Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
359/21.6T9TNV.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: ERRO DOS SERVIÇOS.
SEGURANÇA JURÍDICA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
BOA-FÉ
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Impõem o princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança – que decorrem do princípio do Estado de Direito ínsito no artigo 2.º da CRP, entendido como uma dimensão do princípio da boa fé e que constitui um dos princípios jurídicos fundamentais da atividade administrativa consagrados no n.º 2 do artigo 266.º da CRP – que os sujeitos processuais afetados por erros das secretarias judiciais – maxime quando esteja em causa a perda do direito ao recurso – deverão sempre ver admitidos os seus atos afetados pelo erro e que a interpretação das normas processuais, concretamente do artigo 157.º n.º 6 do CPC, aplicável ao processo penal ex vi do artigo 4.º do CPP, deverá ser feita com salvaguarda dos aludidos princípios.
II - Não poderá deixar de admitir-se o requerimento de interposição de recurso de impugnação judicial de decisão contraordenacional, conquanto se constata que o mesmo foi apresentado com respeito pelo prazo que, embora erradamente, foi concedido à arguida na notificação enviada pela Autoridade Administrativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Torres Novas, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, com o n.º 359/21.6T9TNV, foi proferido despacho de não admissão do recurso de impugnação da decisão administrativa de contraordenação apresentado pela arguida LUZ.
Inconformada com tal decisão, veio a arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“A. A Arguida apresentou recurso de impugnação judicial no seguimento de decisão condenatória contra si proferida pela ASAE.
B. A referida decisão foi proferida no dia 24 de novembro de 2020 e notificada à Arguida no dia 5 de Abril de 2021.
C. Nessa notificação vinha indicado expressamente o seguinte (transcrição, sublinhado é nosso), Mais fica notificado de que esta decisão é suscetível de impugnação judicial por recurso, que será feito por escrito e apresentado na sede desta ASAE, no prazo de 20 dias úteis, cuja contagem se inicia três dias após o registo dos CTT desta notificação…
D. Em face disto, seria da mais curial razoabilibidade que na contagem do prazo recursal de 20 dias úteis, conforme previsto no Regime Geral das Contraordenações, se acrescentassem os três dias concedidos a mais pela Autoridade Administrativa, o que faria com que o términus do prazo caísse no dia 6 de Maio e não no dia 3 de Maio, data aquela, justamente, em que deu entrada o recurso de impugnação da Arguida.
E. O douto despacho recorrido, não teve em conta este aspeto, ao considerar apenas os 20 dias úteis legais, sem contabilizar no prazo para recurso o acrescento que o (então) decisor administrativo havia concedido.
F. O assunto aqui em discussão mereceu já a atenção da Jurisprudência, a qual se tem mostrado receptiva ao argumento de que não é de desconsiderar o “bónus” para efeito de prazo de recurso, que a Autoridade Administrativa tenha concedido, sempre que isso esteja exarado na respetiva notificação – como aqui foi o caso.
G. Nesse sentido, e por todos, o acórdão da Relação de Évora, assim sumariado, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora Processo: 179/10.3TBORQ.E 1Relator: MARTINHO CARDOSO Data do Acórdão: 12-07-2012 (…)
Sumário: 1. O prazo de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não é um prazo judicial, sendo-lhe, por conseguinte, inaplicáveis as regras do processo civil e do processo penal.
2. Tendo a autoridade administrativa feito constar da notificação que efetuou à arguida que “a decisão é suscetível de impugnação judicial por recurso, que será feito por escrito e apresentado na sede desta Comissão, no prazo de 20 dias úteis, cuja contagem se inicia três dias após o registo dos CTT desta notificação, devendo constar de alegações sumárias e conclusões”, não deve ser rejeitado, por extemporaneidade, o recurso interposto em conformidade com os termos dessa notificação.
3. Os princípios da confiança e da segurança jurídicas impõem que, independentemente de estar correto ou incorreto o teor daquela notificação, ela deva ser considerada como o verdadeiro regulador do regime recursal no caso concreto.
Tanto mais quanto a dita notificação foi feita a um representante da sociedade arguida e não a qualquer mandatário judicial.”
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que admita o recurso de impugnação judicial interposto pela arguida.
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua procedência e pela consequente revogação da decisão recorrida e tendo concluído - ainda que sem a apresentação de conclusões formalmente enunciadas - da seguinte forma:
“Da análise do objeto do recurso, resulta que, tendo a entidade administrativa feito uso da notificação através de carta registada com aviso de receção e tendo nessa notificação feito constar que “ esta decisão é suscetível de impugnação judicial por recurso, que será feito por escrito e apresentado na sede desta ASAE, no prazo de 20 dias úteis, cuja contagem se inicia três dias após o registo dos CTT desta notificação “, por razões de certeza e segurança jurídicas e como melhor explanado no Douto Acórdão Judicial citado pela Recorrente e supra transcrito, os prazos que a entidade administrativa informou a Recorrente na notificação que lhe foi dirigida foram esses, pelo que são esses os prazos que a Recorrente teve em consideração e dos quais fez uso, tendo apresentado o recurso de impugnação judicial no último dia do prazo, resultante da tomada em consideração do prazo de 20 dias úteis, cuja contagem se iniciou três dias após o registo dos CTT dessa notificação.
Face ao exposto e salvo melhor entendimento, sufragamos o entendimento da Recorrente constante no seu recurso, bem como o perfilhado no Douto Acórdão Judicial do Venerando Tribunal da Relação de Évora supra citado. Com efeito, tendo a entidade administrativa observado o disposto no art. 46, do Regime Geral das Contra-Ordenações quanto à comunicação da decisão administrativa que aplicou a coima, com indicação do prazo e forma de impugnação, não poderia a Recorrente deixar de ter em consideração o prazo que, no caso concreto e de forma expressa, lhe foi notificado pela entidade administrativa, não podendo em fase posterior da tramitação processual, nomeadamente, já na fase de recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, diminuir-se tal prazo de que a Recorrente beneficiou e até fez uso do mesmo, tendo apresentado o recurso no último dia do prazo.
Em consequência, consideramos que o recurso apresentado deverá merecer provimento e o Douto despacho judicial ser substituído por outro que admita o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa em sede de processo de contraordenação por ter sido tempestivamente apresentado. Pelo exposto, deverá o recurso interposto ser julgado procedente, substituindo-se o Douto despacho judicial por outro que admita o recurso de impugnação judicial de decisão administrativa em processo de contraordenação por ter sido tempestivamente apresentado, mas Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.”
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A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado pela procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta com o exclusivo propósito de consignar as normas jurídicas violadas pela decisão recorrida.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
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Assim, considerando as conclusões apresentadas pelo recorrente, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:
- Determinar se o recurso de impugnação da decisão administrativa de contraordenação foi apresentado pela arguida tempestivamente e, consequentemente, se a decisão recorrida, ao não admitir tal recurso, violou os critérios legalmente previstos para o efeito.

II.II - A decisão recorrida.
A apresentação do requerimento da arguida de interposição de recurso de impugnação judicial da decisão administrativa mereceu por parte do tribunal a quo a seguinte decisão:
“O recurso interposto pela arguida LUZ. é legalmente admissível, interposto por quem tem legitimidade para o efeito e contém alegações e conclusões, ao abrigo do disposto no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10.
No entanto, o recurso não pode ser admitido por ter sido interposto fora de prazo.
A arguida foi condenada por decisão administrativa proferida pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica numa coima no valor de €350,00 (trezentos e cinquenta euros).
A decisão foi proferida em 24 de novembro de 2020 e notificada à arguida em 05 de abril de 2021, através de carta registada com aviso de receção, remetida à arguida em 01 de abril de 2021 e cujo aviso de receção se mostra devidamente assinado em 05 de abril de 2021 (cfr. fls. 21 e verso e 48).
Assim, o prazo de 20 dias de interposição do recurso de impugnação da decisão administrativa iniciou-se em 06 de abril de 2021, data em que já estava em vigor a Lei n.º 13- B/2021, de 05 de abril, que revogou o artigo 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, pelo que, à data em que se iniciou o referido prazo de 20 dias já não vigorava o regime da suspensão dos prazos para a prática de atos em procedimentos contraordenacionais.
O prazo de 20 dias de interposição do recurso de impugnação da decisão administrativa terminou, assim, no dia 03 de maio de 2021, uma vez que se trata de prazo administrativo que se suspende aos sábados, domingos e feriados (cfr. artigo 60.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10).
Acresce que, não tendo natureza judicial aquele prazo de interposição do recurso de impugnação, não é aplicável à contagem desse prazo o disposto no artigo 107.º, n.º 5, do C.P.P. e no artigo 139.º, n.º 5, do C.P.C., que permite a prática do ato dentro dos três primeiros dias úteis seguintes ao termo do prazo, mediante o pagamento de multa.
Face ao exposto, uma vez que a arguida apresentou o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa em 06 de maio de 2021 (cfr. fls. 23), conclui-se que o mesmo foi interposto fora do prazo.
Assim, por intempestivo, não admito o recurso interposto pela arguida LUZ – cfr. artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10.
Custas pela arguida que se fixam no mínimo legal.
Notifique. Após trânsito, abra conclusão.”.
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II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Compulsados os autos, constatamos que, para análise da questão que somos chamados a apreciar, releva a seguinte factualidade, parcialmente consignada na decisão recorrida e que não se encontra posta em causa no recurso:
- A arguida foi condenada por decisão administrativa proferida pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica numa coima no valor de €350,00 (trezentos e cinquenta euros).
- A decisão foi proferida em 24 de novembro de 2020 e notificada à arguida em 05 de abril de 2021, através de carta registada com aviso de receção remetida à arguida em 01 de abril de 2021 e cujo aviso de receção se mostra devidamente assinado em 05 de abril de 2021.
- De tal notificação consta que: “Mais fica notificado de que esta decisão é suscetível de impugnação judicial por recurso, que será feito por escrito e apresentado na sede desta ASAE, no prazo de 20 dias úteis, cuja contagem se inicia três dias após o registo dos CTT desta notificação”.
- A arguida apresentou o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa em 06 de maio de 2021.
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Defende a arguida no seu recurso dever ser revogada a decisão recorrida porquanto “Tendo a autoridade administrativa feito constar da notificação que efetuou à arguida que “a decisão é suscetível de impugnação judicial por recurso, que será feito por escrito e apresentado na sede desta Comissão, no prazo de 20 dias úteis, cuja contagem se inicia três dias após o registo dos CTT desta notificação, devendo constar de alegações sumárias e conclusões”, não deve ser rejeitado, por extemporaneidade, o recurso interposto em conformidade com os termos dessa notificação.
3. Os princípios da confiança e da segurança jurídicas impõem que, independentemente de estar correto ou incorreto o teor daquela notificação, ela deva ser considerada como o verdadeiro regulador do regime recursal no caso concreto.”
Cremos, que, efetivamente, lhe assiste razão.
Vejamos.
O prazo para apresentação do recurso da decisão administrativa que tiver aplicado uma coima e a sua forma de contagem encontram-se estabelecidos nos artigos 59º e 60º do RGCO, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, nos seguintes termos:
“Artigo 59.º
Forma e prazo
1 - A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.
2 - O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor.
3 - O recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.
Artigo 60.º
Contagem do prazo para impugnação
1 - O prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados.
2 - O termo do prazo que caia em dia durante o qual não for possível, durante o período normal, a apresentação do recurso, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte.”
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Primeiramente importa assentar em que o prazo de recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa é de 20 dias, suspendendo-se a sua contagem aos sábados, domingos e feriados. É o que expressamente resulta das normas transcritas.
Ora, na situação dos autos, tendo a decisão administrativa sido notificada à arguida em 05 de abril de 2021 e tendo aquela apresentado o recurso de impugnação judicial de tal decisão 06 de maio de 2021, efetuada a contagem do prazo de 20 dias com aplicação das regras acima definidas, constatamos, efetivamente, que, conforme consta da decisão recorrida, o recurso se apresentaria como extemporâneo, uma vez que o prazo respetivo teria terminado no dia 03 de maio de 2021.
Sucede, porém, que, na situação que nos ocupa, não poderemos ignorar a intercorrência a que se alude no recurso, qual seja a de que na notificação enviada pela Autoridade Administrativa à arguida se fez constar a informação errada de que a contagem do prazo de 20 dias de que aquela dispunha para impugnar a decisão administrativa se iniciaria três dias após o registo da notificação pelos CTT e não no dia seguinte àquele em que se mostrasse assinado o aviso de receção.
O que se encontra em causa no presente recurso, como bem assinalam quer a recorrente, quer o Ministério Público na sua resposta, é a violação dos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica.
Contrariamente ao que se afirma na decisão recorrida – e pese embora o prazo legalmente estabelecido para a apresentação da impugnação da decisão administrativa já tivesse decorrido aquando da apresentação do requerimento contendo tal impugnação pela recorrente – não poderá deixar de admitir-se o requerimento de interposição de recurso, conquanto se constata que o mesmo foi apresentado com respeito pelo prazo que, embora erradamente, foi concedido à arguida pela notificação enviada pela Autoridade Administrativa. De facto, se aos 20 dias úteis previstos nos artigos 59º e 60º do Regime Geral das Contraordenações acima transcritos, somarmos os três dias concedidos a mais na notificação efetuada pela Autoridade Administrativa, constatamos que o fim do prazo de recurso ocorreu, não no dia 3 de maio, mas sim no dia 6 de maio, data em que deu entrada o recurso de impugnação da decisão contraordenacional apresentado pela arguida.
E assim não poderá deixar de decidir-se, a nosso ver, sob pena de violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança na atuação dos serviços responsáveis pelo exercício da função administrativa de apoio à tramitação processual ínsitos no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP.
A respeito da função e deveres das secretarias judiciais – leia-se, no caso presente, serviços de secretaria da autoridade administrativa – e das consequências processuais dos seus erros, dispõe o artigo 157º do CPC, in casu aplicável ex vi do artigo 4º do CPP:
“Artigo 157.º
Função e deveres das secretarias judiciais
1 - As secretarias judiciais asseguram o expediente, autuação e regular tramitação dos processos pendentes, nos termos estabelecidos na respetiva lei de organização judiciária, em conformidade com a lei de processo e na dependência funcional do magistrado competente.
2 - Incumbe à secretaria a execução dos despachos judiciais e o cumprimento das orientações de serviço emitidas pelo juiz, bem como a prática dos atos que lhe sejam por este delegados, no âmbito dos processos de que é titular e nos termos da lei, cumprindo-lhe realizar oficiosamente as diligências necessárias para que o fim daqueles possa ser prontamente alcançado.
(…)
5 - Dos atos dos funcionários da secretaria judicial é sempre admissível reclamação para o juiz de que aquela depende funcionalmente.
6 - Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.»
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O princípio da proteção da confiança, que decorre do princípio do Estado de Direito, e que poderá ser entendido como uma dimensão do princípio da boa fé, constitui um dos princípios jurídicos fundamentais da atividade administrativa consagrados no n.º 2 do artigo 266.º da CRP.
Na generalidade da jurisprudência dos Tribunais Superiores[1], em particular do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, tendo vindo a ser reiteradamente decidido que os sujeitos processuais afetadas por erros das secretarias judiciais –maxime quando esteja em causa a perda do direito ao recurso – deverão sempre ver admitidos os seus atos afetados pelo erro e que a interpretação das normas processuais, concretamente do artigo 157.º n.º 6 do CPC que acabámos de transcrever, deverá ser feita com salvaguarda dos aludidos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica. Assim, pedindo de empréstimo as palavras de Lopes do Rego, no Acórdão do STJ, de 6.05.2011 proferido no proc. nº 566/09.0TBBJA.E1 -A.S1, por si relatado, diremos que “(…) não pode o intérprete e aplicador da lei de processo deixar de ter presentes os princípios fundamentais da confiança, da segurança e da proporcionalidade – que conduzem a que tais preclusões, com particular relevo em matéria de contagem de prazos perentórios, face à severidade dos «efeitos que lhe vão associados, não deverão emergir de interpretações inovatórias ou surpreendentes das regras processuais explicitamente consagradas, com as quais as partes não pudessem razoavelmente contar» (…)”.
No mesmo sentido se pronunciou implicitamente o Tribunal Constitucional no recente Acórdão nº 1150/2017 de 26.09.2019, relatado pelo Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro, disponível no sítio do TC – no caso do acórdão estava em causa a problemática da perda do direito ao recurso em virtude de a parte ter confiado na informação errada da secretaria judicial relativamente à data do trânsito de uma decisão e da conformidade constitucional da interpretação que exclui as certidões judiciais do âmbito de aplicação do n.º 6 do artigo 157º do CPC – no qual podemos ler:
“(…) O n.º 6 do artigo 157.º estabelece uma cláusula geral impeditiva do cerceamento dos direitos processuais das partes por conta de erros imputáveis à secretaria. Aliás, para que possa dizer-se equitativo e modelado para garantir uma tutela jurisdicional efetiva, nenhum processo pode prescindir do respeito pelos princípios da boa fé e da leal cooperação na relação entre as partes, e entre estas e o tribunal (v. os artigos 7.º e 8.º do Código do Processo Civil e o Acórdão n.º 183/2006). À luz desses padrões de conduta, é razoável exigir ao Estado que se iniba de retirar consequências dos vícios ou irregularidades que, sendo inteiramente imputáveis ao seu braço administrativo, determinam a eliminação de oportunidades ou vantagens processuais.(…)”.
Já anteriormente, O Tribunal Constitucional, apreciando a conformidade com a Constituição da interpretação da norma do n.º 3 do artigo 198.º do CPC segundo a qual deveria ser admitido o ato praticado dentro do prazo erroneamente indicado pela secretaria, no Acórdão n.º 719/04, de 21 de Dezembro de 2004, processo n.º 608/03, da 2.ª Secção, Diário da República, II Série, de 3 de Fevereiro de 2005, decidira:
“Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 198.º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual deve ser admitida a defesa do citado para a ação judicial dentro do prazo que lhe foi indicado no caso de irregularidade da sua citação consubstanciada em a secretaria, por erro não corrigido posteriormente, induzido pela circunstância de esta haver tomado a assinatura da pessoa do citado pela assinatura de terceira pessoa, lhe assinalar prazo superior, em cinco dias, ao que a lei concede para essa defesa”.
Idêntico entendimento se consagrou, paradigmaticamente, no Acórdão do STJ de 30.11.2017, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges cujo sumário passamos a transcrever:
“I - A comunicação de despacho de arquivamento ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente é feita mediante aviso postal simples.
II - Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.
III - Ao erro ou omissão referentes a notificações da secretaria judicial são de equiparar atos equívocos, ou de dúbia interpretação, e que possam afetar negativamente direitos dos seus destinatários, desde que a interpretação lesiva que deles possa ser feita, aferido pelo standard interpretativo do destinatário normal – art. 236.º, n.º 1, do CC – possa ser acolhida.
IV - Na dúvida deve entender-se que a parte não pode ser prejudicada por atos praticados pela secretaria judicial, como estatui o art. 157.º, n.º 6, do CPC vigente e preceituava identicamente, o anterior n.º 6 do art. 161.º do CPC.
V - Esta norma constitui emanação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo.
VI - A regulação dos prazos processuais implica com a realização da garantia constitucional do acesso aos tribunais.
VII – A regra estabelecida pelo n.º 6 do art. 157.º do CPC, aplicável no processo penal por força do disposto no art. 4.º, do CPP, no sentido de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial, implica, por exemplo, que o acto da parte não pode “em qualquer caso” se recusado ou considerado nulo se tiver sido praticado nos termos e prazos indicados pela secretaria, embora em contrariedade com o legalmente estabelecido, como ocorre com o estabelecido no n.º 3 do art. 191.º do CPC.”
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Nesta conformidade e pelas razões expostas, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que admita o recurso de impugnação da decisão administrativa apresentado pela arguida, procedendo totalmente o recurso.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida e admitir o recurso de impugnação da decisão administrativa apresentado pela arguida.
Sem custas.
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)
Évora, 8 de março de 2022

Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar

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[1] Cfr. a este propósito, entre outros, e no sentido em que agora decidimos, os seguintes acórdãos, todos disponíveis em wwww.dgsi.pt: Acórdão da 2ª Secção - Contencioso Tributário: TAF do Porto, de 12-04-2018, relatado pela Desembargadora Paula Moura Teixeira; Acórdão da Relação de Évora, de 12.07.2012, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso; Acórdão da Relação de Évora, de 12.03.2019, relatado pelo Desembargador Carlos Berguete Coelho; Acórdão da Relação de Guimarães, de 28.03.2019, relatado pela Desembargadora Margarida Sousa; Acórdão da Relação do Porto, de 21.10.2020, relatado pela Desembargadora Teresa Sá Lopes.