Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
142/12.0TBSTB-E.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A circunstância de a pessoa que foi demandada como sendo proprietária do veículo (a par do F.G.A e do condutor do mesmo nos termos do disposto no nº1 do art.º 62º do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto) mas que veio a ser absolvida do pedido por se ter apurado em sede de julgamento que afinal não o era, não constitui um obstáculo processual à condenação dos demais Réus subsistentes, i.e. do F.G.A. e do condutor do veículo;
II - É que o F.G.A. cumpre a sua atribuição quando é condenado no pagamento da indemnização devida ao lesado em resultado de acidente de viação causado pelo responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel (art.º 47º nº1 do citado diploma).
III - A presença obrigatória do proprietário e do condutor do veículo como co-réus na acção movida pelo lesado contra o Fundo arredará, pela ocorrência do caso julgado, a discussão dos pressupostos fácticos da sua responsabilidade na eclosão do sinistro na futura acção que aquele proporá destinada a reaver o valor pago ao lesado em decorrência do direito de sub-rogação que lhe é legalmente conferido.
IV - Mas não inviabilizará, no caso de um desses co-Réus ter sido absolvido (v.g. por não se comprovar a qualidade de proprietário do veículo cuja utilização causou o acidente) que venha a ser demandado pelo F.G.A. um outro que se revele legalmente responsável por tal ressarcimento.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:


ACORDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal “ a quo” foi determinada a apensação de dois processos versando o mesmo acidente de viação.
Na acção principal movida pela BB S.A. contra os Réus CC, DD Unipessoal, Lda. e Fundo de Garantia Automóvel a Autora pediu a condenação solidária destes a pagar-lhe a quantia de € 43.193,80, acrescida de juros de mora vincendos contados desde a citação até integral pagamento e juros compulsórios, a título de indemnização por danos patrimoniais, em consequência de acidente de viação.
Na acção apensada nº143/12.8TBCCH movida por CC contra os Réus EE, FF, Lda., Fundo de Garantia Automóvel (Absolvido da instância),Carlos … (Absolvido da instância), BB S.A. (Absolvido da instância) e GG - Companhia de Seguros, S.A., na qual figurou como interveniente (do lado do Autor) o Fundo de Acidentes de Trabalho, foi peticionada:
- A condenação solidária dos Réus EE, FF, Lda. e GG - Companhia de Seguros S.A., a reconhecer ao Autor CC um grau de incapacidade permanente, no pagamento dos salários que o mesmo deixou de auferir até findar a sua incapacidade para o exercício da sua profissão de motorista, num montante não inferior a €50.400,00 e no pagamento dos valores despendidos com a sua assistência médica e hospitalares, deslocações e medicamentos, num montante não inferior a €2.816,30,
- A condenação dos mesmos Réus a reconhecer como não devido pelo Autor o pagamento reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel no montante de €4.003,57;
- A condenação dos mesmos Réus no pagamento ao Autor da quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais;
O Fundo de Acidentes do Trabalho pediu, por seu turno, o pagamento pelos Réus da quantia de €87.598,47, com fundamento no direito de reembolso das quantias liquidadas ao Autor, resultantes de acidente simultaneamente de trabalho e de viação.

Realizada audiência final foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto e nos termos das disposições legais supra referidas considera- se:
1) A acção principal 142/12.0TBCCH1 parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
a. Condena-se solidariamente os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora BB, S.A a quantia de € 31.586106 (trinta e um mil quinhentos e oitenta e seis euros e seis cêntimos], acrescido de juros à taxa legal, contados desde a citação até integral poqamento, absolvendo-se quanto a restante pedido;
b. Absolve-se do pedido a Ré DD, Unipessoal Lda.
2) A acção apensa 143/12.8TBCCH totalmente improcedente por não provada e, em consequência absolvem-se os Réus EE, FF, Lda. e GG - Companhia de Seguros S.A. de todos os pedidos deduzidos pelo Autor CC e pelo interveniente Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT)”.

2. Desta sentença recorreu o Fundo de Garantia Automóvel (F.G.A.) que formulou as seguintes conclusões:
A) A douta sentença recorrida, condenou o FGA, solidariamente, apenas com o condutor do veículo ...-GD-...;
B) Quando deveria ter absolvido o FGA da instância, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, uma vez que a proprietária do veículo não estava demandada na presente ação;
C) A douta sentença recorrida, violou assim, o disposto no art.º62º do n.º 1 e n.º 3 do art.º 54º, ambos do D.L. 291/2007 de 11 de agosto.
Termos em que,
Revogando-se a sentença, se fará, como sempre,
JUSTIÇA


3. E recorreu, também, o Réu na acção principal e Autor na acção apensada, CC, que concluiu a sua alegação nos seguintes termos:

“1- O presente Recurso vem interposto da Sentença proferida pela Mmo Juiz "a quo" que julgou a acção parcialmente procedente e na acção Principal condenou solidariamente os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora BB, SA a quantia de € 31.586,06 (trinta e um mil quinhentos e oitenta e seis euros e seis cêntimos), acrescido de juros à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento, absolvendo-se quanto a restante pedido a Ré DD Unipessoal Lda.
2- Deu a acção apensa 143/12.8TBCCH totalmente por não provada e, em consequência absolveu os Réus EE, FF, Lda. e GG - Companhia de Seguros S.A de todos os pedidos deduzidos pelo CC e pelo Interveniente Fundo de Acidentes de Trabalho.
3- Caberia apreciar na presente acção principal e apenso sobre quem impendia a obrigação de ressarcir para tanto haveria de apreciar as seguintes questões: Da determinação da propriedade do veículo …-GD-…; Da celebração e vigência e validade dos contratos de Seguro; Da ocorrência do sinistro, dinâmica do acidente e dos danos por este provocados;
4- Quanto à primeira questão a mesma parece ter ficado resolvida com a prova produzida em julgamento de que pese embora a o veículo estar registado à data do acidente em nome da DD Unipessoal, Lda. a mesma provou que tal veículo tinha sido vendido à empresa FF, Lda., parte na acção apensa ficando absolvida a Ré DD Unipessoal Lda.
5- Quanto à segunda questão da vigência e validade dos Contratos de Seguro ficou cabalmente provado que a empresa proprietária do veículo com a matrícula …-GD-…, não possuía à data do sinistro, seguro válido e eficaz, facto esse que era do desconhecimento do condutor da mesma CC.
6- Em fase de julgamento vem a provar-se que esta propriedade era de facto da firma de FF, Lda., parte enquanto Ré no Processo em apenso, pelo que deveria o Mmo Juiz condenar, porque também é parte (no apenso) a eventualmente responder civilmente com o Fundo de Garantia Automóvel e por inerência legal com o condutor CC pelos danos causados.
7- Não faz qualquer sentido estar a principal causadora de uma irregularidade crassa ao fazer circular um veículo de mercadorias em Portugal e no Estrangeiro sem seguro válido e eficaz, ausente de justa responsabilização e qualquer condenação, transferindo-se confortavelmente esse encargo em singelo para o Fundo de Garantia Automóvel e para o condutor que estava a desempenhar a sua função laboral por conta e à ordem desta.
8- A análise da terceira questão da ocorrência do sinistro, dinâmica do acidente e dos danos por este provocados terá de ser efectuada por dois momentos, o que não foi.
9- Num primeiro momento o despiste do veículo com a matrícula …-GD-…, conduzido por CC, identificando o que lhe deu origem e se existiu dolo ou negligência do condutor e num segundo momento o embate do veículo pesado de passageiros …-BP-… que era conduzido por Carlos …, porque é que deu e este de algum modo este poderia ter evitado o acidente.
10- Entendeu o Mmo Juiz dar por culpado o condutor CC por este ter entrado em despiste e ter ficado imobilizado junto à beira e ocupado a parte da hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito onde circulava o veículo …-BP-….(2.1.17)
11- Entendeu que o referido condutor conduzia sem tomar em consideração o estado da via e as suas características - piso molhado, curva e contra curva circunstâncias essas que obrigavam a especiais deveres de cuidado e o mesmo não o observou. (2.1.20)
12- Todavia a prova produzida em julgamento e a fundamentação da decisão apontam seguramente para outra análise da dinâmica do acidente.
13- A única ocupante do autocarro de passageiros, testemunha arrolada pela A., Bruno … foi dispensada, sempre e quando, em declarações escritas efectuadas em peritagem realizada em 28.04.09 ( dez dias depois do acidente ) pela Perisinistros este afirma (...) o embate que ocorreu contra a viatura que seguia em sentido contrário e que se despistou.
14- Pela análise efectuada às fotografias juntas aos autos verifica-se que o veículo de passageiros veículo …-BP-… encontra-se milimetricamente em cima dos seus rastos de travagem, coisa impossível de se verificar se de algum modo este veículo fosse embatido porque necessariamente seria projectado para fora do seu curso de deslocação!
15- Não é verdade o que afirmou o condutor Carlos … resultando claramente que foi o veículo de passageiros veículo …-BP-… que embateu no veículo de mercadorias (tractor) …-GD-…
16- O condutor do veículo de mercadorias (tractor) …-GD-… não tinha ingerido bebidas alcoólicas e declarou em juízo que não sabe a razão do acidente, apenas que sentiu o veículo derrapar e entrar em despiste. Estava chover e podia haver óleo na estrada. Estava atento mas não conseguiu corrigir a trajectória do veículo que acaba por tombar para o seu lado direito, tendo-se imobilizado junto à berma e ocupando parte da hemi-faixa de rodagem destinado ao trânsito onde circulava o veículo …-BP-…. Ainda teve tempo de tirar cinto de segurança quando foi embatido tendo sido projectado para fora da cabine colidindo com o solo e ficado inanimado.
17- Aqui estamos perante a falência da teoria da colisão eminente que defende erradamente o Mmo juiz . Não pode senão concluir-se de que o do veículo de mercadorias (tractor) …-GD-… foi embatido quando já se encontrava já parado, uma vez que o condutor CC teve tempo de tirar o sinto de segurança e foi precisamente por já não o ter que foi projectado para fora da cabine. De contrário ficaria encarcerado na cabine.
18- Pelo que nunca deveria ter sido dado como provado o 2.1.20 O referido condutor, CC conduzia sem tomar consideração que o estado da via e as suas características - piso molhado , curva e contra curva- circunstâncias essas que obrigavam a especiais deveres de cuidado que o mesmo não observou.
19- Porque simplesmente não se provou qualquer dolo ou negligência resultando apenas de uma leitura presumida.
20- Da análise de um Segundo Momento e da observação atenta do Doc. 9 foto 3 (Pag. 16 da Peritagem realizada pela Perisinistros) verifica-se que o veículo de passageiros veículo …-BP-… tinha espaço disponível à sua frente de forma a evitar o acidente.
21- Pela análise do "Croqui" do acidente o condutor o veículo de passageiros …-BP-… tinha da frente direita do veículo de mercadorias (tractor) …-GD-… ao traço contínuo 1,5m (F), se juntarmos essa distância à largura da via onde circulava o veículo de mercadorias 3,5m (n) existiam 5 metros podendo facilmente contorná-lo e evitar a colisão
22- Outra verdade que parece não ter tido relevância para a decisão e devia ter tido foi o facto de o veículo de passageiros …-BP-… vir em excesso de velocidade e não ter conseguido evitar o acidente. Dita o Auto de Participação do acidente na legislação Infringida que foi levantado auto de transgressão ao condutor do veículo nº2 (veículo de passageiros …-BP-…) 2-6403734-0 por violação do nº1 do artigo 27º do CE - por excesso do limite de velocidade legalmente permitido.
23- Este facto é inultrapassável e devia ter sido dado por provado, uma vez quem tinha o ónus da prova de afastar essa realidade era o A. coisa que não logrou alcançar por qualquer meio de prova.
24- É precisamente por vir numa recta em excesso de velocidade que perante o obstáculo perde a reacção e opta pela pior das soluções em vez de evitar o embate pela esquerda, só tem tempo de conduzir o veículo de passageiro para a beira da estrada, á direita, onde se encontrava corpo do veículo de mercadorias já imobilizado , ou se se aceitar a teoria da colisão eminente, para onde aquele se dirigia. Numa análise retratista da questão parece que o condutor " procura" a colisão ao invés de se afastar dela, porque não tem tempo para mais , porque vem em velocidade excessiva.
25- O condutor o veículo de passageiros …-BP-… tinha espaço (porque se tratava de uma recta), e visibilidade, e podia ter contornado o obstáculo pela esquerda ao invés de procurar a trajectória que o levava a uma colisão sem recurso.
26- Todavia seguia em excesso de velocidade em violação do nº1, do artigo 27º do CE, e não regulou a velocidade em condições de poder fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar o embate no veículo …-GD-que se encontrava imobilizado à sua frente.
27- Determina o nº1 do artigo 24º do Código da Estrada que "o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo ás características da via e do veículo à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais(...) e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança executar as manobras cuja necessidade seja de prever(...)" .Coisa que não foi cumprida pelo condutor o veículo de passageiros …-BP-….
28- A culpa atribuída pelo Mmo Juiz ao condutor o do veículo de mercadorias (tractor) …-GD-… CC, fundamenta-se apenas na MERA PRESUNÇÃO, porque nada existe que o prove, que CC conduzia sem tomar consideração que o estado da via e as suas características - piso molhado, curva e contra curva, circunstâncias essas que obrigavam a especiais deveres de cuidado que o mesmo não observou.
29- Estando no campo da mera presunção então igual medida teria ser aplicada ao condutor do veículo de passageiros …-BP-…, que também NÃO observou iguais e especiais deveres de cuidado a que estava obrigado com a agravante, totalmente desvalorizada pelo Mmo Juiz, de que vinha comprovadamente em excesso de velocidade.
30- Foram claramente utilizados na análise da dinâmica do acidente dois pesos e duas medidas tornando a Douta Sentença obscura e contraditória quanto á sua fundamentação.
31- Resultando como necessário dar por provado o 2.2.7 Ao sair da curva à esquerda e após ter entrado na recta onde se encontrava imobilizado o veículo …-GD-…, o condutor do autocarro …-BP-…, em virtude de velocidade desadequada a que seguia, não consegue parar, vindo embater no pesado. O que não aconteceu.
32- Nesta perspectiva será de aplicar o artigo 570ºCC cabendo ao julgador determinar eventualmente determinar a repartição da culpa.Com ressalva do nº2 segundo o qual, e porque a responsabilidade se baseia na simples PRESUNÇÃO, a culpa do lesado exclui o dever de indemnizar. O que é o caso dos autos, uma vez que a culpa do condutor …-GD-… lhe ser atribuída por força da PRESUNÇÃO do nº3 do 503º do Código Civil
33- Da Douta Sentença encontra-se, pois uma contradição entre a fundamentação e a matéria dada por provada e não provada, quando se reconhece na fundamentação a existência de factos, nomeadamente a existência de uma contraordenação por excesso de velocidade e o facto de o autocarro de passageiros …-BP-… ter 5 metros disponíveis e adoptar uma trajectória mais à direita procurando a colisão inevitável, e tais factos não serem valorizados nem dados por provados.
34- Este erro visível e notário da decisão da matéria de facto que envolve a violação da regra da experiência comum, tornando a Douta Decisão contraditória e obscura.
35- Em conformidade com a matéria de facto que deveria ter sido dada como provada a decisão teria de ser outra, absolvendo os RR do pedido na Acção principal e dando provimento, ainda que de forma parcial, por provada a Acção Apensa.
Termos em que devem V. Exas conceder provimento ao presente Recurso e, em consequência revogar a Sentença recorrida Absolvendo os RR do pedido na Acção principal e dar como provada, ainda que de forma parcial a Acção Apensa.
Por tal ser de toda a Justiça!


4. Contra-alegou a Seguradora GG pugnando pela improcedência do recurso de CC, suscitando a questão da impossibilidade de reapreciação da prova gravada por ausência de cumprimento do disposto na alínea a) do art.º 640º do CPC visto não ter indicado as concretas passagens dos depoimentos dos condutores que sustentam a sua impugnação.

5. Contra-alegou igualmente a BB, S.A. propugnando igualmente pela improcedência desse mesmo recurso.

6. Foram cumpridos os vistos.

7. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS
Como se viu, no caso, apela-se da sentença que conheceu do sobrante mérito da acção, circunscrevendo-se o objecto dos recursos, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) às seguintes questões:
7.1. Recurso do F.G.A.: Se a circunstância de a pessoa que foi demandada como sendo proprietária do veículo (a par do F.G.A e do condutor do mesmo nos termos do disposto no nº1 do art.º 62º do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto) mas que veio a ser absolvida do pedido por se ter apurado em sede de julgamento que afinal não o era, constitui um obstáculo processual à condenação dos demais Réus, i.e. do F.G.A. e do condutor do veículo.

7.2. Recurso de CC
7.2.1. Impugnação da matéria de facto:
a)Se o facto vertido no ponto 2.1.20. [O referido condutor, CC conduzia sem tomar em consideração que o estado da via e as suas características – piso molhado, curva e contra curva – circunstâncias essas que obrigavam a especiais deveres de cuidado que o mesmo não observou.] do rol dos “provados” não o deveria ter sido.
b) Se, ao invés, deveria ter resultado provado o facto inserto em 2.2.7. do elenco dos “ não provados “ [Ao sair de uma curva à esquerda e após ter entrado na recta onde se encontrava imobilizado o veículo …-GD-…, o condutor do autocarro …-BP-…, em virtude da velocidade desadequada a que seguia, não consegue parar, vindo a embater no pesado].

7.2.2 Da apreciação do mérito da decisão de direito:
a) Se a pessoa que se apurou ser a efectiva proprietária do veículo causador do acidente poderia ter sido condenada no pedido formulado pela BB, S.A.;
b) Da (in) verificação dos pressupostos da responsabilidade civil do condutor do autocarro …-BP-….


II- FUNDAMENTAÇÃO

i.) Por comodidade de raciocínio, convém desde já destacar a decisão do Tribunal “ a quo” no tocante à matéria de facto, assinalando-se a negrito a que mereceu a discordância do recorrente CC:
“2.1. – Factos provados
Com interesse para a decisão da causa lograram provar-se os seguintes factos:
As viaturas
2.1.1. Em 16.05.2006 a Autora, BB S.A., celebrou contrato de locação financeira com a locadora HH – Instituição Financeira de Crédito, S.A., para cedência temporária de veículos pesados de passageiros, mediante o pagamento duma renda com vistas à sua aquisição. [Vide documentos de fls. 24 a 29 da acção principal]
2.1.2. O objecto do contrato de locação financeira foram 10 viaturas usadas, que foram adquiridas pela locadora pelo preço total de €200.000,00, ou seja ao preço unitário de €20.000,00 [Vide documentos de fls. 24 a 29 da acção principal]
2.1.3. (..) e foi pago pela Autora em 12 prestações trimestrais de € 21.082,88 acrescido de €4.840,00 de valor residual, pelo que para aquisição da viatura objecto dos presentes autos - …-BP-…, a Autora despendeu a quantia de € 21.566,00 [€21.082 + €484,00 = €21.566,00 – vide documentos de fls.24 a 29 da acção principal]
2.1.4. A Autora equipou, ainda, o veículo …-BP-…, com os seguintes acessórios:
- Display electrónico no valor de … €1.320,00
- Máquina emissão de bilhetes no valor de … €4.950,00
- Cortinas não plissadas e estofos banco no valor de … €2.038,02
Montante total ……………. €8.308,20
[Vide documentos de fls. 61 a 64 da acção principal]
2.1.5. A responsabilidade civil por danos causados a terceiros, decorrente da circulação do veículo …-BP-… interveniente no acidente em causa, foi validamente transferida para a GG – Companhia de Seguros SA., através da Apólice nº 004510630494. [Vide documento de fls. 115 a 128 da acção apensa]
2.1.6. Em 17 de Abril de 2009, pelas 19h 10m, na Estrada Nacional 251, ao km 55,700, em Couço, concelho de Coruche, ocorreu um acidente de viação envolvendo o veículo pesado de passageiros …-BP-… e o veículo pesado de mercadorias (tractor)…-GD-….
2.1.7. O veículo pesado de passageiros …-BP-… era conduzido por Carlos …, por conta e no interesse da Autora BB S.A.
2.1.8. O veículo de mercadorias (tractor) …-GD-… era conduzido por CC, por conta e no interesse de FF Lda., proprietária do mesmo.
2.1.9. A empresa proprietária do veículo com a matrícula …-GD-…, não possuía à data do sinistro, seguro válido e eficaz.
2.1.10. (…) facto esse que era do desconhecimento do condutor da mesma CC, o qual estava convencido que toda a documentação do veículo, fornecida pela entidade patronal estava em ordem
2.1.11. Tendo ficar a saber depois que a apólice de seguro que lhe fora facultada pela entidade patronal, dizia respeito ao veículo …-…-SR e não ao veículo …-GD-….
Dinâmica do acidente
2.1.12. A via onde ocorreu o acidente é composta por uma faixa de rodagem com 7 metros de largura, separada por uma linha longitudinal contínua, com dois sentidos de trânsito opostos
2.1.13. (…) e é constituída por uma descida, com curva para a esquerda e contra curva para a direita, no sentido de marcha do veículo …-BP-… e no sentido oposto, por uma subida com curva para a esquerda e contra curva para a direita.
2.1.14. Tinha estado a chover e o piso encontrava-se molhado.
2.1.15. O veículo …-BP-… circulava no sentido Couço-Mora, no seu sentido de trânsito e a velocidade não concretamente apurada
2.1.16. O motorista do veículo ...-BP-... ao começar a descrever a curva para a sua esquerda foi confrontado com o veículo …-GD-…, circulando em sentido oposto e invadindo a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito por onde circulava veículo …-BP-…
2.1.17. O condutor do veículo …-GD-…, ao descrever a curva, atento o seu sentido de marcham, entrou em despiste, derrapou e ao tentar voltar à sua via de trânsito tombou sobre o seu lado direito, tendo-se imobilizado junto à berma e ocupando parte da hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito onde circulava o veículo …-BP-….
2.1.18. O motorista do veículo …-BP-…, surpreendido pela invasão da sua faixa de rodagem pelo veículo …-GD-… tentou desviar-se para a sua berma e travou bruscamente
2.1.19. (..) não conseguindo, no entanto, evitar o embate com a parte inferior do rodado dianteiro do tractor de mercadorias. [Vide croqui de fls.33 e fotografias de fls.42 a 45 da acção principal]
2.1.20. O referido condutor, CC conduzia sem tomar em consideração que o estado da via e as suas características – piso molhado, curva e contra curva – circunstâncias essas que obrigavam a especiais deveres de cuidado que o mesmo não observou.
Consequências do acidente
Na viatura …-BP-…
2.1.21. Em consequência do embate a viatura …-BP-… ficou com estragos em toda a sua frente, tendo ficado impossibilitado de continuar por si a sua marcha, permanecendo imobilizado na via pública, tendo de ser rebocado.
2.1.22. Sendo que a Autora BB S.A. despendeu a quantia de €1.711,86, em serviços de reboque. [Vide documentos de fls. 65 e 66 da acção principal]
2.1.23. Ficaram igualmente destruídos os acessórios com que a Autora e equipou o veículo …-BP-….
2.1.24. De acordo com peritagem mandada efectuar pela Autora, a reparação do veículo …-BP-…, foi orçada em €93.586,56
2.1.25. Atendendo ao valor da reparação o veículo …-BP-…, foi dado em situação de perda total.
No condutor do …-GD-… CC
2.1.26. Em consequência do embate Armando José Lourenço Salgueiro, sofreu as seguintes lesões:
- três traços de fractura no tecto da órbita direita;
- hematoma intra craniano extra axial, frontal à direita, junto aos traços da fractura com cerca de 28x18mm;
- vários focos de pneumocefalia na vertente anterior da fenda inter hemisférica;
- volumoso hematoma periorbitário à direita;
- presença de pneumo orbita à direita, com foco gasoso junto ao tecto orbitário.
2.1.27. Foi submetido a diversos tratamento médicos tendo tido alta em 17/10/2009
2.1.28. No âmbito do processo por acidente de trabalho que correu termos na 2ª Secção de Trabalho –J2 – Instância Central de Tomar da Comarca de Santarém, sob o nº 95/12.4TTABT, foi-lhe atribuída uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 28,55% [Vide documento de fls.258v a 259v da acção apensa]
2.1.29. No âmbito do mesmo processo foi a entidade patronal do CC, - DD Lda., - condenada a pagar ao mesmo “ .. a pensão anual e vitalícia no montante de €9.357,60, devida desde 18/10/2009 e calculada de harmonia com o previsto no artigo 17º al. b) da lei 100/97 de 13/09, a quantia de €5.978,61 (183 dias de ITA X €32,67) devida a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária, a quantia de €5.400,00 (€450,00 (RMM à data do acidente) X 12 a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente de harmonia com o previsto no artº23º da Lei 100/97 de 13/09 (…) , a quantia de €21,14 devida por despesas medicamentosas, a quantia de € 1.209,60 devida deslocações para tratamentos, consultas e diligências obrigatórias para as quais foi convocado no âmbito dos presentes autos, tudo acrescido dos juros de mora legais vencidos e vincendo até integral pagamento” [Vide documento de fls.258v a 259v da acção apensa]
2.1.30. No âmbito, ainda, do referido processo, foi proferido despacho determinado a notificação do Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) para proceder ao pagamento a CC das indemnizações devidas a título de incapacidade temporárias, bem como ao pagamento da pensão anual e vitalícia devida, desde 18/10/2009. [Vide documento de fls. 260 da acção apensa]
2.1.31. Na sequência do despacho referido no ponto anterior o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT), gerido pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Acidentes de Trabalho pagou ao CC, até 22/05/2017 a quantia total de €87.598,47, sendo que a previsão matemática é de €119.268,54 [Vide doc. de fls.385v da acção principal]
2.1.32. CC despendeu a quantia de €2.816,30 em taxas moderadoras, exames, consultas e transportes de ambulância [Vide documentos de fls.46 a 54 e 58 a 62 da acção apensa]
2.1.33. CC à data do acidente gozava de boa saúde e era uma pessoa afável.
2.1.34. Depois do acidente CC ficou com perdas de memória e tem dificuldade de relacionamento.
2.2. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, não lograram provar-se os seguintes factos:
2.2.1. CC conduzia o veículo ...-GD-... a uma velocidade reduzida.
2.2.2. Após a rectaguarda do veículo …-GD-… entrar em derrapagem só foi possível ao CC imobilizar o mesmo na faixa contrária da via pública.
2.2.3. A causa do despiste do …-GD-…, foi o facto de o mesmo ter pneumáticos com excesso de uso, carecas e queimados.
2.2.4. (…) o que causou a perda de aderência do veículo e, consequentemente o seu despiste.
2.2.5. Após o acidente, o veículo pesado ficou parado numa recta na faixa contrária, ocupando parte da via pública.
2.2.6. Volvidos alguns instantes, quando o CC e o seu colega de trabalho se preparavam para sair do veículo pesado, constataram que vinha em sua direcção autocarro de passageiros …-BP-…, a uma velocidade desadequada.
2.2.7. Ao sair de uma curva à esquerda e após ter entrado na recta onde se encontrava imobilizado o veículo …-GD-…, o condutor do autocarro …-BP-…, em virtude da velocidade desadequada a que seguia, não consegue parar, vindo a embater no pesado.
2.2.8. Com a violência do embate, o veículo de matrícula …-GD-… rodou sobre si, tendo o seu lado direito ficado assente directamente na estrada
2.2.9. CC auferia de vencimento à data do acidente a quantia de €1.200,00 “.

ii.) Comecemos por apreciar a questão que é suscitada pelo F.G.A.: Se a circunstância de a pessoa que foi demandada como sendo proprietária do veículo (a par do F.G.A e do condutor do mesmo nos termos do disposto no nº1 do art.º 62º do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto) mas que veio a ser absolvida do pedido por se ter apurado em sede de julgamento que afinal não o era, constitui um obstáculo processual à condenação dos demais Réus, i.e. do F.G.A. e do condutor do veículo.
Esta foi, como vimos, a solução seguida na sentença recorrida.
E ao contrário do que sufraga o recorrente nenhum obstáculo de natureza substantiva ou processual ocorre.
Da factualidade enunciada – e que neste tocante não foi posta em crise por nenhum dos apelantes – resulta que o veículo de mercadorias (tractor) …-GD-… era conduzido por CC, por conta e no interesse de DD Lda., proprietária do mesmo e que esta empresa não possuía, à data do sinistro, seguro válido e eficaz.
Porém, como exaustivamente se explicita na motivação da decisão: “Quanto à propriedade do veículo …-GD-…, sendo certo que à data do acidente se encontrava registada em nome da Ré DD Unipessoal, Lda, a verdade que tal não corresponde à realidade, tendo esta Ré, ilidido a presunção que deriva do registo. Com efeito, a testemunha Rui …, pai do proprietário da empresa DD Unipessoal, Lda., assistiu ao negócio da venda do …-GD-…, tendo referido peremptoriamente que o veículo em causa foi entregue ao cliente e exigido um termo de responsabilidade (fls.96) um vez que à hora em que tal sucedeu a Conservatória do Registo Automóvel estava encerrada, impedindo, assim, que o registo de aquisição fosse de imediato realizado.
Por sua vez a testemunha Nuno …, que trabalha na referida DD Unipessoal, Lda., descreveu o modo de funcionamento da empresa, referindo que o veículo …-GD-… saiu da empresa no dia 15-04-2009 e que a regra da empresa era de imediato diligenciar junto da Conservatória do Registo Automóvel para a transferência da propriedade o que não foi possível fazer no próprio dia. Referiu ainda que a viatura só foi entregue ao adquirente porque o mesmo exibiu um certificado de seguro provisório.
Por outro lado da análise dos documentos constata-se que os cheques emitidos para pagamento do preço estão datado de 13/04/2009 e 17/04/2009 e o termo de responsabilidade tem a data de 15/04/2009, o que indicia que na data do acidente 17/04/2009 o negócio de compra e venda do mesmo já tinha sido concluído, logo a propriedade já estava transferida para a empresa adquirente.
Acresce que da análise da informação da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 400 a 402 e 410, constata-se que a transferência da propriedade foi feita directamente da DD Unipessoal, Lda, para a empresa FF Lda., isto apesar de ter sido facturado primeiramente ao Grupo H…, S.A (fls.95). Ou seja não existiu registo de outro proprietário. O veículo foi vendido pela DD Unipessoal, Lda em 15/04/2009 e registada a propriedade em nome FF Lda., em 23/04/2009, sem que existisse qualquer outro registo de permeio.
Assim sendo, do conjunto destes depoimentos, que se revelaram credíveis, conjugado com a análise dos documentos juntos e com as regras da experiência comum, o tribunal não tem quaisquer dúvidas em consignar que à data do acidente o veículo …-GD-… era propriedade da empresa FF Lda.”.

Por conseguinte, tendo sido demandada pela Autora BB S.A. em obediência ao estatuído no nº1 do art.º 62º do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto, quem no registo figurava como proprietária do veículo - DD Unipessoal, Lda. - veio a apurar-se ser afinal outra empresa a respectiva dona.

Por conseguinte, nada mais restava ao Tribunal do que absolver do pedido a putativa proprietária.

Não podia, no entanto, deixar de condenar, em solidariedade, o F.G.A. e o condutor do veículo, únicos Réus subsistentes, no pedido.

É que o F.G.A. cumpre a sua atribuição quando é condenado no pagamento da indemnização devida ao lesado em resultado de acidente de viação causado pelo responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel ( art.º 47º nº1 do citado diploma).

A circunstância de a lei exigir, no art.º 62º nº1, que as “acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade” conexiona-se com a agilização do procedimento de recuperação pelo mesmo Fundo dos valores que despendeu no pagamento das referidas indemnizações.

De acordo com o disposto no nº1 do art.º 54º do referido D.L. nº 291/2007 «satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso». E esclarece o nº 3 da mesma disposição legal contra quem pode o Fundo exercer os direitos sub-rogados, nos seguintes termos: «São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do nº 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro».

Está claro que a presença obrigatória destes como co-réus na acção movida pelo lesado contra o Fundo arredará, pela ocorrência do caso julgado, a discussão dos pressupostos fácticos da sua responsabilidade na eclosão do sinistro na futura acção que aquele proporá destinada a reaver o valor pago ao lesado em decorrência do direito de sub-rogação que lhe é legalmente conferido.

Mas não inviabilizará, no caso de um desses co-Réus ter sido absolvido (v.g. por não se comprovar a qualidade de proprietário do veículo cuja utilização causou o acidente) que seja demandado pelo F.G.A. um outro que se revele legalmente responsável por tal ressarcimento.

Não há, no entanto, repete-se, qualquer fundamento processual ou substantivo para eximir, neste momento, o F.G.A. do pagamento da indemnização devida ao lesado.

Pelo que o seu recurso terá necessariamente de improceder.

iii). Interligada com esta questão, está a colocada pelo recorrente, CC, que pugna pela condenação da pessoa que se apurou ser a efectiva proprietária do veículo causador do acidente, a sociedade FF Lda..
Porém, é inequívoco que não sendo parte na acção principal na qual ocorreu a condenação em apreço, peticionada pela BB S.A., não poderia a FF Lda. – Ré na acção apensada - ser ali condenada.
Como é consabido, o instituto da apensação de processos (art.º 267º e seguintes do CPC) tem dois desígnios fundamentais: o da economia processual, uma vez que as várias acções apensadas são instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente; e o da uniformidade de julgamento porquanto a instrução, a discussão e o julgamento conjuntos garantem harmonia decisória, seja na matéria de facto, seja no plano do direito.
Todavia, apesar da unificação da tramitação, as acções mantêm a sua autonomia para os demais efeitos não podendo ser condenado numa delas quem só é réu na outra pois isso equivaleria a pôr em causa os interesses e os direitos de quem lhe é processualmente alheio.
Por isso, esta pretensão do apelante não tem a menor viabilidade.

iv.) O recorrente CC veio impugnar a decisão do Tribunal à quo relativamente a dois factos: o facto vertido no ponto 2.1.20. do rol dos “provados” e o facto inserto em 2.2.7. do elenco dos “ não provados “, propugnando uma resposta oposta.

Refere a Seguradora recorrida que o recorrente não cumpriu os ónus de impugnação da matéria de facto, mais concretamente que nas suas alegações não dá satisfação à exigência contida na alínea a) do nº2 do artº 640º do CPC atinente às exactas passagens da gravação dos condutores dos veículos envolvidos no acidente em que funda o seu recurso.

E assim é.

De facto, o recorrente limita-se a aludir a tais depoimentos que alega serem contraditórios sem que cumpra os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição do recurso, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC.

De tal preceito decorre que a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:

i) A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) A indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

iii) A indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;

iv) A indicação, com exactidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Deste modo, ainda que o recorrente indique os pontos da matéria de facto que entende incorrectamente julgados, mencionando vagamente as razões da sua discordância, o certo é que fazendo alusão à prova produzida em audiência, relativamente ao depoimento dos condutores, omite totalmente a sua localização no instrumento técnico que incorpora a gravação da audiência.

Não estando minimamente cumprido o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, não se conhece da impugnação da matéria de facto com tal fundamento.

Depreende-se, todavia, que o recorrente se insurge contra o entendimento do Tribunal de considerar provado no ponto 2.1.20. [O referido condutor, Armando José Lourenço Salgueiro conduzia sem tomar em consideração que o estado da via e as suas características – piso molhado, curva e contra curva – circunstâncias essas que obrigavam a especiais deveres de cuidado que o mesmo não observou] com base numa “ leitura presumida”.

Ao contrário do que o recorrente supõe, é autorizado o recurso a presunções naturais que se inspiram nas máximas da experiência comum, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana[1] .

Portanto, é de presumir a culpa do condutor que se despista e invade a faixa contrária quando o mesmo não logra provar que tal facto ocorreu por causa estranha a uma condução prudente.

É o que o STJ tem entendido, como se colhe, em situação análoga, do Acórdão de 2.12.2008[2] no qual se referiu que a “ocorrência em termos objectivos duma situação que constitui contravenção a uma norma do Código da Estrada, implica a presunção juris tantum de negligência do interveniente em acidente de viação”.

Aliás, Sinde Monteiro[3] justifica tal afirmação quando, referindo-se às normas legais de protecção de perigo abstracto, diz que a conduta infractora que as desrespeita, traduzindo a inexistência do necessário cuidado exterior, só não responsabilizará o agente se este demonstrar ter tido o necessário cuidado interior - tendo este o ónus da "(...) prova das circunstâncias morais e intelectuais de que preponderantemente se compõe o cuidado interior que excepcionalmente possam afastar a culpabilidade (...)".


Ora, não se pode olvidar que todos os factos alegados pelo ora apelante tendentes a esse desiderato, i.e. a afastar a sua culpa [2.2.1. CC conduzia o veículo …-GD-… a uma velocidade reduzida; 2.2.2. Após a rectaguarda do veículo …-GD-… entrar em derrapagem só foi possível ao CC imobilizar o mesmo na faixa contrária da via pública; 2.2.3. A causa do despiste do …-GD-…, foi o facto de o mesmo ter pneumáticos com excesso de uso, carecas e queimados; 2.2.4. (…) o que causou a perda de aderência do veículo e, consequentemente o seu despiste.] não resultaram provados !

Por conseguinte, o juízo expendido pelo Tribunal “ a quo” afigura-se-nos perfeitamente correcto.

Pretende, outrossim, o apelante que se considere provado o facto por si alegado vertido no ponto 2.2.7. dos “ Não Provados “ :” Ao sair de uma curva à esquerda e após ter entrado na recta onde se encontrava imobilizado o veículo …-GD-…, o condutor do autocarro …-BP-…, em virtude da velocidade desadequada a que seguia, não consegue parar, vindo a embater no pesado” , alegando que o “BP” é que embateu no “GD” , conforme resulta da fotografia junta a fls. 319 dos autos, e que do auto de participação do acidente de viação consta a menção de que foi levantado auto de transgressão ao “ BP” por excesso de velocidade.

Vejamos.
Não há quaisquer dúvidas de que o “BP” é que veio a embater no “GD”.
Isso resulta com clareza do enunciado fáctico respeitante à dinâmica do acidente (Cfr. 2.1.15. a 2.1.19.) e da motivação exaustiva espelhada na sentença: “Relativamente à dinâmica do acidente descrita nos pontos 2.1.12., 2.1.13., 2.1.14., 2.1.15., 2.1.16., 2.1.17., 2.1.18., 2.1.19. e 2.1.20., o tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos dos condutores CC e Carlos …, conjugados com a análise da Participação de Acidente e respectivo aditamento de fls. 32 a 35, fotografias de fls. 36 a 56 e Relatório de Averiguação de fls. 315 a 328, sendo que por nossa iniciativa extraímos cópias a cores das fotografias de fls. 319, 319v e 320 que juntámos a fls. 435 a 437, tudo nos autos principais, tendo ainda conjugado tudo com as regras da experiência comum.
O condutor CC, descreveu o despiste do veículo, referindo que “não teve mão..” no veículo… …-GD-... e que já tinha tirado o cinto de segurança quando foi embatido pelo autocarro …-BP-…, referindo expressamente que “..foi um segundo após tirar o cinto” e que só sofreu lesões com este embate. Ora esta versão não mereceu credibilidade e não se coaduna sequer com a versão da petição inicial onde se diz que seguia a uma velocidade reduzida e que só foi possível imobilizar a viatura na faixa contrária da via pública. [Vide artigos 5º e 8º da p.i.]
Senão vejamos.
Em primeiro lugar temos as características da via, cuja descrição não se mostra contraditória e que resulta inequívoca das fotografais de fls. 36 a 41 dos autos principais. Mas vejamos o “croqui” de fls. 33 e constatamos que da frente dianteira do veículo …-GD- à linha contínua dista 1,50m [F)], se juntarmos essa distância à largura da via onde circulava o …-GD-… - 3,50m [n)], temos 5 metros, ou seja a via estava livre na largura de 5,00 metros, o que permitiria que o autocarro contornasse o veículo …-GD-…, se este estivesse de facto imobilizado na via quando foi visualizado pelo condutor do …-BP-…. Nessa situação seria de admitir que o condutor deparando-se com o veículo imobilizado (um obstáculo) e tendo espaço livre tentasse contornar o mesmo. Mas não foi o caso. Ao condutor do …-BP-… o que se depara é uma veículo em despiste, que ele nem sabe se o mesmo se vai imobilizar ou não e onde. É uma situação de colisão eminente. E o que é normal, o que está de acordo com as regras da experiência comum é que qualquer condutor perante uma situação dessas trave e tente desviar-se o mais possível para a sua berma direita. E foi o que acontece. Veja-se as fotografias de fls. 315 a 328 e em especial a de fls. 319 a 320, que reproduzimos a cores a fls. 435 a 437, das quais resulta, quanto a nós inequivocamente que o condutor do 22-BP-18 o que fez foi travar e encostar-se à berma para evitar o embate.
E esta versão dos factos resulta igualmente das declarações do próprio condutor do …-BP-…, como das declarações do passageiro do autocarro Bruno …, prestadas à sociedade PERSINISTROS que produziu o relatório de fls. 315 a 328 (vide fls.323).
Embora esta testemunha não tivesse prestado declarações em tribunal, não podendo por isso, ser valoradas em termos probatórios, a verdade é que as mesmas fazem sentido e corroboram a análise que o tribunal faz do depoimento do condutor, da análise do “croqui” e das fotografias a que se faz referência, tudo conjugado com as regras da experiência comum.
Por outro lado da análise da Participação do Acidente, constata-se que o condutor CC disse às autoridades que não se lembrava do acidente e 11 dias depois do acidente, também não se lembrava como se retira das declarações que prestou à PERSINISTROS. Ou seja só agora se recorda do acidente, descrevendo o despiste e do pormenor de estar imobilizado e ter retirado o cinto.
Acresce que mesmo na eventualidade de no momento da colisão veículo …-GD-… estar imobilizado, que não cremos, ainda assim, o que resulta das declarações do condutor do …-GD-… é que o embate terá sido quase simultâneo - “… assim que tirou o cinto… foi um segundo” referiu. Ou seja, em qualquer caso ao processo causal é iniciado pelo condutor do veículo …-GD-… e a reacção do condutor do veículo …-GD-… é a que é expectável neste tipo de situações.
É certo que do auto de participação consta uma infracção por excesso de velocidade do veículo …-BP-…, mas tal não significa que momentos antes do acidente circulasse em excesso de velocidade, trata-se certamente de leitura do tacógrafo, leitura essa que não foi possível no veículo …-GD-…, já que a infracção registada, diz respeito à impossibilidade de leitura da tal aparelho [Artº15 nº 2 Reg CEE 3821/85] – vide fls. 34v- .
Face ao exposto o tribunal não teve quaisquer dúvidas em fixar esta factualidade nos exactos termos em que o fez.”.

Acompanhamos outrossim o raciocínio aí expendido concernente à (in) determinação da velocidade em que seguia o “BP”: a menção vaga constante da Participação do acidente de viação de fls. 32 e seguintes dos autos a “ legislação infringida “ por cada um dos condutores não tem qualquer valor probatório específico e ademais revela-se insuficiente para se compreender com que fundamento é que foi alcançada tal conclusão pelo agente participante.
Como é proficientemente explicado no Acórdão da Relação do Porto de 26.10.2004 [4] “a Participação de Acidente de Viação (…) é, de facto, um documento autêntico, uma vez que emana de um órgão de polícia criminal a quem é reconhecida competência para a sua elaboração.
Decorre do art. 371º, n.º 1, do CC que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. Aqueles que não estiverem nessas condições não são plenamente provados pelo documento, pelo que podem ser impugnadas, nos termos gerais, as declarações documentadas.
O documento em causa (Participação do Acidente de Viação), é, nas palavras do Prof. Vaz Serra, “Provas”, BMJ 111, págs. 123 e 133, um documento testemunhal, na medida em que o documentador (soldado da GNR) se limita a atestar um facto, a informar acerca de um acontecimento que ocorreu. A força probatória plena desse documento limita-se aos factos praticados pelo documentador e por ele atestados. E prova ainda plenamente os factos atestados que se passaram na sua presença. Todavia, a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídica são excluídos do alcance da prova plena do documento, pois disso não podia o documentador aperceber-se – cfr. ob., págs. 135/136. “.

Por conseguinte, a menção que é feita à legislação infringida não vincula o julgador não possuindo neste tocante força probatória plena quanto às circunstâncias em que ocorreu o acidente de viação e, muito menos, em relação às normas estradais que os seus intervenientes hajam ou não violado.

Por todo o exposto se indefere a pretensão do apelante de ver modificada a resposta aos assinalados factos.

v.) Da (in) verificação dos pressupostos da responsabilidade civil do condutor do autocarro …-BP-….

A atribuição de culpa[5] ao condutor do autocarro não tem qualquer base pertinente no elenco factual apurado.

O facto do autocarro ter embatido no tractor não tem por si qualquer significado, ou seja, não é suficiente a ocorrência de um embate em algo que surge pela frente para se concluir que o condutor do veículo embatente agiu (também) com culpa.

Para tanto é necessário atentar se o surgimento de um obstáculo, nas circunstâncias concretas do caso, não é algo imprevisível.

E no caso é manifesto que o é: Resultou provado que o motorista do veículo …-BP-… que circulava no sentido Couço-Mora, na sua mão de trânsito, ao começar a descrever a curva para a sua esquerda foi confrontado com o veículo …-GD-… que, circulando em sentido oposto, entrou em despiste, e invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito por onde circulava aquele veículo.

Aliás, o motorista do veículo …-BP-…, surpreendido pela invasão da sua faixa de rodagem pelo veículo …-GD-…, ainda tentou desviar-se para a sua berma e apesar de ter travado bruscamente não conseguiu evitar o embate com a parte inferior do rodado dianteiro do tractor de mercadorias que entretanto havia tombado sobre o seu lado direito e se imobilizado junto à berma ocupando parte da hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito onde circulava o veículo …-BP-….
É certo que o motorista do “BP” conduzia o veículo por conta de outrem mas - e isso é indiscutível -, não havendo qualquer culpa da sua parte na produção do desastre, mostra-se ilidida a presunção estabelecida no nº3 do artº. 503º do Cód. Civil.[6]

O que, aliás, o apelante - que também conduzia o veículo “ GD” por conta de outrem - não logrou.

Por conseguinte, ainda que não tivesse sido possível apurar a culpa do condutor do “GD” na ocorrência do acidente, sempre se imporia a este último a aplicação da presunção estabelecida no citado artigo 503º, nº 3, do Código Civil.


Não há, pois lugar, à aplicação do disposto no art.º 570º nº2 do mesmo código como pretendia o apelante.

III- DECISÃO

Por todo o exposto, acorda este Colectivo em julgar ambas as apelações totalmente improcedentes mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Évora, 18 de Outubro de 2018
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

__________________________________________________
[1] Pires de Lima/Antunes Varela in Código Civil Anotado, vol. I, pag.289.
[2] In CJASTJ, III, 168.
[3] "Responsabilidade por Conselhos, Recomendações e Informações" págs. 263-267
[4] Relatado pelo Des.Henrique Araújo e consultável na Base de Dados do IGFEJ.
[5] Agir com culpa, de acordo com o ensinamento de Antunes Varela, significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo ("Das Obrigações em Geral", vol. I, 7ª edição, pág.554).

[6] Preceito cuja primeira parte estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular do direito a indemnização (Cfr. o Assento nº 1/83, de 14 de Abril de 1983, in D. R., I Série, nº 146, de 28 de Junho de 1983).