Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
221/19.2T8PSR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: PODERES DO JUIZ
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Apenas a falta de documentos essenciais pode determinar o indeferimento liminar da petição inicial de insolvência, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.
2. Tal não sucede quando a lista de credores e a relação de bens está incompleta, podendo os elementos em falta ser facilmente obtidos com o desenrolar do processo.
3. Podendo o magistrado judicial aceder directamente à informação do registo criminal, para decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares, não tem sentido que a exija ao Requerente da insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Competência Genérica de Ponte de Sôr, (…) apresentou-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, alegando a degradação da sua situação financeira, em virtude da crise económica que vive e do seu recente divórcio, estando em dívida para com diversas entidades.
Juntou uma lista de cinco credores, sem indicar as datas de vencimento e, em relação a alguns deles (dívidas à EDP e aos Serviços Municipalizados de Águas de …), mencionando desconhecer o valor em dívida, mas afirmando que tal se deve à circunstância dos valores se encontrarem em dívida desde o tempo da vigência do casamento “e a sua ex-mulher não colabora(r) na clarificação desse valor”. Alegou, ainda, que não possui informação referente a datas de vencimento mas que todos os créditos se encontram vencidos.
Na relação de bens indicou dois imóveis, com a respectiva composição, localização e artigo matricial, mas não indicou o número de registo predial.

Foi proferido despacho concedendo ao Requerente o prazo máximo de cinco dias para suprir as seguintes omissões, sob pena de indeferimento liminar da petição:
1 - Relativamente à lista de credores indicar, para além do montante de cada um dos créditos, as datas do seu vencimento, a natureza e eventuais garantias de que beneficiem, bem como a eventual existência de relações especiais;
2 - Indicar os dados de identificação registral dos imóveis constantes da relação de bens, com indicação do seu valor de aquisição e estimativa do seu valor actual, informando ainda se o imóvel onde reside é arrendado;
3 - Demonstrar (através da junção do respectivo certificado do registo criminal) de que cumpre a exigência do artigo 238.º, n.º 1, alínea f), do CIRE.

Notificado, o Requerente pediu a prorrogação do prazo por 5 dias, por não ter ainda logrado obter os elementos necessários a complementar a informação prestada.
O despacho recorrido não se pronunciou expressamente acerca da admissibilidade do pedido de prorrogação de prazo, mas declarou que “se mostra ultrapassado o prazo (máximo) de cinco dias previsto no artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, salientado no despacho acima indicado e com a cominação ali expressa, não há outra alternativa senão indeferir liminarmente a petição.”

É deste despacho que o Requerente recorre, concluindo:
1 - O recorrente apresentou-se à insolvência;
2 - Não juntou aos autos a informação que lhe foi pedida pelo tribunal a quo, a qual implicava a sua deslocação a várias repartições públicas;
3 - O tribunal a quo notificou o recorrente para juntar toda a informação no prazo de 5 dias (cinco dias);
4 - Tendo este prazo o seu terminus em 30/09/2019;
5 - Como o recorrente trabalha por turnos, nem sempre consegue deslocar-se às várias repartições com facilidade;
6 - Requereu dia 30/09/2019 a prorrogação do prazo aludido em 3), por mais 5 dias;
7 - Porém, sobre tal requerimento, o tribunal a quo nunca se chegou a pronunciar, omitindo a pronúncia. Tendo passado de imediato para o indeferimento liminar da petição, por falta dos elementos solicitados;
8 - Pelo que, a sentença ora recorrida, encontra-se ferida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na al. d), do n.º 1 do art. 615.º do C.P.C.;
9 - Por outro lado, decisão de indeferimento liminar proferida e ora recorrida, também não foi antecedida da audiência do recorrente, o que consubstancia a prática de uma «decisão surpresa», proferida em violação do princípio do contraditório (art. 3.º do C.P.C.);
10 - O que consubstancia também nesta situação, uma nulidade. A prevista no art. 201.º do C.P.C., por violação dos princípios constitucionais constantes dos arts. 2.º, 20.º, 32.º, n.º 2, 202.º e 205.º da C.R.P.;
11 - Por tudo o exposto, e salvo melhor entendimento, encontra-se a douta decisão ferida de nulidade, devendo por tal facto, a mesma ser revogada;
12 - Vide douto Acórdão da Relação de Lisboa, Proc. n.º 1021/09.3T2AMD.L1-1, de 09/07/2017;
13 - E ainda, os doutos Acórdãos do TC n.º 440/94 (DR, II Série n.º 202, de 01/09/94); n.º 357/98 (DR, II Série n.º 162, de 16/07/1998) e n.º 289/02 (DR, II série n.º 262 de 13/11/2002) e douto Acórdão RE de 28/06/2007 (Proc. 1552/06-3);
14 - Por todo o exposto, e atentas as razões explanadas deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença posta em crise.

Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.
O relevo factual a ponderar na decisão é o constante do relatório.

Aplicando o Direito.
Iniciando a apreciação do recurso pelas invocadas nulidades, desde já adiantaremos que o despacho manifesta, talvez de forma imperfeita, que o prazo de cinco dias inicialmente concedido era o “máximo” que poderia ser concedido, face aos termos do art. 27.º, n.º 1, al. b), do CIRE, pelo que procedeu ao indeferimento liminar da petição inicial. Existe pois, uma pronúncia acerca do prazo concedido, no sentido deste ter atingido o seu limite máximo, e embora a parte possa discordar de tal conclusão, o certo é que a questão está conhecida, o que determina a improcedência desta arguição de nulidade.
E quanto à invocada nulidade por falta de contraditório, o que diremos é que a parte foi notificada do despacho para suprir as omissões da petição inicial, com a cominação ali expressa. Apontando, de todo o modo, que o despacho de indeferimento liminar não carece de prévia notificação ao interessado para pronúncia, esta Relação de Évora vem decidindo que «não tem cabimento a prolação de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar, nomeadamente com vista a conceder, ao autor ou ao exequente, a possibilidade de se pronunciar acerca de uma questão, a indicar nesse despacho prévio, como podendo vir a constituir fundamento de um “projectado” indeferimento liminar.»[1]
Improcedendo, pois, as invocadas nulidades, será que, de todo o modo, a petição inicial merecia a grave sanção do indeferimento liminar?
Vejamos.
O despacho recorrido invocou o disposto no art. 27.º, n.º 1, al. b), do CIRE, por falta de junção, no prazo máximo de cinco dias, dos documentos anteriormente assinalados, nomeadamente, para completar a lista de credores, proceder à identificação registral dos imóveis constantes da relação de bens, indicar o seu valor actual, informar se o imóvel onde reside era arrendado, e juntar o certificado do registo criminal.
Mas será que tais vícios eram essenciais e não podiam ser corrigidos com o desenrolar da causa?
De acordo com o art. 24.º, n.º 1, alíneas a) e e), do CIRE, sendo o requerente da insolvência o próprio devedor, deve juntar: a) Relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiam; e) Relação de bens que o devedor detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, e de todos os demais bens e direitos de que seja titular, com indicação da sua natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral, se for o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor actual.
Se é certo que a lista de credores se apresentava incompleta, com falta do montante de alguns créditos, datas de vencimento, natureza, eventuais garantias e eventual existência de relações especiais, e a relação de bens não continha os dados de identificação registral dos imóveis nem indicava o seu valor, ou sequer era informado se o imóvel onde o Requerente residia era arrendado, importa notar que tais elementos em falta não eram essenciais e podiam ser facilmente corrigidos com o evoluir da causa: os credores reclamariam os seus créditos, com os elementos mencionados no art. 128.º, n.º 1, do CIRE, e quanto à identificação dos imóveis, o Requerente já havia indicado a composição e localização dos imóveis, bem como o seu artigo matricial, e os restantes elementos poderiam ser completados no inventário de bens e direitos integrados na massa insolvente, elaborado nos termos do art. 153.º, n.º 1, do CIRE, “com indicação do seu valor, natureza, características, lugar em que se encontram, direitos que os onerem, e dados de identificação registral, se for o caso.”
Note-se, ainda, que o art. 24.º, n.º 2, al. b), do CIRE confere ao insolvente a alternativa de justificar quer a não apresentação quer a não conformidade de algum dos documentos constantes do elenco do respectivo n.º 1, devendo entender-se que, «se a irregularidade que baseia o despacho de aperfeiçoamento consiste na falta de documentos que a lei determina deverem ser juntos com a petição, a sanação tanto se dá quando o requerente promove a junção como quando, sendo o próprio devedor, ele justifica a falta. Neste ponto deve, aliás, o tribunal revelar-se tolerante, porquanto, (…) a generalidade dos documentos exigidos pela lei tem por função a simples facilitação de produção das consequências que estão ligadas à declaração de insolvência mas não são estruturalmente condicionantes da apreciação da situação do devedor».[2]
Adianta-se, ainda, que «a essencialidade traduz-se em o processo não estar legalmente em condições de poder prosseguir, na hipótese de permanência do vício, após o decurso do prazo de cumprimento do despacho de aperfeiçoamento. Pode, porém, suceder que o tribunal, por erro, razões utilitaristas ou outro motivo, profira despacho de aperfeiçoamento quando não ocorrem vícios com aquelas características. Se tal suceder, independentemente de o requerente dar ou não cumprimento ao despacho, o juiz deve mandar prosseguir o processo, por não se verificarem os pressupostos de indeferimento liminar fixados na al. a) do n.º 1.»[3]
Ponderando que os elementos em falta na lista de credores e na relação de bens não se revelavam essenciais para o prosseguimento da acção, podendo ser completados com o desenrolar do processo, inexistia fundamento para proceder ao indeferimento liminar da petição inicial, com base no art. 27.º, n.º 1, al. b), do CIRE.[4]
E quanto ao registo criminal do Requerente, importa recordar que, nos termos do art. 8.º, n.º 1, al. a), da Lei de Identificação Criminal – Lei 37/2015, de 5 de Maio – o próprio magistrado judicial pode aceder directamente à informação do registo criminal, para “decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares.”
Logo, podendo o próprio Juiz a quo aceder directamente a essa informação, não tem sentido que a exija ao Requerente da insolvência.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Sem custas, por a elas não ter dado causa o Recorrente.
Évora, 19 de Dezembro de 2019
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Em Acórdãos de 11.04.2019 (Proc. 1501/17.7T8SLV.E1) e de 28.06.2018 (Proc. 2621/17.3T8ENT.E1). Na Relação do Porto, vide o Acórdão de 08.03.2019 (Proc. 14727/17.4T8PRT-A.P1) e na Relação de Lisboa os Acórdãos de 10.05.2018 (Proc. 16173/17.0T8LSB.L1) e de 21.02.2019 (Proc. 5568/17.0T8ALM.L1-2). Todos publicados em www.dgsi.pt.
[2] Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª ed., 2013, pág. 235.
[3] Idem, pág. 236.
[4] No sentido desta decisão, cfr. os Acórdãos da Relação de Guimarães de 13.03.2012 (Proc. 4551/11.3TBGMR-A.G1), da Relação de Coimbra de 12.03.2013 (Proc. 6540/12.1TBLRA.C1), da Relação do Porto de 07.04.2014 (Proc. 3527/13.0TBVLG.P1), e desta Relação de Évora de 23.02.2017 (Proc. 747/16.0T8OLH.E1), todos em www.dgsi.pt.