Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
55/2017.9GBLGS.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: DIRECTIVA COMUNITÁRIA
TRADUÇÃO
INTÉRPRETE
ARGUIDO ESTRANGEIRO
GARANTIAS DO PROCESSO CRIMINAL
INVALIDADE
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 – A Directiva, nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal tem aplicação directa em Portugal desde 28-10-2013. A Directiva nº 2012/13/EU relativa ao direito à informação, tem igualmente aplicação directa em Portugal desde 02-06-2014.
2 - Aquela primeira estabelece em simultâneo:
- um catálogo de “minimum rights” de compreensão da linguagem falada e escrita no processo para qualquer cidadão confrontado com qualquer tribunal no espaço comunitário; e
- um conjunto de obrigações mínimas comuns vinculando os Estados na disponibilização do direito à informação/interpretação/tradução de forma gratuita na UE.
3 - Sendo claro que uma Directiva, em princípio, só produz efeitos após a sua transposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça considera que uma directiva que não foi objecto de transposição ou de errada transposição pode produzir directamente determinados efeitos, podendo os particulares invocar a directiva junto de um tribunal, caso: a) - não tenha sido efectuada a sua transposição para a legislação nacional ou tenha sido objecto de transposição incorrecta; b) - as disposições da directiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; c) - as disposições da directiva confiram direitos a particulares; d) - Esteja esgotado o prazo de transposição.
4 – Há muito que a jurisprudência comunitária fez a extensão do efeito directo vertical às Directivas em vários acórdãos.
5 – No campo de acção das Directivas-garantia resta constatar a falência da previsão normativa no direito interno, já que a pobreza de previsão do artigo 92º do C.P.P. o limita à nomeação de intérprete para a intervenção activa do arguido. E pouco mais! O que tudo nos leva a concluir que houve excesso de confiança do estado português quando declarou que não era necessária a sua transposição.
6 – É incorrecto fazer apelo a um regime de “interpretação conforme” (o também designado “efeito indirecto vertical”) à sombra do acórdão Pupino do tribunal europeu, dada a aplicabilidade imediata quanto aos mínimos impostos pelas directivas. A interpretação conforme justifica-se apenas na interpretação do direito nacional, não na interpretação do direito comunitário.
7 - A Directiva 2010/64/UE consagra dois direitos conceptualmente distintos, provenientes de uma mesma intenção: o direito à interpretação e o direito à tradução, englobados sistemáticamente num só direito. O nº 1 do artigo 1º é de uma cristalina simplicidade: «A presente directiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.»
8 - A previsão legal é agora clara e abrangente. Estatui o nº 2 do mesmo preceito que tal direito “é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infracção penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infracção, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado”.
9 - As Directivas impõem uma obrigação positiva de facere sobre os tribunais nacionais, desde logo sobre a necessidade de nomeação de intérprete e/ou tradutor, até ao controlo da qualidade da interpretação/tradução.
10 - Já antes da Directiva o TEDH havia determinado no processo Cuscani v. Reino Unido (Queixa nº. 32771/96) em acórdão de 24-09-2002, que tal tarefa (um “ónus”, lhe chama o tribunal) incumbe ao juiz que preside ao julgamento, o «último guardião da “fairness” do processo».
11 - A nova directiva é clara ao estabelecer um catálogo de actos que devem ser objecto de tradução, definidos como “direitos mínimos” sendo o artigo 3º da Directiva (“Direito à tradução dos documentos essenciais”) muito claro no seu nº 1 quando determina que os “Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.
12 - A Directiva usa dois métodos para integrar o conceito de documentos essenciais: a definição do patamar mínimo de casos a exigir tradução e a formulação de uma “cláusula geral”, a noção de documento essencial onde outros documentos se podem acobertar.
13 - O primeiro método resolve-se pela imediatez da leitura do nº 2 do artigo 3º, onde se incluem as “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”, descrição naturalmente não exaustiva. O segundo método vem formulado na parte final do nº 1 do preceito como “todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.
14 - Tal catálogo de situações estabelecidas como mínimo pela Directiva não impede que a ordem jurídica portuguesa estabeleça catálogo mais generoso, mais amplo. Mas deparamo-nos com a total ausência de norma explícita que no C.P.P. português directamente preveja tal catálogo. Aliás, sequer prevê o mínimo comunitário de documentos a serem traduzidos. O que conduz a uma prática judiciária nacional maioritária que sistematicamente exclui as traduções em todos os casos.
15 - Assim somos levados - em dois patamares - a concluir (no primeiro) que este mínimo da Directiva se impõe directamente ao Estado português e que os seus tribunais se vêm obrigados a determinar que como regra geral é de determinar a tradução de todas as “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”. A que acrescem os documentos a integrar na cláusula geral do artigo 3º, nº 3 da Directiva como supra referido.
16 - Como se permite aos Estados o estabelecimento de um catálogo mais generoso de decisões passíveis de tradução, somos reconduzidos para a nossa posição já anteriormente assumida no acórdão de 01/04/2008 (proc. nº 331/08-1) de que a previsão do artigo 113º, nº 10 (anterior nº 9) do Código de Processo Penal, devidamente conjugado com a letra e espírito do artigo 6º, nº 3, al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, exigem, no caso de arguido que não entenda a língua portuguesa, que sejam devidamente traduzidas as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil.
17 - A prestação de TIR no direito português assumiu uma importância e um peso de monta, um talvez exacerbado reflexo maior no direito de defesa, especialmente após as alterações introduzidas pela Lei nº 20/2013, de 21-02, que implicou a possibilidade de “fazer desaparecer” o direito de defesa. Desta forma, a assinatura de TIR pela arguida, cidadã alemã que se não tem a certeza que perceba o português nem tendo havido o cuidado de o confirmar, é um acto inválido.
18 - A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu artigo 3º que o arguido tem direito a ser informado sobre o direito à interpretação e tradução, algo que não consta do acervo constante do artigo 61º do C.P.P..
19 - A Carta de Direitos aquando da privação da liberdade - Artigo 4º - é realidade que não existe no nosso direito processual pena.
20 - A partir do momento em que se fixa por norma (aqui Directiva) ou jurisprudência, que se encontra consagrada uma obrigação de facere a onerar um tribunal, uma obrigação positiva procedimental de acautelar a inteligibilidade dos actos processuais por arguido não conhecedor da língua em que se praticam os actos processuais, é inaceitável vir argumentar com a obrigação de invocar a falsidade de um acto que afirma que o mesmo “domina a língua”. Impõe-se agir e apurar se tal corresponde à realidade. Na dúvida a nomeação de intérprete é uma imposição para o tribunal, o Ministério Público e a polícia. O mesmo se diga quanto à natureza das restantes invalidades.
21 - As obrigações positivas impostas às polícias, ao M.P e aos tribunais implicam a revogação de todas as normas do direito nacional – existentes ou a existir - que sejam contrárias ao estabelecido nas Directivas e que consagrem imperativamente um regime comunitário comum. Aqui se incluindo um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado.
22 - Entende-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma “obrigação positiva” a onerar o Estado e proveniente de norma comunitária imperativa, levando necessariamente a considerar revogada a al. c) do nº 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo: 55/17.9GBLGS

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Processo Comum perante Tribunal Singular que corre termos no Tribunal de Faro – Lagos, 1 – foi acusada e condenada a cidadã alemã BB pela prática em autoria material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts. 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal:

- na pena de quarenta dias de multa à razão diária de seis euros, no montante total de duzentos e quarenta euros:
- na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses nos termos do disposto no art.º 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal;
- nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em meia unidade de conta nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa e 344.º, n.º 2, alínea c), 513º e 514.º, todos do Código de Processo Penal.
- mais determinou que, após trânsito, a arguida no prazo de dez dias procedesse à entrega da licença de condução de que seja titular e portadora na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, nos termos do disposto nos art.º 69º, nº 3 do Código Penal e 500º, nº 2 do Código de Processo Penal.

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Inconformada com uma tal decisão dela interpôs a arguida o presente recurso pedindo a sua procedência, com as seguintes conclusões, após convite à sua apresentação:

I – Desde a primeira intervenção no processo que a Recorrente refere expressa e inequivocamente que desconhece a língua portuguesa;
II – Não existe nos autos qualquer (cópia de) documento da Recorrente que não seja emitido pelas autoridades competentes do seu país de origem – Alemanha.
III – Que se colhe dos autos, de modo algum a Recorrente foi submetida a qualquer teste ou prova sobre a sua aptidão escrita ou oral de língua diferente da sua.
IV – A não notificação da acusação à Recorrente na língua alemã, preenche nulidade insanável. Para cúmulo do absurdo, mesmo tendo o Mm.º Juiz a quo um tradutor em audiência de julgamento PAGO pela Recorrente, nem assim deu a conhecer à Recorrente na sua própria língua de que factos e incriminações era acusada;
V – A não notificação da Arguida para o seu próprio julgamento em língua alemã, é igualmente omissão processual cominada com nulidade insanável.
VI – Considerando que o TIR que fizeram de conta que a Arguida prestou, não se encontra na língua alemã, obviamente que nunca se podia considerar a Arguida notificada com mera declaração de depósito em morada diferente da que esta declarou em audiência de Julgamento, em língua alemã.
V – A não entrega à Recorrente da toda a documentação da audiência de julgamento, como requerido oportunamente, dactilografada na sua própria língua e a expensas do Tribunal, também é cominado com nulidade insanável.
VI - Assim, são nulos e de nenhum efeito:
O TIR prestado, logo é nula a notificação da acusação e das designações de data para julgamento a que a Arguida faltou, Bem como os restantes actos comunicados à Recorrente em língua portuguesa. Tudo em conformidade com o disposto nos artigos 64.º n.º 1 al. d) e 119.º al. c), ambos do CPP. Assim não se entendendo,
VII – Torna tais normas inconstitucionais à luz do disposto nos artigos 13.º, 16.º n.º 2 (artigo 6.º n.º 3 al.s a e e) da CEDH) e 32.º todos da CRP.
VIII – Desde o momento da detenção até à prolação da sentença, todo o processado é nulo e de nenhum efeito nos termos do disposto no artigo 6.º n.º 3 al.s a e e) da CEDH.
Quanto ao mais, exactamente como se concluiu e requereu no articulado de alegações apresentado.

A recorrente havia formulado pedido como segue:

Tudo são razões para que Vossas Excelências, Venerandos Juízes-Desembargadores, revoguem os despachos com as referências 106314357 (quanto ao segmento “Não se verificam nulidades, excepções ou questões prévias ou incidentais de que importe conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa” – só faltou a arguida conhecer a acusação – que nem na língua portuguesa ficou depositada em qualquer receptáculo postal), 106919699, despacho proferido na acta do dia 11.04.2018 pág 2 e o despacho inacreditável com a referência 109742200, substituindo-os por outros que reconheçam o direito da Recorrente a conhecer todos os actos praticados no processo que lhe digam directamente respeito, em língua alemã, anulando-se todos os actos posteriores à prolação da acusação com a necessárias consequências legais, à cabeça, que se declare nulo o próprio despacho que recebeu a acusação para julgamento atendendo à manifeste a grosseira ausência processual da Arguida, de defensor e de intérprete da língua alemã.

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A Digna magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, pugnando para que seja negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a decisão recorrida, sem conclusões.

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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.


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B - Fundamentação:

B.1.a) – Resulta dos autos:

i. A arguida foi interceptada e detida em 06-05-2017, pelas 02:23 em Aljezur;
ii. Do auto consta: “O arguido percebe perfeitamente a língua portuguesa falada e escrita;
iii. É dada como tendo a nacionalidade alemã e portadora do passaporte nº … emitido, segundo ali se diz, em 23-02-2015 por Portugal;
iv. A sua constituição como arguida, TIR, a relação dos seus direitos, o auto de libertação, todos em português, estão assinados pela arguida;
v. Foi junta procuração passada a mandatário em 08-05-2017;
vi. Nessa mesma data entra requerimento onde se afirma que a arguida é cidadã alemã e é desconhecedora da lingua portuguesa e se solicita que sejam traduzidos para a língua alemã todas as “peças de expediente” que a arguida assinou, bem como do auto de notícia, certificado periódico do alcoolímetro e posteriores notificações;
vii. Tal requerimento foi indeferido por despacho do Sr. Procurador-Adjunto, também de 08-05-2017, com fundamento no disposto no artigo 92º do C.P.P.;
viii. Em 26-05-2017 foi deduzida acusação em processo abreviado e a arguida dela notificada em língua portuguesa (fls. 37-40 e 42);
ix. O processo seguiu a forma de processo comum perante tribunal singular a partir do despacho de 26-06-2017 que recebeu a acusação (fls. 49);
x. Por requerimento de 11-07-2017 a arguida vem informar que não foi notificada em lingua alemã e portanto, arguindo a nulidade do despacho lavrado nos ternos do artigo 311º do C.P.P., não se considera notificada;
xi. Por despacho de 20-09-2017 o tribunal recorrido indeferiu o requerido por constar do auto de notícia – e de despacho do Ministério Público já referido supra em vii – que a arguida “percebe perfeitamente a lingua portuguesa falada e escrita”;
xii. Com fundamento na não notificação, ao menos, da tradução da acusação a arguida deduziu incidente de recusa do Mmº Juiz subscritor do despacho de 20-09-2017;
xiii. Por acórdão de 21-12-2017, este Tribunal da Relação de Évora veio a recusar e considerar improcedente o dito incidente de recusa de juiz;
xiv. Na audiência de julgamento de 08-05-2018 e após a leitura da decisão condenatória a arguida requereu: “nos seja entregue cópia da gravação áudio da audiência de julgamento; requer que seja providenciada pelo Tribunal a transcrição e tradução das alegações finais proferidas pelo Ministério Público e pelo defensor da arguida a fim de lhe ser entregue; Por fim e atendendo a manifesto desconhecimento da língua portuguesa, que o fribunal providencie pela integral transcrição e tradução da sentença na língua da arguida a fim de a mesma lhe ser entregue, o que se requer.
xv. Nada opondo o Ministério Público o Mmº juiz lavrou despacho nos seguintes termos: “proceda nos precisos termos requeridos”.
xvi. Em 11-05-2018 o sr. escrivão notificou o mandatário da arguida – com guia anexa – para proceder ao pagamento da dita guia, quantia referente ao custo “das requeridas transcrição e tradução das alegações orais realizadas em audiência de julgamento”.
xvii. Em 24-05-2018 a arguida vem insurgir-se contra a dita emissão de guia – que indica ter um valor de 816 €;
xviii. Por conclusão com informação de 28-05-2018 o mesmo sr. escrivão vem indicar que a guia se refere a 4 UC por transcrição e 4 UC por tradução, por se não enquadrarem no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem “aprovada” (!!!) pela Lei 65/78;
xix. Por despacho de 07-06-2018 as pretensões da arguida – incluindo a pretensão de suspensão do decurso do prazo de recurso – foram indeferidas;
xx. A arguida interpõe recurso em 12-06-2018.

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B.2.a) - São estes os factos considerados provados pelo tribunal recorrido:

1) No dia 06/05/2017, pelas 02h23m, na Avenida …, em Aljezur, a arguida conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com matrícula …, com uma TAS de 1,397 g/l, deduzido o valor do erro máximo admissível da TAS de 1,47 g/l.
2) A arguida conhecia as características da referida viatura e do local onde conduzia, sabendo , também que tinha ingerido bebidas alcoólicas.
3) Admitiu que podia ter uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, não obstante, decidiu conduzir a viatura nessas circunstâncias.
4) A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei.
5) A arguida não tem antecedentes criminais.
6) É empresária e aufere um rendimento de cerca de 1.000 € mensais.
7) Reside na Alemanha.

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B.2.b) – Não há factos não provados.

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B.2.c) - O tribunal recorrido fundamentou a matéria de facto, do seguinte modo:

«Nas declarações da arguida que confirmou que em dada ocasião conduzia uma viatura e que foi interceptada e sujeita a exame e revelou a sua situação económica e social. No depoimento do agente autuante, militar da GNR, CC, que confirmou factos e sujeição da arguida a exame de alcool no sangue. A arguida exibiu passaporte. Exame de fls.15 e CRC de fls. 90.»

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Cumpre conhecer

As questões a abordar no recurso reconduzem-se a uma só origem, que é também a primeira questão a ser resolvida, o facto de a arguida ser alemã e não ter ocorrido interpretação e tradução de momentos e peças processuais para a sua língua. A partir daí peticiona a recorrente a declaração de nulidade – insanável – de vários actos processuais (acusação, TIR, notificação de data para julgamento e da não entrega de toda a documentação da audiência à recorrente).

A questão essencial é, como emerge cristalino, o saber das exigências de transposição de actos processuais para a língua da arguida, seja na forma oral, seja escrita. Depois e porque isso reveste natureza essencial, podendo mesmo revestir natureza prejudicial relativamente às restantes, saber o que poderá ser atingido por invalidade processual, qual a natureza desta e respectivas consequências.

Neste ponto das invalidades processuais um ponto interessante reside nos efeitos que as próprias Directivas – porque são várias – têm sobre o regime das invalidades processuais penais.

Naturalmente que neste desiderato nos deveríamos cingir ao objecto deste recurso, a interpretação/tradução de actos/documentos, isto é, à Directiva 2010/64/UE. No entanto não é possível abordar o tema sem ter em consideração o disposto na Directiva 2012/13/EU relativa à “informação em processo penal”


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B.2 – Observações iniciais.

Que nos revelam os autos?

Que a arguida tem nacionalidade alemã e possui um passaporte com numeração que nos parece ser muito semelhante à utilizada pelas autoridades alemãs mas que o auto nos diz ser emitido pelas autoridades portuguesas, que têm um sistema numérico radicalmente diferente. O que, tudo, naturalmente nos deixa na dúvida sobre tudo e reforça as dúvidas sobre o acerto do auto de notícia – como se verá infra.

Que a arguida foi interceptada e detida, assinou autos, incluindo o TIR, em língua portuguesa, foi notificada da acusação contra si deduzida em língua portuguesa, sendo cidadã alemã, notificada em português para julgamento e em audiência de julgamento foi ajuramentado intérprete (que ela afirma ter sido por si apresentado e pago, o que se desconhece em concreto, não obstante ser claro que o tribunal não o nomeou e nada pagou ao intérprete ajuramentado) que acompanhou toda essa audiência e que oralmente traduziu todos os actos em que a arguida teve intervenção pessoal, iniciando pela interpretação (no sentido de tradução oral) em alemão da acusação lida pelo Mmº Juiz, depois traduzindo o que pelo tribunal e restantes intervenientes era dito/perguntado à arguida, quer o dito por esta, sempre em língua alemã.

Que em todos os autos referidos como assinados pela arguida a GNR nem traduziu qualquer deles, nem lhe nomeou intérprete em qualquer momento.

Que no auto de notícia o elemento autuante da GNR fez constar o seguinte: “O arguido percebe perfeitamente a língua portuguesa falada e escrita”. Este “O arguido …” não é lapso nosso! Consta mesmo do auto nesses precisos termos. O que é esclarecedor de um comportamento pouco cuidado na redacção do mesmo e/ou da utilização de um formulário pré-existente.

Depois de várias chamadas de atenção ao Tribunal pela defesa quanto à nacionalidade da arguida e seu desconhecimento da língua portuguesa, sempre indeferidos, veio aquele a realizar audiência de julgamento sem que junto da arguida se procurasse saber do seu alardeado “perfeito conhecimento” da língua portuguesa, mesmo escrita. [1]

É patente que não houve preocupação antes da acusação em apurar/confirmar se a arguida sabia a língua portuguesa. Aliás, nem tal ocorreu em audiência de julgamento quando ela prestou declarações mediante intérprete, nem durante a recolha de depoimento do elemento da GNR que lavrou o auto, não tendo o tribunal procurado saber do acerto da expressão “O arguido percebe perfeitamente a língua portuguesa falada e escrita”, tendo mesmo impedido a defesa de o fazer (como claramente se deduz desse depoimento), nem se confirmou a origem do passaporte.

Nem se indagou como pôde o elemento da GNR apurar do domínio “perfeito da língua portuguesa escrita” pela arguida numa detenção com causa em condução com excesso alcoólico! No mínimo, por garantia de direitos e também por curiosidade, impunha-se apurar das metodologias aplicadas ao caso concreto, já que o acto, podendo ter simples explicação, também poderia abrir a porta a brilhante esclarecimento ou inovação de monta com óbvios proveitos formativos quanto à forma de apurar como uma condutora alemã alcoolizada tem um domínio escrito do português e isso é facilmente apercebido pelo agente policial.

Não houve a mínima preocupação de entidade policial, Ministério Público e tribunal em saber dos pressupostos de facto que permitiriam saber se era ou não caso de dar cumprimento às exigências de cautela na plena percepção dos actos e documentos.

Perante tudo isto e sendo certo que não é seguro que a arguida nada saiba de português, mas mantendo-se bastas dúvidas que conheça a língua no sentido de a dominar, a questão tem resposta clara, mesmo se nos situarmos apenas no âmbito do único esteio legislativo usado pelo tribunal recorrido, o artigo 92º do C.P.P.. Ao tribunal era imposto que cumprisse a obrigação positiva que sobre si impende no sentido de garantir a interpretação/tradução dos actos e documentos relevantes.

Isto apesar de ser claro que junto do tribunal recorrido existe quem tenha uma clara noção de que existe uma Convenção Europeia dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia da República portuguesa (!), pelo menos a crer na conclusão com informação a esclarecer os magistrados (!!!) que a Convenção não era aplicável ao caso dos autos, pelo menos em termos de responsabilidade pelas custas, o que acarretou consequências para a arguida.

Estas e outras questões concretas não fazem esquecer uma realidade central: o artigo 92º do C.P.P. é uma norma claramente insuficiente para abarcar a realidade processual em todas as vertentes hoje determinantes. Designadamente o facto de o artigo ter sido pensado e concretizado numa altura em que o ordenamento processual penal português era visto como exclusivo na previsão das normas processuais aplicáveis e excludente de qualquer influência externa que, então, já se deveria fazer sentir porquanto já vigentes as obrigações internacionais decorrentes da subscrição da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. É claro, claríssimo, que a previsão legislativa portuguesa quanto a esta matéria é fraquíssima e este artigo 92º é claramente insuficiente para regular toda a matéria que a prática judiciária já nos apresentou. Infra o confronto com os mínimos impostos pela Directiva irá tornar claro o que ora se afirma.

Mas face à sua previsão limitada pode afirmar-se que a ordem jurídica não prevê e regula o caso dos autos? Só assim será se pensarmos que a ordem jurídica portuguesa se limita a ser o artigo 92º C.P.P. E é nesta senda que tem ido a quase totalidade da jurisprudência portuguesa, muito apegada à letra da lei e aos costumes estabelecidos. E a interpretação literal a impor-se. [2]

Neste ponto distingue-se a jurisprudência do T.E.D.H., cujo contributo de monta - ao sabor da realidade de cada caso concreto – se foi construindo ao longo dos anos e que se impõs, desde a sua vigência na ordem jurídica em 1978, aos tribunais portugueses.

Mas um ponto prévio pode ser já realçado com alguma jocosidade: o artigo 92º do C.P.P. e, logo, o ordenamento processual penal português, ainda não se tinha apercebido da necessidade de distinguir as figuras do intérprete e do tradutor.


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B.3 – Da história local muito breve e lacunar das línguas no processo.

Um pouco de história legislativa ajuda-nos a evitar afirmar que a Lei nº 65/1078 ”aprovou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (!) e indica-nos as razões da sua existência e, de extrema importância prática, o seu valor na hierarquia das fontes de Direito. [3]

No pós 2ª guerra Mundial e na sequência da ideia inicial de Winston Churchill de criação de uma ONU europeia, Bélgica, França, Holanda, Luxemburgo e Reino Unido, celebraram em Março de 1948 o Tratado de Bruxelas, a eles se juntando depois outros cinco países, Dinamarca, Irlanda, Itália, Noruega e Suécia. Todos assinaram em Londres o Estatuto do Conselho da Europa em 5 de Maio de 1949.

O Conselho da Europa tinha entre os seus órgãos, a Assembleia Parlamentar e o Comité de Ministros.

Em 7 de Agosto de 1950, o Comité de Ministros aprovou um projecto de convenção que, após negociações para encontrrar um equilíbrio entre as posições da Assembleia Parlamentar e alguns Estados, apresentou um texto final que foi assinado em Roma a 4 de Novembro de 1950.

A Convenção com o nome de «Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais», abreviadamente Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entrou em vigor no dia 3 de Setembro de 1953 nos indicados países, em função das ratificações depositadas. Portugal, por essa altura não reunia, naturalmente, os requisitos para ser aceite no Conselho da Europa. Só após a aprovação da Constituição de 1976 e a realização de eleições livres, se tornou membro do mesmo no dia 22 de Setembro de 1976 ao depositar o seu instrumento de adesão.

Portugal assinou a Convenção em Estrasburgo a 22 de Novembro de 1976. A Convenção foi aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13-10. E aqui era imposto recordar a função da ratificação e a existência e o papel do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa na recepção do direito internacional na ordem interna portuguesa. Isto é, em 1978 não houve a “aprovação da Convenção”, sim a aprovação da adesão de Portugal à dita.

O instrumento de ratificação foi depositado no dia 9 de Novembro de 1978, pelo que a partir daquela data, a Convenção passou a estar em vigor em Portugal, como se constata no Aviso nº 1/1979, Série I de 1979-01-02:

«Por ordem superior se torna público que em 9 de Novembro de 1978 o Representante Permanente de Portugal junto do Conselho da Europa depositou junto do Secretário-Geral daquela Organização o instrumento de ratificação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4 de Novembro de 1950, tal como emandada pelo Protocolo n.º 3, (…), e pelo Protocolo n.º 5, (…), do Protocolo adicional, de 20 de Março de 1952, (…), do Protocolo n.º 2, (…) e do Protocolo n.º 4, (…).»

Na hierarquia das fontes de direito, a doutrina (e a jurisprudência) defende maioritariamente que a Convenção assume uma posição intermédia entre a lei constitucional e as leis ordinárias. Desta forma vigora na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, logo com “valor superior às leis ordinárias”, face ao teor do artigo 8º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. [4] Ou seja, no confronto com o C.P.P. prevalece a C.E.D.H.

E a Convenção, é sabido e já supra se aflorou o tema, integra não só o texto da Convenção e seus protocolos, também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelo que o estudo e ponderação dessa jurisprudência é sequência lógica da obrigação assumida pelo Estado português, implicando a obrigação de os magistrados nacionais terem presentes as “linhas evolutivas” dessa jurisprudência.

E nesta matéria de interpretações/traduções em processo penal as abordagens históricas variam, também, em função da cultura cívica dos países signatários. No nosso caso houve várias épocas históricas, desde a pré-história à actual idade contemporânea, passando pela idade média, todas elas se caracterizando pela menorização da interpretação e desprezo pela tradução escrita.

Até há relativamente pouco tempo vivíamos nós, em Portugal, na pré-história da compreensão do tema, ligando pouco a aspectos basilares de comunicação da(s) lingua(s) a intervenientes processuais, designadamente os arguidos, com o entendimento de que apenas o artigo 92º do C.P.P. regia este tema e com uma praxis que se limitava à nomeação de intérprete para a audiência de julgamento.

Esse período, ainda com resquícios vivos - como se confirma facilmente por estes autos - teve tendência a esbater-se no começo deste século - início de uma nova idade - em geral de forma tímida e receosa, como se a nomeação de intérprete fosse coisa impura no processo português e a tradução de actos processuais um “incómodo”.

E é assim que na primeira década deste século começam a surgir arestos tratando o tema de forma diversa ou mesmo contraditória. Mas tratando!

De nossa banda e nessa idade média, entre outros, relatámos dois acórdãos que fizeram agora dez e onze anos, no seguinte sentido:

- Acórdão de 06/26/2007 (proc. 848/07-1):

I – A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional e consagra, como concretização do princípio do processo equitativo, que o arguido tem, como mínimo (“minimum rights”), o direito a ser informado, no mais curto prazo compatível com o direito de defesa, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza da causa da acusação contra ele formulada.
II – Porque o conhecimento do teor da acusação é elemento essencial para o exercício de todas as garantias de defesa, não basta a mera existência formal de um intérprete nomeado nos autos para que aquele direito se considere realizado.
III – Porque o arguido tem um direito pessoal, concreto e efectivo à notificação da acusação em língua que entenda, não basta a simples notificação do defensor nomeado para que aquele direito se considere concretizado.
IV – Direito que apenas se considera efectivado com a notificação da acusação integralmente traduzida por escrito.
IV - É processualmente inexistente a notificação de uma acusação redigida em português a uma arguida que apenas entende o mandarim.

- Acórdão de 04/01/2008 (331/08-1):

“A previsão do artigo 113º, nº 9 do Código de Processo Penal, devidamente conjugado com a letra e espírito do artigo 6º, nº 3, al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, exigem, no caso de arguido que não entenda a língua portuguesa, que sejam devidamente traduzidas as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil.” [5]

Num desses acórdãos argumentávamos, iniciando por um princípio de igualdade de condições entre pessoas com diferentes inserções linguísticas (imagine-se como exemplo – o que é sempre salutar - um magistrado português na Alemanha ou na China a ser acusado em alemão ou mandarim sem tradução da acusação), princípio que parece levantar algumas dificuldades de percepção, pelo que se repete:

«Como afirma Irineu Cabral Barreto “a informação deve ser feita de modo a assegurar a um acusado que não compreende a língua utilizada no processo as mesmas possibilidades de defesa de um outro que a compreende”.[6]
E este direito a ser informado em língua que o arguido perceba é um direito concreto e efectivo, como se afirma no acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Kamasinski v. Áustria, não bastando às autoridades judiciárias a mera nomeação de intérprete, mas incumbindo-lhes o controle ulterior sobre o valor do acto.[7] (…)
Não basta, pois, a existência de uma intérprete nomeada para acto passado que, para mais, não foi notificada de que a acusação havia sido deduzida e de que deveria proceder à respectiva tradução e que, revelam os autos, está convencida de que terminaram as suas funções. (…)
Como se afirma no acórdão Broziceck v. Itália (de 19-12-1989) e por referência a Mr. Georg Brozicek, cidadão alemão, ”the … judicial authorities should have taken steps to comply with it so as to ensure observance of the requirements of Article 6 § 3 (a) (art. 6-3-a), unless they were in a position to establish that the applicant in fact had sufficient knowledge of Italian to understand from the notification the purport of the letter notifying him of the charges brought against him”.
E, se estes acórdãos não determinam a necessidade de uma tradução escrita do acto (acusação), não deixam de afirmar (Kamasinski v. Áustria) que a al. a) do nº 3 do artigo 6º da Convenção reforça a necessidade de colocar um extremo cuidado na notificação da acusação ao interessado, pois que a acusação tem um papel determinante nos procedimentos penais (par. 79 do acórdão). (…)»

Numa versão mais mitigada para o processo sumário, também o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 03/07/2017 (Proc. 117/16.0GA0LH.E1, rel. Desemb. Ana Barata de Brito) sumariava que:

I - Devendo ser sempre assegurada a compreensão efectiva, pelo arguido, dos factos e crimes imputados na acusação, o CPP, a CRP e a CEDH não exigem, no entanto, uma tradução escrita da acusação formulada contra acusado estrangeiro.
II - Mostrando-se a tradução oral, que em concreto foi assegurada, compatível com essa finalidade face à simplicidade da acusação, e não resultando do processo que o arguido estrangeiro não tenha compreendido os factos e os crimes imputados, não integra nulidade a não entrega de tradução escrita da acusação.

Aceitamos que a tradução escrita se não imponha, nesta época histórica de aplicação da lei, aos processos sumários quando o julgamento é realizado de imediato, dada a habitual simplicidade das peças processuais neste tipo de procedimento e/ou da inoportunidade para tal face à celeridade de um expedito julgamento sumário nos termos do artigo 382º, nº 2 do C.P.P.. Mas se é deduzida acusação, mesmo que em processo sumário fora desse específico caso, a tradução impõe-se.[8]

Mas, note-se, estamos sempre – nesta “idade média” - a fazer apelo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e sua jurisprudência, usando-as para interpretar o nosso Código de Processo Penal. Isto porquanto foi precisamente o labor de concretos juízes no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que sedimentou um entendimento favorável aos acusados na leitura de um dos “minimum rights” do nº 3 do artigo 6º daquela Convenção, aquele que estatui que o acusado tem, como mínimo, o direito a [al. a)]“Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada” e a “Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo” [al. e)].

Neste final de idade média jurídica neste tema era uma imposição concluir que já estava bastamente consagrada a obrigação positiva que recai sobre qualquer tribunal nacional de se assegurar que o arguido percebe a língua e, em caso negativo, de lhe assegurar que percebe os actos e documentos em língua que domine.[9]

Como se afirmava no supra citado acórdão Broziceck v. Itália de 1989 «… the … judicial authorities should have taken steps to comply with it so as to ensure observance of the requirements of Article 6 § 3 (a) (art. 6-3-a), unless ... » (traduzindo livremente, “as autoridades judiciais devem dar passos positivos no sentido de assegurar o cumprimento dos requisitos do art. 6º § 3, a) da C.E.D.H), a não ser que…”).

Igualmente sem grande tumulto se deveria ter já concluído que a interpretação de actos em benefício do arguido se impunha - de forma generalizada desde o início do iter do processo – pelo menos quanto aos actos essenciais à sua defesa - factos, provas, acusação, sentença (em função do direito ao recurso) -, variando as soluções práticas ao sabor do caso concreto e com evidente falta de sistematização.

A necessidade de tradução escrita de actos, no entanto, continuava (continua?) a criar alvoroço.

O enquadramento jurídico do tema, entretanto, alterou-se pelo que se impõe que passemos à época contemporânea e deixemos para trás as idades iniciais, com mais ou menos luzes, época contemporânea que se inicia com a vigência de várias Directivas que se torna necessário conhecer bem.


*

B.4 – Quid iuris?

Os factos ocorreram em 6 de Maio de 2017. Quid iuris?

Aqui a expressão tem um sentido literal, o de saber qual a norma ou conjunto de normas que será aplicável ao caso. E não nos parece que seja o artigo 92º do C.P.P. a principal norma aplicável.

E a resposta tem que se iniciar com o disposto no nº 2 do artigo 82º (Ex artigo 31º TUE) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Reza o cânone:

2. Na medida em que tal seja necessário para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça, o Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de diretivas adotadas de acordo com o processo legislativo ordinário, podem estabelecer regras mínimas. Essas regras mínimas têm em conta as diferenças entre as tradições e os sistemas jurídicos dos Estados-Membros.
Essas regras mínimas incidem sobre:
a) A admissibilidade mútua dos meios de prova entre os Estados-Membros;
b) Os direitos individuais em processo penal;
c) Os direitos das vítimas da criminalidade;
d) Outros elementos específicos do processo penal, identificados previamente pelo Conselho através de uma decisão. Para adotar essa decisão, o Conselho delibera por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu.
A adoção das regras mínimas referidas no presente número não impede os Estados-Membros de manterem ou introduzirem um nível mais elevado de proteção das pessoas.

Depois assume relevo histórico e explicativo a Resolução do Conselho de 30 de Novembro de 2009 sobre um Roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais - (2009/C 295/01) – homologando no seu ponto 2 um “Road Map”, um “Roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais” (incluido no Anexo à Resolução) como base para a acção futura. Acentuou-se que os direitos incluídos, “susceptíveis de virem a ser completados com outros direitos, são direitos processuais fundamentais e que deve ser dada prioridade, nesta fase, à acção centrada nesses direitos”.

A “Medida A” desse roteiro foi definida sob a epígrafe “Tradução e interpretação”, adiantando-se breve explicação: “É indispensável que o suspeito ou acusado possa compreender o que se passa e se possa fazer entender. Se o suspeito ou acusado não falar ou não compreender a língua do processo, precisará de um intérprete e da tradução das peças processuais mais importantes. Deverá dar-se também especial atenção às necessidades dos suspeitos ou acusados com deficiências auditivas”. [10]

Tais medidas viriam a concretizar-se – cada uma delas, com excepção natural do Livro Verde – numa Directiva comunitária, sendo que a primeira medida deu origem à primeira Directiva, a nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal – (JOUE L 280/1, de 26-10-2010). É claro que a Directiva se encontra enquadrada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pela Carta dos Direitos Fundamentais da união Europeia.

Assume papel igualmente relevante outra Directiva constante do “Roteiro” como Medida B, a Directiva nº 2012/13/EU, relativa ao direito à informação em processo penal. Assim, à Directiva de 2010, com o seu clausulado bastante pormenorizado, acresce a “Directiva Informação” de 2012. Aquela – e esta nota assume relevo essencial – estabelece em simultâneo:

- um catálogo de “minimum rights” de compreensão da linguagem falada e escrita no processo para qualquer cidadão confrontado com qualquer tribunal no espaço comunitário; e

- um conjunto de obrigações mínimas comuns vinculando os Estados na disponibilização do direito à informação/interpretação/tradução de forma gratuita na UE.

Atente-se que a Directiva é de 20-10-2010, a sua publicação ocorreu no JO em 26-10-2010, a sua entrada em vigor ocorreu, nos termos do seu artigo 11º, no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação (isto é, 15-11-2010) e o prazo final de transposição para Portugal ocorreu em 27-10-2013 – artigo 9º da Directiva. (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:32010L0064).

Ou seja, a Directiva de 2010 tem aplicação directa em Portugal desde 28-10-2013.

A Directiva nº 2012/13/EU tem, igualmente, aplicação directa em Portugal desde 02-06-2014.

E os factos ocorreram em 06/05/2017. Quase quatro anos deveriam ser tempo suficiente de adaptação, sendo certo que o alerta existe desde 2010.

Face à posição assumida por Portugal de não transposição da Directiva (das Directivas, aliás) naturalmente que o Estado português pode ser demandado para ressarcir danos daí decorrentes, segundo jurisprudência comunitária de há muito estabelecida e com a clara definição dos três requisitos do direito à reparação. Como se sabe, o Tribunal de Justiça confere aos particulares a possibilidade de, sob certas condições, obterem uma indemnização por atraso ou deficiente transposição de uma diretiva (Decisão conjunta no processo C-6/90 e C-9/90, Frankovich e Bonifaci v. Italia).

Para além do direito à reparação coloca-se a questão de saber se a Directiva tem efeito directo isto é, se regula directamente o caso sub iudicio, no sentido de saber se a cidadã alemã pode invocar a aplicabilidade directa da mesma perante qualquer tribunal em território comunitário.

Obviamente não nos perderemos aqui em explicações de Direito Comunitário, que se supõe sabido, apenas nos limitaremos a constatar a existência de três realidades/necessidades:

a) - constatar que existe uma Directiva não transposta por o Estado português o ter considerado desnecessário;

b) - apurar do acerto da invocada desnecessidade;

c) - concluir pela possibilidade de aplicabilidade directa da Directiva – e em que termos – por via de efeito directo vertical.

A pergunta em abstracto é, naturalmente, retórica já que o efeito directo está reconhecido de há muito pelo clássico acórdão Van Gend & Loss v. Administração Fiscal neerlandesa, de 05-02-1963 (com o seu cinquentenário celebrado há já cinco anos), cuja decisão sob 1 elucidou:

«O artigo 12.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia produz efeitos imediatos e cria na esfera jurídica dos particulares direitos individuais que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar.»

Trata-se, como é sabido, de uma criação jurisprudencial (do Tribunal de Justiça) que tem posteriores arestos densificadores.

Também se sabe que estes primeiros acórdãos sobre a aplicabilidade directa – associados ao “primado do direito comunitário” igualmente reconhecido jurisprudencialmente (acórdão Costa/Enel de 1964) – se referiam ao chamado “direito comunitário originário” (Tratados). Nós estamos agora tratando de Directivas que se incluem na categoria “direito comunitário derivado” e “não originário”.

Este ponto, no entanto, está já resolvido de há muito pela jurisprudência comunitária que fez a extensão do efeito directo vertical às Directivas (entre outros os acórdãos de 10 de abril de 1984, von Colson e Kamann, 14/83; acórdão de 19 de junho de 1990, Factortame, [11] C-213/89; de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer, [12], C397/01 a C403/01; de 19 de janeiro de 2010, Kücükdeveci, C555/07; e de 7 de agosto de 2018, David Smith contra Patrick Meade, processo C-122/17 [13]).

E, não transposta a Directiva – sempre indício de violação de disposição de direito comunitário –, que condições devem existir no caso concreto para que ocorra esse efeito directo vertical (perante os poderes públicos, aqui o tribunal e o Estado português)?

Sendo claro que uma Directiva, em princípio, só produz efeitos após a sua transposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça, hoje da União Europeia, considera que uma directiva que não foi objecto de transposição pode produzir directamente determinados efeitos, caso:

a) não tenha sido efectuada a sua transposição para a legislação nacional ou tenha sido objecto de transposição incorrecta;

b) as disposições da directiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas;

c) as disposições da directiva confiram direitos a particulares;

d) Esteja esgotado o prazo de transposição.

Sempre que sejam preenchidas estas condições, os particulares podem invocar a directiva junto de um tribunal. E os três últimos requisitos estão verificados no caso. Isso é indubitável e dispensa maiores concretizações argumentativas. A Directiva manifesta um espírito legislativo claro, preciso e incondicional, confere direitos a particulares e esgotou-se o prazo de transposição.

Resta saber se a não transposição pelo Estado português se justificava.

Para efeitos de enquadramento no Direito Comunitário persiste uma norma no ordenamento jurídico português (art. 92º do C.P.P.) insuficiente para acobertar o mínimo dos propósitos reguladores da dita Directiva. Acresce uma prática judiciária frontalmente contra a letra expressa da dita Directiva nos seus poucos artigos e um desprezo quase total dos considerandos da mesma (e eles são 34, os relevantes).

Nesta área, é sabido que o tribunal europeu e o T.E.D.H dão o devido relevo à prática judiciária tal como ela resulta da interpretação do direito interno realizada pelos tribunais do Estado-Membro. Isto é, não basta a “law in books”, é essencial acrescentar-lhe a “law in action”.

E por isso se constata a falência da previsão normativa no direito interno, já que a pobreza de previsão do artigo 92º do C.P.P. o limita à nomeação de intérprete para a intervenção activa do arguido. E pouco mais! O preceito não prevê sequer que ao arguido seja oralmente traduzida a acusação ou que esta lhe seja lida na sua língua materna. A prática judiciária é que supre tal falha legislativa.

Mais, a previsão da tradução de documentos limita-se aos documentos apresentados em língua estrangeira existentes no processo e sem tradução autenticada.

E hoje ainda há quem não conceba o básico na interpretação do artigo 6º, nº 3, als. a) e e) da Convenção, nem pareça aperceber-se da existência de uma Directiva vigente vai para vários anos, concretizando uma prática que contraria frontalmente os mínimos impostos desde 2010 pela citada Directiva.

E o que afirmamos não é que não nos parece que seja o artigo 92º do C.P.P. a principal norma aplicável ao caso dos autos. Seguramente que hoje o artigo 92º do C.P.P. não joga qualquer papel de relevo no caso sub iudicio. O artigo 92º do C.P.P é hoje um resquício pobre de uma época passada.

A não transposição só se tornaria justificável caso se entendesse que os tribunais portugueses já haviam assumido em pleno o regime resultante da jurisprudência do T.E.D.H através de interpretação de normas do ordenamento jurídico português que dispensasse uma transposição que seria mero acto formal, face à prática jurisprudencial assente e geral.

Mas um ou outro aresto lavrados no passado não podem ser tidos como interpretação assente e prática generalizada resultante de um acervo de normas consensuais. E num conjunto já alargado de decisões jurisprudenciais vindas da década de noventa que exigem uma norma explícita para concluir o que é óbvio (a expressão “não há norma que preveja…” é reveladora de uma escola de direito que recusa o pensamento jurídico) leva-nos a concluir que houve excesso de confiança do estado português quando declarou que não era necessária a sua transposição. [14]

Ou seja, estão verificados todos os requisitos para a aplicabilidade directa da Directiva nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010. Há, pois, efeito directo vertical nas duas citadas Directivas.[15]

Desnecessário se torna, portanto, fazer apelo a um regime de “interpretação conforme” (o dito “efeito indirecto vertical”) à sombra do acórdão Pupino do tribunal europeu. É recurso desnecessário, dada a aplicabilidade imediata quanto aos mínimos impostos pelas directivas e só será justificável na interpretação normativa fora do campo dos “mínimos comunitários” [16]

Aqui, na nossa situação de facto, deparamo-nos com um Estado comunitário, o português, personificado na GNR, no M.P. e no tribunal, que desprezou a nomeação de intéprete nos actos policiais e a concessão de tradução de despachos essenciais - os actos processuais praticados na detenção e em inquérito e a acusação - só na audiência de julgamento ocorrendo a ajuramentação de intérprete trazido pela arguida e muito provavelmente por esta pago, que traduziu verbalmente em lingua alemã o teor da acusação e a acompanhou nas declarações.

Destarte concluímos que não houve a mínima preocupação em saber se a arguida sabia português (aliás, o artigo 92º do C.P.P. fala em “domínio da língua”, o que espantosamente está de acordo com a jurisprudência do T.E.D.H que estabelece como imperativo determinante a possibilidade de o arguido se expressar, entender e fazer-se entender na língua do processo), já que o teor do auto de notícia lavrado pelo soldado da GNR levantava muitas dúvidas sobre o que de lá constava e o procedimento do tribunal recorrido acaba por ser antinómico pois que em audiência de julgamento acaba por se contradizer ao aceitar a intervenção de intérprete, que sempre seria desnecessário se a arguida “dominasse” a língua portuguesa.

Mas, principalmente, o tribunal (assim como a GNR e o Ministério Público, que a isso também estão obrigados) não acautelou o seu dever de actuação para garantir que a arguida percebia os actos processuais em que intervinha, nem analisou o acerto dos actos passados no inquérito.

Porque é sabido que a jurisprudência do T.E.D.H. e esta Directiva obrigam as autoridades nacionais a dar “positive steps” no sentido de assegurar o direito, o certificar que os actos do processo eram percebidos. São as chamadas “obrigações positivas”, o que na Directiva também passa pela assunção do dever de assumir “concrete measures” em vários pontos, designadamente na qualidade da interpretação e/ou tradução.


*

B.5.a) – A Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal.

Analisemos de forma sucinta a supra referida Directiva, que apresenta novidades de monta para quem entenda – e apenas para quem entenda - que o artigo 92º do C.P.P. é suficiente para regular, hoje, o entendimento da língua do processo por quem a não domina.

Desde logo a Directiva 2010/64/UE consagra dois direitos conceptualmente distintos, provenientes de uma mesma intenção: o direito à interpretação e o direito à tradução, englobados sistemáticamente num só direito. O nº 1 do artigo 1º é de uma cristalina simplicidade: «A presente directiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.» A funcionalidade - o perceber a linguagem - como elemento central, abstraindo de conceptualizações.

E aqui se nota a primeira e clamorosa insuficiência do artigo 92º do C.P.P.: este preceito não percebeu sequer, nem acautelou ainda hoje, a segunda vertente do direito, a tradução, porquanto nem se apercebeu da sua imperiosa necessidade para os actos processuais (limitando-o à tradução para português de documentos em língua estrangeira), o que ocorreu igualmente entre nós na praxis judiciária.

Só uma interpretação das necessidades impostas pela jurisprudência do T.E.D.H e a letra do artigo 113º, nº 10 (anterior nº 9) do C.P.P., a exigir a notificação pessoal ao arguido de certos actos processuais, tornava clara, a quem o quisesse entender, a óbvia necessidade de traduzir os mesmos actos.

Mais, para nós portugueses muito mais, a definição clara da aplicabilidade/exigibilidade do acautelar do direito ao longo de todo o iter processual é algo de essencial, como o presente processo demonstra, pois que a arguida só em audiência de julgamento teve intérprete. Hoje e face às Directivas ditas de “garantia de direitos” tal situação desde a detenção é inaceitável, processualmente abusiva. Já o era, mas agora está dito em letra de lei!

Ou seja, não podemos descansar na prática habitual de apenas em audiência ser nomeado intérprete ao arguido. A previsão legal é agora clara e abrangente, abrangência que não se verificou nestes autos: desde o início e até ao termo do processo.

Estatui o nº 2 do mesmo preceito que tal direito “é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infracção penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infracção, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado”.

E se é certo que até hoje se pode ver na praxis uma maior aceitação de intervenção de intérprete durante a audiência de julgamento, a fase anterior ao julgamento, designadamente a fase de investigação policial, revela um total desprezo pela nomeação de intérpretes na grande maioria dos processos vistos. Ou, ao menos, se a prática existe não é formalizada em auto.

A primeira face do direito - a interpretação - está vertida de forma suficiente no artigo 2º da Directiva, matéria que nos dispensamos de tratar com maior atenção por ser claro o texto da norma. Trata-se então e agora de mera interpretação literal. Apenas salientamos para o caso concreto os “positive steps” que o tribunal recorrido (e a GNR e o M.P.) deveria ter dado no sentido de confirmar se a arguida necessitava de intérprete, como decorre dos nsº 4 e 5, e de assegurar a qualidade da interpretação (nº 6) do citado artigo 2º.

Do texto do artigo 2º - Direito à interpretação – salientamos:

1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.
2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal directamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.
4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.
5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo. (…)

E os considerandos 21), 22) e 24) da mesma Directiva são claros e explícitos:

(21) Os Estados-Membros deverão assegurar a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete. Tal procedimento ou método pressupõe que as autoridades competentes verifiquem por quaisquer meios adequados, designadamente a consulta do próprio suspeito ou acusado, se este fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.
(22) A interpretação e a tradução previstas na presente directiva deverão ser disponibilizadas na língua materna do suspeito ou acusado ou em qualquer outra língua que ele fale ou compreenda, a fim de lhe permitir exercer plenamente o seu direito de defesa e a fim de garantir a equidade do processo.
(24) Os Estados-Membros deverão assegurar a possibilidade de controlar a adequação da interpretação e tradução disponibilizada quando as autoridades competentes forem formalmente requeridas em casos concretos.

O que nós podemos garantir nestes autos é que apenas o Mmº Juiz do tribunal recorrido assegurou parte dos direitos em audiência – algo que foi desprezado pela GNR e M.P. nas fases anteriores – mas não assegurou a nomeação de intérprete para as comunicações entre arguido e advogado e a gratuitidade dos actos de “interpretação”, nem permitiu pôr em prática qualquer procedimento para apurar da necessidade da interpretação e/ou tradução desde o início do processo.

E se um procedimento formal se torna absolutamente essencial nas esquadras de polícia – e aqui basta ir “buscar inspiração” ao que já fazem os britânicos há muito tempo. [17] [18]

Mas não se vê que no inquérito sob directa direcção do Ministério Público – e apenas - e na audiência de julgamento sob a autoridade directa do juiz tal “procedimento” seja necessário. O requerimento, a reclamação e o recurso interlocutório são procedimentos suficientes.

Mesmo em fase de julgamento se impunha que se inquirisse a arguida e a testemunha sobre o acerto da decisão de deixar correr todo o inquérito sem a devida interpretação (tradução oral), se necessária.

Já antes da Directiva o TEDH havia determinado no processo Cuscani v. Reino Unido (Queixa nº. 32771/96) em acórdão de 24-09-2002, que tal tarefa (um “ónus”, lhe chama o tribunal) incumbe ao juiz que preside ao julgamento, o «último guardião da “fairness” do processo» (não há versão portuguesa):

«38. (…) However, in the Court's opinion the verification of the applicant's need for interpretation facilities was a matter for the judge to determine in consultation with the applicant, especially since he had been alerted to counsel's own difficulties in communicating with the applicant. It is to be noted that the applicant had pleaded guilty to serious charges and faced a heavy prison sentence. The onus was thus on the judge to reassure himself that the absence of an interpreter at the hearing on 26 January 1996 would not prejudice the applicant's full involvement in a matter of crucial importance for him. In the circumstances of the instant case, that requirement cannot be said to have been satisfied by leaving it to the applicant, and without the judge having consulted the latter, to invoke the untested language skills of his brother.
1. It is true that the conduct of the defence is essentially a matter between the defendant and his counsel, whether counsel be appointed under a legal aid scheme as in the applicant's case or be privately financed (see the Kamasinski v. Austria judgment of 19 December 1989, Series A no. 168, pp. 32-33, § 65; the Stanford v. the United Kingdom judgment of 23 February 1994, Series A 282-A, p. 11, § 28). However, the ultimate guardian of the fairness of the proceedings was the trial judge who had been clearly apprised of the real difficulties which the absence of interpretation might create for the applicant. It further observes that the domestic courts have already taken the view that in circumstances such as those in the instant case, judges are required to treat an accused's interest with “scrupulous care” (see paragraphs 32 and 33 above).»

*

B.5.b) – Relativamente à tradução existiu sempre – continua a existir - uma clara resistência à sua aceitabilidade, como se constata na prática judiciária. Essa resistência terá várias explicações simples de entender mas que no caso não relevam. Importa é definir o regime que passou a estar literalmente vigente desde o momento em que o efeito directo vertical da Directiva se impôs. A literalidade nos valha!

Repisa-se, até aqui valiam como fontes da melhor interpretação o artigo 113º, nº 10 do C.P.P. e a jurisprudência do T.E.D.H.. Nesse cenário o artigo 92º do C.P.P. era uma quase inutilidade. Na nossa leitura já era possível antes da vigência da Directiva e fazendo apelo ao actual nº 10 da artigo 113º do C.P.P. concluir que os actos ali previstos deveriam ser objecto de tradução – v.g. os supra citados acórdãos de 2007 e 2008.

A nova directiva – no que à tradução diz respeito – é clara ao estabelecer um catálogo de actos que devem ser objecto de tradução, definidos como “direitos mínimos” – à imagem sistemática dos minimum rights do artigo 6º, nº 3 da C.E.D.H. – sendo o artigo 3º da Directiva (“Direito à tradução dos documentos essenciais”) muito claro no seu nº 1 quando determina que os “Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.

Dois conceitos sobressaem nesta norma, o “lapso de tempo razoável” e os “documentos essenciais”. Aqui não está em causa o primeiro pois que nenhum foi posto, em qualquer tempo, à disposição da defesa. O segundo sim! Daí o ser fundamental apurar o que sejam “documentos essenciais”.

A Directiva usa dois métodos, a definição do patamar mínimo de casos a exigir tradução e a formulação de uma “cláusula geral”, a noção de documento essencial onde outros documentos se podem acobertar.

O primeiro método resolve-se pela imediatez da leitura do nº 2 do artigo 3º, onde se incluem as “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”, descrição naturalmente não exaustiva. [19]

O segundo método, já anunciado pela expressão constante do nº 2 do artigo 3º “Entre os documentos essenciais contam-se…”, vem formulado na parte final do nº 1 do preceito como “todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.

Esta “cláusula geral” introduz no processo penal português uma metodologia pouco habitual na medida em que apela a um juízo casuístico e de bom senso para acautelar a equidade do processo, como se patenteia no nº 3 do normativo (“As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito.”). É aqui manifesta a busca - partindo do geral - de uma adequação casuística, fugindo ao esquematismo do nosso pensamento jurídico formalão, ultra germanizado e muito tributário do tipo de pensamento das escolas de direito administrativo lusas.

E com a maleabilidade suficiente para permitir que tal tradução, suposta como escrita, seja substituída por uma tradução oral – nº 6 do artigo 3º - ou objecto de renúncia esclarecida (nº 7 da norma) na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo.

Assim, temos aqui um novo catálogo, sistematicamente análogo ao dos “minimum rights”, concretizado num número mínimo de documentos que a ordem jurídica comunitária entendeu adequado estabelecer de forma expressa para o espaço da União Europeia, suficientemente maleável para poder reconhecer como muito relevantes outros documentos, o que dependerá do sistema legal do Estado-Membro em causa e do case law a desenvolver.

Tal catálogo de situações estabelecidas como mínimo pela Directiva não impede que a ordem jurídica portuguesa estabeleça catálogo mais generoso, mais amplo. E seria de supor que a teria em norma existente e explícita. Mas não tem! Deparamo-nos com a total ausência de norma explícita que no C.P.P. português directamente preveja tal catálogo. Aliás, sequer prevê o mínimo comunitário de documentos a serem traduzidos.

O que conduz a uma prática judiciária nacional maioritária que sistematicamente exclui as traduções em todos os casos. E é aqui que a não transposição mais se faz notar, fazendo-nos equiparar a qualquer Estado pouco exigente nos mínimos processuais penais. [20]

Assim somos levados - em dois patamares - a concluir (no primeiro) que este mínimo da Directiva se impõe directamente ao Estado português e que este (os seus tribunais) se vêm obrigados a determinar que como regra geral é de determinar a tradução de todas as “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”. A que acrescem os documentos a integrar na cláusula geral do artigo 3º, nº 3 da Directiva como supra referido.

Como se permite aos Estados o estabelecimento de um catálogo mais generoso de decisões passíveis de tradução, somos reconduzidos para a nossa posição já anteriormente assumida no acórdão de 01/04/2008 (proc. nº 331/08-1) de que a previsão do artigo 113º, nº 10 (anterior nº 9) do Código de Processo Penal, devidamente conjugado com a letra e espírito do artigo 6º, nº 3, al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, exigem, no caso de arguido que não entenda a língua portuguesa, que sejam devidamente traduzidas as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil.

Desta forma, e num segundo patamar, a exigência do Estado português de que nestes casos a notificação pessoal do arguido se efective em simultâneo com a efectuada ao seu mandatário (quando em regra o mesmo se deve considerar notificado na pessoa do seu mandatário) revela uma preocupação com a importância do acto e com o efectivo e pessoal conhecimento do mesmo pelo arguido, em condições análogas à dos cidadãos que dominam a língua do processo.

Se isto é assim para este, por que razão o regime há-de ser diverso e dispensar-se o acto de tradução escrita (com o que isso implica de maior possibilidade de estudo e de rememoração) evitando dessa forma “assegurar a um acusado que não compreende a língua utilizada no processo as mesmas possibilidades de defesa de um outro que a compreende”.

As razões aqui apontam para um igual tratamento entre cidadãos que têm diversas aptidões linguísticas, mas o acórdão Frank Sleutjes (no processo C-278/16, de 12-10-2017, já referido na nota 7), do Tribunal de Justiça, utiliza um argumento que pode com facilidade para aqui ser importado. Ali afirmou-se (§ 31) que um despacho de condenação - na específica forma de processo do direito alemão – sendo “em simultâneo, uma acusação e uma sentença, na acepção do artigo 3.o, n.o 2, da Directiva 2010/64”, se “só é enviado na língua do processo em causa a uma pessoa apesar de esta não dominar essa língua, essa pessoa não está em condições de compreender as acusações e provas contra ela deduzidas e não pode, portanto, exercer validamente o seu direito de defesa se não lhe for facultada uma tradução do referido despacho numa língua que compreenda” (§ 33).

Desta forma haverá que passar à análise concreta dos regimes em presença apenas quanto aos mínimos e fazer a contraposição dos actos previstos nas normas indicadas e saber se apresentam algumas diferenças. Tal leitura é elucidativa, como segue:

- Da Directiva - decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.

- Do artigo 113º, nº 10 do C.P.P. - acusação, decisão instrutória, designação de dia para julgamento e sentença, aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e dedução do pedido de indemnização civil.

Como as exigências de tradução da norma comunitária se encontram abrangidas pela previsão mais lata do artigo 113º, nº 10 do C.P.P., é este um regime mais favorável - tal como ele resulta de uma leitura do artigo integrado pela jurisprudência do T.E.D.H. - daqui concluindo nós que será esse o aplicável, pois que cumpre o mínimo comunitário e o estado português pode prever um regime processual com uma maior abrangência.

Daqui resulta - para o caso dos autos - que, ao menos a acusação e a notificação para julgamento deveriam ter sido traduzidas e assim notificadas à arguida.

Mas, antes disso, a arguida deveria ter disposto de intérprete nomeado pela força policial e pelo M.P a partir do momento da detenção ou, ao menos, a partir do momento em que se viu obrigada a assinar a documentação apresentada pela força policial.

E não teve. Daí haverá que retirar as devidas ilações.


*

B.5.c) – Mas um outro caso se impõe analisar, a prestação de TIR.

A arguida alega que o TIR por si prestado deveria ter sido traduzido, assim como outros documentos. Os “outros documentos” (com excepção de um outro a analisar infra) não ganham relevo na medida em que a mera interpretação seria suficiente para assegurar os seus direitos. Já o TIR assume toda uma diversa relevância.

Algo que corresponderá à sua pretensão é aquilo que temos já visto noutros processos investigados pela PJ em certos tipos de crime (tráfico de estupefacientes) e corresponderá ao inverso: é o TIR ser prestado (subscrito) num exemplar na língua materna da/o arguida/o, acompanhado pelo exemplar (tradução) em português, prática que nos parece indubitavelmente a mais correcta por não deixar dúvidas sobre a compreensão total do acto. Se fosse feito ao invés, subscrição em exemplar português com TIR posteriormente traduzido, nunca a dúvida sobre a compreensão da linguagem se desvaneceria.

Na prática trata-se de uma “tradução” pré-existente em formulário à disposição das entidades policiais que se limitam a lá colocar o nome e morada da arguida/o, que os pode assinar sem dúvidas quanto ao seu conteúdo e os pode guardar para “memória futura”. Ou seja, até em termos de boa logística a prática se impõe. E não se vê que sejam supostas grandes e profundas locubrações, intenso pensamento estratégico e exacerbados gastos orçamentais para planificar e executar a tradução de um TIR numa dúzia de línguas e dispor deles nas patrulhas, operações ou interrogatórios (aliás, as “cartas de direitos” já estão propostas na Directiva).

Aliás, o soldado autuante reconheceu que para as patrulhas só levam documentos em português, aceitando que existam exemplares noutros idiomas. E este é um exemplo flagrante de como uma prática laxista das magistraturas conduz a práticas negligentes e ao desprezo de direitos. Não há “deterrence efect” sobre as forças policiais que seja pedagogicamente induzido pelos tribunais.

Para o caso aquilo que se constata é que a arguida prestou TIR em português – fls. 10. Ora, é uma evidência afirmar que um TIR lavrado em português assinado por um alemão que não domina a língua de Camões (ou não se sabe se domina) serve de nada, excepto para prova do desconcerto.

Qual o reflexo disto nos autos?

À primeira vista seríamos levados a pensar que a Directiva privilegiaria a tradução de peças que se relacionam com a vertente factual e probatória da defesa (se exceptuarmos as “decisões que imponham uma medida privativa da liberdade”), aqueles que permitem a imputação de factos a integrar um ilícito típico (acusação, pronúncia, sentença).

Mas esta será mera aparência já que actos meramente processuais são previstos pelas duas normas por nós referidas, da Directiva e do C.P.P., a saber, “decisões que imponham uma medida privativa da liberdade”, “designação de dia para julgamento” e “aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial”. São actos processuais de diversa natureza, de natureza não factual.

O que também nos é confirmado pela cláusula geral constante da 2ª parte do nº 1, do artigo 3º da Directiva, a definição de documentos essenciais que aponta para um critério mais lato. Estes documentos são aqueles que se apresentam como determinantes “à salvaguarda da possibilidade de defesa” e à “garantia da equidade do processo”.

Este enquadramento retira-nos de um cenário que apenas privilegia factos e respectivo enquadramento jurídico e remete-nos para um panorama mais geral do direito de defesa.

E a prestação de TIR no direito português assumiu uma importância e um peso de monta, um talvez exacerbado reflexo maior no direito de defesa, especialmente após as alterações introduzidas pela Lei nº 20/2013, de 21-02, que implicou a possibilidade de “fazer desaparecer” o direito de defesa e a sujeição a deveres a eternizar-se no tempo quanto às diferentes redacções do nº 3 do artigo 196º e do artigo 214º, nº 1, al. e) do C.P.P..

Recordemos que segundo as alíneas do nº 3 do artigo 196º do C.P.P. do TIR (termo de identidade e residência) deve constar que àquele foi dado conhecimento:

a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º;
e) De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena.

A previsão da alínea d) é elucidativa: em rigor qualquer incumprimento faz desaparecer o direito de defesa, com a agravante de que tal ocorre, por presunção decorrente desta norma, por acto imputável à arguida que terá percebido o TIR que assinou.

Esse é o regime que, em concreto e por exemplo quanto à notificação para julgamento, resulta da letra do artigo 196º, n. 1, al. c) do diploma que determina que após a prestação de TIR “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento”.

Isto quer significar, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 196º que a notificação para julgamento será feita por mera “via postal simples para a morada indicada” e que o incumprimento das indicadas obrigações implica o julgamento da arguida na sua ausência real, sem que possa invocar que o julgamento foi realizado na sua “ausência processual”, pois que se encontra “notificada” e representada por defensor, nos termos do artigo 333.º.

E este rigor mantém-se vigente para o TIR até à extinção da pena (nova redacção da Lei 20/2013), excepção gravosa que faz parecer prudente a regra geral de todas as outras medidas de coacção, o trânsito em julgado da decisão condenatória – artigo 214º do C.P.P..

Assim a notificação para julgamento, mesmo enviada traduzida por via postal simples, parece um abuso surreal para quem não entende a língua portuguesa e assinou um TIR em português. De caminho ainda se pode alegar que se deu cumprimento à Directiva, enviando um postal traduzido para o alemão, sendo quase certo que a arguida nem se apercebeu das obrigações que assumia ao assinar o TIR. Na prática tal assinatura significaria uma renúncia ao direito de defesa.

Somos, logo, a concluir que um TIR no actual ordenamento processual penal português é um documento essencial a integrar na previsão do artigo 3º, nº 1 da Directiva nº 2010/64/UE e, subsequentemente, a necessitar de ser assinado em língua alemã pela arguida.

Desta forma, a assinatura de TIR pela arguida, cidadã alemã que se não tem a certeza que perceba o português nem tendo havido o cuidado de o confirmar, é um acto inválido.


*

B.5.d) – As “Cartas de Direitos”.

A arguida assinou um termo de “Constituição de Arguido” em língua portuguesa no qual constam os direitos conferidos pelo artigo 61º do C.P.P. e onde igualmente constam advertências nos termos da Lei nº 34/2004, de 29-07 (apoio judiciário).

Utilizando já a terminologia da Directiva, recordemos que a “carta de direitos” prevista no artigo 61º do C.P.P. estipula:


Artigo 61º
a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito;
b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte;
c) Ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade;
d) Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar;
e) Constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor;
f) Ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele;
g) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias;
h) Ser informado, pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer, dos direitos que lhe assistem;
i) Recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis.
2 - A comunicação em privado referida na alínea f) do número anterior ocorre à vista quando assim o impuserem razões de segurança, mas em condições de não ser ouvida pelo encarregado da vigilância.
3 - Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:
a) Comparecer perante o juiz, o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado;
b) Responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade;
c) Prestar termo de identidade e residência logo que assuma a qualidade de arguido;
d) Sujeitar-se a diligências de prova e a medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente.

A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê:


Artigo 3º
Direito a ser informado sobre os direitos
1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:
a) O direito de assistência de um advogado;
b) O direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção;
c) O direito de ser informado da acusação, nos termos do artigo 6º;
d) O direito à interpretação e tradução;
e) O direito ao silêncio.
2. Os Estados-Membros asseguram que as informações prestadas por força do nº 1 devem ser dispensadas oralmente ou por escrito, em linguagem simples e acessível, tendo em conta as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis.
Artigo 4º
Carta de Direitos aquando da privação da liberdade
1. Os Estados-Membros asseguram que seja prontamente entregue uma Carta de Direitos por escrito aos suspeitos ou acusados que forem detidos ou presos. Estes devem ter a oportunidade de ler a Carta de Direitos e devem poder conservá-la na sua posse durante todo o período em que estiverem privados da sua liberdade.
2. Para além das informações que constam do artigo 3º, a Carta de Direitos a que se refere o nº 1 do presente artigo deve conter informações acerca dos seguintes direitos, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional:
a) O direito de acesso aos elementos do processo;
b) O direito a que as autoridades consulares e uma pessoa sejam informadas;
c) O direito de acesso a assistência médica urgente; e
d) O número máximo de horas ou dias que os suspeitos ou acusados podem ser privados de liberdade antes de comparecerem perante uma autoridade judicial.
3. A Carta de Direitos contém também informações de base acerca de todas as possibilidades, nos termos do direito nacional, de impugnar a legalidade da detenção, de obter a revisão da detenção ou de requerer a libertação provisória.
4. A Carta de Direitos deve ser redigida em linguagem simples e acessível. Um modelo da Carta de Direitos figura, a título indicativo, no Anexo I.
5. Os Estados-Membros asseguram que a Carta de Direitos seja facultada aos suspeitos ou acusados por escrito numa língua que estes compreendam. Caso a Carta de Direitos não esteja disponível na língua adequada, os suspeitos ou acusados devem ser informados dos seus direitos oralmente numa língua que compreendam. Uma Carta de Direitos numa língua que os suspeitos ou acusados compreendam deve ser-lhes subsequentemente entregue sem demora indevida.

A contraposição de direitos sem detenção entre o C.P.P e o artigo 3º desta Directiva torna patente – apesar de o sistema português ser mais amplo - que um dos direitos, o direito à interpretação e tradução, não consta do acervo da legislação portuguesa, reflectindo, aliás, a menorização que lhe é dada pela legislação e prática judicial portuguesa.

E neste campo não convém facilitar pois que enquanto as preocupações actuais de outros países se centra na melhoria das condições de interpretação e tradução nas esquadras e postos políciais, no nosso tal sistema de interpretação e tradução em esquadras e postos policiais não existe. E, dada a importância do tema e a prática laxista, o “deterrence effect” (efeito preventivo, efeito dissuasor) é uma imperatividade.

Mas a arguida foi detida pelo que ao caso não é aplicável, apenas, o artigo 3º da Directiva, asssumindo igualmente relevo o artigo 4º da Directiva, do qual nada foi cumprido. A não disposição de tal Carta de Direitos na língua materna da arguida terá que ser devidamente ponderada e a sua consequência é uma invalidade processual patente. Aqui não se trata só de não haver interpretação e tradução. Nem cartas de direitos, nem a sua interpretação e/ou tradução.

Ora, o acórdão do TJUE de 28-08-2018 - Vizgirda v. Slovenia - é claro na afirmação de que os arguidos têm que ser notificados da existência desses direitos, dos direitos à interpretação e tradução por os considerar equiparados ao direito ao silêncio, ao direito à não auto-incriminação e ao direito a advogado - §§ 86 e 87.

Por isso que também aqui, nas Cartas de Direitos, se impõe a conclusão de que a invalidade processual se impõe.

Da leitura dos autos não resulta que haja outros actos ou despachos que devam ser objecto de tradução ou interpretação.

De onde se impõe apurar qual a natureza das invalidades em presença e suas consequências.


*

B.6 – Das invalidades e suas consequências.

As invalidades centram-se na inexistência de intérprete no momento devido, inexistência de tradução de actos e TIR e inexistência de cartas de direitos escritas e traduzidas.

Neste ponto a inexistência de intérprete localiza-se no momento da intercepção, detenção e feitura dos autos, já que o que consta do auto no sentido de afirmar que a arguida dominava a língua portuguesa é de muito duvidosa aceitabilidade. E ao Ministério Público e ao Tribunal impunha-se indagar e apurar tal, depois de a arguida – logo após – ter vindo comunicar que não entendia a língua portuguesa, ouvindo o agente autuante para apurar do acerto de tal invocação e da veracidade da declaração do auto, que se assemelha a simples formalismo genérico.

Aqui já não vale, face à existência da Directiva, vir esgrimir com a afirmação habitual de que a arguida deveria ter vindo suscitar a falsidade do auto de notícia em prazo. É um argumento que muito se assemelha a um “lava-mãos” bíblico mas que aqui – bem – não foi utilizado.

A partir do momento em que se fixa por norma (aqui Directiva) ou jurisprudência, que se encontra consagrada uma obrigação de facere a onerar um tribunal, uma obrigação positiva procedimental de acautelar a inteligibilidade dos actos processuais por arguido não conhecedor da língua em que se praticam os actos processuais, é inaceitável vir argumentar com a obrigação de invocar a falsidade de um acto que afirma que o mesmo “domina a língua”. Impõe-se agir e apurar se tal corresponde à realidade.

Na dúvida a nomeação de intérprete é uma imposição para o tribunal, o Ministério Público e a polícia.

O mesmo se diga quanto à natureza das restantes invalidades. Como já se afirmou em arestos anteriores, face ao regime da taxatividade das invalidades vigente no nosso ordenamento processual penal, como classificar a prática de actos em língua portuguesa a um cidadão que a não percebe? Da mesma forma que classificaríamos a notificação de actos relevantes em alemão ou mandarim a um cidadão português desconhecedor de tal língua: um acto formal, vazio de conteúdo substancial, sem significado processual válido.

E assim sendo, bem se pode afirmar que não ocorreu a prática de actos processuais relevantes. Estes são inexistentes processualmente. Se a prática de actos se destina a dar a conhecer o conteúdo de um acto e nada transmite, é um acto que não existe. Não cumpre o seu papel de dar a conhecer os factos imputados e o direito aplicável.

Somos pois reconduzidos a sair do apertado espartilho das nulidades previstas no Código de Processo Penal, pois que se trata de caso de uma gravidade não previsível pelo legislador ordinário português, a cair no âmbito das inexistências processuais.

Como afirma João Conde Correia, “trata-se de um recurso excepcional, utilizado para repor a justiça em situações extremas, que quase ultrapassam as fronteiras do imaginável”. [21] A anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica”. [22]

É o que ocorre no caso concreto. Assim o recurso deve proceder.

Mas também procederia por outra razão: existindo uma obrigação positiva a onerar o Estado português quanto à prática de actos, a inexistência dessa prática só onera o Estado português, pelo que não se pode atribuir à invalidade processual uma natureza sanável se o beneficiário do acto não reagir. A invalidade é imputável, no caso, à GNR, ao Ministério Público e ao tribunal recorrido.

Naturalmente que, não fora a invalidade da não nomeação de intérprete, de TIR e Carta de Direitos em língua compreensível para a arguida e estaríamos a discutir apenas a notificação da acusação, já que esta, a acusação, não estaria em causa nos presentes autos nem foi afectada por nulidades intrinsecas ao seu conteúdo. Mas o ter sido afectada por invalidade prévia implica que ela deve ser considerada inválida por ausência de acto necessário prévio. E apenas, pois que nada obsta a que o Ministério Público possa suprir o vício e deduzir nova acusação, com o teor que entender conveniente, Essa reformulação da acusação não constitui nem violação de caso julgado – formal ou material – nem violação do princípio ne bis in idem.

Como afirmámos no acórdão desta Relação de 10/04/2018 por nós relatado (proc. 1559/16.6GBABF.E1) “se a acusação foi rejeitada por uma questão procedimental a realidade nua e crua é que o Ministério Público não pôs fim ao processo de inquérito. E nessa fase o Ministério Público volta a ser confrontado com a necessidade de tomar posição, apenas limitado pelos factos indiciados e pelo caso julgado formal amoldado pelo despacho judicial de rejeição da acusação”.

Apesar de serem diferentes os enquadramentos factuais e jurídicos, o raciocínio a fazer no caso sub iudicio é idêntico ao por nós assumido do dito acórdão: “Não é admissível considerar que uma decisão que rejeitou uma acusação (logo, que não permitiu sequer que o processo chegasse à fase de julgamento) corresponde a um julgamento por um crime, arremedo interpretativo que a clareza do artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa («Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime») não permite”.

Por fim, as obrigações positivas impostas às polícias, ao M.P e aos tribunais implicam a revogação de todas as normas do direito nacional – existentes ou a existir - que sejam contrárias ao consagrado nas Directivas e que consagrem imperativamente um regime comunitário comum. Aqui se incluindo um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado que, qual Pilatos, lave as mãos das consequências do seu incumprimento.

Entende-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma “obrigação positiva” a onerar o Estado e proveniente de norma comunitária imperativa, levando necessariamente a considerar revogada a al. c) do nº 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto e, consequentemente:

- declaram inexistentes as Cartas de Direitos e o TIR prestado;

- declaram a ineficácia dos actos posteriores à prestação de TIR, incluindo a acusação e sua notificação à arguida, bem como a sentença condenatória;

- determinam que incumbe às polícias, M.P e tribunal assumir os custos com a interpretação e tradução de actos no processo;

- determinam que a arguida deve ser ressarcida das despesas que fez com o pagamento de intérprete e/ou tradutor, devendo ser a mesma notificada após recepção dos autos no tribunal recorrido para fazer prova das mesmas em 10 dias;

- determinam o regresso dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins entendidos como convenientes.

Notifique. Não são devidas custas.

Évora, 20 de Dezembro de 2018

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa (relator)

António Condesso


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[1] - O que, desde logo, espanta pela contradição pois que se a arguida compreende perfeitamente a língua portuguesa “falada e escrita” e com esse fundamento se nega a interpretação e tradução para que seria preciso o intérprete na audiência?
[2] - O que não espanta pois que já nos finais da década de 90 do século passado e início do actual ainda se assumiam posições sobre interpretação e tradução que hoje se revelam de uma confrangedora falta de visão e apego a teorias constitucionais de “quinta”, como a afirmação de que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem é uma desnecessidade pois que tudo está previsto na nossa Constituição da República Portuguesa ou que um sueco desconhecedor do português citado em português na Suécia se limitava a ter um “incómodo” com a obrigação de traduzir a citação.
[3] - Seguindo de perto a exposição de Irineu Cabral Barreto, in “A C.E.D.H. Anotada”, 2010, 24-35.
[4] - Irineu Cabral Barreto, “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Almedina, 3ª Ed. 2005, pag. 45.
[5] - A previsão legal alterou-se e a norma a atender é agora o nº 10 do artigo 113º do C.P.P..
[6] - Irineu Cabral Barreto, obra citada, pag. 166.
[7] - Acórdão do TEDH de 19-12-1989, §. 74.
[8] - Assinale-se que os acórdãos por nós relatados e supra referidos se pronunciam sobre processos comuns, que não sobre sumários.
[9] - Não tem que ser usada necessariamente a língua materna, podendo ser utilizada uma outra que lhe seja familiar. Este ponto, o da “terceira língua”, já é tratado nas novas Directivas, como se verá infra, mas já tinha sido estabelecida pela jurisprudência do T.E.D.H..
[10] - Medida B: Informação sobre os direitos e sobre a acusação Medida C: Patrocínio e apoio judiciários; Medida D: Comunicação com familiares, empregadores e autoridades consulares; Medida E: Garantias especiais para suspeitos ou acusados vulneráveis; Medida F: Livro Verde sobre detenção antes da fase do julgamento.
[11] - «Compete aos órgãos jurisdicionais nacionais, por aplicação do princípio da cooperação enunciado no artigo 5.° do Tratado, garantir a protecção jurídica decorrente, para os particulares, do efeito directo das disposições do direito comunitário. Seria incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário qualquer disposição de uma ordem jurídica nacional ou qualquer prática, legislativa, administrativa ou judicial, que tivesse como efeito diminuir a eficácia do direito comunitário por recusar ao juiz competente para aplicar esse direito o poder de fazer, no momento exacto dessa aplicação, tudo o que fosse necessário para afastar as disposições legislativas nacionais susceptíveis de obstar, ainda que temporariamente, à plena eficácia das normas comunitárias.»
[12] - «110 - Todavia, resulta de jurisprudência assente desde o acórdão de 10 de Abril de 1984, Von Colson e Kamann (14/83, Recueil, p. 1891, n.° 26), que a obrigação dos Estados-Membros, decorrente de uma directiva, de atingir o resultado por ela prosseguido, bem como o seu dever, por força do artigo 10.° CE, de tomar todas as medidas gerais ou especiais adequadas a assegurar a execução dessa obrigação, impõem-se a todas as autoridades dos Estados-Membros, incluindo, no âmbito das suas competências, aos órgãos jurisdicionais. 111 - Com efeito, cabe em particular aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar a protecção jurídica que aos particulares advém das disposições de direito comunitário e garantir a plena eficácia destas.»
[13] - «38 - O Tribunal de Justiça já declarou repetidamente que a obrigação, decorrente de uma diretiva, de os EstadosMembros alcançarem o resultado nela previsto assim como o dever de tomarem todas as medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar o cumprimento dessa obrigação se impõem a todas as autoridades dos EstadosMembros, incluindo, no âmbito das suas competências, às autoridades judiciais. 39 - Daqui resulta que, ao aplicarem o direito nacional, os órgãos jurisdicionais nacionais chamados a interpretálo são obrigados a tomar em consideração o conjunto das regras desse direito e a aplicar os métodos de interpretação reconhecidos por este, de modo a interpretálo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva em causa, para alcançar o resultado por ela prosseguido e dar, assim, cumprimento ao artigo 288º, terceiro parágrafo, TFUE.»
[14] - O confronto com a exaustiva previsão do Anexo M do “Code C, 2018, Revised Code of Practice for the detention, treatment and questioning of persons by Police Officers, do Police and Criminal Evidence Act (PACE) 1984”, é constrangedor: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/729842/pace-code-c-2018.pdf.
[15] - Também a Directiva nº 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, “relativa ao reforço de certos aspectos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal” é já aplicável directamente mas apenas desde 01 de Abril de 2018, pelo que não será atendida para efeito retroactivo ao caso dos autos por desnecessidade.
[16] - A jurisprudência comunitária estabeleceu – v. acórdão Pupino - a obrigação para os tribunais nacionais de interpretação conforme do direito nacional, determinando que, ao aplicar o direito interno, o órgão judicial encarregue da sua interpretação é obrigado a fazê-lo, tanto quanto possível, à luz do texto e das finalidades da legislação comunitária (Decisão-Quadro ou Directiva. Assim os nossos relatos de 08/12/2011, proc. 196/10.3YREVR e de 09/20/2011, proc. 105/11.2YREVR.E1, este último nos seus pontos 4 e 5).
[17] - “Police and Criminal Evidence Act (PACE) 1984, Code C, Revised Code of Practice for the detention, treatment and questioning of persons by Police Officers”, cap. 13. A versão de 2018 consta deste link: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/729842/pace-code-c-2018.pdf.
[18] - A página do CPS (Crown Prossecution Service) é esclarecedora de como encarar pro-activamente estas matérias - https://www.cps.gov.uk/legal-guidance/interpreters
[19] - No recente acórdão Frank Sleutjes (proc. C-278/16) de 12-10-2017 o Tribunal de Justiça decidiu que o “artigo 3.o da Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, deve ser interpretado no sentido de que um ato como um despacho de condenação previsto no direito nacional com vista a sancionar infrações penais menores e proferido por um juiz no termo de um processo unilateral simplificado constitui um «documento essencial», na aceção do n.o 1 deste artigo, do qual deve, em conformidade com os requisitos formais estabelecidos nessa disposição, ser facultada uma tradução escrita aos suspeitos ou aos acusados que não compreendam a língua do processo em causa, por forma a salvaguardar a possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e garantir a equidade do processo”.
[20] - Igualmente no sentido do erro da não transposição Patrícia Jerónimo, in “A Directiva 2010/64/UE e a garantia de uma assistência linguística de qualidade em processo penal - Implicações para a ordem jurídica portuguesa”, pag. 3 e 16 e ss.; e Júlio Barbosa e Silva, in “A Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal”, pags. 3 e 48-49, Julgar “on line”, Março 2018.
[21] - In “Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais” – Stvdia Ivridica, nº 44, pag. 121, Coimbra Editora, 1999.
[22] - Autor e obra citada, pag. 120.