ao requerente sempre poderá ser aplicada uma medida de coação de obrigação de permanência na habitação (art.º 201.º do C.P.P.), cumulada com a pulseira de vigilância eletrónica, regulamentada na Lei n.º 122/99, de 20 de Agosto.

50. É, pois, intolerável que se mantenha em prisão preventiva um cidadão, ainda que contra ele recaiam fortes indícios de ter cometido crimes graves, funcionando a mesma apenas como uma antecipação do cumprimento de uma pena que se antevê, sem que se fundamente cabal e totalmente a aplicação dessa medida, de acordo com todos os requisitos exigidos na nossa lei, de modo que a medida seja compreendida e aceite ou então que possibilite uma defesa eficaz a quem por ela foi visado.

51. Outra interpretação que não esta viola os art.ºs 28.º e 32.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição e 193.º, 194.º, n.º 3 e 204.º do CPP, o que desde já se argui.

52. Salvo o devido respeito, é entendimento do arguido que tal medida de coação se mostra, in casu, excessiva, pelo que, com os fundamentos que ali se encontram apostos é, por si, ILEGAL. Desde logo porque violadora do disposto no art.º 193.º, n.ºs 1 a 3, do C. de Processo Penal e nos art.ºs 28.º e 32.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da Republica Portuguesa, entre outros que V. Ex.ªs oficiosamente venham a verificar.

53. Por outro lado, não pode a defesa, deixar de arguir a nulidade da prova gravada, porquanto das declarações do arguido aqui recorrente prestadas perante o Mmo JIC, as mesmas não são percetíveis entre o minuto 16:30 e 28:30, devendo consequentemente tal facto originar nulidade que desde já se argui.

Termos em que, com o sempre suprimento de V. Ex.ªs. se requer que: Seja dado provimento ao presente recurso, e consequentemente seja revogado o despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva a que o Recorrente se encontra sujeito, pela medida de coação de apresentações no posto da área da sua residência ou em último rácio a medida de coação de obrigação de permanência na habitação (Art.º 201.º do C.P.P.), cumulada com a pulseira de vigilância eletrónica (Lei n.º 122/99 de 20/8).”

O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela manutenção do despacho recorrido e concluindo:

“1. O recurso interposto pelo arguido MC consubstancia uma “repetição” do anterior recurso por si interposto, onde impugna o despacho que determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva;

2. Existem fortes indícios de que o arguido praticou em concurso real e efectivo, um crime de extorsão, p. e p. pelo artigo 223.º, n.º 1 e 3, alínea a), do Código Penal, um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal e um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 1, do Código Penal;

3. As provas obtidas contra o arguido ora recorrente são válidas e legais, não se mostrando feridas de nulidade, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, porquanto o OPC, em momento algum, actuou como agente provocador.

4. O Prof. Germano Marques da Silva ensina que «…a provocação não é apenas informativa, mas é formativa; não revela o crime e o criminoso, mas cria o próprio crime e o próprio criminoso.

5. Por sua vez, Manuel Augusto Alves Meireles considera como agente provocador aquele que «actuando sob uma falsa identidade e sem revelar a sua verdadeira qualidade, fazendo-se assim passar por aquilo que não é, convence outrem a cometer um crime. Esta farsa leva o provocado a executar o que de outra forma não cometeria».

6. É certo que encontra-se inaudível parte do suporte de registo magnético das declarações prestadas pelo arguido ora recorrente em sede de 1.º Interrogatório Judicial de arguido detido.

7. A omissão da documentação ou a documentação deficiente das declarações prestadas oralmente (sendo deficiente a documentação que não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes) não constitui qualquer nulidade.

8. A gravação deficiente do 1.º interrogatório não é cominada como nulidade, como se alcança do disposto nos artigos 119.º a 123.º do Código de Processo Penal, sendo certo que em termos de nulidades no processo penal vigora o princípio da tipicidade.

9. Sendo o acto irregular, como é o caso, tem de ser arguida a irregularidade no terceiro dia após o interrogatório e ainda assim, apenas quando tiver relevância para a pretensão que se entende fazer valer.

10. Sempre o recorrente teria de se fazer prova que tais declarações se mostravam importantes para a decisão de facto e de direito, e nomeadamente que não haviam sido atendidos pelo tribunal a quo, o que não se verifica (nesse sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 12/10/2017, processo n.º 89/17.3PGOER-A.L1-9, relator Fernando Estrela).

11. Acresce ainda que, como referimos supra, foi facultado ao arguido o suporte técnico com o registo da gravação das declarações por si prestadas em 8/09/2017 e apenas, aquando da interposição de recurso, que apresentou em juízo por fax de 26/09/2017, é que o mesmo arguiu tal nulidade, ou seja quando há muito havia decorrido o referido prazo de 3 (três) dias para a arguição de tal irregularidade, pelo que dever-se-á declarar irregularidade em todo o caso sanada.

12. Não se verifica pois assim qualquer nulidade.

13. Os tipos de ilícito imputados ao arguido recorrente fazem gerar sentimentos de medo, inquietação e insegurança no seio da sua população;

14. Por isso, é patente e actual o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, previsto na alínea c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal;

15. Face à gravidade e natureza dos factos, existe um concreto perigo do arguido perturbar o decurso do inquérito e de persistir com a actividade criminosa.

16. Qualquer outra medida de coacção não detentiva não assegura de forma eficaz a possibilidade de o arguido não continuar com a actividade criminosa;

17. A prisão preventiva é, em concreto, a única medida adequada, suficiente, proporcional e eficaz;

18. O Mmo. Juiz no douto despacho recorrido não violou as normas legais citadas pelo recorrente, nem quaisquer outras;

19. Antes, fez uma criteriosa interpretação e aplicação do disposto nos artigos 28.º, 32.º, n.ºs 1, 2, 3, 6 e 8, da Constituição da República Portuguesa, 119.º, 126.º, n.º 3, 191.º a 193.º, 194.º, n.º 1, 196.º, 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), 204º, alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal;

20. Tal despacho não é, por isso, merecedor de censura, devendo, outrossim, ser mantido nos seus precisos termos.”

O Senhor Procurador-geral Adjunto, em desenvolvido parecer, pronunciou-se pela rejeição do recurso por manifesta improcedência.

2. O despacho recorrido é do seguinte teor:

“Por despacho datado de 30 de Agosto de 2017 foi aplicada ao arguido MC a medida de coacção de prisão preventiva, encontrando-se o mesmo indiciado nos presentes autos pela prática do crime de extorsão, p.e.p. pelo artigo 223.º, ns.º 1 e 3, alínea a), do Cód. Penal, do crime de coacção, p.e.p. pelo artigo 154.2, n.2 1, do Cód. Penal, do crime de sequestro, p.e.p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do Cód. Penal e do crime de violação de domicílio, p.e.p. pelo artigo 190.º, n.º 1, do Cód Penal.

Destarte, foi-lhe aplicada a medida de coacção mais gravosa no ordenamento jurídico português - prisão preventiva - com fundamento nas exigências cautelares descritas nas alíneas b) e c) do artigo 204.º do Cód. Proc. Penal, isto é, perigo de perturbação do decurso do inquérito e perigo de continuação da actividade criminosa.~

A fls. 408 vem o ora arguido requerer que o Tribunal ordene a realização de relatório tendo em vista a substituição da medida de coacção aplicada para obrigação de permanência na habitação, com recurso a vigilância electrónica, para tanto indicando nova morada sita na Rua …., 7400-527 Ponte de Sor.

O Ministério Público já se havia pronunciado sobre o requerido, pugnando pelo indeferimento, pelas razões constantes da promoção de fls. 261 e 262.

Cumpre apreciar e decidir.

Em primeira linha, haverá que esclarecer que o Tribunal apenas ordenará a realização do aludido relatório se considerar, a título prévio, que as exigências cautelares que o caso em apreço reclama se satisfazem com a aplicação da medida de coacção, prevista no artigo 201.º do Có d. Proc. Penal.

Com efeito, de acordo com o previsto pelo n º 3 do artigo 212.º do Cód. Proc. Penal, quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução."

Do referido normativo extrai-se que a alteração da medida de coacção se encontra condicionada ao princípio rebus sic stantibus, o que significa que o Tribunal que aplicou a medida de coacção não pode alterá-la sem que tenha existido alteração dos pressupostos de facto ou de direito que presidiram a tal decisão.

Tal entendimento é aquele que é amplamente defendido pela Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, do qual é exemplo o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 30.06.2015, proferido no âmbito do processo n.º 267/06.0GAFZZ-G.E1, relatado por Martins Simão, acessível in www.dgsipt. no sentido em que "proferido o primeiro despacho ( ... ), onde se determina a fixação de uma medida de coacção (seja ela ou não a prisão preventiva), não pode essa decisão ser modificada, a não ser que surjam circunstancias ou condições que justifiquem a alteração em obediência do princípio rebus sic stantibus".

Concretizando.
Compulsado o requerimento de fls. 408 constata-se que a única razão invocada pelo arguido para alteração da medida de coacção prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação funda-se numa mera alteração de morada, o que em nosso entender, não diminui por si só as exigências cautelares que o caso reclama.

Com efeito, é de destacar que atendendo aos crimes de que vem indiciado o arguido e os perigos que importarão acautelar - a saber perigo de perturbação do decurso do inquérito e de continuação da actividade criminosa - não se afigura possível a aplicação de medida de coacção, que não seja a prisão preventiva, de modo a acautelar tais perigos.

Senão vejamos:
Compulsados os autos de inquérito, constata-se que o arguido vem indiciado da prática dos crimes de extorsão e de coacção perpetrados contra o ofendido AF, sendo de salientar que a prática dos mesmos foi levada a cabo, designadamente, com recurso à utilização de telemóvel através do envio de sms, conforme se extrai de fls. 38.

Ora, tendo isto presente, não se afigura, em concreto, que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica acautelasse de forma suficiente e adequada o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou o perigo de continuação da actividade criminosa, porquanto tal medida não obsta a que o arguido tenha acesso ao telemóvel e por essa via perpetue contactos com o ofendido AF, com o intuito de obviar à aquisição de novos elementos de prova e/ou perpetrar nova actividade criminosa, nos moldes acima descritos, sem que para tal seja necessário sair da sua residência.

Assim sendo, afigura-se que, de acordo com um juízo de prognose, a elaboração de relatório social no sentido de se aferir se o arguido MC reúne condições pessoais para que lhe seja aplicada medida de coacção relativa a obrigação de permanência na habitação, com utilização de meio técnico de controlo à distância, se afigura um acto inútil, porquanto não se verificam quaisquer alterações das circunstâncias que contribuíram para fixar a medida de prisão preventiva ao referido arguido MC.

Em face das razões aduzidas, indefere-se o requerido pelo arguido MC a fls. 408.

Notifique, incluindo o MP.”

3. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, mas sempre por referência à concreta decisão de que se recorre. Os poderes de cognição da Relação, enquanto tribunal de recurso, circunscrevem-se à sindicância (da correcção) da decisão de que se recorre.

Este aspecto é determinante do resultado do presente recurso, pois das conclusões do recorrente (e da motivação que apresentou) retira-se facilmente que o arguido está mais a pretender impugnar o despacho anterior que aplicou a prisão preventiva (do qual, aliás, terá também recorrido) do que o presente.

Na verdade, o despacho recorrido é uma decisão de manutenção de prisão preventiva anteriormente aplicada no processo. E trata-se de despacho proferido, não no âmbito do (primeiro) reexame trimestral oficioso (v. art. 213º, nº 1, al. a) do CPP), mas na sequência de um impulso processual ainda prévio àquele reexame oficioso, dado pelo próprio arguido, que pretendia a atenuação da medida de coacção aplicada.

Para tanto, requereu o arguido que o tribunal solicitasse relatório tendo em vista a substituição da prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica. E indicou uma nova morada.

A senhora juíza de instrução criminal considerou que a alteração de morada não relevava para efeito de atenuação das exigências cautelares que se haviam identificado no anterior despacho, por razões que concretizou. E considerando que nenhum outro facto novo fora relatado pelo arguido e que nenhuma circunstância superveniente fora trazida por qualquer outra via ao processo, absteve-se de solicitar o pretendido relatório e manteve a prisão preventiva.

A questão a apreciar restringe-se, pois, à sindicância da decisão recorrida e, por via dela, à verificação da manutenção ou da eventual alteração dos pressupostos que fundamentaram a prisão preventiva. Todos os restantes pontos e todas as demais questões trazidas ao recurso não respeitam à presente decisão e não são, por isso, cognoscíveis aqui e por esta via.

Como se disse, e como tem sido jurisprudência constante, tratando-se de recurso de despacho que cura do reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o âmbito (do recurso) circunscreve-se ao conhecimento das repercussões de eventuais vicissitudes (processualmente relevantes) ocorridas após prolação do despacho que determinou a medida de coacção que se mantém.

Assim, não está em causa a rediscussão dos fundamentos da prisão preventiva decretada anteriormente, mas tão só a apreciação da persistência das exigências cautelares que então se reconheceram. Conhecendo, designadamente, da relevância do único facto novo trazido pelo arguido ao processo e de que, contrariamente ao que o mesmo afirma no recurso, no despacho se conheceu.

As medidas de coacção estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus, e no caso de se manterem inalteradas as circunstâncias avaliadas no anterior despacho, a prisão preventiva é de manter. Em suma, nos despachos de reexame de medida de coacção não é nunca de um repensar de decisão que se trata.

No quadro assim definido, como a única alteração de circunstâncias que o arguido trouxe ao processo (e a única questão que suscita com pertinência no recurso) é a alteração da sua morada, há que aceitar a correcção do despacho em crise quando ali se conclui que tal circunstância, por si só, não atenua as exigências cautelares identificadas anteriormente.

Não as atenua seguramente de modo significativo pois, como se decidiu no despacho, “Compulsados os autos de inquérito, constata-se que o arguido vem indiciado da prática dos crimes de extorsão e de coacção perpetrados contra o ofendido AF, sendo de salientar que a prática dos mesmos foi levada a cabo, designadamente, com recurso à utilização de telemóvel através do envio de sms, conforme se extrai de fls. 38.

Ora, tendo isto presente, não se afigura, em concreto, que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica acautelasse de forma suficiente e adequada o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou o perigo de continuação da actividade criminosa, porquanto tal medida não obsta a que o arguido tenha acesso ao telemóvel e por essa via perpetue contactos com o ofendido AF, com o intuito de obviar à aquisição de novos elementos de prova e/ou perpetrar nova actividade criminosa, nos moldes acima descritos, sem que para tal seja necessário sair da sua residência.”

O objecto do presente recurso esgota-se aqui. Esgota-se na constatação de que o único facto novo trazido ao processo pelo arguido, e (devidamente) apreciado no despacho de que recorre agora, não tem a virtualidade de atenuar relevantemente as exigências cautelares anteriormente afirmadas.

Em tudo o mais, o recurso constitui impugnação de um outro despacho (o que determinou a aplicação da prisão preventiva) do qual o arguido terá até recorrido, e onde terá (ou não, mas pelo menos onde poderia e deveria ter) suscitado as mesmas questões que ora pretende ver apreciadas.

A possibilidade de renovação de alguma dessas questões, dependeria sempre da cláusula rebus sic stantibus e das suas repercussões no caso julgado, pois é de reconhecer um caso julgado rebus sic stantibus em processo penal (sobre o caso julgado rebus sic stantibus em processo penal, vide Henrique Salinas, Os Limites Objectivos do Ne Bis In Idem, 2012, v. digital, p. 6).

Ensina Damião da Cunha que “os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional – querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precluir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento).

“Este raciocínio vale, não só em primeira instância, como em segunda ou terceira instância (embora o grau de vinculação dependa da especificidade teleológica de cada grau de recurso). E este mecanismo vale - ao menos num esquema geral – para qualquer tipo de decisão independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão processual” (O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória), 2002, p. 143/4).

Ainda com Damião da Cunha, é pois de reconhecer que “qualquer decisão, mesmo que não esteja em causa uma decisão de mérito, contém um efeito de vinculação processual” (loc. cit., p. 144). E “os mesmos conceitos podem ser utilizados para além da categoria do procedimento, portanto, para além do exercício interno da função jurisdicional, em relação aos poderes dos sujeitos processuais (das “partes”, utilizando uma expressão do processo civil) durante o processo.” Nesta perspectiva, já não da mera “dimensão do procedimento”, mas da dimensão “do processo”, abarca-se “o modo e a forma por que o procedimento jurisdicional deve progredir”, ou seja, “o modo como os sujeitos processuais devem fazer actuar e fazer progredir o procedimento jurisdicional. Neste âmbito, também as partes estão sujeitas aos mesmos princípios que vimos estarem subjacentes ao exercício da função jurisdicional” (loc. cit. p. 148).

Damião da Cunha fala, assim, numa congruência entre o exercício da função jurisdicional e a actuação dos sujeitos processuais, no sentido de que “cada resultado «adquirido», legítimo e incontestado, não só vincularia o tribunal, como vincularia, outrossim, os restantes sujeitos processuais” (sem prejuízo de, como alerta o autor, esses nexos terem de derivar, fundamentalmente, de regras de direito material) (loc cit., p. 148/9).

Esta exigência de congruência entre o exercício da função jurisdicional e a actuação dos sujeitos processuais tem repercussão na fase de recurso e repercute-se também no caso em apreciação.

Daí que o Senhor Procurador-geral Adjunto se tenha até pronunciado no seu parecer, em parte justamente, pela rejeição do presente recurso. Designadamente, referiu:

“(…) o Recurso é manifestamente infundado por carência de objecto susceptível de apreciação.

O Arguido não impugna o Despacho recorrido mas, antes, o Despacho inicial que o sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva, é o próprio Recorrente que, de forma clara, no-lo dá, ao consignar, nomeadamente, que: "Isto para dizer, que para a aplicação da medida de coação mais gravosa do nosso ordenamento jurídico, a mesma foi aplicada, sem a existência de qualquer indício forte ou suficiente." - cr. item 35. da Motivação; Desta forma, face ao supra expendido, entende o arguido que se encontram reunidos todos os pressupostos, para que lhe tivesse sido aplicada medida de coação não detentiva da liberdade ou mesmo a medida de coação de OPHVE, uma vez que, estas acautelam de forma necessária, adequada e proporcional ao caso os perigos elencados no art. 204.º do CPP.” - cr. item 45. da Motivação.

Em suma e para concluir, o único fundamento apresentado pelo recorrente e que é cognoscível aqui não põe em causa o despacho de que se recorre, inexistindo motivo para a sua revogação.

3. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão.

Condena-se o recorrente em 4 UCC de taxa de justiça.

Évora, 20.02.2018

(Ana Barata Brito)

(Leonor Vasconcelos Esteves)