Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
391/09.8TBCUB.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A situação possessória, desde que seja pública e pacífica, é boa para usucapir, influindo as demais características no prazo necessário para que opere a usucapião. Assim, caso tal situação perdure, sem qualquer interrupção ou suspensão, pelo lapso de tempo marcado na lei, segue-se a aquisição originária do direito correspondente.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 391/09.8TBCUB.E1
Comarca de Évora
Instância Central – Secção Cível – J3

I. Relatório
(…), casado, residente na Rua de (…), n.º 1, em Moura, instaurou contra (…) - Investimentos Imobiliários e Turísticos, S.A., NIPC (…), com sede na Av.ª (…), n.º (…), 2.°-BC, em Cascais, acção declarativa, ao tempo a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final fosse reconhecido:
a) que é o dono e legítimo proprietário do prédio rústico sito à (…), da freguesia do Pedrógão, concelho da Vidigueira, inscrito na matriz predial sob o art.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º (…);
b) que tal prédio se encontra encravado desde sempre e que o acesso sempre se fez, pelo menos desde há mais de 30 anos, por uma estrada em terra batida que atravessa pelo lado Sul do prédio rústico da Ré, com cerca de 2,5 metros de largura;
c) o direito de servidão de passagem para passagem de pessoas, máquinas agrícolas e animais.
Mais pediu a condenação da ré a indemnizá-lo pelos prejuízos causados, remetendo a sua liquidação para posterior execução de sentença.
Em fundamento, e na sequência de convite ao aperfeiçoamento, alegou, em síntese, que é o dono do prédio rústico sito à (…), por tê-lo adquirido em 5 de Fevereiro de 1986, data a partir do qual passou a usá-lo e frui-lo, nele mantendo colmeias para a produção de mel. Tal prédio confronta do Sul com barranco, Poente e Norte com o prédio da ré denominado Herdade do (…) e do Nascente com o mesmo prédio e ainda com a Herdade do (…), fazendo-se o acesso à courela do autor, sempre e desde tempos imemoriais, pelo seu lado Norte, através de uma estrada em terra batida que atravessava a dita Herdade do (…) numa extensão de 6 Km, assinalada na planta a cuja junção procedeu, e que permitia o trânsito de pessoas, veículos e animais. Mais alegou que, à semelhança dos anteriores donos, após ter adquirido o prédio sempre ao mesmo acedeu através da descrita passagem, o que fez de forma pública, pacífica e de boa-fé, situação que perdura ininterruptamente desde há mais de quarenta anos.
Sucede que a ré, em Março/Abril de 2008, fechou a estrada de acesso, ficando o demandante impedido de aceder ao seu prédio, o que lhe vem causando prejuízos ainda não passíveis de contabilização, por cujo ressarcimento é aquela responsável.
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Citada a ré, invocou as excepções dilatórias de ilegitimidade activa e passiva, em ambos os casos por preterição de litisconsórcio necessário: o autor seria parte ilegítima por se encontrar desacompanhado do seu cônjuge; quanto à ré, estando em causa o encravamento do prédio do autor e a sua pretensão de constituição de uma servidão de passagem, por não terem sido demandados todos os proprietários dos prédios confinantes que sustentam o encrave.
Mais alegou não se encontrarem reunidos, não tendo sequer sido alegados, os pressupostos de que depende a constituição da pretendida servidão, impugnando ainda que o acesso ao prédio do autor se fizesse de modo contínuo pela dita Herdade do (…), uma vez que até à criação de um couto na Herdade do (…) – conforme agora também ocorreu no prédio da contestante – era por aquele prédio que o autor acedia à sua propriedade, assim concluindo pela sua absolvição dos pedidos formulados.
O autor respondeu à matéria das excepções, pugnando pela respectiva improcedência, esclarecendo neste articulado que o título aquisitivo da servidão cujo reconhecimento pretende ver declarado é a usucapião, direito que a constituição de um couto de caça turística no prédio onerado em nada pode prejudicar.
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Realizou-se a audiência prévia e nela, frustrada a conciliação das partes, foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade activa e passiva, prosseguindo os autos com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, tendo sido pela Mm.ª juíza enunciados os seguintes, sem reclamação das partes:
“a) da constituição de servidão de passagem por usucapião a favor do autor;
b) da privação pela ré do acesso do autor à servidão de passagem;
c) da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual;
d) da existência de danos indemnizáveis e, em caso afirmativo, respectivo quantum”.
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Teve lugar audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, reconheceu o Autor como proprietário do prédio rústico sito na (…), com a área de 0,1750 ha, inscrito na matriz predial sob o artigo (…) da secção M, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vidigueira sob a ficha n.º (…), da freguesia de Pedrógão, concelho da Vidigueira, absolvendo a Ré do mais peticionado.
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Inconformado, apelou o autor e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª- Veja-se que o significado de servidão predial está consagrado no art.° 1543 do Código Civil.
2.ª- As servidões podem ser voluntárias (artigo 1547º, n° 1, do Código Civil), ou legais (art.º 1547º, n°. 2 e artigo 1550º do Código Civil).
3.ª- Dispõe o art.° 1547º, n°. 1, do Código Civil que as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família.
4.ª- A servidão por usucapião, enquanto causa genérica da aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo sobre uma coisa, alcança-se, atendendo ao preceituado pelo art.° 1287º do C. Civil, em consequência de uma posse duradoura sobre ela exercida, designada por posse prescricional, que se identifica com os actos materiais praticados sobre a mesma (corpus) com a intenção de o agente se comportar como titular do direito correspondente (animus), em nome próprio, de boa-fé, com publicidade, sem violência e, ininterruptamente desde o seu início, por período temporal suficiente, e que, na falta de registo e de boa-fé é de quinze anos, e de vinte anos, se for de má-fé, atendendo ao disposto pelo artigo 1296° do C. Civil.
5.ª- O que está aqui em causa, e é isso que o Autor pretende, é que lhe seja reconhecida a constituição de servidão de passagem sobre o prédio da Ré por usucapião, isto é, que lhe seja, reconhecida a constituição de servidão voluntária de passagem.
6.ª- O litígio concreto a dirimir diz apenas respeito ao Autor e à Ré, pois que o acesso ao prédio do autor sempre se fez, pelo menos há mais de 30 anos, por estrada de terra batida com cerca de 2,5 m de largura que atravessa o prédio da Ré – a Herdade do (…).”
Conclui pela condenação da ré a reconhecer o direito de servidão de passagem, bem como a pagar os prejuízos causados ao recorrente.
A Ré não ofereceu contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir no presente recurso determinar se se mostra constituída por usucapião uma servidão de passagem a favor do prédio de que o autor é titular do direito de propriedade.
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Da modificação oficiosa dos factos.
Embora o autor apelante não tenha impugnado a matéria de facto, nada obsta à sua modificação oficiosa nos termos consentidos pelo n.º 1 do art.º 662.º do CPC.
A Mm.ª juíza deu como assente no ponto 1 da sentença apelada que se encontra inscrita na Conservatória do Registo Predial da Vidigueira, pela Ap. (…), de 1986/02/05, da ficha n.º (…) da freguesia de Pedrogão, a aquisição por compra a favor do A. do prédio denominado (…), sito em Pedrogão, a confrontar do Norte com a Herdade do (…), Sul, Nascente e Poente com a herdade do (…), inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo (…) da secção M, considerando como não provado que “a) O prédio referido em 1) confronta do Sul com barranco e do Nascente, Poente e Norte com a Herdade do (…)”.
Para fundamentar a decisão proferida, no que respeita ao assinalado ponto da matéria de facto, fez consignar ter considerado a certidão do registo predial de fls. 77 e seguintes, a escritura pública de fls. 12 e ss. e as certidões de teor matricial de fls. 16 e ss e 75 e ss, explicitando ainda que os meios de prova mencionados levaram à consideração do facto vertido em a), acima transcrito, como não provado. Acrescentou ter o autor alegado “(embora implicitamente), que o seu prédio dispõe de confrontações diversas daquelas constantes do registo predial” e, admitindo embora que “a descrição predial não faça fé em juízo das confrontações, não se pode ignorar que por regra representa um ponto de partida para a indagação das mesmas”, acabando por concluir “ln casu, verificou-se que não obstante o Autor ter alegado confrontações diferentes daquelas constantes na descrição predial – porquanto alegou que o seu prédio confronta do Sul com Barranco e do Nascente, Poente e Norte com o prédio da Ré – ver petição aperfeiçoada – certo é que a prova acima referida veio confirmar que a confrontação entre os dois prédios faz-se apenas pelo Norte (conforme consta da certidão do registo predial). Sendo que os depoimentos testemunhais, no geral mostraram-se confusos e pouco fundamentados no que a este ponto em concreto diz respeito e, por isso, não colocaram em crise os elementos documentais acima descritos”.
Pois bem, sendo correcto que o autor começou por alegar que o seu prédio confrontava do Sul com barranco e dos demais lados com o prédio da ré denominado Herdade do (…), não é menos certo que nas petições aperfeiçoadas apresentadas nos autos (cfr. fls. 53-56 e 199-205), rectificou tal alegação, indicando como confrontações Sul com barranco, do Nascente Herdade do (…) e Herdade do (…), e do Poente e Norte Herdade do … (cfr. art.º 4º), tendo então reconhecido (cfr. fls. 29) que a identificação das confinâncias feita na petição inicial original não se encontrava correcta. E tais confrontações, conforme se vê do confronto com a certidão predial junta aos autos e na qual a Mm.ª juíza se louvou – único documento dos referenciados em que constam as confrontações – são rigorosamente as que deste documento constam (cfr. fls. 78)[1].
Atento quanto vem de se expor, e ao abrigo do disposto no citado n.º 1 do art.º 662.º do CPC, constando do processo os elementos documentais nos quais a Mm.ª juíza se louvou, por neles se referir coisa diferente da que ficou a constar do referido ponto 1 da matéria de facto, determina-se a sua alteração no que respeita às confrontações ali constantes, que se harmonizarão com as indicadas na certidão predial, alterando-se consequentemente também a referida alínea a).
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II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a factualidade a considerar:
1. Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial da Vidigueira pela Ap. (…) de 1986/02/05, da ficha n.º (…) da freguesia de Pedrogão, a aquisição por compra a favor do A. do prédio denominado (…), sito em Pedrogão, composto de terra de cultura arvense, a confrontar do Norte e Poente com a Herdade do (…), Nascente com Herdade do (…) e Herdade do (…) e do Sul com barranco, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo (…) da secção M.
2. A Ré é proprietária do prédio rústico denominado Herdade do (…), com a área de 740,4500 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…) da secção F da freguesia do Alqueva.
3. Para acesso à parcela descrita em 1 existe, pelo seu lado Norte, uma estrada em terra batida para circulação de pessoas e veículos, com a largura aproximada de 2,5 metros, que atravessa a propriedade descrita em 2 numa extensão de cerca de 4,800 km.
4) (...) que era utilizada pelo Autor para acesso a pé ou de veículo à sua parcela, desde a sua aquisição, à vista de todos, sem oposição e na convicção de que não lesava qualquer direito.
5) (...) sendo que só desde há cerca de dez anos de forma ininterrupta.
6) Os anteriores proprietários do prédio do Autor utilizavam o acesso referido em 3.
7) Desde a sua aquisição o Autor tem utilizado o prédio referido em 1 para a colocação de colmeias para a produção de mel.
8) Em Março/Abril de 2008, a Ré edificou uma cerca em arame e postes de madeira no seu prédio, fechando o acesso referido em 3.
9) (...) não obstante a Ré ter deixado uma faixa de terreno ao longo da cerca, a mesma não possibilita o acesso de pessoas e/ou veículos ao prédio referido em 1.
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Factos não provados:
Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
a) O prédio referido em 1 confronta do Nascente apenas com a Herdade do (…).
b) Desde tempos imemoriais que o acesso à parcela referida em 1 se faz pela estrada descrita em 3.
c) A utilização pelo Autor descrita em 4 ocorreu de forma ininterrupta pelo menos desde há quarenta anos.
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De Direito
Da aquisição por usucapião da servidão de passagem a favor do prédio do Autor.
O autor e ora apelante veio a juízo pedir o reconhecimento de que a favor do prédio denominado (…), por si adquirido no ano de 86, se mostra constituída uma servidão de passagem onerando o prédio da ré Herdade de (…). Alegou, para tanto, que desde tempos imemoriais o acesso ao seu prédio vem sendo feito pelo lado Norte através de uma estrada em terra batida que atravessa a herdade do (…) pertença da Ré, com a localização constante da planta que fez juntar aos autos a fls. 57, a qual vem sendo utilizada, por si e anteriores donos do prédio há pelo menos 40 anos, de forma ininterrupta, pública, sem oposição, e na convicção de não lesarem direito de outrem.
Face à matéria de facto apurada, a Mm.ª juíza “a quo” entendeu negar tal pretensão. Ao invés, o agora apelante, sem impugnar a decisão proferida sobre os factos, defende que os mesmos sustentam o pedido formulado. Vejamos, pois, se a sua pretensão merece provimento.

Pese embora os termos algo equívocos da petição, resultou clarificado na réplica e assente na audiência prévia que o título constitutivo da servidão cujo reconhecimento vem pedido ao Tribunal é a usucapião, modo aquisitivo que, cumpre desde já precisar, prescinde em absoluto da verificação de uma qualquer situação de encravamento (absoluto ou relativo).
Conforme é sabido, a posse do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo –v.g. um direito real menor como o de servidão –, se mantida por certo período de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, o que se designa por usucapião (art.º 1287.º do CC[2]).
Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente e pode ser constituído por usucapião, excepto tratando-se de servidões não aparentes (cf. art.ºs 1543.º, 1547.º e 1548.º, n.º 1). Consideram-se não aparentes, nos termos do n.º 2 do art.º 1548.º, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes. Refira-se a propósito que a permanência dos sinais não significa que estes sejam sempre os mesmos, mas sim que têm de existir permanentemente. A sua inequivocidade, por seu turno, destina-se a revelar, de forma clara e evidente, a existência de uma servidão em exercício e a respectiva natureza, assim arredando uma actuação que pode assentar na mera tolerância do vizinho.
No caso dos autos ficou provado que “para acesso” ao prédio do autor existe no prédio contíguo, pertença da ré, “uma estrada em terra batida para circulação de pessoas e veículos, com a largura aproximada de 2,5 metros, que atravessa a propriedade descrita em 2 numa extensão de cerca de 4,800 km”, assim resultando evidenciada a existência dos sinais visíveis e permanentes[3] – de resto, não questionada – que, revelando e denunciando o exercício da servidão, permitem caracterizá-la como aparente, sendo portanto susceptível de constituição por via da invocada usucapião (art.ºs 1547.º, n.º 1 e 1548.º, “a contrario sensu”).
Já se disse que a posse, se mantida por determinado lapso de tempo estabelecido na lei e reunir determinadas características, é susceptível de conduzir à aquisição por usucapião do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
A posse caracteriza-se pelo “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art.º 1251.º). Adquire-se designadamente, e para o que aqui importa, “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes exercício do direito” ou “pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuído” (art.º 1263.º, als. a) e b).
Conforme vem sendo tradicionalmente entendido, aceitando que o nosso CC acolheu, nesta matéria, a teoria subjectivista[4], a posse pressupõe a reunião do elemento material, “corpus”, que se traduz nos actos materiais praticados sobre a coisa, e do elemento psicológico, o “animus”, ou intenção de se comportar como verdadeiro titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados. Todavia, o apuramento da intenção do exercente do poder de facto perde relevância face à presunção estabelecida no n.º 2 do art.º 1252.º, por cujos termos, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, tendo o STJ fixado o entendimento de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (cfr. assento de 10/5/96, no DR de 24/6/1996, hoje com valor de AUJ)[5].
A posse idónea a facultar a aquisição do direito correspondente ao poder de facto que é exercido tem de revestir as características da publicidade e da pacificidade, ou seja, tem de ter sido adquirida sem violência e exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art.ºs 1261.º, nºs 1 e 2, e 1262.º), não se contando os prazos para a usucapião enquanto não cessar a violência e a clandestinidade da actuação, conforme resulta do disposto nos art.ºs 1297.º e 1300.º n.º 1.
Deste modo e em conclusão, a situação possessória, desde que seja pública e pacífica, é boa para usucapir, influindo as demais características no prazo necessário para que opere a usucapião. Assim, caso tal situação perdure, sem qualquer interrupção ou suspensão, pelo lapso de tempo marcado na lei, segue-se a aquisição originária do direito correspondente.
No caso dos autos, logrou o autor fazer prova de que, tendo adquirido o prédio (…) no ano de 86, à semelhança do que já se verificava com os anteriores donos, passou a deslocar-se através do prédio da ré Herdade do (…), quer a pé, quer com veículo, para aceder àquele seu prédio, usando a “estrada em terra batida” a tanto destinada. Mais se apurou que tal utilização vinha sendo feita à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente da agora apelada, actuando o autor na convicção de que não lesava direito alheio, situação que se prolongou até 2008, altura em que aquela procedeu à tapagem do acesso.
À luz de tal factualidade, impõe-se concluir que o autor desde 1986, e, antes dele, os anteriores donos do prédio identificado em 1, actuavam sobre o prédio da ré denominado Herdade do (…) pela forma correspondente ao direito real de servidão, actuação de facto sobre a coisa correspondente ao exercício do direito, o corpus, a fazer funcionar a presunção do n.º 2 do art.º 1252.º, pelo que deverão ser havidos como possuidores. Tal posse, caracterizada pela publicidade e pela pacificidade, conforme resulta igualmente dos factos assentes, é aproveitável para efeitos de aquisição do direito real de gozo correspondente se perdurar pelo lapso de tempo exigido pela lei, valendo no caso o prazo de 15 anos, conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 1287.º e 1296.º, uma vez que o autor/apelante logrou ilidir a presunção de má-fé estabelecida no citado art.º 1260.º, n.º 2 (cf. facto 4., na sua parte final)[6].
Aqui chegado, viu-se, todavia, o recorrente confrontado com o entendido como determinante facto vertido no ponto 5, aqui tendo feito a Mm.ª juíza consignar que os assinalados actos de posse só nos últimos 10 anos, tendo por referência a data em que a passagem foi impedida pela ré, haviam sido praticados de forma ininterrupta, o que foi decisivo para o desfecho da acção. Com efeito, tendo inutilizado a actuação pretérita, veio a Mm.ª juíza a concluir, de forma consequente, não ter decorrido o prazo suficiente para a aquisição por usucapião do direito de servidão. Vejamos se tal entendimento das coisas é de manter.
A usucapião, é ponto isento de dúvida resultando de tudo o que se deixou dito, assenta sempre numa situação possessória. Só a posse e não a mera detenção pode conduzir à usucapião.
Na origem da situação jurídica em que se traduz a posse há sempre uma actuação de facto, que é inclusivamente uma actuação material: referimo-nos à emposse, apossamento ou investidura[7], que pressupõe a prática de actos com intensidade suficiente para se afirmar que o sujeito colocou a coisa debaixo do seu poder ou, por outras palavras, estabeleceu com a coisa uma relação duradoura, sendo para tanto insuficiente a actuação de carácter esporádico ou casual. Mas a energia que se exige para a investidura na situação possessória é atenuada quando se trata de conservar a posse, o que resulta claro do confronto entre a al. a) do art.º 1263.º quando prevê, entre as causas de aquisição da posse, a prática reiterada dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito[8] – repetição ou reiteração que, todavia, não significa actuação ininterrupta ou contínua, ou sequer uma periodicidade determinada[9] – e o art.º 1257.º, segundo o qual a posse se conserva enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a mera possibilidade de a continuar.
Podendo assim ser constituída “ex novo” pelo sujeito a quem a usucapião aproveita através da apropriação material da coisa, a posse pode também ser transmitida pela tradição, material ou meramente simbólica, efectuada pelo antigo ao novo possuidor (cf. art.ºs 1263.º, als. a) e b)). Quando a sucessão na posse opere por título diverso da sucessão por morte, o transmitente pode valer-se da acessão da posse, juntando à sua a posse do antecessor (art.º 1256.º n.º 1)[10].
O autor invocou a posse dos anteriores donos do prédio para efeitos de a juntar à sua, sendo certo que desde 1986 até 2008, data em que foi impedido pela ré de continuar a utilizar a dita “estrada” em terra batida, decorreram mais de 20 anos, prazo suficiente para usucapir. A Mm.ª juíza, como se referiu, tendo dado como assente que só nos últimos 10 anos os descritos actos de posse foram praticados pelo autor/recorrente de forma ininterrupta, desconsiderou a sua actuação anterior e, bem assim, a prática de actos de posse pelos anteriores donos do mesmo da qual dá conta o facto assente em 6, concluindo que não tinha decorrido o prazo suficiente para que a usucapião operasse. Mas sem razão o fez, cremos.
A título prévio, cumpre assinalar que o referido ponto 5 da matéria de facto, dada a sua natureza conclusiva, sofre, em nosso entender, de alguma ambiguidade, impondo-se precisar e clarificar o seu conteúdo.
A este propósito, e tal como se assinalou no aresto do STJ de 11/2/2016, proferido no processo 6500/07.4 TBBRG.G2, importa ter presente que “(…) na actual fisionomia do processo civil, a definição da matéria de facto relevante para a composição do litígio não pode circunscrever-se apenas ao estrito teor das atomísticas e fragmentárias respostas aos quesitos ou pontos da base instrutória, envolvendo também a ponderação da respectiva fundamentação ou motivação pelo julgador: para além de tal fundamentação ser obviamente essencial para interpretar o real sentido das respostas aos quesitos, será normalmente a referida motivação que revelará e conterá as referências aos factos instrumentais ou probatórios em que assentou, muitas vezes decisivamente, a formação da livre convicção do julgador sobre os factos essenciais, substantivamente relevantes para a sorte das pretensões formuladas.
Por outro lado, o quadro factual do litígio, relevante para operar a respectiva subsunção normativa, não se circunscreve apenas às ditas respostas aos quesitos, complementadas e esclarecidas pela fundamentação ou motivação do julgador: para além disto, incumbe ainda ao tribunal desenvolver e integrar toda a matéria factual relevante, complementando o quadro fáctico através da formulação de presunções judiciais ou naturais, assentes nas regras ou máximas de experiência, que permitem inferir factos que, constituindo lógico desenvolvimento dos que constam das respostas aos quesitos, contribuem para delinear de forma completa e integrada a matéria litigiosa (tal operação - que sempre fez parte do exame crítico das provas pelo julgador - é acentuada expressamente pelo art.º 607.º, n.º 4, do CPC, ao prever expressamente que o juiz deva extrair dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras de experiência).
E tal tarefa de reconstrução integrada do quadro factual relevante para dirimir o litígio não se circunscreve à competência do juiz no momento da prolação da sentença em 1.ª instância, incumbindo identicamente à Relação, particularmente nos casos em que, por ter sido impugnada a decisão proferida acerca da matéria de facto, lhe cumpre formar a sua própria convicção sobre a matéria litigiosa, procedendo a uma ampla reapreciação das provas gravadas”.
No caso que nos ocupa, não obstante não ter sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, impõe-se a este Tribunal que, lançando mão da motivação elaborada pela Mm.ª juíza de julgamento, precise o sentido do referido facto assente sob o ponto 5.
Analisando a fundamentação da decisão que incidiu sobre a factualidade controvertida, logo se conclui que a qualificação como ininterrupta da posse exercida pelo autor apenas em relação aos 10 anos que antecederam a tapagem da passagem pela ré se ficou a dever à circunstância de, nesse período, e ao invés do que teria ocorrido em momento anterior, aquele ter passado a fazer uso exclusivo da passagem existente na Herdade do (…).
Com efeito, e conforme a motivação revela e esclarece, até cerca do ano de 1998 o autor terá feito uso alternado de uma outra passagem, que atravessava a Herdade do (…), isto embora não tenha resultado cabalmente esclarecido se mesmo usando este acesso alternativo não tinha, ainda assim, de utilizar um troço da passagem existente no prédio da ré, como se depreende de alguns testemunhos, com destaque para o prestado pelo filho dos anteriores proprietários, que referiu ser o único modo de lá chegar, corroborado pelo teor da informação constante de fls. 189, da qual consta que “apenas na representação do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo nº (…) da secção F consta a simbologia de caminho, grosso modo na direcção Norte-Sul, e que termina a Sul junto da marca de concelho e freguesia identificado naquela secção cadastral com o nº 38”, precisamente o ponto junto do qual se encontra representado o prédio do recorrente. De todo o modo, o que não se retira dos testemunhos prestados e referenciados pela Mm.ª juíza, considerando a motivação que elaborou, é que o recorrente tenha alguma vez deixado de utilizar a passagem da Herdade do (…), nada permitindo igualmente concluir que a utilização desta última fosse meramente esporádica ou residual. Vejamos:
Tendo desconsiderado os testemunhos prestados por (…) por não frequentar o local há pelo menos 20 anos, e o de (…), filho dos anteriores donos da (…), o qual asseverou que o único acesso era o que passava pela Herdade do (…), por alegadamente ter caído em contradição, ponderou a Mm.ª juíza a propósito dos testemunhos que relevou e nos quais alicerçou a sua convicção:
“Quanto ao depoimento de (…) cumpre mencionar que a testemunha apresentou um relato bastante conciso e credível, demonstrou conhecer bem as propriedades em causa. Contou que trabalhou no Gião de 1990 a 2002 (cerca de 12 anos) e que viu o Autor a aceder ao seu prédio, onde tinha abelhas, utilizando uma estrada em terra batida, com muitas subidas e descidas, que passava pelo (…), entrava em (…) e ia até à cerca dele. Mais referindo que para ir para a sua cerca, o Autor sempre tem de ir pelo (…). No entanto, relatou também a testemunha que o Autor, tanto entrava pelo (…) como pelo (…), dependendo de onde vinha, sendo que só quando o (…) ficou vedado deixou de por lá entrar.
Ora, do que ficou dito pela testemunha resulta claro que a utilização pelo Autor do caminho que atravessa a Herdade do (…) não terá sido ininterrupta ao longo de 40 anos, parecendo que a mesma só se tornou constante a partir do momento em que deixou de conseguir aceder pelo … (sendo que a testemunha seguinte afirmou que terá sido há cerca de dez anos). Efectivamente, a utilização pontual de determinada passagem, por existir outra, não permite que se conclua pela utilização ininterrupta.
Esta convicção saiu reforçada com o depoimento de (…) – calmo e coerente – que relatou que há mais ou menos dez anos o (…) foi vedado e a partir daí o Autor viu o acesso vedado por essa Herdade, o que demonstra que efectivamente era uma forma igualmente utilizada pelo mesmo entrar na sua propriedade.
No mesmo sentido foi ainda o depoimento de (…) que relatou – de forma convicta e coerente – que o Autor acedia pelo (…), mas deixou de o fazer em virtude das vedações – referindo no entanto que mesmo quando o fazia tinha de passar pelo … (no entanto resulta óbvio da inspecção ao local que não seria pelo caminho aqui em discussão que tem início no portão da Herdade do …) – mas outras vezes entrava por Portel (que é o caminho aqui em discussão), resultando claro então mais uma vez que o caminho cuja passagem aqui se discute não seria utilizado de forma ininterrupta pelo Autor, pelo menos não há quarenta anos.
Em face dos supra mencionados depoimentos efectivamente foi possível concluir pela utilização do caminho referido em 3) pelo Autor e pelos anteriores proprietários do imóvel – facto 4) e 6) –, bem como que o mesmo tinha colmeias na sua propriedade – facto 7) –, no entanto não foi possível concluir que aquela ocorreu desde tempo imemoriais – porque nenhuma prova houve nesse sentido –, ou há pelo menos desde há 40 anos de forma ininterrupta – factos b) e c). Na verdade, concluiu o tribunal que o Autor utilizava a referida passagem de forma intermitente, passando a fazê-lo de forma ininterrupta só a partir do momento em que o (…) foi vedado, há cerca de dez anos, o que ditou o teor dos factos provados 4) e 5).
(…)” (são nossos os destaques).
Face ao consignado, e ressalvado o devido respeito, não podemos secundar a ilação que a Mm.ª juíza retirou dos testemunhos que sintetizou. Com efeito, o utilizar alternadamente o acesso por um outro prédio – sendo certo que, ao que resulta dos testemunhos extractados, ainda neste caso uma parte do percurso se faria necessariamente pela Herdade do (…) – não significa utilização intermitente ou esporádica, nem tão pouco que tenha ocorrido uma interrupção da mesma, com o significado de ter deixado em algum momento de ser utilizada, mas apenas e tão só aquilo que as testemunhas expressaram, a saber, que o autor, para aceder ao seu prédio, não se sabe exactamente desde quando, utilizava o acesso pela herdade do (…) ou um outro, com entrada pela herdade do (…), segundo a sua conveniência, ou seja, dependendo de onde vinha.
Assim precisado o sentido do facto assente em 5 – utilização alternada antes daquele período de 10 anos, exclusiva pela passagem existente no prédio da ré a partir de então – e vista a demais factualidade dada como assente, afigura-se que a apurada prática reiterada de actos de posse nos termos de um direito real de servidão que o autor e, antes deles, os anteriores donos do prédio identificado em 1, praticaram sobre o prédio da ré, reúne os caracteres da posse conducente à aquisição por usucapião do direito correspondente.
O art.º 510.º do CC 1867 estabelecia que a posse para o efeito da prescrição devia ser titulada, de boa-fé, pacífica, contínua e pública, explicitando o art.º 522.º deste mesmo diploma que “posse contínua é a que não tem sido interrompida”. O art.º 1258.º agora em vigor, epigrafado de espécies de posse, distingue entre a posse titulada e não titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, omitindo qualquer referência à posse contínua, o que bem se compreende, porquanto “não há posse interrompida”[11].
Por outro lado, conforme se assinalou no acórdão do TRC de 23/4/2013, processo 413/11.2TBNLS.C1, acessível em www.dgsi.pt, “para que a posse se mantenha não é necessária a continuidade do seu exercício, sendo suficiente que uma vez principiada a actuação correspondente ao exercício haja a possibilidade de a continuar (art.º 1257.º, n.º 1, do Código Civil). Isto explica, por exemplo, que se conserve a posse de uma servidão de passagem, embora se não passe, se não houver impedimento em que o possuidor atravesse o prédio vizinho (…).”
Deste modo, por posse contínua deve ter-se a posse não interrompida, i.e., a posse relativamente à qual, por força da extensão de regime, se não verificou uma causa de interrupção da prescrição (art.ºs 323.º, 324.º e 325.º ex-vi do art.º 1292, 1.ª parte, do Código Civil), sendo certo que, no caso em apreço, não se verificou qualquer facto interruptivo nem tal, refira-se, foi alegado.
Por último, acrescenta-se, posse prescricional ou boa para usucapir tanto é a posse efectiva como a que se mantem porque existe – e enquanto subsistir – a possibilidade de a continuar, nos termos do supra citado art.º 1257.º.
No caso dos autos, conforme os autos evidenciam, o autor desde 1986 e, antes dele, os anteriores donos do prédio denominado (…), vêm exercendo sobre a aludida serventia actos de verdadeira posse, actuação que se prolongou até 2008, data em que a ré, pela primeira vez ao que resultou apurado, se opôs, interrompendo a situação possessória existente, não descaracterizada, em nosso entender, pela circunstância de até cerca do ano de 98 o autor fazer uso alternado de uma outra passagem, posto que não se provou ter sido por algum modo impedido de o fazer por meio do acesso que atravessa a Herdade do (…), que continuou sempre a poder usar -e usou- até 2008[12]. Deste modo, tratando-se de posse pública, pacífica e de boa-fé que perdurou por mais de 20 anos, à data em que a ré se opôs ao seu exercício já o autor havia adquirido por usucapião o direito real de servidão de passagem.
Atento o que vem de se expor, e revogando neste segmento a sentença apelada, cumpre declarar que o autor adquiriu o direito de servidão de passagem em benefício do prédio denominado (…), onerando o prédio da ré denominado Herdade do (…), com as características descritas no ponto 3 e o traçado assinalado na planta de fls. 57.
Quanto ao pedido de indemnização para reparação dos prejuízos alegadamente sofridos, reiterado pelo apelante em sede recursiva, considerando que não impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto e dada a completa ausência de factos que demonstrem a existência de quaisquer danos, pressuposto da obrigação de indemnizar (cf. art.º 483.º), não pode o recurso deixar de improceder, impondo-se confirmar, quanto a este segmento, a sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo autor (…) e, em consequência, declaram que se constituiu por usucapião um direito real de servidão de passagem a favor do prédio rústico sito à (…), freguesia do Pedrógão, concelho da Vidigueira, inscrito na matriz predial sob o art.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º (…), onerando o prédio denominado Herdade do (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…) da secção F da freguesia do Alqueva, sendo o acesso ou serventia constituído pela “estrada” em terra batida para circulação de pessoas e veículos, com a largura aproximada de 2,5 metros, que atravessa este último prédio numa extensão de cerca de 4,800 km, no sentido Norte-Sul, até atingir aquele outro na sua estrema Norte, com a localização assinalada na planta de fls. 57.
Custas nesta e na primeira instância a cargo de autor e ré, na proporção de 1/4 para o primeiro e ¾ para esta.
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Évora, 11 de Janeiro de 2018
Maria Domingas
Victor Sequinho
Conceição Ferreira
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[1] Ainda que não coincidentes com as apontadas na certificação de fls. 183, ao qual a Mm.ª juiz não fez referência.
[2] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[3] Ainda visíveis aquando da inspeção judicial ao local, como se vê do auto de fls. 330-331, interessando fls. 330.
[4] Pressuposto que, todavia, tem vindo a ser progressivamente questionado pela doutrina - v., sugestivamente, Prof. Dr. Rui Ataíde, “SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE POSSE E DETENÇÃO”, acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B4513b71a-245e-4bdd-ac4a-8c64a6757bc4%7D.pdf.
[5] A propósito, escreveu o mesmo autor no artigo citado na nota anterior “A impraticabilidade geral do subjetivismo psicológico é, enfim, confirmada pela própria prática judiciária. Confrontados com a exigência impossível de afirmar por via directa o animus do agente, os Tribunais portugueses recorrem à presunção estabelecida no art.º 1252.º/2, segundo a qual, em caso de dúvida, se infere a posse naquele que exerce o poder de facto. A orientação foi finalmente consagrada em Assento do Supremo Tribunal de Justiça (hoje com o valor de jurisprudência uniformizada), que votou por unanimidade o entendimento de que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, revelando que o proclamado subjetivismo só se revela viável pela demonstração do exercício do poder de facto, que constitui ironicamente o elemento nuclear da orientação objetivista.”.
[6] Com efeito, “A inexistência de título não significa, sem mais, que a posse não é de boa-fé, pois que esta (a boa fé) pode existir independentemente do título. O que sucede é que, presumindo-se de boa-fé a posse titulada (art.º 1260.º/2), beneficia o respectivo possuidor dessa presunção, impendendo sobre a parte contrária o ónus de prova dos factos com virtualidade para a ilidir.
Ao contrário, não sendo a posse titulada, presume-se de má-fé (cit. art.º 1260º/2), incumbindo, por isso, ao possuidor, ilidir a presunção, e demonstrar que a sua posse é de boa-fé - o que significa que terá de fazer a prova de que, ao adquirir a posse, ignorava que lesava o direito de outrem (art.º 1260º/1). Se o não fizer, terá de concluir-se que a sua posse é de má-fé.” (cf. Acórdão do STJ, de 9 de Outubro de 2003, Processo n.º 03B1415, acessível em www.dgsi.p).
[7] Cf. Prof. Oliveira Ascensão, “Direito Civil – Reais”, Coimbra Editora, 1983, págs. 86 e seguintes, que se seguirá de perto na exposição subsequente.
[8] Embora o Prof. Oliveira Ascensão, crê-se que com razão, entenda que a prática reiterada exigida pela lei se refere mais à intensidade do que propriamente à duração – cfr. obra citada, pág. 87.
[9] Conforme adverte o Prof. Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in RLJ, ano 122.º, n.º 3810, pág. 259.
[10] Trata-se, todavia, de uma faculdade, podendo o transmissário invocar apenas a sua própria posse, designadamente para efeitos de usucapião, se nisso tiver interesse (nomeadamente por serem de diversa natureza as situações possessórias).
[11] Cf. Prof. Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 99.
[12] Refira-se, em reforço, que nada na lei parece impedir a constituição de mais do que um direito de servidão de passagem, onerando diferentes prédios em benefício de um único prédio dominante, se se verificarem actos de posse boa para usucapir em relação a cada um.