Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
430/16.6T8TNV-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESTITUIÇÃO DE BENS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
I- Estando findo um contrato de locação financeira, nos termos do art.º 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 149/95, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, e caso o locatário não tenha exercido a opção de compra, o locador pode reaver para si o bem locado.
II- Não obsta a tal restituição o facto de o locatário ter sido, depois da resolução do contrato, declarado insolvente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

AA, requereu contra BB S.A., procedimento cautelar de entrega judicial, nos termos do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008 de 25 de Fevereiro, sobre o veículo de matrícula 00-XX-00.
*
Tal procedimento foi julgado procedente, a 4 de Julho de 2016, e ordenada a entrega do veículo.
*
A requerida informou ter sido decretada a sua falência, a 29 de Junho de 2016, e requereu a suspensão da presente lide.
*
Foi, então, proferido o seguinte despacho:
«Não resultando dos elementos constantes dos autos que o bem que constituiu objeto do presente procedimento cautelar integre a massa insolvente (cf. alínea G) dos factos indiciariamente provados, constantes do despacho que decretou a providência cautelar) – pressuposto da aplicação do artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – indefere-se a requerida suspensão da instância».
*
Deste despacho vem interposto o presente recurso cujas alegações terminam da seguinte maneira:
A) A Recorrente é uma sociedade comercial que foi declarada insolvente, através de sentença judicial proferida no dia 29 de Junho de 2016, ao meio-dia, constando esta informação dos presentes autos de providência cautelar.
B) Atenta a declaração de insolvência da Recorrente e tendo esta tomado conhecimento da existência da presente providência cautelar a qual foi decidida em data ulterior à declaração da insolvência, informou de imediato os presentes autos, tendo igualmente sido requerida a suspensão do procedimento cautelar em causa, ao abrigo do que determina o artigo 88.º, n.º 1, do CIRE.
C) Atento o que determina o citado artigo, deveria o Tribunal “a quo” ter decidido pela suspensão do presente procedimento cautelar, atento o facto desta ter sido decretada ulteriormente à declaração de insolvência da Recorrente e por estar em causa uma providência que foi requerida por um credor da Recorrente e que atinge um bem integrante da massa insolvente.
D) Com efeito, ao contrário do que decorre do Douto Despacho de que ora se recorre, o bem em causa nos autos, não obstante tenha subjacente um contrato de locação financeira, deverá ser visto como um bem integrante da massa insolvente, não exigindo a lei a efectiva propriedade do bem por parte da Insolvente.
E) Acresce que não se pode descurar o que decorre do artigo 102.º, n.º 1, do CIRE, que acarreta a suspensão do cumprimento do contrato de locação financeira até que o Senhor Administrador da Insolvência sobre ele se pronuncie, mantendo-se pois o bem na esfera jurídica, bem como na posse da Recorrente, facto que não foi tido em devida conta por parte do tribunal “a quo”.
F) Atento o que determina o supra citado artigo 102.º, do CIRE, afigura-se evidente que o Senhor Administrador da Insolvência tem “uma palavra a dizer” sobre o cumprimento do contrato de locação em causa.
G) De igual forma, a Recorrente já apresentou plano de insolvência no passado dia 20 de Julho de 2016, no processo respectivo, em que opta, na sua página 23, pelo cumprimento do contrato de locação financeira em causa.
H) Devia a Recorrida ter aguardado por uma decisão do Senhor Administrador e/ou da Recorrente quanto à sua opção de execução ou recusa do cumprimento do contrato, tendo sido manifestamente precipitada a interposição da presente providência cautelar.
*
O recorrido contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
*
Foram colhidos os vistos.
*
Na sentença que decretou a restituição, foram considerados, entre outros, os seguintes factos:
A) No exercício da sua atividade, a requerente celebrou com a requerida, em 23/03/2012, um acordo denominado contrato de locação financeira n.º 408646, com início em 28/03/2012 e termo em 28/03/2016, pelo qual cedeu à requerida o gozo do veículo automóvel de matrícula 00-XX-00, pelo período de 48 meses, podendo a requerida, findo esse período, adquirir o veículo pelo valor de €6.097,55,90.
E) A requerente remeteu à requerida carta registada com aviso de recepção, para morada constante do acordo referido no ponto 1, datada de 5 de Maio de 2016, a solicitar a devolução imediata da viatura e o pagamento das quantias em dívida à data do termo do acordo.
F) A requerida não restituiu a viatura automóvel à requerente.
G) O direito de propriedade sobre o veículo encontra-se registado a favor da requerente.
Tem-se ainda em conta que a insolvência foi decretada a 29 de Junho de 2016.
*
O essencial das alegações prende-se com a defesa da qualidade de bem integrante da massa insolvente a respeito do veículo cuja restituição se ordenou. A ser assim, o presente procedimento deve ser suspenso, nos termos do art.º 88.º, CIRE.
Mas o veículo não integra a massa insolvente. Esta é constituída pelo património do devedor à data da declaração da insolvência (art.º 46.º, n.º 1, CIRE) e o veículo locado não cabe nesse património. Como se escreve no ac. da Relação de Lisboa, de 18 de Setembro de 2008, a «providência cautelar (decretada antes da declaração da insolvência) não atinge os bens integrantes da massa insolvente, (eram bens pertença da agravante) pelo que não existe fundamento para ordenar a sua suspensão». E se for decretada depois da declaração de insolvência, ainda assim o problema não é de o bem integrar ou não o respectivo património mas sim o de execução do contrato de locação (como adiante se dirá).
O veículo sempre foi propriedade da recorrida que o cedeu à recorrente com base num contrato de locação financeira. Tal é o que decorre do art.º 1.º (que define o tipo de contrato) bem como do art.º 7.º (poderes do locador findo o contrato) do Decreto-Lei n.º 149/95. Por um lado, o contrato não transmite a propriedade dos bens locados (o que é próprio da locação); isto mesmo é realçado pela opção de compra, decorrido o período combinado, que o locatário tem. Por outro lado, findo o contrato, e não se realizando esta opção, o locador pode dispor do bem, vendendo-o, dando-o em locação de novo, etc., o que inculca bem que o locatário só tem o domínio do bem depois de ter optado pela sua compra. Até lá o bem pertence e está na disponibilidade do locador.
O problema não é o de o veículo pertencer à massa insolvente, caso em que se aplicaria o art.º 88.º, CIRE; o problema não é de propriedade mas sim de contrato — e a lei, como se verá de seguida, prevê a situação.
*
No nosso caso, outros argumentos levam a manter o despacho recorrido.
É que o contrato foi resolvido em data anterior à da sentença que decretou a insolvência, como nota a recorrida. O contrato cessou em Março de 2016, nos termos do art.º 1.º citado, ou seja, findo o período combinado. A partir deste momento, e uma vez que não houve opção de compra, a recorrente podia reaver para si o veículo, nos termos do citado art.º 7.º.
Não há que aplicar aqui as disposições do CIRE que regulam os poderes do administrador de insolvência sobre os contratos. Com efeito, como resulta da epígrafe do Cap. IV do Título IV do CIRE, esta regulamentação tem por objecto «negócios em curso», o que logo afasta do seu âmbito de aplicação os negócios já concluídos (pelo cumprimento ou por outro motivo). Assim, o art.º 102.º, CIRE, refere-se a contratos que, à data da insolvência, não estejam integralmente cumpridos; ou seja, refere-se a contratos vigentes. Da mesma forma, e mais especificamente, o art.º 108.º refere-se a contratos de locação também vigentes (a «declaração de insolvência não suspende o contrato de locação»).
Mas no nosso caso, já não havia contrato quando foi decretada a insolvência pois ele tinha sido resolvido pela recorrente, nos termos normais de direito (art.º 436.º, n.º 1, Cód. Civil, e art.º 17.º, n.º 1, do regime de locação financeira). A sentença que ordena a restituição do veículo não decreta a resolução do contrato, apenas a tem como elemento de base para a restituição.
Findo o contrato, repete-se, o locador readquire total disponibilidade sobre o bem.
*
Assim, não tem lugar a aplicação do art.º 88.º, CIRE.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 6 de Outubro de 2016


Paulo Amaral


Francisco Matos

Tomé Ramião