Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
679/05.7TAEVR.E2
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: PROTECÇÃO DE DADOS
DEVASSA POR MEIO DA INFORMÁTICA
DIFAMAÇÃO
VIOLAÇÃO DO DEVER DE SIGILO
NÃO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES RELATIVAS À PROTECÇÃO DE DADOS
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
CONDIÇÕES DA SUSPENSÃO DA PENA
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I. O princípio da insignificância intervém como uma máxima interpretativa do tipo (no caso, de crime de difamação), servindo para excluir condutas que só formalmente ou externamente são típicas; a insignificância penal exclui a tipicidade e as condutas insignificantes não serão típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico.

II. Cumprindo avaliar o grau de ofensividade duma concreta conduta, à luz dos princípios da proporcionalidade, fragmentariedade e intervenção mínima do direito penal, mas também da insignificância e da adequação social, há que distinguir entre a real ofensividade de um comportamento e a vivência pessoal deste pelos sujeitos visados.

III. Imputar a alguém a pertença a um partido político legalizado, associar-lhe uma relação de parentesco com pessoa pertencente a esse partido, insinuar vantagem profissional decorrente dessa filiação partidária ou desse parentesco, não é em si algo de “difamatório” pois não é conduta suficientemente grave de ofensa da honra e da consideração social consubstanciadora do tipo material de difamação.

IV. O Código Penal pune no art. 193º (devassa por meio de informática) quem “criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções politicas, (…) à filiação partidária (…) à vida privada”, sendo irrelevante o número de pessoas que constam do ficheiro para determinação do número de crimes cometidos, pois o tipo protege um bem jurídico supra-individual – a interdição absoluta do tratamento informático de determinados conteúdos.

V. Entre o crime de não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados (do art. 43º da Lei de Protecção de Dados Pessoais), e o crime de violação do dever de sigilo (do seu art. 47º) verifica-se uma situação de concurso efectivo, pois uma coisa é obter os dados fora das condições legais e incorporá-los e tratá-los em ficheiro, outra, publicitar o conteúdo desse ficheiro, assim violando efectivamente a privacidade de pessoas concretas.

VI. O tipo do art. 47º da Lei nº 67/98 (violação do dever de sigilo) persegue quem, obrigado a sigilo profissional nos termos da lei, sem justa causa e sem o devido consentimento, revelar ou divulgar no todo ou em parte dados pessoais, sendo irrelevante que esses dados pudessem ser conhecidos independentemente da conduta delituosa, e sendo igualmente irrelevante a circunstância das informações divulgadas conterem imprecisões ou inexactidões.

VII. O nº 2 do art. 47º da Lei nº 67/98 agrava a pena designadamente nos casos em que o agente é funcionário público ou equiparado (alínea a)) e quando puser em perigo a reputação, a honra, a consideração ou a intimidade da vida privada de outrem (alínea c)).

VIII. Estando o arguido obrigado a sigilo profissional e tendo obtido os dados por via das funções que desempenhava como funcionário público, a divulgação pela internet de mapas contendo informação sobre vencimentos, filiações partidárias e ligações pessoais, associando tais dados entre si no contexto em que foi feito, não causando embora ofensa à honra e ao bom nome, não deixa de pôr em perigo a reputação profissional dos visados, perigo (concreto) que releva no funcionamento da agravante.

IX. Nesta forma de execução do crime de violação do dever de sigilo, a consumação ocorre independentemente da reputação profissional dos visados ter chegado a ser lesada, pois visa-se evitar e prevenir um risco independentemente da sua concretização.

X. Assim sendo, nestas situações, em que se continua a assegurar a protecção do um bem eminentemente pessoal mas em que esse bem não chega a ser efectivamente atingido, a pluralidade de vítimas não deve interferir na decisão sobre o número de crimes cometidos.

XI. A suspensão da pena condicionada permite potenciar as virtualidades do instituto da suspensão da execução da prisão, que não se limita a descansar na “ideia da ameaça da pena e do seu efeito intimidativo”, sendo antes integrado pela imposição ao agente de deveres e regras de conduta que reforçam tanto a socialização do delinquente como a reparação das consequências do crime.

XII. Mas para que se cumpra tal desiderato, deve o arguido encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária na quantidade e no tempo determinados na sentença, incumbindo ao tribunal averiguar das possibilidades do cumprimento do dever a impor, de forma a fixá-lo num modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições do condenado, só assim se prosseguindo as finalidades da pena bem como o direito a uma pena justa.

XIII. Os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição do excesso mantêm-se como referentes em todo o processo de decisão sobre as consequências do crime – o aditamento de regras de conduta à suspensão da prisão justifica-se quando a suspensão, por si só, não garanta já as finalidades da punição.

XIV. A contribuição para a socialização é condição da submissão do condenado à regra de conduta, conforme exigência expressa da norma legal ao abrigo da qual ela é imposta. Sendo o arguido primário (aos 59 anos de idade), apresentando-se socialmente integrado, tendo os factos ocorrido há oito anos e não havendo notícia de mau comportamento posterior em sentido penalmente relevante, não explicando ainda o acórdão em que medida a imposição que aditou à suspensão da prisão (de proibição de exercício de cargos de nomeação ou confiança política durante o período de suspensão da pena) contribui para a socialização do condenado, fica por demonstrar a premência no robustecimento, por esta via, da suspensão da execução da prisão. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 679/05.7TAEVR do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Évora foi proferido acórdão em que se decidiu condenar A. como autor de sete crimes do artigo 47°, 1 e 2 a) da Lei 67/98, de 26/10, nas penas parcelares de dezoito meses de prisão; de seis crimes dos arts 180°, 1, 183°.1 a) e b) 184° do Código Penal, nas penas parcelares de seis meses de prisão; seis crimes de devassa por meio de informática do art. 193° do Código Penal, nas penas parcelares de um ano prisão; de sete crimes de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados do art. 43° da Lei nº 67/98 de 26 de Outubro, nas penas parcelares de seis meses prisão; e em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão suspensa na execução, subordinada ao pagamento, no prazo de um ano, aos lesados, das quantias fixadas a título de indemnização civil.

Foi ainda condenado a pagar, a título de danos morais: seis mil euros a MJ, dez mil euros a VM, três mil euros a AG, dez mil euros a MA, seis mil euros a JR, seis mil euros a JL, dez mil euros a SB.

Foi ainda proibido de exercer cargos de nomeação ou confiança política durante o período de suspensão da pena, ao abrigo do disposto no artigo 52º, n° 2, al. a) do Código Penal.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo que:

“I. O acórdão recorrido continua a enfermar de nulidades várias, nos termos conjugados dos arts. 379.º n.º 1, al. a) e 374.º n.º 2, do CPP.

II. Assim, para a fixação de uma pena unitária em cúmulo jurídico – ainda que suspensa na sua execução – não basta a mera indicação do quantum da mesma, desprovida de qualquer fundamentação ou mera explicação susceptível de permitir ao ora recorrente compreender o raciocínio do tribunal e aferir da justeza, da correcção e da acuidade do respectivo cálculo.

III. Tal fundamentação não pode, naturalmente, consistir na mera reprodução integral do arrazoado anteriormente dedicado a fundamentar os critérios que levaram à determinação pelo tribunal da espécie e medida das penas parcelares a impor individualmente ao arguido por cada um dos crimes que lhe é imputado.

IV. Ao omitir uma verdadeira fundamentação para a fixação da pena unitária de cinco anos de prisão ao ora recorrente, o acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos dos sobreditos arts. 379.º n.º 1, al. a) e 374.º n.º 2, ambos do CPP, assim impossibilitando por absoluto o exercício do direito ao recurso, em violação grave dos direitos constitucionais contidos nos arts. 20.º n.º 1, 32.º n.º 1 e 205.º n.º 1 da CRP.

V. Por outro lado, a imposição da proibição de exercer cargos de nomeação ou confiança política é ilegal na medida em que não encontra qualquer suporte legal ou constitucional e contende com direitos, liberdades e garantias cuja restrição lhe não é autorizada (designadamente o direito de acesso a cargos públicos, previsto no art. 50.º da CRP), pelo que deverá a mesma ser declarada nula pelo Tribunal ad quem.

VI. Assim não se entendendo, vem o recorrente arguir, desde já, a inconstitucionalidade da norma constante do art. 52.º, n.º 2, al. a) do CP se interpretada no sentido de se considerar legítima a imposição ao arguido de uma proibição de acesso, em condições de igualdade e liberdade, ao exercício de quaisquer cargos públicos ou políticos, porquanto entende ser semelhante interpretação manifestamente violadora dos direitos constitucionais consagrados nos arts. 50.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa.

VII. Além do mais, ao aplicar ao arguido a referida regra de conduta sem apresentar qualquer verdadeira fundamentação, o tribunal recorrido impossibilitou a compreensão da sua motivação e finalidades (tanto que o cargo desempenhado pelo ora recorrente à data dos factos nem sequer era de nomeação ou confiança política), bem como a sua impugnação, assim violando o dever de fundamentação imposto pelo art. 205.º da CRP e 374.º, n.º 2, do CPP, e, consequentemente, incorrendo na nulidade por falta de fundamentação prevista na primeira parte da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.

VIII. O acórdão recorrido enferma ainda de nulidade, nos mesmos termos dos aludidos arts. 379.º n.º 1, al. a) e 374.º n.º 2 do CPP, por falta de indicação e exame crítico da prova documental e testemunhal que serviu para fundamentar a convicção do tribunal no segmento decisório relativo à apreciação dos pedidos de indemnização civil, porquanto aí continuou o tribunal a quo a limitar-se a mencionar vaga e genericamente os documentos referidos, bem como o teor de alguns depoimentos, sem nunca especificar em que consistem verdadeiramente os mesmos, qual a relevância que lhes foi atribuída no processo lógico-formal que serviu de suporte à formação da sua convicção e por que motivo deverão os mesmos prevalecer sobre outros que contenham ou transmitam informação oposta.

IX. Caso assim também não se entenda, vem o recorrente arguir, igualmente, e desde já, ao abrigo do entendimento já propugnado pelo Tribunal Constitucional nesta mesma matéria, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do art. 374.º do CPP quando interpretada no sentido de se considerar suficiente para o preenchimento do conceito de fundamentação, designadamente no que concerne à indicação das provas e ao exame crítico das mesmas, a mera remissão genérica para a documentação constante dos autos, sem qualquer outra descrição ou análise dos mesmos que não a sua mera localização numérica no processo, ou a genérica indicação da valoração dada a alguma prova testemunhal, porquanto entende ser tal interpretação violadora do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação do direito ao recurso previsto no n.º 1 do art. 32.º da Lei Fundamental.

X. O acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b), porquanto continua a considerar provado que o arguido violou um dever de segredo ao divulgar informações que obteve em virtude do exercício do seu cargo (nomeadamente vencimentos e convicções ou filiações partidárias) e, simultaneamente, na motivação da matéria de facto provada, considera que essas mesmas informações não correspondem à verdade – assim implicando que o arguido violou um dever de segredo sobre factos errados.

XI. No que respeita à matéria de facto, incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento ao dar como provado o facto n.º 8, porquanto não decorre da apreciação da prova produzida constante da fundamentação do acórdão recorrido que o mapa anexo ao único e-mail efectivamente enviado pelo arguido contivesse quaisquer referências a filiações partidárias ou “graus de parentesco”.

XII. Sendo que, o print do anexo alegadamente enviado pelo arguido constante de fls. 187 e ss dos autos, não corresponde ao verdadeiro anexo enviado pelo arguido, uma vez que esse anexo foi alterado 8 dias após o seu envio, tal como consta da impressão das propriedades deste ficheiro a fls. 190 – i.e., o ficheiro cuja impressão se juntou aos autos não é o ficheiro que foi enviado pelo arguido.

XIII. Aliás, tal versão contraria ainda as regras da experiência comum, uma vez que, a admitir-se que o arguido tenha incluído essas referências no e-mail de 15 de Setembro de 2005, em escrita “mecânica”, não faria sentido que, no dia seguinte, tivesse afixado o mesmo mapa com as mesmas anotações feitas em escrita manual.

XIV. Incorreu ainda o tribunal recorrido em erro de julgamento ao dar como provados os factos n.º 12, 14, 15, 16, 18 e 20 e, consequentemente, os factos n.º 23, 27, 30, 34, 38 e 41, porquanto o ficheiro automatizado e o mapa constantes dos segundo e terceiro e-mails cujas autoria e emissão são imputadas ao arguido não são iguais ao mapa que o ora recorrente anexou ao único e-mail que efectivamente enviou, sendo que tal conclusão, não só não decorre da prova produzida, como se baseou em indícios utilizados pelo tribunal que assentam em pressupostos falsos e são infirmados pela lógica e/ou pela prova produzida.

XV. Assim, sendo inequívoco que o mapa da autoria do arguido foi posteriormente alterado por terceiro, não pode o tribunal recorrido dar como provado (ainda para mais, sem qualquer motivação que o suporte) que o mapa junto aos autos foi aquele que o arguido enviou no e-mail de 15 de Setembro de 2005, nem que foi o mesmo mapa enviado nos dois e-mails subsequentes cuja autoria se desconhece, porquanto o mapa que foi enviado pelo arguido à Dra. M. não continha qualquer referência a filiações partidárias ou “graus de parentesco” dos ofendidos.

XVI. Ao deixar de pronunciar-se sobre a alteração que o ficheiro junto aos autos sofreu (constante do print das propriedades do ficheiro junto pelo recorrente a fls. 190) e que prova que o ficheiro junto aos autos não foi o que aquele enviou, o tribunal recorrido deixou de pronunciar-se sobre uma questão de que deveria conhecer, assim incorrendo na nulidade por omissão de pronúncia prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.

XVII. Não poderia o tribunal recorrido ter dado como provados os factos n.º 12, 14, 15, 16, 18 e 20 e, consequentemente, os factos n.º 23, 27, 30, 34, 38 e 41, na parte em que atribuem a autoria e o envio do segundo e do terceiro e-mails ao ora recorrente, uma vez que este apenas enviou um e-mail, sendo, por isso, totalmente alheio à subsequente adulteração do seu anexo e aos posteriores envios dos segundo e terceiro e-mails que ora se lhe imputam e que fundamentaram a sua condenação.

XVIII. Aliás, o recorrente provou que o seu sistema informático se encontrava totalmente desprotegido do ponto de vista informático, tendo inclusivamente demonstrado (através da junção de 4 pareceres técnicos) como poderá ter sido perpetrada a intromissão no mesmo, tendo o tribunal recorrido optado por desconsiderar tais factos legitimamente criadores de dúvida razoável com base em induções, análises e conclusões falíveis e incorrectas (designadamente, desconsiderando o depoimento da testemunha AS alegando que o mesmo teria alterado a sua versão em sede de acareação quando, na verdade, não só tal não corresponde à verdade, como consta informação oposta na acta de audiência de discussão e julgamento respectiva).

XIX. Por fim, não poderia o tribunal recorrido ter dado como provados os factos n.º 3, 6, 21, 22, 24, 25, 26, 28, 29, 31, 32, 33, 36, 37, 39, 40 e 42 na parte em que sustentam que foi o arguido quem afixou o mapa no placard, posto que tal afirmação assenta numa fundamentação indiciária em manifesta discordância com a prova testemunhal produzida (nomeadamente os depoimentos de MM, de MF e de AF).

XX. Tais afirmados, mas errados, indícios são, em primeiro lugar, a imputação feita ao recorrente de que o mesmo “dá erros ortográficos semelhantes aos manuscritos na primeira versão aposta no placard” e, em segundo lugar, o facto de algumas testemunhas terem referido que “a letra aposta no cartaz era a do arguido”.

XXI. Sucede que, não pode ser dada qualquer relevância aos alegados erros ortográficos constantes do mapa nem os mesmos podem fundamentar qualquer ligação entre as anotações manuais nele constantes e o ora recorrente, porquanto, da prova testemunhal (designadamente da supra referida) não só não é certo que o mapa contivesse tais erros, como não é correcto que o arguido tenha por hábito cometer tais erros, como ainda existem vários outros funcionários que cometem tais erros e que podem ter feito as referidas anotações manuais.

XXII. Nem poderá ser dada relevância ao facto de algumas testemunhas (as interessadas, claro) afirmarem tratar-se da letra do ora recorrente no mapa afixado no referido placard, porquanto, à data dos factos, aquele apenas exercia funções havia 45 dias (sendo que não foram enviados por si despachos manuscritos em todos esses dias e, aqueles que foram, certamente não foram objecto de análise cuidada por parte do seu destinatário), o que, à luz das regras da experiência comum, se traduz num período de tempo manifestamente insuficiente para um leigo em caligrafia conseguir afirmar, com certeza e segurança – à data ou 5 anos após os factos – que se tratava da sua letra.

XXIII. Nem poderia o tribunal ter dado como provado que o mapa afixado era o “mesmo mapa” alegadamente enviado nos 3 e-mails uma vez que, enquanto os mapas que foram enviados por e-mail continham anotações feitas por via informática, já aquele que fora afixado continha anotações feitas manualmente (as quais apenas lhe terão sido apostas precisamente por causa da ausência de anotações por via informática), pelo que, a dar-se como provada (como se deu) a versão do tribunal, tal significaria que o arguido teria enviado o ficheiro com anotações feitas por via informática, teria apagado essas anotações, apenas para poder imprimir o mapa e, posteriormente, fazer as mesmas anotações por via manual, assim facilitando a sua detecção, o que contraria manifestamente as regras da experiência comum.

XXIV. No que respeita à matéria de direito, designadamente à condenação do arguido pela prática de sete crimes de violação do dever de sigilo, p. e p. pelo art. 47.º da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, veio o tribunal recorrido a condenar o arguido, não só por ter divulgado informação relativa a vencimentos (públicos) dos ofendidos, como por ter divulgado informação relativa às convicções ou filiações partidárias dos mesmos (de conhecimento geral na cidade de ---).

XXV. Sucede que, no que respeita à divulgação de informações relativas às convicções ou filiações partidárias dos ofendidos, inexiste qualquer suporte na matéria de facto dada como provada que sustente tal condenação, uma vez que da factualidade assente apenas consta que o arguido tinha acesso aos vencimentos por via das suas funções e não às filiações partidárias, pelo que, aqui, o acórdão recorrido enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.

XXVI. Ainda no que respeita à condenação por violação de sigilo, no que concerne à divulgação de informações referentes a convicções ou filiações partidárias, foi o arguido condenado por revelar factos que já eram, à data dos factos, públicos e notórios (como sejam a filiação partidária de indivíduos politicamente activos e que se submeteram a eleições e faziam parte de órgãos municipais) e ainda por factos que os próprios ofendidos admitiram ser falsos e que o próprio acórdão reconhece poderem não corresponder à verdade – ou seja, foi o arguido condenado por violar o dever de sigilo quanto a factos que a ele não se encontram sujeitos.

XXVII. No que se refere à violação do dever de sigilo quanto à divulgação dos vencimentos dos queixosos, acontece que tais valores, não só se encontram acessíveis a qualquer interessado por via da publicação obrigatória de listas de antiguidade (uma vez que os ofendidos são funcionários públicos), nos termos dos arts. 93.º e 95.º do Decreto-Lei n.º 100/99, como alguns deles ainda se encontram disponíveis na Internet, como ainda – segundo o próprio acórdão recorrido – os valores constantes do mapa não correspondiam à realidade – ou seja, o arguido foi novamente condenado por violar o dever de sigilo quanto a informações públicas e, simultaneamente, cuja “revelação” por parte do arguido o próprio acórdão qualifica como desconforme à realidade.

XXVIII. Quanto aos crimes de difamação caluniosa (ou calúnia), p. e p. pelo art. 180.º n.º 1 e 183.º n.º 1, al. b) do CP: uma vez que o acórdão recorrido é totalmente omisso (quer na fundamentação da matéria de facto, quer na de direito) quanto ao alegado conhecimento, por parte do recorrente, da falsidade das imputações difamatórias que alegadamente perpetrou, deverá o Tribunal ad quem concluir pela existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, prevista no art. 410.º, n.º 2, al. a), pelo que, deverá o tribunal recorrido reenviar o processo para novo julgamento, pelo menos quanto a estes factos, nos termos do art. 426.º, n.º 1 do CPP.

XXIX. Contudo, caso o Tribunal ad quem entenda haver um mero erro de julgamento, deverá o mesmo concluir pela inexistência de uma calúnia e retirar a agravação constante da al. b) do n.º 1 do art. 183.º do CP ao crime de difamação, daí extraindo as devidas consequências legais em sede de medida da pena – sem prejuízo da expectável absolvição do arguido da prática deste crime em virtude de alteração da matéria de facto, uma vez que as anotações com informações relativas a convicções ou filiações partidárias não são da sua autoria.

XXX. No que respeita à condenação do arguido pela alegada prática de seis crimes de devassa por meio de informática, p. e p. pelo art. 193.º do CP, cumpre salientar que o tipo objectivo se preenche com a criação do ficheiro automatizado e não com a quantidade de pessoas cujos dados nele figuram, pelo que, mesmo que o arguido tivesse criado o ficheiro com essas informações (o que não se concede), ele apenas poderia ter sido condenado pela prática de um único crime de criação de ficheiro automatizado, e não por seis.

XXXI. Quanto aos sete crimes de não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados, há que salientar que a factualidade descrita na fundamentação de direito não encontra correspondente no elenco de factos dados como provados, o que corresponde a uma limitação intolerável do direito ao recurso em matéria de facto do arguido, porquanto o mesmo se vê impedido de cumprir a exigência legal da al. a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP e especificar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” – pelo que, inexistindo suporte fáctico que sustente a condenação do arguido por estes crimes, deverá o mesmo ser absolvido.

XXXII. Mas ainda que assim não se entenda, deverá o tribunal recorrido absolver o arguido da prática destes crimes, uma vez que os dados alegadamente utilizados “de forma incompatível com a finalidade da recolha”, não só são públicos e facilmente acessíveis pelo cidadão comum (e, como tal, não se encontram abrangidos pela reserva da vida privada dos queixosos), como foram estruturados num mapa cujo objectivo era o de monitorizar os custos da Sub-Região de Saúde de ---, assim permitindo uma melhor gestão dos mesmos e, consequentemente, foram utilizados com vista à prossecução do interesse público, o que torna a sua utilização lícita nos termos da al. d) do art. 6.º da Lei n.º 67/98.

XXXIII. O tribunal recorrido incorreu ainda em erro de direito ao não ter apreciado a existência de relações de concurso de normas entre os preceitos efectivamente aplicados.

XXXIV. No entendimento do tribunal recorrido, o crime de difamação (através de meios que facilitem a sua divulgação) era o desígnio último do recorrente e o ilícito dominante que terá motivado à criação do ficheiro informático com os dados que, efectivamente, consubstanciam a difamação.

XXXV. Pelo que, e nos termos da argumentação referida em sede de motivação, sendo o crime de devassa por meio de informática um mero instrumento para a prossecução da finalidade última de lesão da honra dos ofendidos por via da difamação com publicidade, então ao punir-se o arguido pela prática de ambos os crimes (leia-se, dos doze crimes), está a punir-se, simultaneamente, o arguido pela prática de um crime que foi um mero meio para a comissão de um crime final (com publicidade) e que é, efectivamente o ilícito dominante, assim se punindo o arguido duas vezes pelo mesmo crime.

XXXVI. E do mesmo modo que o crime de difamação com publicidade deverá consumir o de devassa por meio de informática, também o crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados deverá consumir o de violação do dever de sigilo (apenas no que concerne à divulgação de vencimentos), uma vez que, para o recorrente poder utilizar os dados pessoais – leia-se, os vencimentos – de forma incompatível com a finalidade da recolha [nos termos do art. 43.º, al. c) da Lei n.º 67/98], designadamente para se auto-valorizar e denegrir os ofendidos, o mesmo tinha necessariamente de os divulgar, assim violando o dever de sigilo [art. 47.º, n.º 1 e 2, al. a) da mesma lei].

XXXVII. Isto é, uma vez que o crime de violação do dever de segredo é meramente instrumental em relação ao crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados – já que para haver uma utilização dos dados com o intuito de denegrir os seus titulares é necessário que os mesmos sejam publicitados – e sendo que o sentido de ilícito dominante e o objecto da vontade do recorrente era aquele, tendo este sido um mero expediente necessário para a sua prossecução, deverá o Tribunal ad quem alterar a decisão recorrida, porquanto existe uma relação de concurso aparente entre o crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados e o crime de violação do dever de segredo, na qual o primeiro consome o segundo.

XXXVIII. No que respeita à medida da pena, e apesar de estar legalmente obrigado a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente” (art. 71.º, n.º 2 do CP), o tribunal recorrido não se pronunciou quanto ao facto de ter sido o recorrente a remover o mapa afixado no placard e cuja autoria lhe foi imputada, facto esse que determinou a cessação dos efeitos alegadamente lesivos da honra dos assistentes (os quais, por sinal, apesar de “ofendidos”, se limitaram a tirar fotografias ao referido mapa e a dar entrevistas à comunicação social sobre o mesmo).

XXXIX. Ainda em sede de medida da pena, o tribunal não atenuou especialmente a pena em virtude de “[t]er decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta”, apesar de a tal estar obrigado, nos termos do art. 72.º, n.º 2, al. d) e, não obstante o processo ter demorado seis vezes mais tempo do que aquele considerado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como prazo razoável.

XL. Dada a violação do direito do arguido a uma decisão em prazo razoável, constante do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, deveria o tribunal recorrido ter atenuado especialmente a pena. Não tendo o arguido sido compensado com uma atenuação especial da pena em virtude da demora do processo (que não lhe é imputável), constituiu-se o mesmo no direito a ser indemnizado pelo Estado em virtude de violação de direito convencional, nos termos do art. 12.º da Lei n.º 67/2007.

XLI. No caso em apreço inexistiu qualquer ponderação acerca da morosidade do processo para efeito de atenuação da pena, o que, efectivamente, consubstancia, no mínimo, manifesto erro de julgamento, pelo que, deverá esse Venerando Tribunal suprir tal irregularidade e agir em conformidade com o imperativo legal, (caso decida não absolver o arguido, o que não se concede) atenuando especialmente a pena.

XLII. No que respeita à sujeição da suspensão da pena ao pagamento, no prazo de um ano, de indemnizações no valor total de 51.000€, entende o recorrente que se trata de um dever impraticável, ilegal e inconstitucional.

XLIII. Com efeito – e segundo os dados do próprio acórdão recorrido –, o rendimento mensal do arguido – deduzido somente o valor da prestação bancária do empréstimo à habitação – é 44 (quarenta e quatro) vezes inferior ao montante indemnizatório a cujo pagamento foi condenado, sendo o seu rendimento anual 3 vezes inferior a tal montante (sem contar com o novo imposto sobre o subsídio de Natal).

XLIV. Ora, uma vez que o arguido precisa de assegurar um mínimo necessário para a sua subsistência e para a dos seus pais que consigo vivem e têm uma saúde debilitada, facilmente se concluirá que a exigência do pagamento de tal montante num tão curto prazo é manifestamente impraticável, desproporcional, irrazoável e constitui uma clara violação do art. 51.º n.º 2 do CP, bem como dos mais elementares direitos fundamentais do arguido.

XLV. No que respeita aos pedidos de indemnização cível, resulta do acórdão recorrido que, relativamente aos demandantes MJ, JL, VM e SB, o tribunal levou em consideração factos que extravasam os limites do objecto do processo, uma vez que se reportam aos crimes de abuso de poder pelos quais o arguido não foi pronunciado.

XLVI. Dado que o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal tem de se fundar na prática de um crime (art. 129.º do CP e 71.º do CPP) e, não tendo o arguido sido pronunciado pelo crime de abuso de poder (nem por qualquer um desses factos, como consta do despacho de pronúncia), não pode o tribunal recorrido condená-lo ao pagamento de uma indemnização por esses factos, sob pena de clara perversão da lei e manifesta violação do direito ao contraditório do arguido (que legitimamente pensava que aqueles factos não poderiam ser utilizados contra ele em sede de responsabilidade civil conexa com a penal), antes devendo tais factos ser remetidos para uma acção cível autónoma.

XLVII. Ao condenar o arguido ao pagamento de indemnizações por factos pelos quais não foi pronunciado, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre questões de que não deveria conhecer, assim incorrendo no vício de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP ou, no mínimo, em erro de julgamento.

XLVIII. Além do mais, o arguido foi condenado ao pagamento de indemnização, por factos relativos aos demandantes MJ e JL, cuja fundamentação simplesmente não existe no acórdão recorrido, pelo que deverá o Tribunal ad quem anular o acórdão, também aqui, por manifesta omissão de fundamentação, nos termos dos arts. 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2 do CPP.

XLIX. Foi ainda o arguido condenado ao pagamento de uma indemnização por danos causados à demandante AG por esta ter sido “alvo de comentários públicos que causaram distúrbios na sua vida, chegando-lhe a causar temor e perturbação”, e por ter passado “a ser olhada na escola onde passou a dar aulas como uma ‘oportunista política’ que se aproveitava de ‘tachos políticos’”.

L. Sucede que os danos alegadamente sofridos pela demandante foram potenciados pela entrevista que deu à televisão sobre os factos.

LI. Isto é, o alegado envio de 3 e-mails e a afixação de um mapa de teor difamatório por parte do arguido não constituem causa adequada dos danos causados pela publicidade dada à questão pela televisão e pela participação da demandante na notícia, dando uma entrevista sobre os factos, assim aumentando a sua visibilidade – bem como a conexão visual da sua pessoa aos factos – e potenciando os “comentários públicos que causaram distúrbios na sua vida”.

LII. Trata-se, não só de um problema de causalidade adequada como de culpa do lesado, cabendo, nos termos do art. 570.º n.º 1 do Código Civil, “ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”

LIII. No que respeita ao montante indemnizatório atribuído à demandante MP, foi o arguido condenado ao pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais em virtude de, com a sua conduta, ter levado a que a demandante tenha necessitado “de tomar anti-depressivos e ansiolíticos.”

LIV. Sucede que, a ter, efectivamente, existido tal necessidade de medicação, a mesma sempre decorreria de uma ultra-sensibilidade da demandante que, apesar de poder ter sido despoletada pela conduta imputada ao arguido, não seria de prever que existiria ou que pudesse ser activada deste modo.

LV. O carácter irrazoável destes danos extrai-se, inclusivamente, da comparação do alegado sofrimento desta demandante (por sinal, médica) com o dos restantes demandantes, uma vez que não consta que mais nenhum tenha necessitado de medicação desta natureza.

LVI. Assim, deverá o quantum da indemnização ser reduzido, atendendo à inexistência de nexo de causalidade adequada entre os factos e os danos psicológicos severos alegadamente sofridos pela demandante e que careceram de medicação.

LVII. Não se mostra preenchido o requisito de gravidade dos danos morais invocados, que permitiriam uma compensação requerida, muito menos nos montantes elevadíssimos e completamente desproporcionados ”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:

“1ª- O acórdão recorrido não incorreu em erro de julgamento da matéria de facto.

2ª - O acórdão recorrido não padece de nulidade nos termos preceituados nos artºs. 379º, nº1 e 374º, nº2 do CPP.

3ª - O acórdão recorrido também não se mostra ferido de erro de julgamento no tocante à matéria de direito.

O demandante VM respondeu ao recurso, pugnando também pela improcedência e concluindo:

“1- Não se verifica qualquer nulidade decorrente de falta do exame crítico da prova que serviu para fundamentar a convicção do Tribunal na decisão relativa aos pedidos de indemnização civil.

2 – Inexiste contradição insanável na fundamentação do acórdão condenatório.

3 - A decisão referente à matéria de facto proferida nos presentes autos não merece qualquer censura.

4 – O seu teor resulta, com grande clareza do depoimento da demandante e das testemunhas ML, JM, FV, MS, JP, MF e AF, bem como a dos assistentes e demandantes.

5 – Impõe-se a manutenção da condenação do arguido na indemnização a favor do ora alegante, nos seus precisos termos.

6 – O douto acórdão recorrido deve, pois, ser confirmado, na íntegra.

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto remeteu para a resposta do Ministério Público em 1ª instância, nada acrescentando.

Cumprido o art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido mesmo assim respondeu.

Colhidos os Vistos, teve lugar audiência, a requerimento do arguido recorrente.

2. No acórdão consideraram-se provados os factos seguintes:

“1 - O arguido era em 15 e 16 de Setembro de 2005 Director de Serviços de Administração-Geral da Sub-região de Saúde de ---da Administração Regional de Saúde do Alentejo, cargo que ocupava desde 1 de Agosto de 2005.

2 - Por força dessa situação o arguido tinha conhecimento dos elementos relativos ao pessoal que trabalhava na Sub-região de Saúde, nomeadamente vencimentos, e acesso aos ficheiros informáticos onde constavam tais elementos.

3 - No dia 16 de Setembro de 2005, pela manhã, o arguido afixou no placard próprio na sala do café das instalações da Sub-região de Saúde um cartaz com um mapa com o título: "Movimentações de Pessoal", "Sub-Região de ---" e "Mapa Comparativo dos Acréscimos e Reduções de Custos Mensais".

4 - Nesse cartaz constava um mapa comparativo de custos com pessoal.

5 - Do lado esquerdo os acréscimos de custos, em que se colocavam os nomes e os vencimentos das pessoas que passavam a trabalhar na Sub-Região de Saúde de ---, em que se incluía o arguido, e do lado direito sob o título "reduções de custos" os nomes das pessoas que cessavam funções com indicação dos respectivos vencimentos.

6 - Ao lado da coluna da direita o arguido apôs anotações feitas em escrita manual em frente aos nomes das pessoas que mencionava, com a indicação da filiação partidária num dos partidos do governo que cessara funções na altura.

7 - Já na véspera, dia 15.09.2005. pelas 19h.25m., o arguido A. tinha enviado um e-mail, do seu computador (DSAG dsag@srs...min-saude.pt) para o computador de MA m...@arsalentejo.min-saude.pt, com o assunto: "nem todos são iguais", contendo no corpo do e-mail o seguinte texto: "Cara Dra. M.: Nem todos são iguais e pela boca morre o peixe. Diverte-te" (cfr. doc. n.º 4 junto à queixa da assistente SB).

8 - Em anexo, enviou um ficheiro automatizado de formato XLS, contendo o mapa já mencionado como tendo sido afixado na manhã seguinte na sala do café, com informações referentes a vencimentos, categorias profissionais e observações de carácter pessoal, como graus de parentesco, alterações de situação profissional e filiações partidárias.

9 - Como se verifica das respectivas propriedades informáticas, este ficheiro automatizado foi criado no dia 15.09.2005, quinta-feira, às15h.46m.31s e foi impresso no mesmo dia às 19h.45m.45s.

10 - A anexação de todo e qualquer ficheiro automatizado a um e-mail, é sempre realizado como um acto voluntário e consciente, pois requer a realização de vários procedimentos e confirmações, o que se traduz na responsabilização efectiva pelo acto do envio.

11 - Quanto ao ficheiro automatizado, foi necessário que este anteriormente tenha sido concebido, criado, trabalhado e guardado num meio informático do computador do DSAG que é personificado mediante a utilização de password e username a que tem acesso o próprio e o responsável pelo departamento de informática da Instituição.

12 - Às 19h. 56m, desse dia 15/09/2005, esse primeiro e-mail foi reencaminhado pelo arguido, originando portanto um segundo e-mail, de conteúdo igual e com o mesmo ficheiro automatizado, agora enviado para 16 (dezasseis) endereços, dos quais 14 (catorze) correspondem a serviços internos - centros de saúde onde trabalham largas dezenas de funcionários. (cfr. doc. n.º 4 junto à queixa da assistente SB: "assunto" da mensagem reenviada - "Fw: nem todos são iguais")

13 - Tratou-se portanto de uma actuação destinada a impulsionar uma divulgação maciça porque, para além de os Centros de Saúde estarem geograficamente dispersos pelo Distrito de ---, em diversos concelhos se constatou o seu posterior reencaminhamento.

14 - No dia seguinte, 16, dia da afixação do mapa na sala do café, mas às 12h55, o arguido remeteu novo e-mail para diversas pessoas e entidades, com o mesmo texto, nomeadamente para as seguintes pessoas e entidades: (…)

15 - O envio do terceiro e-mail, verificou-se portanto no dia 16.09.2005, pelas 12h.55m. e o mesmo intitula-se "lreduç", contendo exactamente os mesmos dados dos enviados na véspera, tendo o arguido copiado a informação contida no ficheiro automatizado, anteriormente criado e anexado nos dois e- mails anteriores - para o corpo do presente e-mail (caixa de mensagem) - vide doc. n.o 2 junto à queixa da assistente SB.

16 - Neste envio não existe ficheiro automatizado em anexo, mas sim a reprodução integral, para o corpo do e-mail, do conteúdo do ficheiro anteriormente criado e mantido e que foi enviado como anexo nos dois e-mails do dia anterior.

17 - Este e-mail termina com o comentário: "Caro amigo ou amiga a missa ainda vai no princípio pois as reduções ainda não estão todas carregadas".

18 - Do ponto de vista informático, sendo o conteúdo do presente e-mail igual ao do ficheiro automatizado anteriormente criado (no primeiro e-mail), foi necessário abrir esse ficheiro, seleccionar manualmente e com rigor a área a copiar pretendida e copiar e finalmente colar o corpo do terceiro e-mail.

19 - Este e-mail foi enviado para um total de 95 (noventa e cinco) endereços, pretendendo o arguido, com este envio, uma divulgação ainda mais alargada que a dos primeiros dois, não apenas confinada a serviços de saúde mas também a estranhos à instituição como "RM", Chefe de Gabinete do Governador Civil de ---.
20 - Foram enviados pelo arguido do computador do DSAG ao todo três e-mails com o mesmo conteúdo: os dois primeiros com ficheiro automatizado e o terceiro com cópia do ficheiro criado anteriormente, num total de 112 endereços electrónicos.

21 - No cartaz mencionado o arguido fazia constar como anotação manual que AG, que prestou serviços para a SRS de ... até essa altura, era «dirigente Distrital do PSD».

22 - E fazia constar o seu vencimento, a que tinha acesso por via das suas funções.

23 - No e-mail seguia o mesmo mapa e constava de uma anotação feita por meio mecânico que era «membro do Secretariado Distrital do PSD».

24 - Desta forma o arguido implicitamente afirmava que o cargo de que AG era detentora lhe fora conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo.

25 - Nesse mapa o arguido fazia constar como anotação manual que VM, que prestou serviços para a SRS de ... até essa altura, era «dirigente distrital do PSD».

26 - E fazia constar o seu vencimento, a que tinha acesso por via das suas funções.

27 - No e-mail seguia o mesmo mapa e constava que VM era «dirigente distrital do PSD/candidato à CM --» feita por meio mecânico.

28 - Desta forma o arguido implicitamente afirmava que o cargo de que VM era detentor lhe fora conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo.

29 - Nesse mapa o arguido fazia constar o vencimento de MA, que prestou serviços para a SRS de -- até essa altura, a que tinha acesso por via das suas funções.

30 - No e-mail seguia o mesmo mapa e constava uma anotação feita por meio mecânico e em que acrescentava «2a da lista do PSD à AM de ---».

31 - Desta forma o arguido implicitamente afirmava que o cargo de que MA era detentora lhe fora conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo.

32 - Nesse mapa o arguido fazia constar o vencimento de JR, que prestou serviços para a SRS de --- até essa altura, a que tinha acesso por via das suas funções.

33 - Nesse mapa o arguido fazia constar o vencimento de SB, que prestou serviços para a SRS de --- até essa altura, a que tinha acesso por via das suas funções.

34 - No e-mail seguia o mesmo mapa e constava uma anotação feita por meio mecânico e em que acrescentava «esposa do NC».

35 - NC é o antigo companheiro de SB e era cabeça de lista pelo PSD numas eleições para a Assembleia de Freguesia de ---.

36 - Desta forma o arguido implicitamente afirmava que o cargo de que SB era detentora lhe fora conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo.

37 - Nesse mapa o arguido fazia constar o vencimento de JL, que prestou serviços para a SRS de -- até essa altura, a que tinha acesso por via das suas funções.

38 - No e-mail seguia o mesmo mapa e constava uma anotação feita por meio mecânico e em que acrescentava «dirigente da JSD, candidato JF ---».

39 - Desta forma o arguido implicitamente afirmava que o cargo de que JL era detentor lhe fora conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo.

40 - Nesse mapa o arguido fazia constar o vencimento de MJ, que prestou serviços para a Sub-região de Saúde de --- até essa altura, a que tinha acesso por via das suas funções.

41 - No e-mail seguia o mesmo mapa e constava uma anotação feita por meio mecânico e em que acrescentava «dirigente da JSD, candidata JF ---».

42 - Desta forma o arguido implicitamente afirmava que o cargo de que MJ era detentora lhe fora conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo.

43 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente.

44 - Sabia que as suas condutas não lhe eram permitidas.

45 - Sabia que não podia publicitar elementos relativos aos vencimentos das pessoas a que tinha acesso por via das suas funções de gestão de um organismo da Administração.

46 - Sabia que obtinha o acesso àqueles elementos por trabalhar para o Estado.

47 - Sabia que ao apor os comentários relativos à filiação partidária das pessoas implicitamente afirmava que os cargos de que eram detentoras lhes tinham conferido por compadrio partidário, menosprezando assim as suas qualidades para o exercício do cargo, o que previu e quis.

48 - Sabia que a divulgação por e-mail para os locais de trabalho das pessoas que conviviam com os visados e que a afixação no placard no seu local de trabalho conferia maior publicidade às asserções que fazia perceber quem as lesse, e as tornava mais eficazes no sentido de denegrir a personalidade dos visados uma vez que atingiam um grande número de pessoas, o que previu e quis.

49 O arguido não tem antecedentes criminais.

50 - O arguido, é Assessor Principal na área do património da ---, auferindo o salário mensal de 1 650€.

51 - Vive com os pais, em casa própria, suportando a prestação bancária de € 500 por mês.

52 - Tem duas filhas de 28 e 31 anos, respectivamente, independentes.

53 - Possui licenciatura universitária.

Acrescentaram-se ainda os seguintes factos provados, como específicos dos pedidos cíveis:

“- Em 6-9-2005, MJ e JL trabalhavam para a sub-região de saúde de --- procedência à digitalização e Distrito de ---; conferência das facturas de farmácia do distrito de ---;

- Nessa data, o arguido disse-lhes que terminava ali a sua prestação de serviços, pondo termo a esta; Para o lugar daqueles contratou JM que passou a exercer as mesmas funções;

- JM é filho da então senhoria do arguido;

- MJ sempre foi respeitado pelas suas capacidades por todos que com ela privam;

- A divulgação do conteúdo do placard e mail por toda a cidade de Évora, provocou grande humilhação, vergonha e embaraço na assistente;

- Estes factos foram motivo de notícia no Jornal Expresso editada no dia 24-9-2005; Os factos descritos geram um escândalo no local onde a assistente vivia e trabalhava;

MJ e JL regressaram a casa dos respectivos progenitores, após os referidos factos;

- Do conteúdo do mail e placard afixado pelo arguido resulta que VM apenas teria acedido ao cargo de Director de Serviços de Administração Geral da Sub-região de Saúde de ---, por ser membro do PSD e não por ser um economista e gestor com qualidades para um bom desempenho do mesmo;

- A actuação de VM naquelas funções, foi objecto de reconhecimento por relatório da Inspecção-Geral de Saúde, a qual foi considerada positiva e meritória;

VM pertence aos quadros do Instituto Nacional de Estatística;

- A actuação do arguido fez com que VM ficasse revoltado e sentiu-se responsável por alguns dos assistentes terem ficado sem emprego;

- Esta situação causou a este demandante um estado depressivo e de grande irritabilidade, que o impediram de fazer a sua vida normal nas semanas seguintes, originando uma situação de baixa psiquiátrica que se prolongou por uma semana;

- Este demandante ficou com dificuldades de concentração na vida profissional e pessoal;

- AG foi colocada por concurso público e não em resultado de qualquer compadrio político;

- O vencimento que auferia era o mesmo que auferia na sua profissão de origem, pois por ele optou quando foi exercer as suas funções e não, o publicado pelo arguido;

- Esta demandante foi alvo de comentários públicos que causaram distúrbios na sua vida, chegando-lhe a causar temor e perturbação;

- Durante o período que se seguiu à publicação do conteúdo do mail, esta demandante tinha pouca vontade em sair de casa;

- Sentiu-se ofendida com a actuação do arguido;

- Passou a ser olhada na escola onde passou a dar aulas como uma "oportunista política" que se aproveitava de "tachos políticos";

- MA exerceu o cargo de coordenadora da Sub-Região de Saúde de -- desde 01-08-2002 a 31-07-2005;

- Consta no mapa que esta demandante é a segunda da lista da A.M. de ---;

- A cessação de funções desta demandante como coordenadora não significava redução de custos, pois fazendo esta parte dos quadros da instituição, o seu vencimento manteve-se nos custos, tendo até aumentado, por progressão na carreira;

- Esta demandante integrou a Comissão de Menores e Jovens em Risco, Protecção Civil e Comissão de Protecção Rodoviária do Conselho Regional do Alentejo;

- Colaborou com os Escuteiros e Salesianos de ---

- É membro desde 2002 da Assembleia Municipal de ---; Foi Vice-Presidente da mesa da Assembleia-Geral do Distrito de ---, até fins de 2004; Foi Coordenadora da Sub-Região de saúde de -- entre Agosto de 2002 e Agosto de 2005;

- Foi directora do Centro de saúde de ---; Desde 2001, é orientadora de alunos de Medicina, médicos recém-formados; É especialista em Medicina geral e Familiar; É casada e mãe de três filhas menores que ouviram comentários na cidade de Évora sobre o conteúdo do mail enviado pelo arguido;

A seguir à divulgação do mail, esta demandante necessitou de tomar anti-depressivos e ansiolíticos;

JL é pessoa educada, pacata e ordeira. Sempre desempenhou as suas tarefas com empenho. É respeitado por todos os que com ele privam; A divulgação do conteúdo do mail provocou neste demandante humilhação, embaraço e vergonha;

- Este demandante teve que regressar à casa dos pais, separando-se da companheira (MJ);

- JR exerceu o cargo de Director de Serviços da Sub-Região de Saúde de ---;

- É Secretário da delegação de --- da Associação de Médicos de Clínica Geral; foi Director de Serviços de -- da SRSE entre Agosto de 2002 e Agosto de 2005, tutelando, todos os Centros de Saúde do distrito de --- e respectivos serviços;

Desempenhou funções nos concelhos de P, A e B, tendo exercido as funções de substituto de autoridade de saúde de P; Desde 2005 tem participado regulamente como perito médico em exames e autópsias por solicitação da comarca de P;

- É orientador de alunos de Medicina, de médicos recém formados e de médicos que frequentam a especialidade de Medicina Geral e Familiar;

- É coordenador do Projecto que levou à constituição da Unidade de Saúde Familiar Planície, desde Novembro de 2006;

É Secretário da Delegação Distrital de --- da Associação Portuguesa de Médicos de Clínica Geral;

- É casado com uma colega e reside em --- desde 1973, sendo conhecido de grande parte da população da cidade e distrito;

- É pai de 3 filhos menores, que tomaram conhecimento dos comentários sobre o conteúdo do mail; A actuação do arguido causou-lhe sofrimento e perturbação de sono, tendo-se sentido humilhado;

- Foi olhado por colegas e outros profissionais de saúde com desconfiança;

SB prestou consultadoria e apoio técnico-jurídico aos serviços de administração regional de saúde do Alentejo desde 1-10-2002 até 31-08-06, profissão de advogada; no âmbito da sua única jurista do quadro de pessoal aguardava autorização para aposentação; Anteriormente prestava apoio técnico-jurídico no instituto português de apoio ao desenvolvimento, desde 1-1-99; - Apresentou proposta no âmbito de procedimento aberto com vista à contratação de um jurista; - O contrato foi celebrado em 13-06-2003;

- A demandante nunca foi esposa de NC, foi companheira do mesmo até Junho de 2004; Após os factos praticados pelo arguido, passou a ser olhada com desconfiança, o que lhe causou tristeza e revolta;

- Tem dois filhos menores; - Ficou angustiada e stressada com a actuação do arguido;

- Tem escritório em --- e presta consultadoria jurídica ao Centro Hospitalar do Baixo Alentejo, patrocinando acções judiciais em que o Centro é parte; Aufere como contrapartida da referida consultadoria, cerca de 1 361, 95 € por mês;

- JL é bancário e aufere 980€ por mês;

- Vive com a mulher, MJ, Assistente Técnica de Património que aufere, 650€ por mês; - Vivem em casa própria, pagando de juros ao banco, 140 € por mês;

- MA vive com o marido e três filhas menores; Aufere 4 900€ por mês, num total de 9000€, conjuntamente com o marido; - Tem despesas mensais fixas de 5 600€, com educação das filhas, alimentação, combustíveis e portagens, seguros, água, luz, gás e TV;

- JR vive com a esposa e três filhos; O rendimento do casal é de 7000€ por mês; - As despesas mensais rondam os 3 500€, distribuídos pelo empréstimo contraído para aquisição de casa, água, gáz, luz, alimentação, viaturas, empregada doméstica e educação dos filhos;

- AG é professora e aufere cerca de 2 500 € ilíquidos e 1 900 €, líquidos;

- VM vive com a esposa e um filho; Os rendimentos mensais do casal são de € 4000; Tem despesas fixas mensais de € 2000;

Considerou-se não provado “que só o próprio (arguido) e o responsável pelo departamento de informática da instituição é que tinham acesso ao ficheiro automatizado, anteriormente concebido e guardado num meio informático do computador do DSAG.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar, por ordem de prejudicialidade, são as seguintes:

(a) Impugnação da matéria de facto;

(b) Nulidade do acórdão na parte referente à decisão do pedido cível (por falta de exame crítico da prova e falta de fundamentação) e inconstitucionalidade;

(c) Contradição insanável da fundamentação;

(d) Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão – falta de factos (conhecimento da falsidade das imputações) para a difamação caluniosa, e falta de factos para o crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados;

(e) Unidade de crime de devassa por meio de informática;

(f) Concurso aparente entre os crimes de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados e o de violação de dever de sigilo;

(g) Concurso aparente entre os crimes de difamação e de devassa por meio de informática;

(h) Nulidade por falta de fundamentação da pena única;

(i) Atenuação especial da pena – comportamento posterior do agente (foi o arguido que retirou o mapa de pessoal afixado) e tempo decorrido sobre a data da prática dos factos;

(j) Ilegalidade e inconstitucionalidade da suspensão da execução da pena – dever impraticável, ilegal e inconstitucional;

(l) Ilegalidade da pena de proibição do exercício de cargos de nomeação ou confiança políticos, e inconstitucionalidade;

(m) Nulidade por excesso de pronúncia – condenação cível por factos decorrentes de crime (de abuso de poder) pelo qual o arguido não foi pronunciado;

(n) Causalidade na decisão cível – pedidos formulados por AG e AP.

(a) Da impugnação da matéria de facto

O art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.

Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando o recorrente concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabilizará o conhecimento do recurso da matéria de facto.

No caso, o recorrente procedeu à transcrição das concretas passagens em que funda a impugnação, como se imporia de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (AFJ nº 3/2012). Procedeu também à correcta individualização dos pontos de facto, pelo que são de considerar cumpridas as exigência formais de impugnação da matéria de facto.

Vejamos os pontos de facto especificados pelo recorrente. Em seu entender não decorre da prova produzida:

- Que o mapa anexo ao único e-mail por si enviado contivesse referências a filiações partidárias ou a graus de parentesco.

- Que o print constante de fls. 187 ss corresponda ao verdadeiro anexo enviado pelo arguido, uma vez que esse anexo foi alterado 8 dias após o envio

- Que o ficheiro automatizado e o mapa constantes dos segundo e terceiro e-mails cujas autoria e emissão são imputadas ao arguido fossem iguais ao mapa que este anexou ao único e-mail que efectivamente enviou;

- Que o mapa junto aos autos tenha sido aquele que o arguido enviou no e-mail de 15 de Setembro de 2005 e que seja o mesmo mapa enviado nos dois e-mails subsequentes cuja autoria se desconhece;

- Que o envio dos segundo e terceiro e-mails seja imputável ao recorrente, uma vez que este apenas enviou um e-mail, sendo, por isso, alheio à subsequente adulteração do anexo e ao envio dos segundo e terceiro e-mails;

- Que tenha sido o arguido a afixar o mapa no placard;

- Que o mapa afixado seja o “mesmo mapa” alegadamente enviado nos três e-mails.

O recorrente mantém aqui a versão dos factos que apresentou em julgamento, ou seja, admite ter enviado apenas o primeiro e-mail, a MA. Contesta que aquele contivesse referências a filiações partidárias ou a graus de parentesco, bem como tudo o que se passou posteriormente – a afixação do mapa no placard e o envio dos dois mails seguintes e respectivos anexos.

Estes factos dados como provados não lhe podem ser imputados, pois, em seu entender, inexiste prova suficiente para fundamentar tal juízo.

Importa começar por precisar o quadro legal que disciplina o conhecimento do recurso efectivo da matéria de facto e a percepção do modelo do Código de Processo Penal.

O recurso da matéria de facto não visa proceder à repetição do julgamento de facto efectuado em primeira instância. À Relação só pode pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que o reproduza ou repita. Os poderes de decisão de facto estão assim direccionados para a sindicância do acórdão, e sempre de acordo com a impugnação do recorrente. É para tanto permitido proceder ao confronto e análise das concretas provas especificadas, sem prejuízo de, oficiosamente, a Relação se poder socorrer ainda de outras provas.

Assim, o recurso da matéria de facto não dá ao recorrente a possibilidade de um segundo julgamento no tribunal superior, repete-se, mas tão só permite uma reapreciação do bem fundado da sentença de facto.

Dentro deste mandato de detecção do erro de facto, assim delimitado, cumpre rever a motivação do acórdão.

E o exame crítico da prova apresenta a forma seguinte:

“Na avaliação dos factos, considerou-se a prova produzida em julgamento, à luz das regras de experiência comum, nomeadamente: No que toca aos factos descritos nos nrs. 1 a 48:

Atenderam-se às declarações do próprio arguido, na parte em que confirmou ter enviado o mail do dia 15-09-2005 para a Dra MA seu computador, nos moldes descritos no ponto 7 dos factos assentes;

Confirmou, ainda, que o conteúdo do documento afixado no placard identificado mo ponto 3 dos factos assentes, foi por ele elaborado e se encontrava no computador que usava no seu gabinete da ARSE. Elaborou o documento em causa, tendo como objectivo de controlar o orçamento, de forma a reduzir gastos mensais que eram feitos antes de ter ocupado o cargo de Director de Serviços de Administração-Geral da Sub-região de Saúde de --- da Administração regional de Saúde do Alentejo.

Consideraram-se as declarações da Dra AG que trabalhou na ARSE como Chefe da Divisão dos Recursos Humanos. Mencionou que em Agosto de 2005, estava de férias e foi chamada pelo arguido às instalações da ARSE. Este disse-lhe para ela assinar um papel a pedir a demissão das funções referidas e ameaçou-a com a instauração de um processo disciplinar. Disse-lhe que ia fazer passar a mensagem que ela exercia tais funções devido a "tacho político". Quinze dias depois teve conhecimento da divulgação do mail de 15-09-2007 em todos os centros de saúde do Alentejo. O documento constante do referido mail continha a informação de que ela era dirigente do PSD, facto que não corresponde à realidade. Também constava do documento que ela ganharia "600 contos", o que não era verdade, pois optou por ficar com o vencimento de origem, ou seja, o que ganhava na escola onde exerceu funções anteriormente (2500 € ilíquidos e 1900 €, líquidos). Ficou muito aborrecida com os referidos acontecimentos. Sentiu-se enxovalhada e perturbada. Pessoas que a conheciam, após os referidos acontecimentos, disseram-lhe que não queriam falar com ela porque ela "andava metida em políticas".

O conteúdo do mail e placard foi divulgado na SIC, TVI e RTP. Ficou triste, não conhecia o arguido de lado nenhum e sentiu-se perseguida por ele. Os Drs. JL e MJ, foram impedidos de entrar nas instalações da ARSE pelo arguido. Ficaram sem emprego, tiveram que regressar a casa dos respectivos pais (no Norte do país), pois ficaram sem dinheiro para se sustentar em ---. Não tem dúvidas que a letra aposta no cartaz era do arguido. Ele dava muitos erros ortográficos, como, "assumio". A Dra S. foi martirizada pelo arguido, ficou sem dinheiro e com dois filhos pequenos para dar de comer. Era a Dra, A que, na época, a ajudava, dando refeições aos filhos dela.

A Dra. MA, referiu ter apresentado queixa contra o arguido, porquanto este divulgou um mail e afixou um quadro, no qual dava a ideia de que havia "compadrio político". Nos documentos em causa constava uma lista de pessoas que foram contratadas por ela, alegadamente, sem necessidade para o serviço e por meras indicações partidárias, o que não correspondia à realidade. Quando voltou para o Centro de Saúde, para desempenho das suas anteriores funções, alguns colegas que anteriormente, se davam bem com ela, "olhavam-na de lado", tendo deixado de ser convidada para palestras. O mail foi impresso e circulava entre os funcionários. Em ---, cidade pequena, é conhecida e activa do ponto de vista social, sentia-se observada e olhada. As suas filhas, pequenas, também ficaram mal. A Dra. S, devido à actuação do arguido, chegou a não ter dinheiro para pagar a renda. Com dois filhos pequenos, sem dinheiro para pagar o colégio dos mesmos e sem familiares em ---, foi a que mais sofreu.

Trabalhou dois meses sem receber e só muito depois, após reclamação dirigida à Drª. R, é que recebeu as referidas quantias. O arguido despediu os Drs. L e MJ, Retirou-lhes as "pass words" e suspendeu os respectivos pagamentos. Nunca exerceu qualquer cargo político no PSD e o vencimento dela afixado no placard e mail não correspondia à verdade. Ficou perturbada porque os documentos em causa passaram a imagem de que aquelas pessoas neles identificadas tinham sido contratadas por "clientismo político".

O Dr. JL referiu que ele e a esposa, foram enviados para fora da Direcção-Geral de Saúde, pelo arguido, num dia, à hora de almoço. Voltaram ao local de trabalho, mas o arguido disse-lhes que havia excesso de pessoas no local (tinha "dois irmãos e um par de sapatos"). Posteriormente foram impedidos de entrar nas instalações pelo segurança. Ele e a mulher ficaram sem dinheiro para pagar a renda (em 20 de Setembro de 2005, ainda não tinham recebido o vencimento de Agosto desse ano, o que acabou por acontecer, por ordem da Dra R). JM foi nomeado pelo arguido para o substituir. Ele e a mulher, tiveram que voltar para casa dos pais, em 1 de Outubro de 2005. No mail, dava-se a entender que ele estava colocado na ARSE, não pelo seu valor, mas por ser filiado num partido.

Consideraram-se ainda as declarações da Dra. MJ, tendo a mesma referido que no placard e mail referia-se que ela ganhava 2000 € por mês, sendo que, em alguns meses, nem € 250 recebia. Nunca foi filiada no PSD. Teve 10 meses sem emprego. Teve que pedir dinheiro aos pais. O arguido deu ordens ao segurança para a impedir de entrar no edifício e disse-lhe que: "tinha muitos pés para calçar e só tinha um par de sapatos". Ela e o actual marido não tinham ainda completado a tarefa para a qual foram contratados. Foram substituídos por JM, nomeado pelo arguido e a quem ensinaram o "serviço".

O Dr. VM referiu que, em Dezembro de 2000, ganhou um concurso ao arguido e, desde então, ficaram incompatibilizados. Enquanto exerceu funções na ARSE recebeu cerca de 2000 € e não 3 114, 26 €, como se referia no mail e placard. Não é verdade que exerceu as funções na ARSE por ser dirigente partidário. Era necessário ter "curriculum". Foi convidado para o cargo, em 1998, pelo Dr. MP (do PS). Depois, a Dra. AR, manteve-o no cargo. Sentiu a sua competência profissional a ser posta em causa. O conteúdo do mail circulou pela internet, na televisão e no Jornal "Expresso". Posteriormente, concorreu a Chefe de Divisão no Centro de Emprego. Disseram-lhe que não lhe davam o lugar, devido ao passado na Administração Regional de Saúde. Entrou num processo de depressão: não dormia, não se concentrava. Foi assistido pelo psiquiatra Dr. AA. Teve baixa médica. Quem fez o mapa foi o arguido. Era ele o único com interesse em divulgar uma aparente redução de custos. Entende que o arguido "perseguiu" a Dra. S, porque ela foi convidada por ele para exercer o cargo de jurista da ARSE.

O Dr. JR referiu ter sido incluído na lista do mail e placard, na qual se dava a entender que haveria falta de isenção, compadrio e interesses menos honestos. No Centro de Saúde onde exerceu funções, o assunto do mail era comentado. Sentiu-se incluído numa lista de "suspeitos", o que o incomodou.

A Dra. SB referiu que o vencimento dela que foi divulgado era superior ao que recebia (pois não incluía o IVA e o IRS). Nunca foi esposa do Dr. NC, apenas viveu com ele em união de facto e, à data, já estavam separados. Quando o arguido tomou posse, em Agosto de 2005, pediu-lhe para efectuar 3 pareceres jurídicos, um dos quais, relativo à cessação do seu contrato. Cumpriu a ordem. Disse-lhe que tinha que permanecer nas instalações 7 horas por dia e que depois, cessaria o seu contrato. Nos últimos cinco meses em que permaneceu na ARSE, o arguido só lhe deu trabalhos não técnicos. Em Dezembro de 2005 (dia 23), o arguido deixou de lhe pagar, alegando que ela tinha recebido dois meses adiantados, o que não é verdade e veio a ser confirmado pela ARSE, posteriormente. Também não estava vinculada a horário de trabalho, ao contrário do que lhe impôs o arguido e também veio a ser confirmado pela ARSE. Houve um momento em que deixou de ter dinheiro para pagar a renda e suportar as despesas dos seus dois filhos menores. O Natal de 2005 foi muito penoso. Os valores referidos no mail e placard alegadamente pagos aos Drs. L e MJ, estavam inflacionados. Eles eram pagos à peça. Ficavam a trabalhar, muitas vezes, à noite. Entrou na ARSE por concurso, no qual concorreu com outros colegas. A letra manuscrita no mapa afixado é do arguido.

MF, técnica de serviço social, na Sub-região de saúde de ---, viu o placar afixado na sala do café e recebeu o mail endereçado, segundo julga, a partir do gabinete do arguido. O cartaz foi afixado e posteriormente, as menções manuscritas (com a letra que reconhece como sendo a do arguido), foram passadas a letra de computador. O local onde o mesmo foi afixado era onde se expunha tudo o que era da instituição, devidamente autorizado pelo Dr. R (arguido). Alguns funcionários ficaram com medo de comentar aquilo porque tinha que ver com questões políticas. Tinham medo de perseguição política e represálias. Viu a Dra. AG muito irritada após ter recebido o mail. O arguido soube da divulgação do mail, afixação do placard, respectivas reacções e, não fez nada. No dia do envio do mail, à hora do almoço viu o arguido acompanhado do Sr. S (da informática) no gabinete respectivo.

O Dr.JM referiu que viu o cartaz afixado, onde esteve, pelo menos, um dia inteiro. O nome dele estava lá. Só com ordem do arguido é que se podia afixar documentos no referido painel. Já se sentia pressionado pelo arguido. Após a divulgação do cartaz, entregou-lhe uma carta a rescindir o contrato dele. Não autorizou a divulgação das informações constantes do cartaz e mail. As referidas informações foram espalhadas por todos os centro de saúde e outras instituições. Todos os referenciados no mapa ficaram muito abalados. No dia 15-09-2005, pelas 12h30m viu o arguido no seu gabinete, acompanhado do Sr. S, que lhe prestava apoio informático.

O Sr. P que referiu que o arguido, após o dia 15-09-2005, lhe perguntou se ele tinha visto um mail que ele enviara, identificando pessoas e vencimentos.

MF, referiu ter visto o mapa em questão na sala do café. No dia da afixação do mapa, antes de tal acto, o Dr. R (arguido) disse que ía "rebentar uma bomba em ---". Não rebentou nenhuma bomba. Logo, convenceu¬se que ele se referia à divulgação do conteúdo do mapa. Nesse dia gerou-se uma grande confusão nos serviços. Toda a gente foi ver o mapa.

Dr. MC, que referiu que, à data do envio do mail e afixação do placar, já não vivia em união de facto com a Dra. SB.

JM, referiu que em Setembro de 2005 trabalhava na sub-região de saúde de Évora na área da conferência de farmácias. Esteve lá até finais de 2007. O seu vencimento variava entre os 700 e os 800 €, conforme a facturação. Foi exercer as mesmas funções dos Drs. L e esposa, que lhe deram formação, enquanto lá estiveram.

FV, referiu que era avençada na sub-região de ---, em Setembro de 2005 e, no dia 15, foi beber café com a Dra. FL. Viu o nome dela num placard afixado naquele local. Não é verdade que a Dra.F tivesse um cargo no PSD e as informações constantes do mesmo, não foram por ela autorizadas. O cartaz em causa, tinha dizeres manuscritos com a letra do arguido. À hora do almoço viu o arguido no seu gabinete, sentado ao computador. O Sr. S estava por detrás do arguido em pé. O arguido disse-lhe que tinha sido ele a enviar o mail e que, quando chegasse ao fim do seu contrato, que se ía embora. Só com autorização da Direcção é que se podiam afixar documentos no placard. O valor constante do mapa, não era o que recebia (há que deduzir o IVA e o IRS)

É militante do PSD, mas nunca fez parte da estrutura. Viu o Dr. V muito aborrecido por causa desta situação.

A Dra. ME confirmou ter recebido um mail remetido pelo arguido, tendo ficado alarmada e indignada.

AS confirmou ser técnico informático na ARSE, mas negou ter ajudado o arguido a enviar qualquer mail, nem ter estado no gabinete deste quando tal ocorreu.

Estas declarações mostraram-se pouco convincentes, quando confrontadas com as das testemunhas M, FV e MF, que confirmaram ter visto o Sr. S, no gabinete do arguido, à hora do almoço do dia 15¬09-2005. De facto, esta testemunha (Sr. S) ainda exerce funções na ARSE e tudo indica que não quis perder a confiança que o arguido nele deposita. Em acareação com as referidas testemunhas acabou por admitir que, uns dias antes de 15-09¬2005, o arguido lhe pediu um ficheiro com todos os endereços de e-mail da sub-região de saúde de ---.

MJ, foi falar com o arguido antes e após o envio do mail. Antes, teve conhecimento do conteúdo do mapa e disse ao arguido para não enviar o mail. Após, foi ao gabinete dele, "por uma questão de amizade" e comentou as reacções que o mesmo estava a ter por parte dos funcionários. O arguido nada disse.

Dra. MS, referiu ter recebido um telefonema do arguido que lhe perguntou se tinha recebido um mail dele. Isto no dia 15-09-2005, antes do almoço. Respondeu que não. Abriu o mail e viu o mesmo com o conteúdo descrito nos autos (ponto 14 dos factos assentes). Já anteriormente tinha recebido o mail referido no ponto 7 dos factos assentes.

Dra. MG, médica e Directora do Centro de Saúde de ---, em Setembro de 2005. Confirmou ter recepcionado o mail de 16-09-05. Ficou indignada, porque havia nos mesmos comentários ao centro de saúde que dirigia, que não correspondia à realidade (não era verdade que AC exercia funções no centro e não havia enfermeiros a mais no centro de saúde de P...).

Dra. RZ, à data, Presidente da Administração Regional de Saúde. Referiu ter tido conhecimento do conteúdo do mail. Tal facto, por sua iniciativa, deu origem a um processo de averiguações e subsequente processo disciplinar contra o arguido na Inspecção-Geral de Saúde.

MC e AS confirmaram que o arguido lhe telefonou referindo que lhe ía mandar um mail em nome de outra pessoa. Mas adiantou que tal ocorreu em 2 de Abril de 2008, ou seja quase três anos após os factos dados como assentes, quando já haviam sido apresentadas queixas-crime contra o arguido, o que, só demonstra que o mesmo actuou deste modo, para preparar a sua defesa, não sendo tal facto suficiente para abalar a convicção do Tribunal quanto à autoria do conteúdo do placard, respectiva afixação, conteúdo dos mails e envio dos mesmos.

PB, coordenador do sistema informático da Administração Regional do Alentejo, há cerca de oito anos, confirmou que o sistema informático da instituição em causa era falível.

Também é certo que, de acordo com a perícia de fls. 2588 a 2590, é "possível aceder ao (então) posto de trabalho (do arguido), sem nenhum nível de segurança, ou seja, não é requerido autenticação através de utilizador e respectiva palavra passe" e após, tal acesso, é possível aceder ao correio electrónico do visado, nas mesmas condições. E admite-se ser possível ser utilizado um endereço de outro para remeter correio em nome desse, conforme se procurou demonstrar no "parecer informático", alegadamente elaborado pelo arguido, a fls. 3082 a 3102.

Recorde-se, contudo, que, o arguido: fez cessar os contratos de algumas pessoas visadas no mail que enviou, antes e após tal facto; anunciou nos serviços, que ía cair uma bomba em ---, momentos antes da divulgação da informação contida nos documentos referidos; só ele podia autorizar a afixação daquele placard, naquele sítio e, nada fez, como forma de reacção imediata à divulgação das informações contidas nos referidos documentos; as informações contidas no mail e placard não eram acessíveis a qualquer funcionário da ARSE e foram pelo arguido pedidas, dias antes, ao Sr. S, técnico informático; não procurou indagar, após a mediatização do efeito produzido pela divulgação das informações em causa, quem teria sido o autor da mesma, o que implicaria, necessariamente, a violação de documentos que tinha no seu computador, bem como o uso não autorizado do seu endereço de e-mail. (Qualquer pessoa, que sentisse a sua privacidade e o seu bom nome postos em causa, o teria feito, quer internamente, quer exigindo o apuramento da verdade em processos disciplinar e judicial); Não conseguiu explicar a coerência das suas afirmações, na parte em que assumiu ter enviado o mail para a Dra MA e não ter enviado os restantes, nem ser da sua responsabilidade a afixação do placard;

Só ele tinha interesse em "mostrar serviço", alegando futura redução de custos no serviço que dirigia e; Resulta do teor dos documentos de fls. 297 e 298 que, dá erros ortográficos semelhantes aos manuscritos na primeira versão aposta no placard de fls. 235, sendo também semelhante a linguagem "informal" que usava quando se dirigia aos seus colaboradores (recorde-se a menção feita a "sapatos", dirigida aos Drs.L e MJ) e a utilizada nos documentos em análise que, seguindo pela via institucional, não têm um nível de vocabulário "elevado".

Ou seja, considerando as declarações do arguido na parte em que admitiu ter sido ele a elaborar os documentos cuja divulgação está em causa, os depoimentos das testemunhas supra referenciadas, o comportamento do arguido relatado pelas testemunhas supra referidas, antes, durante e após a afixação do placard e envio dos mails, de acordo, com as regras de experiência comum, fazem concluir, sem qualquer sombra de dúvida que, foi ele que praticou os factos dados como assentes.

Atentou-se ainda, na prova documental de 10 a 24, 223 a 236 (mapa que o arguido afirmou ter elaborado, fotografias do mesmo, documentos manuscritos pelo arguido, cópia do recibo de vencimento e do despacho de nomeação da Professora AG), 628 a 660 (cópia dos recibos de vencimento e da nomeação de JM, podendo verificar-se que passou a exercer as funções, antes exercidas pelo Dr. L e esposa) e 830 a 859 (dos quais se pode extrair que o arguido ordenou não liquidar o valor correspondente a dois meses de vencimento à Dra SB, por ter entendido, erroneamente, que ela já havia recebido tal montante.

Atentou-se ainda no teor da documentação de fls. 3388 a 4053, 4067 a 4074, do qual se extrai que foi instaurado um processo disciplinar contra o arguido, devido aos factos objecto de análise neste processo crime, que esse processo disciplinar culminou com a sua condenação, mas que tal decisão foi anulada pela Ministra da Saúde, porque terão sido preteridas formalidades ao nível da notificação do arguido quanto à inquirição de testemunhas. Foi ordenada a repetição dos actos feridos de nulidade e o processo ainda se encontra pendente.

De fls. 4093 e segs, resulta que a Administração Regional de Saúde do Alentejo reconhece que a Dra. SB não estava sujeita a horário de trabalho e lhe eram devidas as remunerações que o arguido se recusou a pagar, tendo sido anulados os despachos do arguido em sentido contrário.

Para apurar os factos relativos às condições sócio-económicas do arguido (n.s 50 a 53), consideraram-se, as respectivas declarações, que actualizaram o teor do relatório social existente nos autos, a fls. 2572 a 2575.

Para apurar o passado criminal do arguido atendeu-se ao CRC actualizado, junto aos autos (n° 49)”

Da leitura do exame crítico transcrito ressalta que o tribunal procedeu à valoração das provas num discurso racional e lógico, e com respeito pelos princípios que norteiam a prova na vertente da apreciação – livre apreciação / in dúbio pró reo / presunção de inocência.

Retiraram-se das declarações e dos depoimentos produzidos os resultados permitidos, de acordo com as regras da experiência comum (como “critérios gerais” que “definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas” – v. Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002) cotejando-os entre si como sempre se impõe, e ainda no conjunto das demais provas, inclusive as não pessoais.

Assim, a análise da decisão não evidencia qualquer erro notório de facto, que seria aquele que resultaria do mero exame do texto, cumprindo então sindicar se as concretas provas especificadas conduzirão a resultado contrário.

Como se disse, defende o recorrente que inexiste prova de que o mapa anexo ao único e-mail por si enviado contivesse referências a filiações partidárias ou a graus de parentesco, que o print constante de fls. 187 ss corresponda ao verdadeiro anexo enviado pelo arguido (uma vez que esse anexo foi alterado 8 dias após o envio), que o ficheiro automatizado e o mapa constantes dos segundo e terceiro e-mails (cujas autoria e emissão são imputadas ao arguido) fossem iguais ao mapa que este anexou ao único e-mail que efectivamente enviou, que o mapa junto aos autos tenha sido aquele que o arguido enviou no e-mail de 15 de Setembro de 2005 e que seja o mesmo mapa enviado nos dois e-mails subsequentes, que o envio dos segundo e terceiro e-mails seja imputável ao recorrente, e que tenha sido o arguido a afixar o mapa no placard.

Mas as aparentes fragilidades da prova que o recorrente aqui destaca foram observadas pelo tribunal e tratadas no acórdão, ou seja, deu-se-lhes resposta no exame crítico, de modo que não oferece reparo.

Assim, se é certo que prova a prova, ou melhor dizendo, cada uma das provas especificadas, quando isolada e avaliada fora do conjunto das restantes, poderia permitir retirar as ilações pretendidas pelo recorrente, tais pretensas perplexidades dissolvem-se na análise de todas as provas valoradas no seu conjunto. O recurso procede à avaliação de cada uma das provas, isoladamente, como se apenas cada uma delas aparecesse como tal no processo.

Numa das classificações possíveis, pode distinguir-se entre factos probandos principais e factos meramente acessórios ou instrumentais. A esta classificação corresponde, no campo da prova, a distinção entre prova directa – como aquela que incide directamente sobre os factos principais – e prova indirecta – como aquela que incide directamente sobre factos instrumentais, circunstanciais ou indiciários (do conjunto dos quais se retirarão então os factos principais)

No caso presente, a prova produzida quanto a alguns dos factos principais foi essencialmente indirecta, o que determina especiais exigências de fundamentação.

As exigências de fundamentação das decisões judiciais não são uniformes. As decisões condenatórias devem ser objecto de um dever de fundamentar de especial intensidade, não se verificando o mesmo noutro tipo de decisões. Os parâmetros de exigência da fundamentação da matéria de facto – provada e não provada – também variarão de acordo com a singeleza ou a complexidade do caso e o maior ou menor grau de evidência das provas.

É sobretudo em casos de avaliação de prova indirecta que as regras da experiência assumem também especial relevância. Temos presente a lição de Sousa Mendes: As regras da experiência são “argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer, já se sabendo porém que o caso particular pode ficar fora do caso típico. O juiz não pode, pois, confiar nas regras da experiência mais do que na própria averiguação do real concreto, sob pena de voltar, de forma encapotada, ao velho sistema da prova legal, o qual se baseava, afinal de contas, em meras ficções de prova. Em última análise, a prova é particularística, sempre” (Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002).

O exame crítico da prova em análise não revela que o caso particularístico deva aqui ficar fora do caso típico, ou seja, que o tribunal tenha chegado a conclusões sobre os factos que, embora racionais e lógicas dentro do que é normal acontecer em circunstâncias análogas, aqui pudesse não ter acontecido (no sentido de persistência de uma dúvida razoável sobre essa possibilidade).

Todas essas provas indiciárias, apreciadas na sua globalidade e no seu conjunto, permitem retirar as ilações que conduziram ao resultado consignado nos factos provados. E tendo o exame crítico que explicar uma convicção que não se apresentaria tão linear (no caso de prova indirecta como o presente) ele revela esse “percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido” (STJ 06-10-2010, Henriques Gaspar).

Assim se explica o esvaziamento do contra-indício argumentado em recurso, resultante da perícia de fls. 2588 a 2590, de que seria "possível aceder ao (então) posto de trabalho (do arguido), sem nenhum nível de segurança, ou seja, não sendo requerida autenticação através de utilizador e respectiva palavra passe", aceder ao respectivo correio electrónico do visado, bem como poder ser utilizado um endereço de outrem para remeter correio em nome alheio”.

É que a circunstância de só o arguido poder ter acesso ao seu computador, através de autenticação do utilizador e palavra passe – circunstância esta “contra-indiciada”, como se viu –, não foi determinante para a resposta de “provado” dada aos factos da acusação. Foram outras as provas que permitiram chegar a este facto, e permitiram-no apesar dele. Num sistema de prova livre, nada impede que esta decorra de esses outros contributos, já que inexiste qualquer vinculação ao resultado da perícia, nos termos pretendidos pelo recorrente. E no acórdão discorre-se sobre todas essas provas, apreciando-as individualmente e ainda no seu conjunto, repete-se, sendo precisamente esta análise global que revela a eficácia persuasiva. E o resultado a que se chegou no acórdão é sustentado e compreensível.

O exame crítico destaca a final os vários indícios que conjugados entre si convencem no sentido da demonstração dos factos provados. E não é preciso dizê-lo noutros termos – “ o arguido: fez cessar os contratos de algumas pessoas visadas no mail que enviou, antes e após tal facto; anunciou nos serviços, que ía cair uma bomba em ---, momentos antes da divulgação da informação contida nos documentos referidos; só ele podia autorizar a afixação daquele placard, naquele sítio e, nada fez, como forma de reacção imediata à divulgação das informações contidas nos referidos documentos; as informações contidas no mail e placard não eram acessíveis a qualquer funcionário da ARSE e foram pelo arguido pedidas, dias antes, ao Sr. S, técnico informático; não procurou indagar, após a mediatização do efeito produzido pela divulgação das informações em causa, quem teria sido o autor da mesma, o que implicaria, necessariamente, a violação de documentos que tinha no seu computador, bem como o uso não autorizado do seu endereço de e-mail. (Qualquer pessoa, que sentisse a sua privacidade e o seu bom nome postos em causa, o teria feito, quer internamente, quer exigindo o apuramento da verdade em processos disciplinar e judicial); Não conseguiu explicar a coerência das suas afirmações, na parte em que assumiu ter enviado o mail para a Dra MA e não ter enviado os restantes, nem ser da sua responsabilidade a afixação do placard; Só ele tinha interesse em "mostrar serviço", alegando futura redução de custos no serviço que dirigia e; Resulta do teor dos documentos de fls. 297 e 298 que, dá erros ortográficos semelhantes aos manuscritos na primeira versão aposta no placard de fls. 235, sendo também semelhante a linguagem "informal" que usava quando se dirigia aos seus colaboradores (recorde-se a menção feita a "sapatos", dirigida aos Drs. L e MJ) e a utilizada nos documentos em análise que, seguindo pela via institucional, não têm um nível de vocabulário "elevado". Ou seja, considerando as declarações do arguido na parte em que admitiu ter sido ele a elaborar os documentos cuja divulgação está em causa, os depoimentos das testemunhas supra referenciadas, o comportamento do arguido relatado pelas testemunhas supra referidas, antes, durante e após a afixação do placard e envio dos mails, de acordo, com as regras de experiência comum, fazem concluir, sem qualquer sombra de dúvida que, foi ele que praticou os factos dados como assentes”.

No doc. de fls. 298 está efectivamente visível um erro ortográfico (no vocábulo “assumio”). De acordo com a literalidade do próprio documento, é o arguido quem manuscreve e assina esse texto, prova documental que corrobora alguns dos depoimentos no mesmo sentido (de que o arguido daria erros ortográficos). Também esta prova indirecta (no sentido de não incidir directamente sobre os factos principais, que constituem o tema da prova) permite extrair directamente factos circunstanciais que levam aos factos principais.

Muitos outros indícios, importantes quer pela qualidade (força) quer pela quantidade (congruência) se apresentam como suficientemente convincentes.

Na argumentação do recorrente, tudo reside afinal numa contraposição de convicções, pretendendo-se a substituição da convicção do tribunal pela do recorrente. Mas permitir a substituição de convicções, na ausência de detecção de um verdadeiro erro de facto, traduzir-se-ia num segundo julgamento que o modelo do Código não viabiliza.

Aceita-se, como defende em recurso, que não fosse de exigir ao arguido um “apuramento da verdade em processos disciplinar e judicial”. Porém, a sua passividade perante tais factos, que, na sua tese, teriam sido cometidos por um terceiro agindo abusivamente em seu nome, merece uma leitura como a efectuada no acórdão. Pois sempre seria de esperar uma reacção pessoal mais adequada, conforme salientado no exame crítico.

Tal passividade foi relatada por testemunhos (assim, MJ e MS, “ouviu tudo calado, não reagiu”) e não foi negada nem explicada pelo arguido. Todas as circunstâncias, todo o ambiente em que os factos principais se desenrolaram, na análise inferencial a que se procede no acórdão, evidencia uma pluralidade de indícios, que não só se apresentam quantitativa e qualitativamente consistentes, como não perdem força creditória pela presença de contra-indícios que neutralizassem a eficácia probatória.

A argumentação sobre que assenta a conclusão probatória resulta inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano.

Há contudo um argumento alegado em recurso que, se individualizado, pode gerar dúvida quanto ao exacto teor dos dois primeiros mails (nunca, porém, do terceiro). Justifica aqui, por isso, melhor concretização.

Referimo-nos à circunstância do texto afixado no placard conter anotações feitas em escrita manual, o que poderia indiciar tratar-se de dizeres (porque manuscritos) acrescentados a um texto inicial (informatizado), o qual poderia não conter ainda, então, o que foi manualmente acrescentado.

Faria, nesta medida, sentido a observação de que “enquanto os mapas que foram enviados por e-mail continham anotações feitas por via informática, já aquele que fora afixado continha anotações feitas manualmente (as quais apenas lhe terão sido apostas precisamente por causa da ausência de anotações por via informática), pelo que, a dar-se como provada (como se deu) a versão do tribunal, tal significaria que o arguido teria enviado o ficheiro com anotações feitas por via informática, teria apagado essas anotações, apenas para poder imprimir o mapa e, posteriormente, fazer as mesmas anotações por via manual, assim facilitando a sua detecção, o que contraria manifestamente as regras da experiência comum”.

Só que a prova testemunhal foi esmagadora, no sentido da comprovação do teor dos mails, seus anexos e do mapa afixado no placard, pelo que aquele contra-indício, aliás ainda compatível com um desenrolar fenomenológico como o descrito nos factos provados, perde valia como contra-facto.

Na verdade, a circunstância de o mapa ter sido manualmente acrescentado já depois de impresso, não é incompatível com a possibilidade de esse mesmo mapa (o enviado por e.mail) ter sido também acrescentado informaticamente, após elaboração informática de uma primeira versão, impressa e acrescentada manualmente, e também completada informaticamente antes de efectivamente enviada.

Por último recorda-se que a verdade material que se prossegue no processo é uma verdade pratico-jurídica, sem certezas absolutas, essas impossíveis de alcançar.

“Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos” (STJ de 06-10-2010, Henriques Gaspar).

Em suma, o acórdão revela ter examinado todas as provas, sendo fastidioso repetir o que ali acertadamente se discorre ao longo de treze folhas, tendo-o feito dentro das regras da experiência, ou seja, dentro do que se afigura como normal acontecer. A convicção do tribunal apresenta-se ancorada em prova legal, acertadamente cotejada no conjunto da restante, e também ela, por sua vez, corroborada.

Tudo isto se explica no acórdão, resultando da motivação que o tribunal ouviu, e ouviu bem, o desenrolar da prova pessoal. E que avaliou, também devidamente, a restante prova não pessoal.

Não foram apenas os excertos de prova ora destacados em recurso a única prova produzida em julgamento, razão pela qual o resultado a que o colectivo chegou, em termos de formação da convicção, foi necessariamente diferente do agora pretendido pelo recorrente. Este secciona as provas, destacando excertos que interessam à defesa, pretendendo que o tribunal de recurso julgue com base apenas neles.

Podemos, por último, assentar em que existe total conformidade entre o que foi dito e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas em causa é proibida ou foi produzida fora das normas que disciplinam as provas em apreciação; que o tribunal justificou adequadamente a opção que faz relativamente à escolha e graduação dos conteúdos probatórios; que a tudo procedeu de uma forma racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum, e sem violação do princípio do in dúbio pro reo.

O acórdão explica-se e convence por si, resistindo nesta parte à impugnação do recorrente.

(b) Da nulidade do acórdão na parte referente à decisão do pedido cível (por falta de exame crítico da prova e de fundamentação) e inconstitucionalidade:

Alega o recorrente que o acórdão enferma da nulidade do art. 379.º n.º 1, al. a), por falta de indicação e exame crítico da prova documental e testemunhal que serviu para fundamentar a convicção do tribunal na parte relativa à apreciação dos pedidos de indemnização civil, limita-se a “mencionar vaga e genericamente os documentos referidos, bem como o teor de alguns depoimentos, sem nunca especificar em que consistem verdadeiramente os mesmos, qual a relevância que lhes foi atribuída no processo lógico-formal que serviu de suporte à formação da sua convicção e por que motivo deverão os mesmos prevalecer sobre outros que contenham ou transmitam informação oposta”.

Caso assim também não se entenda, argui a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do art. 374.º do CPP quando interpretada no sentido de se considerar suficiente para o preenchimento do conceito de fundamentação, designadamente no que concerne à indicação das provas e ao exame crítico das mesmas, a mera remissão genérica para a documentação constante dos autos, sem qualquer outra descrição ou análise dos mesmos que não a sua mera localização numérica no processo, ou a genérica indicação da valoração dada a alguma prova testemunhal, porquanto entende ser tal interpretação violadora do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação do direito ao recurso previsto no n.º 1 do art. 32.º da Lei Fundamental.

Começa por se consignar o acerto desta última afirmação.

Na verdade, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado no sentido ora alegado, que é transcrição aliás de conhecida e repetida argumentação desenvolvida nas decisões sobre as exigências constitucionais de fundamentação em matéria de facto.

O Tribunal Constitucional tem insistido em que essa “operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis)” (Acórdão TC n.º 198/2004).

O que nunca se bastaria com a mera remissão para as provas, com referências ou indicações genéricas de valoração. Mas não é isso que sucede no caso, como se verá, razão pela qual se desatende à referida arguição de inconstitucionalidade

Há pelo menos seis décadas que os autores insistem na importância da fundamentação dos juízos probatórios. Ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929 (que não previa a fundamentação da matéria de facto) se chamava a atenção para a necessidade da livre apreciação se ligar a uma explicação dos juízos probatórios. A doutrina de que o exame das provas se deveria considerar já então obrigatório, por aplicação do regime que desde 1961 vigorava no processo civil, nunca vingou porém na jurisprudência.

Mas é hoje incontroverso, volvidos quinze anos de vigência da actual redacção do nº 2 do art. 374º do Código de Processo Penal de 1987 (dada pela Lei 59/98) que a livre apreciação não pode deixar de se conectar com o exame crítico da prova na sentença, sendo liberdade de valoração e motivação de facto como que verso e reverso de um mesmo desempenho.

A exigência de fundamentação consiste pois na imposição de que “as decisões sejam eficazmente motivadas em matéria de facto e de direito”. “Motivar, na sua aproximação mais óbvia, é justificar a decisão adoptada para que possa ser controlada do exterior (Perfecto Andrés Ibañez, Sobre a Formação Racional da Convicção Judicial, Julgar nº 13, p. 167).

O caminho percorrido desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 sedimentou o entendimento de que a motivação da matéria de facto exige exame de todas as provas conducentes ao conjunto dos enunciados fácticos afirmados na sentença, no sentido de que não basta enumerar, mencionar, transcrever ou reproduzir provas, impondo-se exteriorizar em que medida a prova influenciou o julgador, convencendo-o em determinado sentido.

Mas logo nos primeiros trabalhos de interpretação e de elaboração dogmática realizados sobre o então novo Código de Processo Penal, divulgados pelo Centro de estudos Judiciários em 1988, dizia Marques Ferreira: “A obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal (…). De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle o espírito de um determinado sistema processual (…). No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, exige-se não só a indicação das provas e dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão.

Estes motivos de facto (…) não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” (Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30).

Ao motivar, o tribunal tem, assim, de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).

Assim fixados os parâmetros de avaliação, atente-se nas razões do recurso.

Como o recorrente sinaliza, o presente acórdão é resultado de anulação de decisão anterior, na sequência de nulidade, decorrente de insuficiência da fundamentação da matéria de facto então detectada. Mas essas insuficiências, ao contrário do que o recorrente afirma (sem especificar, aliás) não se mantêm, de forma relevante, na presente decisão.

Todas elas se devem considerar (pelo menos minimamente) supridas.

É, sim, o recorrente que profere considerações abstractas e genéricas sobre as supostas deficiências da fundamentação da matéria de facto na parte referente aos pedidos cíveis.

Mas fá-lo sem o concretizar, o que inviabiliza logo uma melhor decisão.

Mas sempre se dirá que a pretensão do recorrente assentaria numa incompreensão do modo como se demonstraram os factos provados com relevância para a decisão cível.

Mas estes factos, objecto da causa cível fundada na prática do crime são, desde logo, os que constituem o próprio facto ilícito, ao lado do dano, do nexo causal e da imputação daquele ao agente. A responsabilidade civil por facto ilícito – e é apenas desta que se trata – inclui o conhecimento, de facto e de direito, dos pressupostos da responsabilidade civil (extra-contratual).

Embora a decisão sobre a responsabilidade civil não assente somente no reconhecimento da existência de danos e do seu quantum, serão, em regra, estes os factos que envolverão maior contributo probatório por parte do lesado civil.

Assim sucede por no processo penal, na maioria dos casos, bastar ao demandante alegar e provar os factos relativos ao dano, devido à possibilidade de aproveitamento de uma actividade probatória desenvolvida pelo Ministério Público, justificativa da própria figura da adesão obrigatória.

Não sabemos se é a estes factos que o recorrente se refere (uma vez que não o diz), sendo certo que os restantes são comuns à responsabilidade criminal, e foram já objecto de análise em (a) (aquando da impugnação da matéria de facto).

E não tendo sido então detectado nenhum erro de facto por via do recurso efectivo, seria contraditório declarar agora a nulidade (da fundamentação) da decisão nessa parte.

É que o recurso efectivo da matéria de facto apresenta hoje a virtualidade de permitir também preservar a sentença nos casos em que o juiz de julgamento não terá sabido exprimir-se devidamente. Ou seja, naquelas situações em que a primeira instância julgou realmente bem (de facto), mas fundamentou deficientemente a convicção (de facto).

Na análise das provas efectuadas em segunda instância, a Relação, porque também em contacto com as provas, pode hoje superar as deficiências do exame crítico e confirmar a boa decisão (de fundo) apesar de eventuais deficiências (de forma) que o texto da sentença apresente. Oportunidade que, em certa medida, esvazia as valências das nulidades da sentença decorrente de imperfeito exame crítico (formal) da prova (arts 379º, nº1-al. a) e 379º, nº 2 do Código de Processo Penal).

Restariam, então, os factos relativos aos danos.

Nesta parte, a motivação da matéria de facto consistiu no seguinte:

“Os factos "supra" descritos encontram suporte testemunhal bastante nas declarações dos respectivos demandantes, documentos juntos pelos próprios com as respectivas queixas e pedidos de indemnização cível, cujo teor se dá como integralmente reproduzido e, documentos de fls. 3215, 3265-3268 (inquéritos à situação sócio-económica dos demandantes), testemunhas por este indicadas e ouvidas em audiência de julgamento, que depuseram com credibilidade.

Nomeadamente: JP, a quem o arguido perguntou se já tinha visto o mail sobre vencimentos que ele havia enviado; JC, cunhado do demandante JR, tendo o mesmo referido que o visado ficou preocupado com o conteúdo do mail, considerando que o mesmo mancha a respectiva integridade profissional; Dr. JE que confirmou que as verbas que pertenciam à Dra S, foram, posteriormente pagas e repostas, tendo sido dada razão à reclamação da Dra S; MF que ouviu o arguido dizer "que ía rebentar uma bomba na cidade de ---", antes da afixação do placard e divulgação do mail; Dr. JC que, em 2005 era director do centro de saúde de --, tendo confirmado a recepção do mail; Dr. MV que, confirmou que a Dra. A ficou perturbada com o conteúdo do mail, durante cerca de seis meses, tendo manifestado desagrado pelo facto de o seu nome aparecer conotado politicamente; EC que trabalhava no escritório da Dra AG em 2005, tendo referido que a Dra A recebeu muitos telefonemas de pessoas a comentar o conteúdo do mail, ficando incrédula com o sucedido. O assunto era comentado no café e em Mourão, por pais de alunos da Dra. AG. Esta sentia-se envergonhada e retraída; PB que viu o Dr. VM revoltado com a divulgação do conteúdo do mail, sentindo-se denegrido e difamado; AF que vendo o seu nome no cartaz, foi ao Gabinete do arguido dizer-Ihe que não admitia que o seu nome estivesse a "laranja", porque era militante do CDS. Pediu ao arguido para pôr o nome dela a azul e com a informação de que era mera militante e não dirigente. O arguido disse-lhe que não sabia que ela não era dirigente partidária e confirmou que foi o autor do conteúdo do cartaz. Referiu que após estes factos, Viu o Dr. V muito em baixo e sem vontade de viver; MH constatou que a Dra. MA ficou muito magoada e sentida. Era uma pessoa dedicada, quer como mãe, quer como profissional. O nome dela andava na boca das pessoas. Foi-se muito abaixo, até as filhas andavam tristes, porque ela era o pilar da família; Face ao teor dos depoimentos reproduzidos, conteúdos dos documentos referenciados, não subsistem dúvidas que os factos em causa devem ser dados como assentes.

Os factos relatados nos pedidos cíveis, não indicados na matéria de facto assente, ou não se provaram, ou são conclusivos, ou reportam-se a factualidade conexa com o crime de abuso de poder, do qual, o arguido não foi pronunciado, não podendo ser atendidos, nesta sede.”

Além de não dizer especificamente a que factos se refere, o recorrente também não concretiza quais as provas que supostamente conteriam ou transmitiriam “informação oposta”.

Alega não ser perceptível porque razão as provas indicadas na fundamentação devem “prevalecer sobre outras”. Mas que outras?

Aceita-se que a motivação revela cedência metodológica à reprodução de provas, com preterição de uma sua análise mais directa e mais crítica. Remete também para documentos que não analisa, o que constitui, em princípio, insuficiência de fundamentação.

Mesmo assim, é ainda perceptível o fundamento da convicção sobre os danos morais, ou seja, sobre os factos relativos aos abalos, incómodos e desgostos sofridos pelos lesados, pois percebe-se que estes resultaram provados do relatado dos lesados e da corroboração por outros depoimentos que se sinalizam no exame crítico.

E é apenas destes factos que se trata, como se dirá oportunamente.

Todos os factos que extravasem os danos deste tipo, e que caiam nos danos patrimoniais, deverão ser juridicamente desconsiderados. Também por isso, ou sobretudo por isso, não releva aferir da sua fundamentação de facto e da (in)suficiência da prova nessa parte, revelando-se afinal dispensáveis grande parte dos documentos que não mereceram melhor exame.

Não se detecta pois, em concreto, a nulidade arguida, encontrando-se respeitados os parâmetros constitucionais.

(c) Da contradição insanável da fundamentação

Na alegação do recorrente, o acórdão enferma vício de contradição insanável, “porquanto se considera provado que o arguido violou um dever de segredo ao divulgar informações que obteve em virtude do exercício do seu cargo (nomeadamente vencimentos e convicções ou filiações partidárias) e, simultaneamente, na motivação da matéria de facto provada, considera que essas mesmas informações não correspondem à verdade – assim implicando que o arguido violou um dever de segredo sobre factos errados”.

A contradição insanável da fundamentação é um vício previsto no art. 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal, que ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados. Terá sido esta, a situação invocada.

E situar-se-ia, essa colisão, entre os factos provados “informações concernentes aos vencimentos dos ofendidos”, a que o arguido teria acesso por via das suas funções, e a motivação da matéria de facto onde se refere que essas informações não correspondiam à verdade.

Assim sucede com os seguintes vencimentos, dados como divulgados por a eles ter tido acesso o arguido em virtude da função: de AG, dizendo-se simultaneamente na motivação que “também constava do documento que ela ganharia ‘600 contos’, o que não era verdade, pois optou por ficar com o vencimento de origem”; de VM, dizendo-se na motivação que “enquanto exerceu funções na ARSE recebeu cerca de 2000 € e não 3114,26€, como se referia no mail e placard”; de MA, dizendo-se na motivação que “o vencimento dela afixado no placard e mail não correspondia à verdade; de SB, dizendo-se na motivação, que “a Drª. SB referiu que o vencimento dela que foi divulgado era superior ao que recebia”; de MJ, dizendo-se na motivação que se consideraram “ainda as declarações da Drª. MJ, tendo a mesma referido que no placard e mail referia-se que ela ganhava 2000 € por mês, sendo que, em alguns meses, nem € 250 recebia”.

Aponta-se idêntica incorrecção para a divulgação de informações respeitantes a convicções ou filiações partidárias, pois deu-se como provado que “no cartaz mencionado o arguido fazia constar como anotação manual que AG, que prestou serviços para a SRS de --- até essa altura, era «dirigente Distrital do PSD»”, que “no e-mail seguia o mesmo mapa e constava de uma anotação feita por meio mecânico que era «membro do Secretariado Distrital do PSD» e, simultaneamente, na motivação da matéria de facto provada, fez-se constar que “o documento constante do referido mail continha a informação de que ela era dirigente do PSD, facto que não corresponde à realidade”. De igual modo, quanto a MA, que “no e-mail seguia o mapa e constava uma anotação feita por meio mecânico e em que acrescentava «2ª da lista do PSD à AM de ---»” e, mais à frente, que a mesma “nunca exerceu qualquer cargo político no PSD […]”. Também no que respeita a MJ, que “no e-mail seguia o mesmo mapa e constava uma anotação feita por meio mecânico e em que acrescentava «dirigente da JSD, candidata JF ---” e, na motivação da matéria de facto provada, que “nunca foi filiada no PSD”.

Com base nestas contradições, questiona o arguido a sua condenação por crime de violação de sigilo, defendendo que não pode ser condenado por violação de sigilo relativo a divulgação de factos “falsos”. Mas esta é questão a reservar para momento posterior, aquando da resolução da temática relativa à integração jurídica dos factos e à tipicidade.

Disse-se já que o vício da contradição assenta numa oposição inconciliável.

Consiste numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a decisão probatória e a decisão. Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 71).

O levantamento, efectuado no recurso, das afirmações pretensamente contraditórias é elucidativo de alguma imprecisão na abordagem destas questões no acórdão. Há que reconhecer a existência de relativa colisão entre os factos provados e a motivação. De certa maneira, parece estar-se a afirmar algo e o seu contrário. Mas estas deficiências, que se sinalizam e efectivamente se detectam, não são insuperáveis, no sentido previsto no art. 426º do Código de Processo Penal. E apenas nos casos em que, por força delas, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determinará o reenvio do processo para novo julgamento.

Assim, mau grado alguma falta de precisão e clareza, o acórdão ainda é compreensível nesta parte, sendo resolúveis as apontadas contradições. Ou seja, os factos provados, cujo juízo de suficiência probatória se sindicou já em (a), são os que como tal constam descritos no texto da decisão, e apenas esses. Nesses factos (provados) descrevem-se os dizeres numéricos relativos a vencimentos e informações “partidárias” que o arguido fez constar dos documentos que divulgou, e diz-se que tinha acesso a esses elementos (sobre vencimentos, e informações partidárias) em virtude das funções que desempenhava. Mas não se afirma (nos factos provados, repete-se) que tais elementos correspondessem à realidade em todos os casos narrados, que estivessem estritamente correctos, que fossem totalmente exactos. O que, a verificar-se, consubstanciaria uma contradição (e então também em relação a alguns dos factos dados como provados na parte relativa à decisão cível)

Inexiste, pois, uma verdadeira contradição insanável entre os factos provados e a motivação, sendo que serão apenas aqueles, e não esta, a subsumir juridicamente, nos termos a tratar oportunamente.

Note-se que o próprio arguido declara que os valores dados como provados “estão certos”. Em documento por si lido nas declarações prestadas em audiência de julgamento, e que constitui fls. 4077 a 4085, refere que, por exemplo no caso de VM “afirmou que os valores que constavam do mapa afixado estavam errados, fui verificar e talvez por acaso estão certos”.

Em suma, as aparentes colisões apontadas não são insolúveis, no sentido de impedirem uma decisão de direito, pois não está afirmado nos factos provados (e, logo, não é de considerar provado) que esses valores e essas informações partidárias feitas constar dos mapas fossem absolutamente exactos e precisas. Uma coisa é afirmar que o agente tinha acesso a determinadas informações que divulgou, e outra coisa seria afirmar (o que não se faz) que esses dados divulgados e aos quais tinha especial acesso fossem totalmente exactos, o que, aí sim, seria insoluvelmente contraditório com o que se diz no exame crítico (e, em parte, também nos factos provados do pedido cível).

Restará saber se os factos provados, assim delimitados e compreendidos, serão ou não suficientes para realizar os (todos os) crimes da condenação.

Mas essa já não é uma questão de vício da decisão (do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal).

(d) Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão

O recorrente situa este vício na parte (da decisão) relativa a dois dos tipos de crime da condenação. Assim, defende ocorrer uma falta de factos – mais precisamente dos factos relativos ao conhecimento da falsidade das imputações – no caso da difamação agravada pela alínea b) do nº 1 do art. 183º do Código Penal, e uma nova falta de factos para o crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados, do artigo 47°, nºs 1 e 2 - a) da Lei 67/98 - que consistiria na circunstância do acesso às filiações partidárias dos ofendidos não decorrer das funções do arguido.

Ora, nenhuma das duas situações, a verificar-se, consubstanciaria vício do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Na verdade, a insuficiência da matéria de facto provada prevista no art. 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa.

Constitui, pois, uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69).

Acontece que, nas duas situações apontadas, do que se trata não é de uma lacuna no apuramento da matéria de facto, mas de um problema, metodologicamente posterior, de integração dos factos provados. Ou seja, de saber se estes realizam ou não os tipos da condenação.

Deixando, por ora, a questão do número de crimes da condenação – que estranhamente (e, não podemos deixar de o dizer, censuravelmente) o acórdão não fundamenta –, a questão suscitada passará por decidir se os factos provados merecem o enquadramento legal que lhes foi dado, no que respeita aos tipos de ilícito. Assim, o que se aponta ao acórdão é um erro de direito, e não um vício da decisão.

Improcede, pois, esta arguição.

(e) Da unidade de crime de devassa por meio de informática
(f) Do concurso aparente entre os crimes de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados e o de violação de dever de sigilo e
(g) Do concurso aparente entre os crimes de difamação e de devassa por meio de informática

As três questões agora agrupadas respeitam à temática da unidade e pluralidade da infracção.

E da improcedência antecedente – arguição de vício tratado em (d) - não redundará o desatendimento total da pretensão ali formulada.

Na verdade, assiste logo razão na impugnação relativa ao preenchimento da agravante da alínea b) do nº 1 do art. 183º do Código Penal.

Ela não é aplicável ao caso.

A alínea b) do nº 1 do art. 183º prevê a agravação da pena por crime de difamação, nos casos em que se averigua que “o agente conhecia a falsidade da imputação”.

Sem prejuízo da análise mais aprofundada dos quatro tipos de crime da condenação a que se procederá, é evidente o afastamento desta alínea b) do nº 1 do art. 183º – inexiste factualidade (provada) susceptível de preencher a agravante. Não só não está provado que o arguido conhecesse a falsidade da imputação que realizava, como nem sequer se consignou como tal que as informações divulgadas ou os factos imputados fossem efectivamente falsos.

Afastada a qualificativa, cumprirá apreciar os três pontos – (e), (f) e (g) – que se agruparam metodologicamente por apresentarem uma vertente comum, a da unidade ou pluralidade de infracção. E a temática não dispensa a relacionação dos quatro tipos de crime entre si.

Os contornos do caso sub judice evidenciavam bem que as questões relativas ao concurso de crimes – ao homogéneo e ao heterogéneo – assumiam aqui uma expressão marcada.

Contudo, foram lamentavelmente esquecidas no acórdão.

Trata-se de omissão grave, na medida em que a decisão sobre o número de crimes efectivamente cometidos se reflecte (e significativamente) na pena. Mas a integração jurídica dos factos provados feita no acórdão pouco mais mereceu do que a transcrição integral dos tipos legais e a afirmação de que os factos preenchiam os crimes.

E foi tudo.

Assim, a questão do número de crimes efectivamente cometidos vem suscitada no recurso com particular acuidade.

Ela pressupõe uma abordagem prévia, sobre a susceptibilidade dos factos provados poderem preencher logo externamente (na terminologia de Duarte de Almeida) os quatro tipos de crime da condenação. Já que “a questão de aplicabilidade normativa externa é necessariamente pré-subsuntiva” (Duarte de Almeida, O Concurso de Normas em Direito Penal, 2004, p. 128).

Há, pois, que começar por precisar se os quatro tipos de crime são externamente aplicáveis, curando-se então depois, e na afirmativa, da sua eventual aplicabilidade interna (utilizando de novo a terminologia de Duarte de Almeida), havendo para tanto que os correlacionar entre si (concurso heterogéneo).

Posteriormente, curar-se-á de saber quantas vezes cada tipo de crime terá sido efectivamente violado (concurso homogéneo).

E só então se saberá quantos crimes foram efectivamente cometidos pelo arguido (art. 30º, nº 1 do Código Penal).

Vejamos então os quatro tipos da condenação, começando pelos ilícitos previstos no Código Penal.

O crime de difamação dos artigos 180° nº 1, 183° nº 1 alínea a) e 184° do Código Penal:

De acordo com o tipo-base, comete difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.

O art. 183º, nº 1 alínea a) agrava a pena nos casos em que a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação. E o art. 184º volta a agravá-la nos casos em que o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.

No acórdão considerou-se preenchido este tipo (duplamente qualificado) de crime (e ainda com a agravante entretanto aqui já afastada) discorrendo-se parcamente que “o arguido, relativamente a seis dos queixosos, imputou-lhes factos, que aos olhos de terceiros e dos próprios, faziam criar a convicção que ocuparam determinadas funções em organismo público por serem filiados em determinado partido politico, independentemente das suas capacidades e competências profissionais. Pôs em causa o brio profissional dos mesmos e respectiva honra. Incorreu, por esse motivo, na prática dos referidos crimes.”

Interessa partir do tipo de crime base. Só uma resposta positiva sobre a realização deste implicará posterior subsunção nas agravantes.

A difamação assegura o direito ao “bom-nome” e à “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº1 da Constituição da República Portuguesa). Trata-se de conceito debatido e desenvolvido na doutrina e na jurisprudência.

Mas a pronúncia sobre a realização de um tipo de ilícito nunca se basta com a mera afirmação/constatação do preenchimento do tipo formal, particularmente num crime como o presente, que importa relacionar também com a liberdade de expressão consagrada no art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Esta liberdade de expressão será sempre aqui reconformadora das fronteiras do tipo.

Cumprirá saber se as expressões escritas e divulgadas pelo arguido, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar apuradas, revestem dignidade penal no quadro do crime de difamação. Ou seja, se foram proferidas em condições de atingir o bem jurídico protegido através deste crime, mais concretamente, a honra e consideração dos assistentes.

Persegue o art. 180º, nº1 do CP a imputação de factos ou a prolação de palavras ofensivas da honra e considerações alheias, dirigindo-se, o autor da expressão ou da imputação, a terceiros

Recorde-se aqui que a “honra” é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, rectidão, carácter. A “consideração” é o valor atribuído por alguém ao juízo do público, isto é, do apreço ou, pelo menos, da não desconsideração que os outros tenham por ele (Beleza dos Santos, RLJ 3152-142). E o Código Penal adopta uma concepção dual de honra (concepção normativa-pessoal de honra), segundo a qual esta é vista como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

A sugestão implícita, dedutível da actuação do arguido, de que os assistentes teriam alcançado cargos profissionais por via de “compadrio partidário”, não é a imputação (a alguém) de algo de bom, de uma sã conduta ou de um comportamento probo. Será prejudicial para a reputação profissional dos visados, e estes sentiram-se compreensivamente molestados.

Contudo, o direito penal reveste natureza fragmentária, “de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena” (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43).

Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito.

Assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar um tipo de crime, será necessariamente relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos.

Há que ter presente aqui que a lei tutela a dignidade e o bom-nome dos visados, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração deverá fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto local, social, cultural e temporal. Pois, voltando a Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).

Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).

Impõe-se, assim, avaliar se as expressões acrescentadas nos mapas de pessoal em causa, relativas a filiações partidárias e a ligações familiares, nas concretas circunstâncias em que o foram, atingiram os visados num quadro merecedor de tutela penal por esta via (do crime de difamação). Pois, à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente no caso, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade” (Cavaleiro de Ferreira).

O princípio da insignificância intervém sempre como uma máxima interpretativa do tipo, servindo para excluir condutas que formalmente ou externamente são típicas, mas que materialmente possam não o ser. A insignificância penal exclui a tipicidade e as condutas insignificantes não serão típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico. Pois, na conhecida expressão de Welzel, os bens jurídicos não são peças de museu em redomas de vidro; vivem no mundo e sofrem o desgaste da interacção social.

Pelo que se exige que o intérprete-aplicador do tipo deva estar atento a esta interacção, a fim de perceber se a conduta revela o sentido ofensivo ínsito à realização do tipo. O tipo de ilícito não configura uma conduta neutra. Uma conduta típica já é desvalorada pelo direito. O tipo tem sempre uma axiologia própria.

Figueiredo Dias atribui ao princípio da insignificância um carácter regulativo: ele não intervém só ao nível do tipo ou da culpabilidade, mas sim nas várias categorias da doutrina do crime – sem prejuízo de admitir que esta intervenção se dá sobretudo ao nível da tipicidade (v. Direito Penal, Parte Geral, I, 2004, 624-625).

Por tudo, cumpriria avaliar o grau de ofensividade da concreta conduta apurada à luz dos princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal, mas também da insignificância e da adequação social, fazendo a destrinça clara entre a real ofensividade do comportamento e a vivência pessoal deste pelos assistentes.

Uma pronúncia definitiva, e positiva, sobre a realização de crime(s) de difamação pressuporia uma fundamentação de direito que o acórdão claramente não faz.

Imputar a alguém a pertença a um partido político legalizado não é em si, sequer, algo de “difamatório”. Associar-lhe relação de parentesco com pessoa pertencente a esse partido também não o será. Por último, também não se apresentaria como seguramente claro que a insinuação de vantagem profissional decorrente dessa filiação partidária ou desse parentesco fosse conduta suficientemente grave de ofensa da honra e da consideração social dos visados, de modo a integrar o tipo material de crime de difamação.

Os contornos da situação do caso concreto foram, no entanto, diversos. E o intérprete-aplicador não pode abster-se da apreciação e valoração do comportamento global do agente, imprescindível à valoração do(s) sentido(s) de ilícito(s).

É a lição de Figueiredo Dias, que se colhe também em Castanheira Neves.

No episódio de vida ora em apreciação, do que se curou foi, antes, do tratamento ilegal de dados pessoais, e da sua difusão informática em modo de pôr em perigo a reputação profissional dos assistentes.

A conduta não afectou a “honra” (do modo penalmente tutelado no Código Penal), não atingiu os visados enquanto pessoas de bem. Foi tão só susceptível de por em perigo a sua reputação profissional, a sua aptidão para o trabalho.

Ora a alínea c) do art. 47º prevê precisamente os casos em que a violação do dever de sigilo sobre dados pessoais põe em perigo “a reputação”. É a situação que ocorre no caso, como se dirá.

O crime de devassa por meio de informática do art. 193° do Código Penal:
O Código Penal pune (art. 193º) quem “criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, (…) à filiação partidária (…) à vida privada”.

No acórdão, fundamentou-se a condenação do arguido na prática de seis destes crimes, da forma seguinte (e após transcrição da norma incriminatória): “no art. 3°, aI. c) da Lei 67/98, de 26/10), resulta que um 'Ficheiro de dados pessoais' é qualquer conjunto estruturado de dados pessoais, acessível segundo critérios determinados, quer seja centralizado, descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico. O arguido criou um ficheiro com dados pessoais de seis dos queixosos. Entre esses dados, inclui a putativa filiação partidária dos mesmos. Agindo como agiu, incorre da prática dos referidos ilícitos.” E foi tudo.

Indo directamente ao erro de direito mais evidente nesta conclusão, tratava-se de crime em que “é irrelevante o número de pessoas que constam do ficheiro, bem como o número de informações proibidas” (Damião da Cunha, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Org. Figueiredo Dias, I, 2ª ed., p. 1078).

Cura-se de crime que protege um bem jurídico supra-individual – a interdição absoluta do tratamento informático de determinados conteúdos – sendo “tipicamente irrelevante o número de pessoas cujos dados pessoais proibidos foram objecto de tratamento informático” (loc. cit. p. 1073/4).

Assim, impôr-se-ia a absolvição do arguido logo relativamente a cinco destes crimes.

Mas o mesmo ocorrerá relativamente ao ilícito sobrante.

E independentemente da dúvida legítima colocada por Damião da Cunha no Comentário Conimbricense, a respeito da vigência do art. 193º do Código Penal, esta norma não concorreria no caso, efectivamente, com os outros dois (tipos de) crime da condenação, previstos na Lei da Protecção Dados Pessoais. E mesmo que formalmente, ou externamente, se reconhecesse o preenchimento (formal ou externo, repete-se) dos três tipos de ilícito, haveria que resolver o problema do relacionamento das normas entre si.

Damião da Cunha, no entanto, pronuncia-se logo (e abertamente) no sentido da revogação implícita do art. 193º do Código Penal.

Em sólida argumentação, considera que a aprovação da Lei nº 67/98 não apenas revogou de forma implícita o crime de devassa por meio de informática, como a própria “coerência valorativo-constitucional (deste crime) foi profundamente abalada com a modificação da redacção do art. 35º introduzida pela Revisão Constitucional de 1997”.

O crime assentava na interdição constitucional absoluta do tratamento informático de determinados dados, sendo então coerente a sua natureza pública e a ausência de um elemento típico “sem consentimento”. Existia uma clara separação entre os “dados insusceptíveis de tratamento informático” (com tratamento penal no Código Penal) e os “dados susceptíveis de tratamento mas dependentes de regulamentação legal” (estes, com tratamento penal na então Lei nº 10/91, que a Lei 67/98 veio expressamente revogar).

Mas da interdição constitucional absoluta, fundamento do tipo previsto no art. 193º do Código Penal, passou-se para a admissão constitucional do tratamento dos dados anteriormente “insusceptíveis de tratamento informático”, desde que verificadas determinadas circunstâncias – o consentimento do titular e a autorização e controlo institucional.

Damião da Cunha conclui que “foi revogada a base constitucional da legitimação do art. 193º, e nomeadamente da compreensão do bem jurídico que lhe estava subjacente”. Sinaliza ainda o Parecer nº 1/98 da CNPD, que se pronunciou no mesmo sentido (v. loc. cit. p. 1069).

Não podemos deixar de lhe reconhecer também razão quando afirma que as tipificações criminais contidas na nova lei de Protecção de Dados Pessoais, atinentes aos dados pessoais e à informática, se sobrepõem ao tipo legal de devassa por meio de informática (loc. cit. p. 1070), e que “a revogação da norma do Código Penal e a entrada em vigor das incriminações da Lei de Protecção dos Dados Pessoais não coloca qualquer problema em termos de sucessão de leis penais” (loc. cit. p. 1072).

Mas uma pronúncia definitiva sobre a não vigência do art. 193º do Código Penal nem seria indispensável à decisão da causa e à absolvição do arguido por este crime.

A conclusão de que os factos sub judice não poderiam levar à condenação pelos três tipos de crime em concurso efectivo – mais precisamente, do tipo previsto no Código Penal com os dois tipos previstos na Lei de Protecção de dados Pessoais – sempre resultaria das regras relativas ao concurso de normas, que ditariam a punição pelos dois crimes da Lei nº 67/98, como melhor se explicitará.

Os crimes da Lei nº 67/98, de 26/10 - o crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados do art. 43° nº 1 alínea a) e c) e nº 2 e o crime de violação do dever de sigilo do artigo 47°, nºs 1 e 2 - a):

A Lei de Protecção de Dados Pessoais disciplina a obtenção e tratamento de dados pessoais.

Regula o tratamento de dados pessoais efectuado tanto por meios automatizados como por meios manuais (art. 4º, nº 1).

Protege o direito à autodeterminação informativa, que tem garantia constitucional no art. 35º da Constituição da República Portuguesa, mas não já numa perspectiva puramente subjectiva.

Embora a protecção do direito à autodeterminação informativa consista em “evitar que o indivíduo se transforme um simples objecto de informação, garantindo-lhe o domínio dos seus próprios dados ao permitir-lhe determinar o que podem (e até onde podem) os outros conhecer a seu respeito” (Catarina Sarmento e Castro, Privacidade e Protecção dos Dados Pessoais em Rede, in Direito da Sociedade da Informação, VII, 2008, p. 95), as incriminações previstas na Lei de Protecção de dados pessoais “visam predominantemente tutelar a autorização e o controlo por parte de uma autoridade administrativa” (Damião da Cunha, loc. cit., p. 1071).

Constitui “dados pessoais” a informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social (art. 3°, al. a) da Lei nº 67/98).

O art. 5º nº 1 da Lei nº 67/98 impõe que a recolha de dados se processe “de forma lícita e não enganosa, em estrita adequação e pertinência à finalidade que a determinou, e que essa finalidade deva ser conhecida antes do início da recolha” (Pais de Vasconcelos, Protecção de dados Pessoais e Direito à Privacidade, A Lei de Protecção de Dados Pessoais, in Direito da Sociedade da Informação, I, 1999, p. 246).

Do art. 35º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa resulta que “o tratamento de dados pessoais está sujeito a condições de legitimidade e que não está na disponibilidade de qualquer um proceder ao tratamento de dados pessoais, ainda que se trate de dados públicos ou acessíveis ao público” (Amadeu Guerra, A Lei de Protecção de Dados Pessoais, in Direito da Sociedade da Informação, II, 2001, p. 154).

O tratamento de dados pessoais contra ou sem o consentimento do titular consubstancia uma séria violação dos direitos de personalidade, particularmente do direito à privacidade.

“Essa violação só pode justificar-se quando se torne rigorosamente indispensável e imprescindível por exigências de um interesse público claramente superior. Mas este interesse não pode ser confundido com o mero interesse funcional de um qualquer ente ou serviço público e muito menos com o interesse do público” (Pais de Vasconcelos, loc. cit., p. 252).

Protecção reforçada é conferida ainda aos “dados sensíveis”.

O art. 7º da Lei nº 67/98 disciplina o tratamento dos dados sensíveis, sendo como tal considerados, entre outros, os dados pessoais referentes a convicções políticas, filiação partidária e vida privada (art. 7º, nº 1).

“O disposto no art. 7º nº 2 terá de ser interpretado à luz do art. 35º da Constituição da República Portuguesa, sendo pacífico que o tratamento individualizado das categorias de dados incluídos na disposição constitucional só poderá ocorrer se verificada uma das condições indicadas: “consentimento do titular” ou “autorização prevista na lei”” (Amadeu Guerra, loc. cit., p. 155).

As informações constantes dos factos provados, referentes a “vencimentos, categorias profissionais e observações de carácter pessoal, como graus de parentesco, alterações de situação profissional e filiações partidárias” dos assistentes, são dados pessoais, alguns deles sensíveis.

O arguido procedeu ao seu tratamento, informaticamente e manualmente.

Esta conduta tipifica o crime do art. 43º, nº 1 alínea a) e c) e nº 2 da Lei nº 67/98, que persegue a omissão da notificação ou pedido de autorização à CNPD no caso dos dados sensíveis (alínea a)), e a utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização (a alínea c)), sendo a pena agravada (pelo nº 2).

Mas, à semelhança do que se disse a propósito do crime de devassa por meio de informática, também o número de crimes efectivamente cometidos não se afere pelo número de pessoas constantes do ficheiro (entendido como “qualquer conjunto estruturado de dados pessoais”, na definição da alínea c) do art. 3º da Lei nº 67/98) de dados pessoais.

Para este efeito, continua a ser “irrelevante o número de pessoas que constam do ficheiro, bem como o número de informações proibidas” (Damião da Cunha, loc. cit.)

Mas para além de um crime de “não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados” (do art. 43º), ao ter procedido à divulgação dos dados pessoais o arguido incorre também na prática do crime de “violação do dever de sigilo” (do art. 47º).

Verifica-se uma situação de concurso efectivo entre os dois tipos, pois uma coisa é obter os dados fora das condições legais e incorporá-los e tratá-los em ficheiro; outra, publicitar o conteúdo desse ficheiro, assim violando efectivamente a privacidade de pessoas concretas.

Trata-se de condutas reveladoras de (dois) diferentes sentidos de ilicitude, a punir nos termos do art. 77º do Código Penal.

Assim, o tipo do art. 47º persegue quem, obrigado a sigilo profissional nos termos da lei, sem justa causa e sem o devido consentimento, revelar ou divulgar no todo ou em parte dados pessoais.

Nos termos do nº 2, a pena é agravada nos casos em que o agente é funcionário público ou equiparado, nos termos da lei penal (alínea a)), e ainda quando puser em perigo a reputação, a honra, a consideração ou a intimidade da vida privada de outrem (alínea c)).

O arguido estava obrigado a sigilo profissional (art. 3°, n° 4, alínea e) do D.L.24/84, de 16/1 e, 58/2008, actualmente, art. 3º, n° 2, aI. d) e n° 6 da Lei de 9-9) e obteve (pelo menos parte d)os dados que divulgou por via das funções que desempenhava como funcionário público, sendo irrelevante que aqueles (ou parte deles), pudessem ter sido conhecidos por outras vias ou independentemente da conduta delituosa. Esta exigência não faz parte do tipo.

Juridicamente inconsequente seria também a circunstância das informações divulgadas poderem conter imprecisões ou estarem parcialmente inexactas. O tipo também não exige uma precisão rigorosa e uma exactidão absoluta dos conteúdos divulgados.

A divulgação dos mapas contendo os dados pessoais em causa – informação sobre vencimentos, filiações partidárias e ligação pessoal – associando-os entre si no contexto em que foi feito, não tendo embora efectivamente causado o dano “difamação”, pôs em perigo a reputação profissional dos visados.

Este perigo (concreto) releva agora no funcionamento da agravante, na sequência do expendido a propósito da absolvição por crime de difamação agravada. Uma coisa é atingir a honra ou a consideração social dos visados; outra, a colocação em perigo da sua reputação profissional.

Mas a exacta compreensão fenomenológica do “episódio de vida” sujeito a apreciação, de onde o intérprete-aplicador do Direito não poderá deixar de partir, leva às mesmas conclusões. E a concretização desta asserção impõe o aprofundamento da questão da unidade/pluralidade de infracção, na estrita medida do indispensável à resolução das questões do recurso.

A divulgação do mapa contendo os dados pessoais materializou-se em diversas acções (nos envios de (três) mails e na afixação no placard) e disse respeito a várias pessoas (os assistentes).

Mas nem reiteração de procedimentos, nem a pluralidade de visados se repercute inevitavelmente numa pluralidade de infracções.

Trata-se de matéria sempre complexa. Na asserção bem conhecida de Eduardo Correia, a unidade ou pluralidade de crimes constitui “um dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal” (Unidade e Pluralidade de Infracções, A Teoria do Concurso em Direito Criminal pp. 7-291), p. 13.

As dificuldades permanecem, apesar dos importantes desenvolvimentos da doutrina (Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, 1963, pp. 7-291; Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982 reimpr. 2010, pp. 519 e ss; Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral I. Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime, 2007 pp. 977 e ss; José Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, 2005, e Duarte D’Almeida, Concurso de Normas em Direito Penal, 2004, para nomear apenas as posições mais relevantes).

Como já expressámos noutras decisões (acórdãos TRE 6.12.2011 e 8.11.2011, relatados pela ora relatora, posição que também desenvolveu em texto: Notas da teoria geral da infracção na prática judiciária da perseguição dos crimes sexuais com vítimas menores de idade, Revista do Cej, nº 15, pp 293-316), na temática da unidade ou pluralidade de infracção, seguimos a posição de Figueiredo Dias e o seu entendimento sobre a relevância da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Considera o autor que, sendo o crime o facto punível, ele traduz-se numa violação de bens jurídico-penais que preenche um determinado tipo legal. O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico: o que está em causa é, assim, determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz – e é essa determinação que decide da unidade ou pluralidade de crimes (V., Jorge de Figueiredo Dias, loc. cit. pp. 988-989).

Ora, ocorrem frequentemente situações em que vários tipos penais são concretamente aplicáveis o mesmo tipo é várias vezes preenchido pelo comportamento do agente. Numa situação destas, podem distinguir-se os casos (mais “normais”) em que a esta pluralidade corresponde uma outra pluralidade de sentidos sociais de ilicitude típica (concurso efectivo ou próprio) daqueles em que, apesar de serem vários os tipos preenchidos, retira-se do comportamento global do agente um sentido de ilicitude dominante – ou, nos casos de concurso homogéneo (em que o mesmo tipo é preenchido várias vezes) um único sentido de ilicitude (concurso aparente ou impróprio).

Este pensamento, ao privilegiar o significado do comportamento global no apuramento do(s) sentido(s) material(is) de ilicitude, é teleologicamente orientado a uma valoração normativa “a partir da consequência” (loc. cit. p. 990).

Assim, o preenchimento, em concreto, de vários tipos legais pelo comportamento do agente não implicará necessariamente o concurso efectivo, pois pode concluir-se pela existência de um sentido de ilicitude dominante. Do mesmo modo, também o preenchimento de um único tipo legal não se traduzirá automaticamente na unidade do facto punível, podendo dar-se o caso de o comportamento do agente revelar uma pluralidade de sentidos de ilicitude.

A punição nos termos do art. 77º apenas se aplicará aos casos de concurso efectivo.

De tudo isto resulta essencial o papel do julgador, na “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto”. Não poderá bastar-se com um mero trabalho sobre normas (loc. cit. p. 990).

Mas se é claro que todos estes actos plúrimos – o envio repetido de mails e a impressão, acrescento manuscrito e afixação do mapa no placard –, realizam o tipo efectivamente apenas uma única vez, por não ser possível descortinar aqui mais do que um sentido único de ilicitude, a questão não será já tão linear relativamente à relevância do número de sujeitos visados.

A propósito do concurso heterogéneo, dissemos já ocorrer uma relação de concurso efectivo entre os dois tipos de crime, pois trata-se de conduta(s) reveladora(s) de diferentes sentidos de ilicitude, a punir então nos termos do art. 77º do Código Penal.

Na verdade, uma coisa é a obtenção de dados pessoais fora das condições legais e a sua utilização na concepção de um ficheiro/mapa; outra, a publicitação do respectivo conteúdo, violando desse modo, ainda, a privacidade de pessoas concretas (parece-nos ser esta também a posição defendida por Damião da Cunha – v. loc. cit. p. 1078).

Daí o considerarmos que o arguido cometeu um crime do 43° nº 1 alínea a) e c) e nº 2 da Lei nº 67/98 e um crime de violação do dever de sigilo do artigo 47°, nºs 1 e 2 - a) da Lei nº 67/98, em concurso efectivo.

Porém, o reconhecimento da relação de concurso (efectivo) entre os dois tipos (concurso heterogéneo), não resolve em definitivo a questão do número de crimes efectivamente cometidos pelo arguido (concurso homogéneo).

Permanece por determinar quantas vezes foi efectivamente preenchido pela conduta do agente o tipo de crime do art. 47º (art. 30º nº 1 do Código Penal), já que o do art. 43º o foi só por uma vez, como já se disse.

Temos como certo que estando em causa a protecção de bens eminentemente pessoais, “a pluralidade de vítimas – e consequentemente a pluralidade de resultados típicos – deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos de ilícito e conduzir à existência de um concurso efectivo” (Figueiredo Dias, loc. cit. p. 1008).

Mais difícil pode ser determinar, nalgumas situações, os casos em que a natureza do bem jurídico protegido é “eminentemente pessoal”.

O Código Penal utiliza a expressão bem jurídico eminentemente pessoal apenas no art. 30º.

Consideram-se como tal os bens que radicam na própria pessoa, na sua personalidade, fazendo-se-lhes corresponder a relação uma vítima – um crime.

Em princípio, serão de considerar como eminentemente pessoais os tipos de crime contra as pessoas, na sistemática do Código Penal (Título I). Os restantes tipos de crime protegerão uma diversidade de bens jurídicos que, mesmo que pessoais, não serão de considerar como eminentemente pessoais.

Mas a doutrina nem sempre converge na particularização do caso. Assim, por exemplo, para Figueiredo Dias o roubo é de considerar como tipo (complexo) protector de bem jurídico eminentemente pessoal. Já Damião da Cunha o trata como crime patrimonial (Direito Penal, Parte Geral, 2008, p. 299).

Centrando-nos nas incriminações previstas na Lei de Protecção de Dados Pessoais, como elucida Damião da Cunha, elas “visam predominantemente tutelar a autorização e o controlo por parte de uma autoridade administrativa”. E quando se refere ao crime de devassa informática do Código Penal, o autor considera discutível “a necessidade de previsão legal de crime que vise a protecção do direito de autodeterminação informacional, numa perspectiva puramente subjectiva (isto é, somente quanto ao titular dos dados sensíveis) que complementasse a protecção conferida pela Lei de Protecção de Dados Pessoais” (loc. cit. p. 1071).

Aceitando-se que estes crimes prossigam também a tutela da autodeterminação informacional, e que o tipo efectivamente cometido no caso concreto proteja também este bem pessoal, não será no entanto de lhe reconhecer uma natureza eminentemente pessoal preponderante. E assim sucede, mesmo no caso da agravação do nº 2, alínea c) do art. 47º, em que a tutela (antecipada) do bom nome e da privacidade dos titulares dos dados não surge como bem predominante.

Esta alínea agrava a pena nos casos em que a violação do dever de sigilo quanto a dados pessoais fizer perigar a honra, a consideração pessoal, a reputação e a vida privada de outrem. Não exige, pois, um resultado (a ofensa da honra, do bom nome, que, como se disse já, não se verificou de modo penalmente relevantes), bastando-se com um perigo (concreto) dessa lesão.

No caso, os factos provados evidenciam que a conduta do arguido pôs em perigo a reputação profissional dos visados. Trata-se aqui de “reputação” enquanto valor que ganha sentido na relação da pessoa com os outros; valor que não se explica apenas pela vítima enquanto pessoa, como consideramos suceder nos bens eminentemente pessoais (assim, a “vida”, a “integridade física”, a “liberdade”), mas enquanto pessoa que vive com os outros. Esta explicação – da pessoa em relação – predomina sobre a outra.

Assim, reconhecendo-se a natureza pessoal, mas não eminentemente pessoal (pelo menos a um nível preponderante), do bem protegido, a pluralidade de vítimas não deve interferir necessariamente na decisão sobre o número de crimes de “violação do dever de sigilo” efectivamente cometidos. Sendo, também aqui, de reconhecer que à unidade de tipo de crime violado deve corresponder uma unidade de facto punível.

Embora por razões não totalmente transponíveis para o presente caso, também se afastou a ideia-forte do “número de vítimas” como elemento de ponderação para a decisão sobre o “número de crimes” no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-10-2007 (Henriques Gaspar). Aí, num caso em que o mesmo agente cometera crime de roubo na pessoa de várias vítimas, entendeu o Supremo que, mau grado a natureza do tipo de ilícito e a pluralidade de vítimas, os factos integravam um único crime.

Transcrevemos a decisão na parte que consideramos útil para o presente recurso:

“As instâncias, ao qualificarem juridicamente o segmento factual em que se afirma que, no dia 05-12-2003, o recorrente, juntamente com dois indivíduos não identificados, usando de elevado nível de violência contra RS e CT no interior da residência destes, obrigaram cada um, em momentos diferentes, a revelar os códigos do alarme da agência de câmbios que o CT explorava e a entregar as chaves da agência, e retiraram € 1000 ao CT e € 500 da mala da RS, bem como outros valores que se encontravam na residência (telemóveis, dinheiro e objectos em ouro), consideraram que estes factos integravam, em concurso, dois crimes de roubo, conclusão que resultou, certamente, da consideração de um dos elementos de integração da complexidade estrutural do crime de roubo – a violência contra as pessoas –, que determinaria sempre a pluralidade de infracções pela natureza eminentemente pessoal dos bens jurídicos também afectados na execução de um crime de roubo. Todavia, esta construção, que no plano dogmático constitui, por regra, o modo de referência e decisão para as situações, dir-se-ia típicas ou tributárias da normalidade, pode, em específicas conjugações factuais, revelar-se excessivamente formal ou mesmo artificial, fragmentada e afastada dos pressupostos do direito penal do facto, tomado o facto como complexo dos elementos estruturantes que delimitam e concretizam na execução a intenção e o domínio da vontade do agente. (…) No roubo, e não obstante a complexidade estrutural, as considerações válidas para outros crimes patrimoniais não serão sempre e necessariamente afastadas pela natureza individualizada dos bens jurídicos pessoais que, instrumentalmente, como meio de execução, também sejam afectados. Neste tipo de ilícito a afectação de bens jurídicos de natureza pessoal, apenas instrumental e enquanto for apenas instrumental, está subordinada à realização da intenção específica de subtracção ou apossamento de coisa móvel alheia – tanto assim é que em tudo quanto a afectação de bens jurídicos pessoais for além da dimensão típica expressamente referida no art. 210.º do CP, ou seja, não for apenas instrumental e exceda a finalidade funcional e executiva, terá tratamento penal próprio e autónomo que acresce ao crime de roubo (v.g., ofensas corporais, sequestro, homicídio). Por isso, a protecção de bens pessoais, enquanto objecto de afectação instrumental, está já assegurada pela protecção acrescida ao crime patrimonial que resulta da particular qualificação do roubo em relação ao furto. A perspectiva dos bens jurídicos afectados e a consideração do bem jurídico como critério de determinação da existência de unidade ou pluralidade de infracções têm, assim, de atender à afectação do bem jurídico que primeiramente se apresente violado. E será na função instrumental que o bem jurídico pessoal deverá ser considerado. No rigor das coisas, poder-se-á considerar que no crime de roubo a afectação de bens pessoais, enquanto e na medida em que constituir acção instrumental, pode ficar consumida, em espécie de concurso parcelar aparente, pela finalidade essencial de apoderamento do crime de roubo, em relação ao qual devem então ser verificados os pressupostos casuísticos para determinação da unidade ou pluralidade de infracções. Deste modo, não se poderá afirmar que, em todos os casos, a natureza pessoal do bem jurídico, apenas por si e independentemente da conjugação própria de todos os elementos de cada caso, prevaleça sobre o tipo matriz (a afectação patrimonial) e se lhe sobreponha em espécie de concurso parcelar efectivo, nem que por essa natureza, em quaisquer circunstâncias, se acolha nas qualificações sempre à pluralidade de infracções”.

Na forma de execução do crime do nº 2, alínea c) do art. 47º da Lei 67/98, a consumação ocorre independentemente da reputação profissional dos visados ter chegado a ser efectivamente lesada.

Visa-se evitar e prevenir um risco, independentemente da sua concretização.

Nesta modalidade de execução, de perigo concreto, não pode ter-se como efectivamente atingido o bem eminentemente pessoal. Nestas situações, em que se continua a assegurar a protecção de um bem eminentemente pessoal, mas em que esse bem não chega a ser efectivamente atingido, a pluralidade de vítimas não deve interferir na decisão sobre o número de crimes cometidos.

Por todo o exposto, e em conclusão, os factos provados, na sua globalidade, integram a prática, pelo recorrente, de dois crimes em concurso efectivo – sendo estes um crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados do art. 43° nº 1 alínea a) e c) e nº 2 da Lei nº 67/98 de 26 de Outubro e um crime de violação do dever de sigilo do artigo 47°, nºs 1 e 2 – a) da Lei nº 67/98, de 26/10.
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(h) Da nulidade por falta de fundamentação da pena única

O arguido recorre também da pena, começando por se insurgir contra uma alegada omissão de “uma verdadeira fundamentação para a fixação da pena unitária de cinco anos de prisão”, o que determinaria nulidade por falta de fundamentação nos termos dos arts. 379.º n.º 1, al. a) e 374.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

Acontece que, da procedência parcial do recurso em matéria de direito na parte relativa à qualificação jurídica dos factos provados, sucede a reapreciação oficiosa das consequências jurídicas do(s) crime(s).

Assim, impondo-se ao tribunal de recurso corrigir agora as penas parcelares de acordo com o novo enquadramento jurídico, e, consequentemente, proceder à reformulação da pena única, fica prejudicada a decisão sobre eventuais deficiências de fundamentação de uma pena que será de considerar revogada.

No entanto, não deixa de se lembrar que a decisão judicial deve revelar as suas razões e os seus motivos, reconduzindo-se a “um parâmetro valorativo que a justifique”, de modo a permitir a fiscalização da administração da justiça e o exercício do direito recurso, e a combater o subjectivismo da actividade jurisdicional.

A fundamentação deve ser clara (compreensível no seu sentido e alcance), congruente (sem erros de raciocínio) e suficiente (com apreciação das questões essenciais que se colocam).

A sentença condenatória será a decisão judicial proferida no processo que envolverá um dever de fundamentar de maior intensidade. Pois como insistentemente temos lembrado, e na esteira da jurisprudência do Tribunal Constitucional, as necessidades de fundamentação não são as mesmas para todo o tipo decisão.

O tribunal constitucional tem chamado a atenção precisamente para o facto de não serem “uniformes as exigências constitucionais de fundamentação de todo o tipo de decisões em matéria penal, (…) que as decisões condenatórias devem ser objecto de um dever de fundamentar de especial intensidade, mas que não se verifica o mesmo noutro tipo de decisões” (Ana Luísa Pinto, A Celeridade no Processo Penal: O Direito à Decisão em Prazo Razoável, p. 75 e Acs TC 680/98, 281/2005 e 63/2005 aí cit.).

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações converge também no sentido da exigência de uma fundamentação específica da pena única, a qual, como o recorrente argúi, não se basta com a mera indicação do seu quantum nem com a reprodução das razões que levaram já à fixação das parcelares que a integram.

(i) Da medida da pena e da atenuação especial:

Considera o arguido que a pena deveria ter sido especialmente atenuada em virtude de “ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta” (art. 72.º, n.º 2, al. d) Código Penal),

No que respeita à medida da pena, alega que “apesar de estar legalmente obrigado a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente” (art. 71.º, n.º 2 do CP), o tribunal não se pronunciou quanto ao facto de ter sido o recorrente a remover o mapa afixado no placard, facto esse que determinou a cessação dos efeitos alegadamente lesivos da honra dos assistentes (os quais, por sinal, apesar de “ofendidos”, se limitaram a tirar fotografias ao referido mapa e a dar entrevistas à comunicação social sobre o mesmo)”.

Cumpre começar por recordar, resumidamente, o quadro legal de referência.

A determinação concreta da pena parte dos dispositivos nucleares dos artigos 40º e 71º, nº1 do Código Penal, relacionando-se adequadamente os princípios da culpa e da prevenção, no quadro constitucional da proibição do excesso.

Na doutrina nacional mais significativa, de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005) e de Anabela Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), toda a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.

Assim, na síntese de Figueiredo Dias, “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

Também para Anabela Rodrigues, “a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral”, devendo a pena “ser medida basicamente com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto” e o limite mínimo da moldura de prevenção geral será em concreto definido “pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode estender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica”. A pena deve ser medida pelo juiz “em função das exigências de protecção das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e que têm no processo um papel primordial”. E “os limites de pena assim definida pela necessidade de protecção de bens jurídicos não podem ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, outra finalidade em nome da qual a pena é medida”, sendo aqui o “desvalor do facto valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” do agente. À culpa fica reservado o papel de “incontestável limite de medida da pena assim encontrada” (A determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 570-576).

A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se, pois, como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo sempre a culpa como limite.

A determinação concreta da pena é uma actividade juridicamente vinculada. O seu iter aplicativo inclui obrigatoriamente os passos são os seguintes: 1º escolha da pena principal (nos casos de pena compósita alternativa); 2º determinação da medida concreta da pena principal; 3º ponderação da aplicação de uma pena de substituição (sempre que legalmente prevista no caso); sua escolha e determinação concreta. Todos estes passos têm de ser percorridos e concretamente ponderados.

Partindo das normas e dos princípios enunciados, cumpre agora rever a fundamentação constante do acórdão. Para tanto, escreveu-se:

“Considerando que: o arguido, pôs em causa bens jurídicos com elevada protecção no nosso ordenamento jurídico; Este tipo de criminalidade, muitas vezes impune, contribui para um sentimento de injustiça generalizado entre os cidadãos;

A ilicitude da sua actuação é elevada, pois explorou o poder conferido pelas funções que exercia, em detrimento de pessoas que exerciam ou exerceram funções no organismo onde trabalhava, algumas das quais, na sua dependência hierárquica e dependentes das quantias auferidas com o trabalho prestado (naquele ou noutro serviço), para assegurar as despesas do respectivo agregado familiar; - Mostrou-se insensível às consequências dos seus actos; Não reparou a sua conduta; Não mostrou qualquer arrependimento.

A seu favor: Apenas, a inexistência de antecedentes criminais.

Este Tribunal entende adequada a fixação de penas de prisão, pois apenas estas satisfazem as exigências elevadas de prevenção geral e especial, que se impõem. Pelo exposto, fixam-se as seguintes penas (…)”

A pena abstracta prevista para o crime do art. 43º nºs 1 alínea c) e 2 é a de prisão de 2 meses a 2 anos ou multa até 240 dias; a prevista para o crime do art. 47º, nºs 1 e 2 alíneas a) e c), de prisão de 2 meses a 3 anos ou multa até 360 dias.

O tribunal fixara em dezoito meses de prisão cada uma das sete parcelares correspondentes ao crime do artigo 47°, 1 e 2 a) da Lei 67/98, e em seis meses prisão cada uma das sete parcelares no caso do crime do art. 43° da Lei nº 67/98.

O reenquadramento dos factos integrantes destes dois tipos de crime como crime(s) único(s) implicará que devam ser achadas novas penas parcelar, que correspondam agora ao novo grau da ilicitude dos factos assim re-equacionados, tendo sempre a culpa como limite.

A tal não obsta a proibição da reformatio in pejus, pois o tribunal de recurso respeitará sempre o máximo de pena (única) já fixado em 1ª instância. E o arguido sempre sairá beneficiado, pela redução muito significativa do número de crimes e, logo, das parcelares a integrar no cúmulo. Não pode é a pluralidade de vítimas deixar de ser agora valorada, sopesando negativamente contra o arguido.

Na escolha da pena principal, o recorrente não questionou o afastamento da pena de multa. E, dentro da pena compósita alternativa, mostra-se realmente acertada a opção por pena de prisão. A multa não satisfaria de modo adequado as finalidades da punição, atendendo sobretudo às exigências de prevenção geral, tendo em conta o grau de lesão dos bens jurídicos protegidos. Só a prisão garante, nos dois casos as finalidades da punição.

O grau da ilicitude não pode deixar de ser considerado como elevado, atento o número de sujeitos visados, o dolo directo e intenso, revelado na reiteração (envio de três mails e afixação no quadro), os fins ou motivos determinantes da conduta, a ausência de arrependimento.

A retirada do mapa do placard, não deixando de abonar em favor do arguido, não reveste grande peso atenuativo. Também o tempo decorrido sobre os factos, sempre atenuante do juízo de censura social do crime, relevará favoravelmente, mas não de molde a desencadear uma atenuação especial de pena. Esta deverá sempre fundar-se em circunstâncias excepcionais, ou seja, que excepcionalmente imponham a descida da pena abstracta abaixo do seu mínimo, por se apresentar perante elas como singularmente gravosa.

Tudo ponderado, considera-se como adequadas as penas de dois anos de prisão para o crime do artigo 47°, 1 e 2 a) da Lei 67/98, e de um ano de prisão no caso do crime do art. 43° da Lei nº 67/98.

Serão agora estas as duas penas parcelares a considerar na efectivação da pena única.

A moldura penal do cúmulo jurídico é então de dois a três anos de prisão, cumprindo reponderar a pena única, sendo que a anteriormente fixada no acórdão aditava parcelares agora retiradas.

Como dá nota Figueiredo Dias, “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280).

Ainda segundo o autor, a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (loc. cit.).

Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam o cúmulo de penas. E cúmulo material de penas não só não é adoptado na lei vigente, como nunca o foi por nenhum dos códigos penais precedentes (Cavaleiro de Ferreira Lições de Direito Penal, II, 2010, p. 156).

O condenado tem direito à pena única, resultante da soma jurídica das penas (parcelares) correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que concorram efectivamente ou realmente entre si.

No sistema consagrado no art. 77º do Código Penal – sistema de pena conjunta obtida através de cúmulo jurídico – a pena única determinar-se-á, pois, dentro de uma moldura penal de cúmulo, casuisticamente encontrada após fixação das penas parcelares integrantes de uma certa adição jurídica.

Na pluralidade de infracção, a regra é a de que o concurso (efectivo) de crimes dará lugar ao concurso de penas, por contraposição à sucessão de crimes que dará lugar à sucessão de penas, a qual se acaba por traduzir numa soma material de penas.

Na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes aos dois crimes concorrentes, o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº1 do Código Penal), o que exige uma especial fundamentação (também desta pena) na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

Na conhecida lição de Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (loc. cit.).

No caso, o arguido não tem passado judiciário, contando já 59 anos de idade, e os dois crimes em concurso ocorreram nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, apresentando-se fenomenologicamente conexionados. O que evidencia uma pluriocasionalidade não radicada na personalidade, mostrando-se justificada a graduação duma pena abaixo do ponto médio da moldura.

E as considerações que possam fazer-se sobre a personalidade do arguido cingem-se à sua personalidade revelada no facto. “O agente deve ser punido pelo que fez, não por aquilo que é como pessoa, ou aquilo em que se tornou por sua culpa” (Vaz Patto, Os Fins das Penas e a Prática Judiciária, www.tre.pt).

Respeitando à culpa, tais considerações não puderam deixar de ter sido já incluídas no processo de determinação das penas parcelares.

A sua eventual reponderação na determinação da pena única respeita, porém, o princípio da proibição da dupla valoração (art. 72º, nº2 do Código Penal). Como princípio extensível a todas as operações de determinação da pena, ele deve repercutir-se ao longo de todo o processo aplicativo da pena. “Mas aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 292).

Considera-se, por tudo, que a pena única se deve fixar em dois anos e quatro meses de prisão.

Esta pena admite substituição, nos termos dos arts 43º, nº 3 e 50º do Código Penal.

De entre as duas espécies previstas para a pena principal concretamente determinada, impõe-se escolher aquela que melhor realize as finalidades da punição, sendo que a preferência deve orientar-se para a menos gravosa.

Neste momento do iter aplicativo serão sobretudo (mas não exclusivamente) razões de prevenção especial que nortearão a decisão.

A proibição do exercício da profissão apresentar-se-á, abstractamente, como a menos gravosa. No entanto, aqui, poderia funcionar em concreto contra a socialização do arguido, impedindo-o de subsistir pelos seus meios (já que vive do vencimento), sendo certo que se encontra familiar, profissional e socialmente integrado.

Assim, a opção será pela suspensão de pena.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em que nos revemos, “a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas. A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.

Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos” (STJ 07.11.2007, Henriques Gaspar).

Os factos apurados apontam para que o tribunal não deva afastar-se do poder-dever de suspender a execução da pena aplicada ao arguido.

(j) Da ilegalidade e inconstitucionalidade do condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento das indemnizações:

A pena de prisão foi suspensa na execução, na condição do pagamento de indemnizações no valor total de 51.000€, no prazo de um ano.

Considera-o o recorrente um “dever impraticável, ilegal e inconstitucional”, pois o seu rendimento anual, de acordo com os factos provados, é três vezes inferior a esse montante.

No acórdão, fundamentou-se a suspensão de pena com esta imposição da forma seguinte:

“O arguido não tem passado criminal e mostra-se bem integrado na sociedade. Este Tribunal, considera que, a simples censura do facto realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição. Pelo que, determina a suspensão da pena em causa, por período idêntico ao da pena fixada, desde que, subordinada às seguintes condições: - pagamento, no prazo de um ano, aos lesados, as quantias fixadas a título de indemnização civil - publicação, a expensas suas, do dispositivo do acórdão num jornal nacional e local (art. 51 do C.P.)”. E é tudo.

A suspensão condicionada é um “meio razoável e flexível para exercer uma influência ressocializadora sobre o agente, sem privação da liberdade”. A sua vantagem “reside precisamente na possibilidade de adaptar a sanção às circunstâncias e necessidades do agente” (JeschecK, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 898-899). Permite potenciar largamente as virtualidades do instituto da suspensão da execução da pena, que não se limita assim a descansar na “ideia da ameaça da pena e do seu efeito intimidativo”, sendo antes integrado pela imposição ao agente de deveres e regras de conduta que reforçam tanto a socialização do delinquente como a reparação das consequências do crime (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005 reimp., p.339).

Mas, como também temos lembrado em anteriores acórdãos, para que se cumpra tal desiderato, deve o arguido encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária, na quantidade e no tempo determinados na sentença.

Para tanto, incumbe ao tribunal averiguar das possibilidades do cumprimento do dever a impor, de forma a fixá-lo num modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições do condenado, só assim se prosseguindo o direito deste a uma pena justa.

A esta compatibilização se refere o art. 51º nº 2 do Código Penal quando estipula que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, prevendo-se no nº 3 a modificação dos deveres por “ocorrência de circunstâncias relevantes supervenientes”.

Daí o dizer-se que este nº 2 completa, com um princípio da razoabilidade, os princípios gerais que norteiam a fixação da pena – da adequação e da proporcionalidade.

Ora, o acórdão não inclui nos factos provados qualquer circunstância que permita intuir da possibilidade do cumprimento do dever que impôs. De acordo com os factos provados, aufere o salário mensal de 1 650€ e suporta a prestação bancária de € 500 por mês.

Assim, não só são desconhecidas as razões que fundamentaram a imposição do dever (o tribunal não as explicou), como muito duvidosa se afiguraria a sua exequibilidade, mesmo tendo agora em conta uma redução dos valores indemnizatórios a que ainda se procederá.

A decisão é de revogar nesta parte.

(k) Da falta de fundamentação e da ilegalidade na aplicação da pena de proibição do exercício de cargos de nomeação ou confiança políticos, e inconstitucionalidade:

O acórdão decidiu impor ao arguido a “proibição de exercer cargos de nomeação ou confiança política durante o período de suspensão da pena, ao abrigo do disposto no artigo 52, n° 2, aI. a) do Código Penal”.

O recorrente alega que se trata de “decisão ilegal na medida em que não encontra qualquer suporte legal ou constitucional e contende com direitos, liberdades e garantias cuja restrição lhe não é autorizada, designadamente o direito de acesso a cargos públicos, previsto no art. 50.º da Constituição da República Portuguesa”.

Argui “a inconstitucionalidade da norma constante do art. 52.º, n.º 2, al. a) do Código Penal se interpretada no sentido de se considerar legítima a imposição ao arguido de uma proibição de acesso, em condições de igualdade e liberdade, ao exercício de quaisquer cargos públicos ou políticos, porquanto entende ser semelhante interpretação manifestamente violadora dos direitos constitucionais consagrados nos arts. 50.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa”.

Invoca, por fim, a violação do dever de fundamentação, pois “o tribunal recorrido impossibilitou a compreensão da sua motivação e finalidades (tanto que o cargo desempenhado pelo ora recorrente à data dos factos nem sequer era de nomeação ou confiança política), bem como a sua impugnação”.

No acórdão, justificou-se a decisão do seguinte modo:

“Ao abrigo do disposto no artigo 52, n° 2, alínea a) do Código Penal porque os crimes cometidos pelo arguido, o foram enquanto titular de cargos de nomeação política, no exercício dessas funções e por causa delas, fica o arguido, durante o período de suspensão da pena, proibido de exercer cargos de nomeação ou confiança política”.

O art. 52º nº 1 do Código Penal prevê a imposição ao condenado, pelo tempo de duração da suspensão, do cumprimento de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade.

Complementarmente, no nº 2, prevê a imposição de outras regras, designadamente o não exercício de determinadas profissões (alínea a)).

A regra de conduta mostra-se imposta ao abrigo deste preceito.

Como acentua Figueiredo Dias, estas regras ligam-se “ao cerne socializador da pena de suspensão de execução da prisão” (loc. cit. p. 349), socialização que, no entanto, não deve ser alcançável a qualquer preço, devendo ser “de negar a legitimidade da imposição de deveres que representem uma limitação de direitos fundamentais de qualquer espécie” (loc. cit. p. 351).

O acórdão não explica em que medida a imposição que se aditou à suspensão da prisão contribui para a socialização do condenado, parecendo antes revelar cedência a considerações retributivas.

A contribuição para a socialização é condição da submissão do condenado à regra de conduta, é exigência da norma legal ao abrigo da qual ela foi imposta.

Acresce que o aditamento de regras de conduta à suspensão da prisão se justifica quando a suspensão, por si só, não garanta já as finalidades da punição. Os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição do excesso mantêm-se como referentes em todo o processo de decisão sobre as consequências do crime.

Sendo o arguido primário (aos 59 anos de idade), apresentando-se socialmente integrado, tendo os factos ocorrido há oito anos e não havendo notícia de mau comportamento posterior (em sentido penalmente relevante, que é o único que interessa aqui), fica por demonstrar a premência no robustecimento da suspensão da execução da prisão, nos moldes em que o decidira a 1ª instância.

(l) Da nulidade do acórdão por excesso de pronúncia;

(m) Da causalidade na decisão cível:

O recorrente impugna a decisão em matéria cível, questionando o pagamento das indemnizações aos assistentes, em que foi condenado.

Invoca a nulidade de sentença (prevista no art. 379º, nº 1 – alínea c) do Código de Processo Penal) por entender que o acórdão conhece de questão de que não podia tomar conhecimento – ao dar relevância jurídica aos factos que integravam o crime de abuso de poder, pelo qual o arguido não foi pronunciado, a acórdão incorreria em excesso de pronúncia.

O recorrente afirma que “no que respeita aos pedidos de indemnização cível, relativamente aos demandantes MJ, JL, VM e SB, o tribunal levou em consideração factos que extravasam os limites do objecto do processo” e que “não tendo o arguido sido pronunciado pelo crime de abuso de poder (nem por qualquer um desses factos, como consta do despacho de pronúncia), não pode o tribunal recorrido condená-lo ao pagamento de uma indemnização por esses factos, sob pena de clara perversão da lei e manifesta violação do direito ao contraditório do arguido (que legitimamente pensava que aqueles factos não poderiam ser utilizados contra ele em sede de responsabilidade civil conexa com a penal), antes devendo tais factos ser remetidos para uma acção cível autónoma.”

A ter sucedido assim, assistirá razão ao arguido, pois a redução do objecto do processo na decisão instrutória é penal e também civilmente consequente.

Vejamos, então, como se justificou no acórdão a indemnização arbitrada, na parte impugnada:

“(…) Os danos causados pelo arguido, conexos com o facto de ter dispensado alguns dos demandantes do exercício das respectivas funções, prendem-se com factos subsumíveis ao crime de abuso de poder, que não foi objecto de pronúncia. A ser assim, não podem ser atendidos, pois não existe nexo de causalidade entre os referidos danos patrimoniais e a actuação do arguido objecto de análise no julgamento destes autos. Não foi a divulgação do mail e afixação do placard que fez com que os demandantes MJ, JL e SB, perdessem os respectivos postos de trabalho, mas antes a decisão do arguido em rescindir os respectivos contratos, decisão essa que não se inclui no objecto dos ilícitos constantes da pronúncia.”

Após ter procedido ao saneamento dos factos civilmente relevantes nos moldes indicados, a acórdão prossegue: (…) Atendendo ao carácter doloso da conduta do causador do dano e ao sofrimento psicológico causado aos demandantes, tendo como consequência directa, a conduta do arguido, seguintes julgamos adequada, porque equitativa as compensações: - seis mil euros, devidos à demandante MJ; - dez mil euros, devidos ao demandante VM; - três mil euros, devidos à demandante AG; dez mil euros, devidos à demandante MA; - seis mil euros, devidos ao demandante JR; - seis mil euros, devidos ao demandante JL; - dez mil euros, devidos à demandante SB; Procedem parcialmente, nesta medida, os pedidos cíveis”.

O acórdão não é totalmente claro no saneamento a que procedeu e na separação dos factos não atendíveis. Na verdade, quando aí se refere que esses factos “não podem ser atendidos, pois não existe nexo de causalidade entre os referidos danos patrimoniais e a actuação do arguido objecto de análise no julgamento destes autos”, parece estar apenas a excluir-se os danos patrimoniais daí decorrentes, quando também os não patrimoniais que deles derivem (do facto ilícito que integraria o crime de abuso de poder) não podem ser acolhidos. Aliás, é duvidosa a própria manutenção desses factos no acórdão, procedimento ainda aceitável se visar apenas facilitar a percepção global do desenrolar do episódio de vida em apreciação, mas sem se poder repercutir juridicamente na quantificação dos danos sofridos pelos lesados.

Assim, os factos provados “- Em 6-9-2005, o arguido disse-lhes (a MJ e a JL) que terminava ali a sua prestação de serviços, pondo termo a esta; Para o lugar daqueles contratou JM que passou a exercer as mesmas funções; - MJ e JL regressaram a casa dos respectivos progenitores, após os referidos factos” devem ser, no acórdão, factos civilmente inconsequentes, quer para quantificação de eventuais danos patrimoniais (que o acórdão nem arbitra), quer não patrimoniais. E esses factos não podem repercutir-se na indemnização a proferir neste processo-crime, nem directa, nem indirectamente.

Desta feita, relevarão aqui, apenas, a humilhação, a vergonha e o embaraço comprovadamente vivenciados pelos assistentes na sequência dos actos praticados pelo arguido, integrantes dos dois crimes da condenação, sabidos e conhecidos no meio e local em que os assistentes viviam e trabalhavam. É apenas a estas consequências, na exacta medida e extensão que resulta dos factos provados, que se atenderá para fixação do montante indemnizatório, devido a título de danos não patrimoniais.

Verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil e estando agora apenas em causa o valor arbitrado, interessa apenas ajuizar da justeza desses montantes. E os valores fixados no acórdão encontram-se acima daqueles a que se deveria ter chegado, pelos fundamentos que ali se elegem como de ponderação relevante (excluídos agora os factos supra mencionados), mas atendendo também à situação económica do demandado, que não pode ser deixada de fora do processo de ponderação (arts. 496º, nº 4 e 494º do Código Civil) e em que o acórdão não revela ter atentado.

O recorrente aufere o salário mensal de 1 650€, vive em casa própria, suportando a prestação bancária de € 500 por mês. O que, aliado às demais circunstâncias do caso, particularmente a concreta extensão das consequências sofridas pelos assistentes (merecedoras, é certo, da tutela do direito), não justifica, no quadro de um incontornável referente jurisprudencial, as quantias arbitradas no acórdão.

Os valores fixados a título de danos não patrimoniais não podem ignorar o referente jurisprudencial, devendo ir ao encontro daqueles que têm vindo a ser julgados adequados pela jurisprudência dos tribunais superiores, e não devendo ultrapassar montantes fixados para prejuízos mais gravosos. No acórdão do STJ de 02.03.2011, chama-se a atenção para que “não pode deixar de ser ponderado o que se decidiu em casos anteriores”, não sendo conveniente “alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos” e havendo que “não perder de vista a realidade económica e social do país”.

O recorrente impugna também o valor da indemnização arbitrada à demandante AG e AP, valendo aqui também as considerações aduzidas. Mas, neste caso, fá-lo aditando dois argumentos novos no questionamento da causalidade dos danos: quanto a AP, alega que os danos terão sofrido um agravamento decorrente de hipersensibilidade da própria vítima, e, no caso de AG, decorrente da publicidade que a própria terá dado aos factos em entrevista televisiva. Estas duas circunstâncias novas invocadas pelo recorrente, restritas a estas demandantes, não têm, em concreto, a virtualidade de poder influir na quantificação do dano não patrimonial.

No primeiro caso, o lesante tem que contar com o facto de a pessoa lesada poder ter circunstâncias especiais que a façam sofrer de uma forma exacerbada. Isto é ainda imputável ao lesante. Este praticou o facto ilícito, criou um dano e esse dano está ainda relacionado com o facto ilícito. Assim, o autor responde pelo dano maior sofrido pela vítima mais frágil.

No segundo caso, o arguido recorre a factos que não constam dos factos provados, não tendo influído (e não podendo influir) na fixação da indemnização.

Assim, e para concluir, de acordo com as concretas circunstâncias do caso, nos termos já explanados, o juízo de equidade leva à reponderação do valor do dano não patrimonial, reduzindo-se em conformidade as indemnizações arbitradas no acórdão, para os valores seguintes: € 3.000,00 (três mil euros) devidos a MJ; € 5.000,00 (cinco mil euros) devidos a VM; € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) devidos a AG; € 5.000,00 (cinco mil euros) devidos a MA; € 3.000,00 (três mil euros) devidos a JR; € 3.000,00 (três mil euros) devidos a JL; € 5000,00 (cinco mil euros) devidos a SB.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência:

- Reduzir a pena suspensa de prisão para 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses (que engloba agora uma parcelar de dois anos de prisão, por um crime de violação do dever de sigilo do artigo 47°, nºs 1 e 2 als. a) e c) da Lei 67/98, e uma parcelar de um ano de prisão, por um crime de não cumprimento de obrigações relativas à protecção de dados do art. 43°, nº 1 al. c) da Lei nº 67/98);

- Revogar o(s) condicionamento(s) da suspensão da execução da prisão;

- Revogar a condenação pela prática dos crimes restantes;

- Reduzir o valor das indemnizações arbitradas aos demandantes cíveis (tudo conforme fixado em 3. (l) e (m));

- Confirmar o acórdão na parte restante.

Custas cíveis na proporção do vencimento.

Évora, 05.11.2013

(Ana Maria Barata de Brito)

(Leonor Vasconcelos Esteves)

(Fernando Ribeiro Cardoso)

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[1] - Sumariado pela relatora