Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
45/14.3TBCDV.E1
Relator: CRISTINA CERDEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 06/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:

I) - Os fundamentos previstos nas alíneas do nº. 1 do artº. 238º do CIRE consubstanciam factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, donde a sua alegação e prova competirá aos credores ou ao administrador da insolvência (artº. 342º, nº. 2 do Código Civil), bastando ao devedor/requerente apenas alegar que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas pela lei no âmbito do incidente.

II) – Não tendo os credores cumprido com esse ónus, mas constando dos autos todos os elementos que permitem obstar ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o Tribunal não poderá ignorar tais elementos e proferir uma decisão meramente formal, completamente afastada da realidade plasmada no processo, abstendo-se assim de exercer o seu dever.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

BB apresentou-se à insolvência, no Tribunal Judicial de Castelo de Vide (actualmente Comarca de Portalegre – Portalegre, Instância Local – Secção Cível – Juiz 1), formulando, ainda, o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artºs 23º, nº. 2, al. a) e 235º a 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Por sentença proferida em 6/05/2014 foi declarada a insolvência da requerente (fls. 64 a 73).

Em 19/06/2014, o Sr. Administrador da Insolvência elaborou Relatório nos termos do artº. 155º do CIRE, no qual propôs o encerramento do processo por inutilidade da lide, dado o montante em dívida ser bastante elevado, a inexistência de património que integre a massa insolvente e a impossibilidade de solver o passivo, tendo, ainda, se pronunciado favoravelmente sobre o pedido de exoneração do passivo restante (fls. 100 e 101).

Em 25/06/2014, foi realizada a Assembleia de Credores sem a presença de nenhum credor, tendo posteriormente todos os credores sido notificados para se pronunciarem sobre o Relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência e o pedido de exoneração do passivo restante (fls. 104 e 105).

O credor CC, Lda. pronunciou-se a fls. 110 a 112 dos autos contra a concessão do pedido de exoneração do passivo restante, alegando, em síntese, que:

- a situação de insolvência já se verifica há mais de 6 anos sem que a requerente se tivesse apresentado à insolvência, tendo tal atraso no pedido prejudicado os credores;

- a insolvente assumiu a dívida para com a credora reclamante, no montante de € 85 000,00 em 1/03/2006 (doc. de fls. 113 e 114);

- a sociedade da qual era sócia junto com o marido já cessara a actividade em 31/12/2001 (doc. de fls. 115);

- em 21/02/2008 a sua entidade empregadora declarou que a insolvente estava a proceder a um desconto no seu vencimento para pagamento a um credor até Dezembro de 2009 e que já se encontrava pendente um outro desconto que só findaria em Abril de 2019, tendo essa informação sido reiterada em 22/04/2008 (doc. de fls. 116 e 117);

- em 13/09/2008 a GNR de Castelo de Vide informou que a insolvente declarara que vendera o seu veículo automóvel BL-00-00 em Agosto de 2007 (doc. de fls. 118);

- ao pagar a alguns credores em detrimento de outros e ao desfazer-se dos seus bens quando já se encontrava numa situação de incapacidade de pagamento aos seus credores, a insolvente prejudicou os demais credores, e em concreto a credora reclamante, que nunca chegou a ver amortizado o seu elevado crédito.

A credora CC, Lda. juntou aos autos documentos comprovativos da factualidade supra enunciada.

Os restantes credores nada vieram dizer.

Por despacho de 14/10/2014 foi declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente (fls. 122 e 123).

Em 4/11/2014, o Sr. Administrador da Insolvência emitiu parecer nos autos no sentido de ser fixado o valor mensal de € 580 como rendimento disponível da insolvente, o que não foi contestado por nenhum credor, nem pela própria insolvente (fls. 151).

Em 25/02/2015 foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela requerente, com fundamento no facto de estar demonstrada a verificação das situações previstas nas alíneas d) e e) do nº. 1 do artº. 238º do CIRE.

Inconformada com tal decisão, a insolvente dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

«1 - A ora recorrente apresentou-se à Insolvência em 15/04/2015, tendo no seu requerimento inicial pedido a exoneração do passivo restante.

2 - Foi declarada a Insolvência em 6/05/2015.

3 - Após vários prazos concedidos, o único credor que se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante foi o credor CC LDª, não tendo no entanto concretizado os prejuízos efetivamente sofridos, nem angariado prova para os autos, nos termos do n.º 2 do art.º 342º do C. Civil.

4 - O Senhor Administrador de Insolvência emitiu parecer favorável ao pedido de exoneração.

5 - Cabe os credores e Administrador de Insolvência o ónus de alegar e provar factos impeditivos do pedido de exoneração do pedido restante,

6 - Não tendo os credores cumprido com esse ónus, não cabendo ao tribunal substituir-se aos mesmos.

7 - A figura do indeferimento liminar previsto no art.º 238º deve ser visto como uma excepção e não como a regra do nosso ordenamento jurídico, sob pena de a intenção do legislador em prever a figura da exoneração do passivo restante ser um logro, dado que o mesmo teve a intenção de dar ao devedor "uma segunda oportunidade" libertando-se do passivo acumulado no passado, iniciando-se "uma nova vida".

8 - Ora, não tendo sido qualquer credor a cumprir com o ónus que lhe cabia, não podia o tribunal "a quo" decidir pelo indeferimento liminar como decidiu, violando assim o disposto no art.º 238º do C.I.R.E.

9 - Pelo que deve o mesmo ser revogado, concedendo-se a exoneração do passivo restante à aqui recorrente assim se fazendo JUSTIÇA!»

O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1º - Vem a recorrente pôr em crise a douta sentença proferida pela Mma. Juiz a quo, alegando, em síntese, que cabe aos credores e ao administrador de insolvência o ónus de alegar e provar factos impeditivos do pedido de exoneração do passivo restante, o que não sucedeu no caso concreto, pelo que não podia o Tribunal decidir, substituindo-se aos mesmos;

2º - Cremos, salvo o devido respeito, que não assiste razão ao recorrente, não merecendo censura a douta sentença e, consequentemente, o recurso deverá ser declarado improcedente;

Senão vejamos:

3º - Dispõe o artigo 235.º do CIRE que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste;

4º - Na alínea d) do n.º 1 desse normativo, preceitua-se que o pedido de exoneração será indeferido liminarmente se «o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à Insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica»;

5º - No caso em apreço nos autos conclui-se que a recorrente sabia desde, pelo menos desde 2007, que a sua situação de insolvência era definitiva, pois a empresa de que era titular tinha cessado actividade e não tinha quaisquer bens ou rendimentos suficientes para pagar os créditos que tinha assumido;

6º - Mais se concluiu que a recorrente tinha agravado a sua situação, por culpa sua, ao decidir, já depois de instauradas duas acções executivas contra si, contrair um crédito ao consumo destinado à aquisição de um veículo automóvel;

7º - Face a todo o comportamento da recorrente, decidiu a Mma. Juiz a quo, como não poderia deixar de ser, que a mesma não teria agido de forma transparente e de boa fé, não se justificando, no caso concreto, dar-lhe nova oportunidade, o tal “fresh start” que está subjacente ao instituto da exoneração do passivo restante;

8º - Argumentar que a Mma. Juiz deveria ter feito tábua rasa de todos os elementos que existem nos autos para fundamentar a sua decisão, implica, quanto a nós e com o devido respeito, dizer que o Tribunal deveria abster-se de decidir, de exercer o seu dever de julgar, sendo que tal é legalmente inadmissível.

Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a Douta decisão, nos seus precisos termos.

V. Exas., porém, melhor decidirão e farão, como sempre, JUSTIÇA».

O recurso foi admitido por despacho de fls. 137.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.




II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aplicável “in casu” por a decisão em crise ter sido proferida depois de 1/09/2013 (artº. 7º, nº. 1 da Lei nº. 41/2013 de 26/6).

Deste modo, considerando o teor das conclusões apresentadas nos presentes autos, a única questão a decidir consiste em saber se o Tribunal “a quo” podia ter proferido decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com fundamento na verificação dos pressupostos previstos no artº. 238º, nº. 1, al. d) e e) do CIRE, em face dos elementos constantes dos autos.

Com relevância para a apreciação e decisão da questão suscitada no presente recurso, importa ter em consideração a factualidade supra enunciada em sede de relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido, bem como os seguintes factos considerados provados na decisão recorrida, com base nos elementos constantes dos autos [transcrição]:

“1. Por sentença datada de 6/05/2014 foi a requerente BB, divorciada, contribuinte n.º …, residente na Rua … Castelo de Vide, declarada insolvente com fundamento na seguinte factualidade julgada como provada:

«1 - A requerente é funcionária da Câmara Municipal de …, exercendo as funções de Assistente Técnico, auferindo de vencimento base o valor de €961,18, acrescido de subsídio de refeição;

2 - A requerente tem com a sua entidade patronal um contrato por tempo indeterminado;

3 - A requerente encontra-se divorciada desde 28 de Março de 2007 e durante o período em que foi casada, constituiu juntamente com o seu então marido uma sociedade por quotas denominada “DDLda”, empresa essa que tinha por objeto a exploração de minimercados, encontrando-se neste momento em processo de liquidação da Conservatória do Registo Comercial de Braga, sendo a requerente sócia da sobredita sociedade e titular de uma quota no valor de € 199,52;

4 - A empresa por diversas vicissitudes gerou várias dívidas, as quais não foi capaz de solver, acabando por encerrar os estabelecimentos comerciais que possuía, um sito em Castelo de Vide e outro em Santo António das Areias, não tendo a empresa qualquer atividade desde 2004;

5 - Durante o período de atividade da empresa, a requerente avalizou e afiançou diversas obrigações que a empresa assumiu;

6 - A requerente contraiu crédito para a aquisição de veículo automóvel;

7 - A requerente nunca teve qualquer poder de gerência, limitando-se a assinar documentação que lhe era apresentada pelo seu então marido, este sócio-gerente, necessária para "manter a vida" da empresa de que eram titulares;

8 - A requerente tem neste momento o seu vencimento penhorado no âmbito do processo executivo n.º (...) que corre termos no Tribunal Judicial de Castelo de Vide;

9 - A requerente, neste momento, aufere a quantia de €616,81;

10 - O reembolso do IRS da requerente foi penhorado;

11 - A requerente vive com uma filha menor, estudante, com 15 anos de idade, atualmente a frequentar uma Escola Secundária em Portalegre numa casa mobilada emprestada pelos pais da requerente, sendo esta apenas proprietária de alguns objetos de valor pessoal e simbólico, tais como molduras com fotos de família, e das suas peças de vestuário;

12 - A requerente não tem bens móveis e imóveis;

13 - A requerente tem um passivo superior a €180.000,00;

14 - A requerente tem como credores:

- CC, Ldª, no valor de €100.006,24;

- (...), no valor de €12.000,00;

- (...), no valor de €35.422,27;

- (...), no valor de €33.000,00;

- (...), no valor de €26.305,30;

15 - A requerente tem a correr contra si os seguintes Processos Executivos:

- Tribunal Judicial de Abrantes- 2º Juízo, Proc. n.º (...);

- Tribunal Judicial de Castelo de Vide- Proc. n.º (...);

- Tribunal Judicial de Castelo de Vide- Proc. n.º (...);

- Tribunal Judicial de Castelo de Vide- Proc. n.º (...);

- Tribunal Judicial de Castelo de Vide- Proc. n.º (...);

- Tribunal Judicial de Castelo de Vide- Proc. n.º (...)» (cfr. fls. 64-73)

2. A requerente apresentou-se à insolvência a 15/04/2014 (cfr. fls. 2-31).

3. Em 29/05/2007 a insolvente contraiu um crédito ao consumo com a S... no valor de 9.335,00€ para adquirir um veículo automóvel de marca e modelo Peugeot 307 VAN, matrícula 00-DV-00 obrigando-se ao pagamento de 84 prestações mensais, que não pagou, tendo apenas liquidado a primeira prestação no valor de 171,02€, acabando o veículo por ser judicialmente apreendido a 6/07/2009 no âmbito do Proc. n.º (...) que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo de Vide (cfr. fls. 177-193).

4. O Proc. n.º (...) foi instaurado em 18/02/2008 com o valor de 83.673,77€, foi objecto de penhora um crédito de IRS no montante de 227,11€, e foi declarado extinto em 19/11/2012 nos termos do artigo 833-B, n.º 6 do antigo CPC (cfr. fls. 170-174).

5. O Proc. n.º (...) foi instaurado em 18/05/2007 com valor de 9.779,30€, não houve qualquer ato de penhora por inexistência de bens, nem nenhum valor foi recuperado pelo credor, tendo a execução sido declarada extinta em 9/07/2013 (cfr. fls. 170-174).

6. O Proc. n.º (...) foi instaurado em 18/05/2007 com o valor de 28.210,46€, foi objecto de penhora o vencimento da insolvente; até 26/02/2014 o Agente de Execução entregou ao Exequente o valor de 13.841,46€, tendo este comunicado nesta data à entidade patronal da insolvente que a verba penhorada deveria ser entregue directamente ao Exequente; este processo foi declaro extinto em 26/02/2014 ao abrigo do disposto no artigo 779.º, n.º 4, alínea b) do antigo CPC (cfr. fls. 170-174).

7. O Proc. n.º (...) foi instaurado em 27/04/2009 com o valor de 7.157,87€, tendo sido penhorado um crédito junto da DGCI no valor de 277,16€, permanecendo em curso esta execução (cfr. fls. 170-174).

8. O Proc. n.º (...) foi instaurado em 5/02/2009 com o valor de €15.106,07, tendo sido penhorado o reembolso do IRS no montante total de 2.042,64€, permanecendo em curso esta execução (cfr. fls. 170-174).

9. O Proc. n.º (...) foi instaurado em 16/12/2011 com o valor de 29.408,07€, tendo sido declarado extinto em 3/07/2013 por inexistência de bens (cfr. fls. 170-174).

10. A insolvente subscreveu e avalizou duas livranças com a S... no valor global de 21.890,94€ a 28/07/2008 e 02/12/2008 com datas de vencimento a 18/08/2008 a 23/12/2008, respectivamente, não tendo sido paga qualquer quantia (cfr. fls. 15-42 do apenso A).

11. A 21/01/2014 a insolvente assinou na qualidade de fiadora em benefício de M... uma confissão de dívida e acordo de pagamento em 40 prestações do montante de 12.099,00€ referente a 36 facturas vencidas entre 30/08/2007 e 24/06/2008, apenas tendo liquidado a primeira prestação no valor de 300€ (cfr. fls. 43-109 do apenso A).

12. A 1/03/2006 a insolvente e o seu ex-marido EE assinaram uma declaração por via da qual confessaram-se devedores da quantia de 85.000,00€ à credora CC, a qual se comprometeram a pagar em 170 prestações mensais de 500€, tendo apenas liquidado as primeiras duas prestações (cfr. fls. 119-147 do apenso A).

13. A 8/04/2003 a insolvente também já tinha subscrito juntamente com o seu ex-marido outra declaração de assunção de dívida no valor de 24.504,49 € a favor de N... comprometendo-se a pagar em prestações mensais, iguais e sucessivas de 750€ com início em maio de 2003, que não pagaram (cfr. fls. 110-118 do apenso A)”.


*

Apreciando e decidindo.

Dispõe o artº. 235º do CIRE que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

Através da exoneração do passivo restante concede o legislador uma libertação definitiva do devedor, quanto ao passivo não satisfeito totalmente no processo de insolvência ou no espaço de tempo em referência, nas condições fixadas no incidente em causa, para que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua actividade económica.

Conforme defendido nos acórdãos do STJ de 21/10/2010 e 19/04/2012, proferidos nos processos nºs 3850/09.9TBVLG-D e 434/11.5TJCBR-D (ambos acessíveis em www.dgsi.pt), o pedido de exoneração do passivo restante tem como objectivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência, de recomeçar vida nova no fim do período de 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo.

No nº. 1 do artº. 238º do CIRE estabelecem-se os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Nos presentes autos foi proferida a decisão ora recorrida, que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela requerente, com os seguintes fundamentos [segue transcrição parcial da decisão]:

“(…)

Na alínea d) do n.º 1 desse normativo [reporta-se ao artº. 238º do CIRE], preceitua-se que o pedido de exoneração será indeferido liminarmente se «o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica».

(…)

Para o que aqui interessa, estará numa situação de insolvência, o devedor cuja falta de cumprimento, de uma ou mais obrigações (pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento) revele a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Porém, não basta, pois, o simples decurso do tempo (seis meses contados desde a verificação da situação de insolvência) para se poder considerar verificado o requisito em análise (pelo avolumar do passivo face ao vencimento dos juros) – tal representaria valorizar um prejuízo ínsito ao decurso do tempo, comum a todas as situações de insolvência, o que não se afigura compatível com o estabelecimento do prejuízo dos credores enquanto requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente.

Enquanto requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente, o prejuízo dos credores acresce aos demais requisitos – é um pressuposto adicional, que aporta exigências distintas das pressupostas pelos demais requisitos, não podendo por isso considerar-se preenchido com circunstâncias que já estão forçosamente contidas num dos outros requisitos.

Valoriza-se aqui, pois, a conduta do devedor – apurar se o seu comportamento foi pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica, devendo a exoneração ser liminarmente coarctada caso seja de concluir pela negativa – cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/05/2010 (Proc. 1634/09.3TBGDM-B.P1), in dgsi.pt.

Haverá, assim, que apurar se a situação de insolvência emerge de uma infeliz conspiração de circunstâncias e por isso se justifica, com sacrifício dos credores, conceder ao insolvente uma nova oportunidade, ou se, pelo contrário, a conduta do devedor foi consciente no sentido do agravamento do seu passivo e da crescente dificuldade dos credores em cobrarem os seus créditos.

Quanto ao elemento literal “perspectiva séria” o legislador aponta para um juízo de verosimilhança sobre a melhoria económica do insolvente, alicerçada naturalmente em indícios consistentes e não em fantasiosas construções ou optimismo compulsivo – cfr. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4/10/2007 (Proc. 1718/07-2), in dgsi.pt.

Por seu turno, na alínea e) do mesmo número estabelece-se que o pedido de exoneração é também liminarmente indeferido, se constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação da insolvência, nos termos do artigo 186.º do CIRE.

(…)

Nos termos conjugados dos n.ºs 1 e 2, alínea b) do citado artigo 186.º, considera-se culposa a insolvência que tenha sido criada ou agravada como consequência dolosa ou com culpa grave do devedor, nos três anos anteriores à insolvência, bem como quando este tenha criado ou agravado artificialmente o passivo ou prejuízos, celebrando negócios ruinosos em seu proveito.

In casu atento o teor da petição inicial apresentada nos autos, os factos provados na sentença declaratória de insolvência e as várias informações carreadas para os autos pela insolvente, verifica-se que a situação de insolvência da requerente teve lugar em 2004 com o encerramento da actividade da empresa de que é sócia, existindo diversos créditos por pagar, sendo que a insolvente apresentou-se à insolvência a 15/04/2014.

Mais se apurou que em 29/05/2007 contraiu um crédito ao consumo com a S... no valor de 9.335,00€ para adquirir um veículo automóvel, obrigando-se ao pagamento de 84 prestações mensais, que não pagou, tendo apenas liquidado a primeira prestação no valor de 171,02€, acabando o veículo por ser judicialmente apreendido a 6/07/2009 (cfr. fls. 177 e 181).

Sendo que é a própria insolvente que afirma que em 18/05/2007 foram instauradas contra a insolvente duas execuções, uma das quais foi extinta por insuficiência de bens, não tendo o credor recuperado nenhuma parte da quantia exequenda, prosseguindo a outra execução com a penhora do salário da insolvente (cfr. fls. 170/171).

Compulsado o apenso de reclamação de créditos constata-se que a insolvente subscreveu e avalizou duas livranças com a S... no valor global de 21.890,94€ a 28/07/2008 e 02/12/2008 com datas de vencimento a 18/08/2008 a 23/12/2008, respectivamente, não tendo sido paga qualquer quantia (cfr. fls. 15-42 do apenso A).

Mais se verifica que a insolvente a 21/01/2014 assinou na qualidade de fiadora em benefício de M... uma confissão de dívida e acordo de pagamento em 40 prestações do montante de 12.099,00€ referente a 36 facturas vencidas entre 30/08/2007 e 24/06/2008, apenas tendo liquidado a primeira prestação no valor de 300€ (cfr. fls. 43-109 do apenso A).

Tal como se observa que a 1/03/2006 a insolvente e o seu ex-marido EE assinaram uma declaração por via da qual confessaram-se devedores da quantia de 85.000,00€ à credora CC, a qual se comprometeram a pagar em 170 prestações mensais de 500€, tendo apenas liquidado as primeiras duas prestações (cfr. fls. 119-147 do apenso A).

Sendo que a 8/04/2003 também já tinha subscrito juntamente com o seu ex-marido outra declaração de assunção de dívida no valor de 24.504,49 € a favor de N... comprometendo-se a pagar em prestações mensais, iguais e sucessivas de 750€ com início em maio de 2003, que não pagaram (cfr. fls. 110-118 do apenso A).

Resultam assim dos autos factos que nos permitem concluir, à luz das regras da experiência comum, que a requerente, pelo menos no ano de 2007, sabia que a sua situação de insolvência era definitiva, no sentido de não ser alterável a curto prazo, ou que não pudesse deixar de disso estar consciente, a não ser por inconsideração grave, pois desde há 3 anos que a empresa de que era titular tinha cessado a actividade, não tinha quaisquer bens e o seu vencimento era insuficiente para o pagamento dos vários créditos que tinha assumido, estando pendentes contra si duas execuções com o valor global de 37.989,76€.

Do mesmo, afigura-se evidente que a insolvente agravou com culpa sua a sua situação de insolvência ao decidir, já depois da propositura de duas acções executivas, contrair um crédito destinado ao consumo para aquisição de um veículo automóvel (Peugeot 307) que nem sequer é um modelo da gama mais baixa dessa marca, quando a insolvente vive e trabalha em Castelo de Vide (...), tratando-se de uma pequena vila alentejana em que as pessoas se deslocam maioritariamente a pé sendo o trânsito automóvel e estacionamento muito dificultado no centro histórico conforme é do conhecimento comum.

A propósito veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de // (Proc. ) [reporta-se ao acórdão da RC de 12/11/2012, proc. nº. 1194/11.5T2AVR-E que, certamente por lapso, não indicou], in dgsi.pt, assim sumariado:

«I – O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo pressupõe a efectiva verificação de alguma das situações a que alude o art. 238º, nº 1, do CIRE o que, no caso da alínea d), supõe a efectiva constatação e demonstração de que o devedor não se apresentou à insolvência dentro dos prazos que aí são mencionados, que esse facto determinou prejuízo para os credores e que o devedor sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

II – O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo – e que, não podendo ser presumido, tem que decorrer dos factos demonstrados ou evidenciados nos autos – não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor, mas sim o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, o prejuízo sofrido pelos credores que teria sido evitado caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno.

III – A afirmação de tal prejuízo pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).

IV - O mero vencimento de juros moratórios é insuficiente para integrar o conceito de prejuízo a que alude a norma em questão.» (negrito nosso).

E a prova notória de que a insolvente não tinha capacidade financeira para ter adquirido tal bem de consumo e contraído novo crédito absolutamente dispensável é o facto de só ter pago a primeira prestação, sendo que manteve o bem na sua posse durante mais de dois anos, forçando o credor a recorrer a uma providência cautelar de apreensão de veículo automóvel para recuperar o bem.

Aliás é possível detectar este padrão de comportamento nas restantes assunções de dívida e compromissos de pagamento em prestações que efectuou com vários credores, muitas já depois de 2007 (2009 e 2014), em que só uma ou no máximo duas prestações eram pagas.

Resulta assim demonstrado que a conduta da requerente para com os credores não foi lícita, honesta, transparente e de boa fé, não se justificando, desta forma, e pelos fundamentos supra expostos, dar-lhe uma nova oportunidade. Por maioria de razão, existem também elementos que indiciam, com toda a probabilidade, a existência de culpa da devedora, pelo menos, no agravamento da situação da insolvência, nos termos do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE.

Como bem considerou o Acórdão da Relação do Porto de 12-11-2009 (Proc. 591/09.0TBVCD-A.P1), in dgsi.pt a propósito de um caso semelhante: «É indiscutível que tal comportamento por parte da insolvente não é inocente, e objectivamente, prejudicou os credores.»

«1- O instituto da exoneração do passivo restante em processo de insolvência permite ao devedor que seja uma pessoa singular exonerar-se dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo respetivo ou nos cinco anos subsequentes ao encerramento deste.

2- É motivo de indeferimento liminar do incidente, a não apresentação nos seis meses seguintes á verificação da insolvência, com prejuízo para os credores e conhecimento da inexistência de perspetivas sérias de melhoria da situação económica.

3- Para preenchimento destes requisitos terá que se dar ênfase particular à conduta do devedor, devendo apurar-se se esta se pautou pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé, no que respeita á sua situação económica, visando-se com tal exigência os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles que originem novos débitos, a acrescer aos que integravam o passivo que estava impossibilitado de satisfazer, sempre em desconformidade com uma atuação honesta.» - cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 10-07-2014 (Proc. 2503/13.8TBGMR-A.G1), in dgsi.pt.

Resulta, destarte, demonstrada a verificação de duas das situações previstas para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (artigo 238.º, n.º 1, alíneas d) e e) do CIRE).”

Do trecho da decisão recorrida que acabamos de transcrever verifica-se que o Tribunal “a quo” indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela requerente/insolvente, por considerar verificados os fundamentos previstos nas alíneas d) e e) do nº. 1 do artº. 238º do CIRE nos termos expostos.

A recorrente discorda da decisão recorrida argumentando, além do mais, que cabe aos credores e ao administrador de insolvência o ónus de alegar e provar factos impeditivos do pedido de exoneração do passivo restante, o que não sucedeu no caso concreto.

Perante isto, entende a recorrente que não cabe ao Tribunal substituir-se aos credores, não podendo, por isso, decidir-se pelo indeferimento liminar, como decidiu, em violação do disposto no artigo 238º do CIRE.

Vejamos se lhe assiste razão.

De acordo com o disposto na alínea d) do nº. 1 do artº. 238º do CIRE, o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido desde que se verifiquem os seguintes requisitos cumulativos:

a) - a não apresentação à insolvência ou apresentação à insolvência para além do prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência;

b) - a existência de prejuízos para os credores decorrentes desse comportamento do devedor;

c) - o devedor sabia ou não podia ignorar que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Assim, a apresentação tardia à insolvência só releva em desfavor do insolvente, no âmbito da concessão da exoneração do passivo restante, se esse facto implicar prejuízo concreto e efectivo para os credores.

O prejuízo exigido pelo citado dispositivo legal implica uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência, decorrente do aumento do passivo ou da diminuição do activo que, entretanto, tenha ocorrido.

Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 25/06/2013, proferido no proc. nº. 723/12.1T2AVR-C (acessível em www.dgsi.pt): “Para a verificação da situação prevista na norma citada não se exige que o devedor esteja ciente e perfeitamente consciente de que não existe qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica, bastando, para o efeito, que ele não pudesse ignorar, sem culpa grave – e portanto, sem uma violação grosseira dos mais elementares deveres de cuidado e prudência –, que tal perspectiva não existia”.

Por sua vez, o preenchimento do requisito enunciado na alínea e) do citado nº. 1 do artº. 238º do CIRE pressupõe que existam nos autos elementos que indiciem, com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência (cfr. acórdão da RG de 10/07/2014, proc. nº. 2503/13.8TBGMR-A, acessível em www.dgsi.pt).

O conceito de culpa, apreciado à luz do critério legal definido no artº. 487º, nº. 2 do Código Civil, e tendo em conta o disposto nos artºs 238º, nº. 1, al. e) e 186º ambos do CIRE, refere-se a uma “(…) conduta que, não sendo dolosa, é todavia grosseiramente descuidada, e por isso merecedora de uma acentuado grau de reprovação e censura. Falamos de uma manifesta violação dos deveres de diligência e cuidado que deve ter um bom pai de família (…)” - cfr. acórdão da RG de 21/05/2013, proc. nº. 2998/12.7TBGMR-E; neste sentido vide também acórdão da RG de 10/07/2014, proc. nº. 2503/13.8TBGMR-A, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

Ora, em face dos factos acima enunciados, não podemos deixar de concordar com a posição assumida na decisão recorrida ao concluir que se verificam “in casu” as situações previstas nas duas alíneas supra mencionadas, pelas razões que ali se encontram detalhada e exaustivamente explanadas e que merecem a nossa concordância.

Com efeito, no caso em apreço, para além de estar demonstrada a apresentação tardia da devedora à insolvência, conclui-se que a recorrente sabia, pelo menos desde 2007, que a sua situação de insolvência era definitiva, porquanto:

- a empresa de que era sócia tinha cessado actividade há mais de 3 anos, tendo a recorrente, durante o período de actividade da empresa, avalizado e afiançado diversas obrigações que esta assumiu;

- em Março de 2006, a insolvente e seu ex-marido assinaram uma declaração em que confessaram ser devedores da quantia de € 85 000,00 à credora CC, que se comprometeram a pagar em 170 prestações mensais de € 500, tendo apenas liquidado as primeiras duas prestações;

- já em Abril de 2003, a insolvente e seu ex-marido haviam subscrito outra declaração de assunção de dívida no valor de € 24 504,49 a favor de N..., quantia esta que se comprometeram a pagar em prestações mensais de € 750, com início em Maio de 2003, que não pagaram.

Para além disso, desde aquela altura, a insolvente/recorrente sabia que não tinha quaisquer bens ou rendimentos suficientes para pagar os créditos que tinha assumido.

Mais se concluiu que a recorrente tinha agravado a sua situação, por culpa sua, ao decidir, já depois de instauradas duas acções executivas contra si, contrair um crédito ao consumo destinado à aquisição de um veículo automóvel, no valor de € 9 335,00, sabendo que não tinha capacidade financeira para o pagar, tendo apenas liquidado a primeira prestação de um total de 84 prestações mensais.

Considerando a contracção de novas dívidas sem ter havido qualquer correspectivo aumento do rendimento da insolvente, ora recorrente, há que concluir que a não apresentação tempestiva à insolvência implicou um prejuízo concreto e efectivo para os credores, que se viram confrontados com um aumento do passivo da devedora, minorando as hipóteses de verem ressarcidos os seus créditos.

O endividamento da devedora foi-se avolumando de tal forma que, quando se apresentou à insolvência, o montante do seu passivo já era superior a € 180 000,00, tinha a correr contra si vários processos executivos e o seu rendimento mensal era de apenas € 616,81.

Por outro lado, a recorrente, ao avolumar os créditos sem alteração do seu rendimento, não podia ter qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Verifica-se, pois, que houve um agravamento da sua situação de insolvência, e de forma manifestamente censurável, tendo por referência as regras da prudência e sensatez que são de exigir a um cidadão médio na gestão da sua vida, que não teria este comportamento, pois a recorrente optou por recorrer a contratos de crédito e assumir várias obrigações que implicaram encargos elevados que não consegue cumprir, agravando o seu passivo e diminuindo, por essa via, as possibilidades de os credores recuperarem o valor dos seus créditos.

Face a todo o comportamento da recorrente supra descrito, o Tribunal “a quo” decidiu, como não poderia deixar de ser, que a mesma não teria agido de forma transparente e de boa fé, não se justificando, no caso concreto, dar-lhe uma nova oportunidade, o denominado “fresh start” que está subjacente ao instituto da exoneração do passivo restante.

Aliás, não vislumbramos que a recorrente tenha posto em causa a factualidade e os fundamentos em que se estribou o Tribunal “a quo” para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por ela formulado.

Na verdade, o que a recorrente questiona é o facto do Tribunal ter decidido em função dos elementos constantes dos autos, e não com base em factos alegados e provados por credores, entendendo que não é ao devedor que compete apresentar prova dos requisitos previstos nas alíneas do nº. 1 do artº. 238º do CIRE, mas sim aos credores e ao administrador da insolvência, não podendo o Tribunal substituir-se àqueles.

Assiste razão à insolvente/recorrente quando refere que o devedor não tem de fazer prova dos requisitos previstos no nº. 1 do artº. 238º do CIRE, competindo aos credores e ao administrador da insolvência apresentar prova no intuito de obstar ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante (artº. 342º, nº. 2 do Código Civil).

Com efeito, e na sequência do que tem sido maioritariamente defendido na jurisprudência dos tribunais superiores, os fundamentos previstos nas alíneas do nº. 1 do artº. 238º do CIRE consubstanciam factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, donde a sua alegação e prova competirá aos credores ou ao administrador da insolvência, uma vez que o insolvente tem o direito potestativo a que o seu requerimento seja admitido e submetido à assembleia de credores sem que tenha de apresentar prova daqueles requisitos, bastando-lhe declarar expressamente que os preenche, como decorre do disposto no nº. 3 do artº. 236º do CIRE, ao impor que do requerimento conste expressamente tal declaração e a disposição de observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes (cfr. acórdãos do STJ de 19/06/2012, proc. nº. 1239/11.9TBBRG-E e de 21/03/2013, proc. nº. 1728/11.5TJLSB-B; acórdão da RE de 22/11/2012, proc. nº. 1110/11.4TBENT-D, todos acessíveis em www.dgsi.pt).

Ora, contrariamente ao que a recorrente pretende fazer crer, o Sr. Administrador da Insolvência, pese embora não se tenha pronunciado contra o pedido de exoneração do passivo restante, no seu Relatório constante de fls. 100 e 101 mencionou factos impeditivos da concessão daquele direito à insolvente, para além de que carreou para os autos vários elementos comprovativos desses factos.

Para além disso, embora nenhum credor tenha estado presente na Assembleia de Credores para apreciação do relatório do Sr. Administrador da Insolvência e apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, posteriormente a credora CC, Lda., na sequência de notificação que lhe foi feita, veio opor-se ao referido pedido, alegando factos que, em seu entender, deveriam obstar à concessão de tal benefício à devedora e juntando aos autos documentos comprovativos desses factos, inclusive do montante do crédito que detém sobre a devedora/insolvente e, consequentemente, do prejuízo que sofreu em face do não pagamento do mesmo.

Por outro lado, mesmo que tal circunstancialismo não se verificasse, argumentar que o Tribunal “a quo” deveria ter feito tábua rasa de todos os elementos que existem nos autos para fundamentar a sua decisão, implica, quanto a nós e com o devido respeito, dizer que o Tribunal deveria abster-se de decidir, de exercer o seu dever.

Na verdade, constando dos autos todos os elementos que permitem e conduzem à decisão tomada, o Tribunal não poderá ignorar tais elementos e proferir uma decisão meramente formal, completamente afastada da realidade plasmada no processo.

Nestes termos, improcede o recurso interposto pela insolvente.




III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela insolvente BB e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do disposto no artº. 248º do CIRE.



Évora, 11 de Junho de 2015
(Maria Cristina Cerdeira)
(Maria Alexandra Moura Santos)
(António Manuel Ribeiro Cardoso)