Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2081/16.6T8FAR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Um sinistro coberto por um contrato de seguro, ocorrido em 1999, continua a beneficiar do prazo geral de prescrição de 20 anos estabelecido no art. 309.º do Código Civil.
2. O prazo de prescrição de cinco anos previsto no art. 121.º n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, não é aplicável a tal sinistro, pois a tanto obsta o art. 2.º n.º 1 deste último diploma, prevendo a aplicação da nova lei apenas aos contratos de seguro celebrados após a sua entrada em vigor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:

1. Um sinistro coberto por um contrato de seguro, ocorrido em 1999, continua a beneficiar do prazo geral de prescrição de 20 anos estabelecido no art. 309.º do Código Civil.
2. O prazo de prescrição de cinco anos previsto no art. 121.º n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, não é aplicável a tal sinistro, pois a tanto obsta o art. 2.º n.º 1 deste último diploma, prevendo a aplicação da nova lei apenas aos contratos de seguro celebrados após a sua entrada em vigor.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Faro, (…) demandou (…) – Companhia de Seguros, S.A., invocando a celebração de um contrato de seguro na modalidade de acidentes de trabalho de trabalhadores por conta própria e que, quando em 29.10.1999 exercia por conta própria a profissão de carpinteiro de cofragens, sentiu uma forte dor lombar. Em consequência, foi alvo de diversos tratamentos e a Seguradora pagou-lhe diversas incapacidades temporárias, até 08.04.2010.
Neste ano de 2010 apresentou participação de acidente de trabalho no Tribunal do Trabalho de Faro mas, por sentença de 21.11.2011, este declarou-se incompetente em razão da matéria – à data do sinistro, ainda não tinha entrado em vigor a Lei 100/97, de 13 de Setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho de 1997), o que só ocorreu em 01.01.2000, pelo que os sinistros sofridos antes dessa data pelos trabalhadores por conta própria ainda não eram legalmente equiparados aos acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores por conta de outrem, sendo assim competente para o seu conhecimento a jurisdição comum.
Em consequência, demanda agora a Seguradora, pedindo a condenação desta no pagamento de pensão anual e vitalícia, devida desde 19.10.2000, actualizações desta pensão, subsídios de férias e de Natal e juros de mora.
A acção foi proposta em 26.07.2016 e a Ré citada a 28 seguinte.

Na sua contestação, a Ré alega a prescrição do direito do A., por aplicação do art. 121.º do DL 72/2008, de 16 de Abril, que encurtou para cinco anos o prazo de exercício dos direitos emergentes do contrato de seguro. Visto que foi interpelada em 03.09.2010 para os fins da anterior acção que correu termos no Tribunal do Trabalho de Faro, e que sobre essa data decorreram mais de cinco anos até à propositura desta segunda acção, o direito do A. estaria prescrito.
Em saneador-sentença, foi julgada procedente a aludida excepção de prescrição, argumentando-se que a citação da Ré para contestar na anterior acção ocorreu entre 20.06.2011 e 06.07.2011 e que sobre essas datas decorreram mais de cinco anos. O fundamento jurídico da sentença centra-se na revogação dos arts. 425.º a 462.º do Código Comercial pelo art. 6.º do DL 72/2008, no encurtamento do prazo de prescrição para cinco anos, nos termos do art. 121.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado por este diploma, e na aplicação do art. 327.º, n.º 2, do Código Civil – o novo prazo prescricional começou a correr logo após o acto interruptivo consubstanciado na citação para contestar na anterior acção, a qual findou por absolvição da instância.

Inconformado, o A. recorre e conclui:
1- O direito do autor de intentar a presente acção não prescreveu uma vez que lhe é aplicável o prazo de prescrição ordinário de vinte anos e não o prazo de cinco previsto no artigo 121.º, do Decreto-Lei 72/2008, de 16/04.
2- Isto porque sendo o contrato em referência um contrato de seguro facultativo, é-lhe aplicável o regime do Código Comercial (artigos 425.º a 462.º), em vigor à data da sua celebração, que não refere qualquer prazo de prescrição, sendo, por isso, o prazo geral de 20 anos que se aplica (cfr. artigo 309.º, do Código Civil, por remissão do artigo 3.º do Código Comercial).
3- O Decreto-Lei 72/2008, de 16/04 só se aplica aos sinistros que ocorram depois da sua entrada em vigor, ou seja, 01 de Janeiro de 2009, e ao conteúdo de contratos celebrados em data anterior que subsistam à data do seu início de vigência e relativamente aos contratos de seguro com renovação periódica, a partir da primeira renovação posterior à data da sua entrada em vigor.
4- O contrato de seguro titulado pela apólice n.º 2958322 não se renovou aós 01 de Janeiro de 2009, data em que já não existia.
5- Assim, tendo a acção sido proposta em 26 de Julho de 2016, houve interrupção da prescrição em 28 de Julho de 2016, data da citação da ré, ou seja, muito antes de ter decorrido o prazo de 20 anos que apenas se completaria em 29 de Outubro de 2019.
6- Caso se entenda, o que apenas por mera hipótese se admite, que o novo regime dos contratos de seguro é aplicável ao sinistro em referência nos autos, sempre se dirá que, atento o disposto no artigo 121.º, n.º 2, do Decreto-lei 72/2008, de 16/04, o direito a reclamar o pagamento de uma indemnização de um segurador também prescreve no prazo de vinte anos, o qual se conta a partir do facto que originou o direito à indemnização, ou seja, do sinistro.

Na resposta sustenta-se a manutenção do julgado e conclui-se:
1.ª Tendo como base o acervo conclusivo do recurso do recorrente, embora se afigurem correctas as conclusões 2ª, 3ª e 4ª, falham por completo as restantes, 1ª, 5ª e 6ª, sendo que nestas revela o recorrente não ter retirado as devidas consequências daquilo que antes afirmou, com total acerto, muito menos compreendendo que apenas da sua inércia se pode queixar, face à procedência da excepção de prescrição.
2.ª Efectivamente, à data da propositura da acção o pretenso direito do recorrente encontrava-se já prescrito, considerando-se todos os factos e argumentos jurídicos sustentados na douta sentença, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3.ª No objecto do recurso, não logra o recorrente demonstrar que, quando em 26 de Julho de 2016 propôs a presente acção, ainda estava em tempo de o fazer, podendo prevalecer-se do prazo de prescrição ordinária (geral) de 20 anos, quando a lei fixava já um prazo de prescrição (especial) de 5 anos, contado a partir de 03 de Setembro de 2010, data do último facto interruptivo da prescrição.

Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

O acervo factual já apurado nos autos e relevante para a decisão é o que segue:
1- Por contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho – trabalhadores por conta própria, titulado pela apólice n.º (…), com início em 16.06.1999, a Ré garantiu a cobertura dos acidentes de trabalho de que o A. fosse vítima em consequência do exercício da sua actividade profissional por conta própria.
2- Este contrato estava em vigor no dia 29.10.1999.
3- O A. declarou, para efeitos de seguro, auferir a retribuição anual de € 5.387,02.
4- O A. participou à Ré um sinistro ocorrido no dia 29.10.1999, quando exercia por conta própria a actividade de carpinteiro de cofragens, consistente em ter sentido uma forte dor nas costas quando efectuava o transporte de uma viga.
5- A Ré prestou assistência clínica ao A. desde o dia 30.10.1999, dando-lhe alta em 24.04.2000, com uma IPP de 10%.
6- A Ré voltou a prestar assistência clínica ao A. entre 2004 e 2010, por novas queixas na sequência do sinistro supra referido, pagando-lhe então diversas indemnizações por incapacidades temporárias.
7- No dia 03.08.2010, o A. participou no Tribunal do Trabalho de Faro a ocorrência do supra mencionado sinistro como acidente de trabalho, o qual tomou ali o n.º 607/l0.8TTFAR.
8- A Ré foi notificada do âmbito desse processo, pela primeira vez, em 03.09.2010.
9- Em tentativa de conciliação ali realizada em 01.02.2011, a Ré declarou que, dado o A. ser trabalhador independente e que o sinistro ocorreu em 1999, o Tribunal do Trabalho era incompetente em razão da matéria para regular os acidentes destes trabalhadores.
10- Nessa sequência, o A. propôs petição inicial contra a Seguradora, iniciando a fase contenciosa daquele processo.
11- A Ré foi citada para contestar essa petição inicial entre 20.06.2011 e 06.07.2011, data em que apresentou a sua contestação, arguindo a excepção de incompetência material.
12- Em saneador-sentença de 21.11.2011, o Tribunal do Trabalho de Faro julgou procedente a excepção de incompetência em razão da matéria e absolveu a Ré da instância.
13- A presente acção foi proposta em 26.07.2016 e a Ré citada a 28 seguinte.

Aplicando o Direito.
Da excepção de prescrição
Na decisão recorrida assume-se ser aplicável o art. 121.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, e por isso se entendeu que o prazo prescricional era de apenas cinco anos, em vez do prazo geral de 20 anos anteriormente aplicável, por força dos arts. 3.º do Código Comercial e 309.º do Código Civil.
Face à crítica do A., apontando que tal regime apenas se aplica aos sinistros ocorridos após a sua entrada em vigor, a Ré contrapõe nas suas alegações, a dado passo, o seguinte: «Há, pois, que reconhecer que o DL 72/2008, apesar de não se aplicar ao conteúdo substantivo do contrato, tem, todavia, uma aplicação ao caso dos autos, ainda que limitada ao novo prazo de prescrição introduzido pelo seu art. 121.º, funcionando nessa parte como lei nova.»
Se bem se compreende a perspectiva da Ré, esta concede que o DL 72/2008 não se aplica ao conteúdo substantivo do contrato de seguro dos autos, mas que, apesar disso, no tocante ao regime de prescrição, este diploma, afinal, já é aplicável.
Será assim?
O art. 2.º do DL 72/2008, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”, dispõe o seguinte:
“1 – O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes.
2 – O regime referido no número anterior não se aplica aos sinistros ocorridos entre a data da entrada em vigor do presente decreto-lei e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa.”
O n.º 2 deste art. 2.º, prevendo que o novo regime não se aplicava aos sinistros ocorridos entre a data de entrada em vigor do novo regime e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa, justificava-se porquanto os arts. 3.º e 4.º continham disposições aplicáveis aos contratos renováveis e a contratos não sujeitos a renovação.
Em especial, no que concerne aos contratos de seguro com renovação periódica, o art. 3.º, nº 1, previa que o novo regime apenas se aplicava a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do dito diploma, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.
Ou seja, os contratos renováveis periodicamente continuariam sujeitos à lei antiga até à primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do novo diploma, com algumas excepções, onde não consta a nova regra de prescrição de cinco anos do art. 121.º, n.º 2, do novo regime.
Primeira ilação a retirar, pois, deste enquadramento legal: o novo prazo de prescrição de cinco anos poderia não ser aplicável a sinistros ocorridos já após a entrada em vigor do novo diploma, caso estivesse em causa um contrato de seguro renovável cuja primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do novo diploma ainda não tivesse ocorrido.
Segunda ilação a retirar: o novo regime não se aplica aos sinistros ocorridos antes da sua entrada em vigor, que assim continuam a regular-se pela lei anterior.
É o que resulta do art. 2.º, n.º 1, do DL 72/2008, pelo que, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, não nos encontramos perante uma situação de sucessão de leis no tempo, pois o sinistro continua a regular-se pela lei em vigor ao tempo da sua ocorrência, maxime, os arts. 425.º a 462.º do Código Comercial, e o art. 309.º do Código Civil, por remissão do art. 3.º daquele diploma.
Na jurisprudência, pugnando pela sujeição ao anterior regime dos sinistros ocorridos antes da aplicação legal do novo regime jurídico aprovado pelo DL 72/2008, vejam-se os seguintes arestos, todos publicados na página da DGSI:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.01.2011 (Proc. 79/10.7T2GDL.E1): «1 – O regime jurídico estabelecido pelo DL 72/2008 de 16.04, só é aplicável ao contrato celebrado entre apelante e apelada a partir de 14.12.2009 por ser nesta data que ocorreu a primeira renovação posterior à data de entrada em vigor daquele diploma;
2 – Tendo o sinistro ocorrido em 16.11.2009, não lhe é aplicável o regime jurídico estabelecido pelo DL 72/2008 de 16.04, mas as normas dos arts. 425º a 462º do Código Comercial.»
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2014 (Proc. 6659/09.6TVLSB.L1.S1): «Ao contrato de seguro celebrado em 16-02-2004 e cujo sinistro ocorra antes de 01-01-2009, não á aplicável o regime do DL n.º 72/2008, de 16-04 (artigo 2º, n.º 2).»
Finalmente, decidindo expressamente acerca das regras de prescrição de sinistros anteriores à aplicação do novo regime, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 06.10.2016 (Proc. 653/14.2T8GMR.G1): «Ao contrato de seguro de grupo cujo sinistro ocorreu em 2 de Abril de 2008, ao qual a 2.ª A. e o falecido Manuel aderiram em 2001, são aplicáveis as normas constantes do Código Comercial (art. 425.º e ss.) e, na sua falta, as normas do Código Civil e ainda quanto ao pagamento dos prémios de seguro, por se tratar de um seguro de vida, o Decreto de 21.10.97. O prazo de prescrição a considerar, na falta de disposição especial, tal como defendem as apelantes, é o prazo ordinário de 20 anos estabelecido no Código Civil (art. 309.º do CC), prazo esse que não tinha decorrido à data em que as AA. requereram o pagamento do capital seguro à Ré, por força da morte do referido Manuel.»
Em resumo, tendo o sinistro ocorrido em Outubro de 1999, beneficia do prazo de prescrição geral de 20 anos estabelecido no art. 309.º do Código Civil, dado não lhe puder ser aplicável o prazo curto de 5 anos do art. 121.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, pois a tanto obsta o art. 2.º, n.º 1, deste último diploma.
Tal prazo de 20 anos ainda não decorreu, pelo que o recurso merece provimento.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, declara-se improcedente a excepção de prescrição e determina-se o prosseguimento dos autos.
Custas do recurso pela Ré.
Évora, 23 de Novembro de 2017
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões