Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
98/10.3IDSTB.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONFLITO DE DEVERES
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1 - O tipo incriminador contido no artigo 105º do RGIT não abrange a “não dedução”, a “não liquidação e “o não recebimento por parte do agente”, mas supõe a prévia dedução ou cobrança da prestação tributária. Isto é, o tipo exige a detenção e não entrega. Não exige a “apropriação” com o sentido de inversão com intuito de apropriação pessoal, para acréscimo de património.
2 - É praticamente unânime a posição de rejeição jurisprudencial da tese de que o pagamento de salários deva prevalecer sobre o pagamento de impostos. No essencial a posição jurisprudencial maioritária assenta na aceitação de que esse conflito de deveres existe e que prevalece a obrigação fiscal.

3 - Cremos, no entanto, que não só não há conflito de deveres relevante, como também se olvidam outros deveres. Desde logo pretende-se que passe despercebido que os deveres não estão em conflito na estrita medida em que devem ser ambos cumpridos e em simultâneo, o dever de pagar salários e o dever de pagar impostos.

4 - Esta é uma suposição da ordem jurídica, a de que uma sociedade comercial, mesmo que desportiva, tenha proventos que sejam superiores às receitas e suficientes para cumprir todos os seus deveres. Descuida-se, assim, o dever de uma prudente gestão por parte de quem invoca esse conflito, sendo que os autos demonstram que, em concreto, a invocação de um dever assenta no incumprimento desse e de outros deveres, na existência de uma gestão reprovável, mesmo que anterior.

5 - Isto redunda, como não poderia deixar de se apontar, num venire contra factum proprium, pois que se vem invocar um “ético” dever de agir socialmente com base numa nada ética violação da obrigação de uma boa gestão, no que constitui uma acção contra o dever ser social.

6 - E descuida-se, também, o dever de apresentação à insolvência da própria sociedade recorrente antes de a situação descambar para a impossibilidade de controlo de gestão e de solvência de dívidas. Esse dever de apresentação à insolvência está previsto no CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), constante do DL 53/2004, de 18/3.

7 - Conceder a quem viola o dever a possibilidade de afirmar a invocação do dever violado como justificação de violação de deveres, que devem subsistir em simultâneo para manter a igualdade com os concorrentes, é beneficiar o infractor.

8 - O não pagamento de impostos é uma forma de falsear a concorrência, para além da verdade “desportiva”. Assim, a pretensão dos recorrentes, antes de ser uma invocação de cariz ético, é uma pretensão a um regime de privilégio, falseador da concorrência.

9 - Consumado o crime pela não entrega atempada da prestação, o pagamento parcial posterior deverá ser considerado em sede de culpa, que não em sede de exclusão da ilicitude. Daí que se não possa aceitar a argumentação dos recorrentes de que, existente um processo de recuperação e paga parte da dívida, se deva considerar extinta a responsabilidade tributária por via de uma hipotética operatividade do artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT.

10 - Há em parte desta alegação um outro mal-entendido: o tribunal não conhece – nem o tribunal recorrido conheceu - da responsabilidade tributária. Aquilo que o tribunal conhece é a responsabilidade criminal por incumprimento atempado de obrigações fiscais.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Processo Comum Colectivo que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum com intervenção de Tribunal colectivo contra:

AA nascido em 04.01.1941, casado, reformado;

BB nascido a 06/05/1957, casado, advogado;

CC, nascido a 15/09/1958, casado, técnico de vendas;

DD, nascido em 11-07/1964, casado e

FUTEBOL CLUBE EE,

imputando aos arguidos AA, BB (com exceção do IVA dos períodos de 2012-05 e 2012-06), CC e FUTEBOL CLUBE EE a prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal (IVA e IRS). na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105º, n" 1 e 5 e 8.° do RGIT, e arts. 12.°, 26.° e 30.°. n." 2 do Código Penal; e de dois crimes de abuso de confiança fiscal (IVA e IRS), na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105, n° 1 e 8.° do RGIT, e arts. 12.°, 26.° e 30.°, nº 2 do Código Penal; e ao arguido DD a prática de um crime de abuso de confiança fiscal (IVA dos períodos de 2012-05 e 2012-06), na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105, n° 1 e 8.° do RGIT, e arts. 12.°,26.° e 30.°, n." 2 do Código Penal.

e ao arguido EE enquanto autora da prática do mesmo crime, face ao disposto no art. 7.º, do RGIT.


*

Por despacho exarado a fls. 1062 foi determinada a apensação do processo nº 184/13.8 IDSTB do 2º Juízo Criminal deste Tribunal no qual o M.P. acusou os arguidos AA, BB, CC, PAULO FERNANDO FREITAS OLIVEIRA e " FUTEBOL CLUBE EE",
Imputando-lhes a prática, em coautoria, e em concurso real, de um crime de abuso de confiança fiscal, agravado, na forma continuada, p. e p. art.° 105°, nºs 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias ( Lei n." 15/2001, de 5/06) e do art.° 30° nº 2 do Cód. Penal e de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo art." 105º n." 1 do RGIT e 30°, n." 2 do Cód. Penal.
A tal processo já tinha sido determinada a apensação, a fls. 322) do processo nº 175/13.9 IDSTB no qual o Ministério Público acusou os arguidos AA e FUTEBOL CLUBE EE imputando-lhes a prática em coautoria material, e na forma consumada um crime de Abuso de Confiança Fiscal, previstos e puníveis pelo art. 105°, n' 1 do RGIT e 98° do CIRS.
*

A final veio o tribunal recorrido a decidir:

Absolver os arguidos AA, BB (com exceção do IVA dos períodos de 2012-05 e 2012-06), CC e FUTEBOL CLUBE EE

da prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal (IV A e IRS). na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105º, n" 1 e 5 e 8.° o RGIT, e arts. 12.°, 26.° e 30.°. n." 2 do Código Penal;

de dois crimes de abuso de confiança fiscal (IV A e IRS), na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105, n° 1 e 8.° do RGIT, e arts. 12.°, 26.° e 30.°, nº 2 do Código Penal;

Absolver o arguido DD da prática de um crime de abuso de confiança fiscal (IVA dos períodos de 2012-05 e 2012-06), na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105, n° 1 e 8.° do RGIT, e arts. 12.°,26.° e 30.°, n." 2 do Código Penal.

Absolver os arguidos AA, CC, BB e DD e a sociedade" FUTEBOL CLUBE EE", da prática, em coautoria, em concurso real de um crime de abuso de confiança fiscal, agravado, na forma continuada, p. e p. art.° 105°, nºs 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias ( Lei n." 15/2001, de 5/06) e do art.° 30° nº 2 do Cód. Penal e de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo art." 105º n." 1 do RGIT e 30°, n." 2 do Cód. Penal.

Absolver os arguidos AA e FUTEBOL CLUBE EE da prática em coautoria material, e na forma consumada de um crime de Abuso de Confiança Fiscal, previstos e puníveis pelo art. 105°, n' 1 do RGIT e 98° do CIRS.

Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.° 105°, nºs 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias ( Lei n." 15/2001, de 5/06) na pena de 3 (três) anos de prisão.

Nos termos do art 50º, n.º 1, do Cód. Penal, decidem suspender a pena na sua execução pelo período de 3 (três) anos.

Condenar a sociedade arguida FUTEBOL CLUBE EE pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.° 105°, nºs 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias ( Lei n." 15/2001, de 5/06), por referência ao art. 7° do mesmo diploma legal, na pena de 700 (setecentos) dias de multa à razão diária de 10, 00 €, ou seja na multa de 7 000, 00 (sete mil euros).

No mais legal.


*

Os arguidos AA e Futebol Clube EE, não se conformando, interpuseram recurso com as seguintes conclusões:

A. Em processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, foram os arguidos, aqui recorrentes, condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos do artigo 105° do RGIT.
B. Salvo o devido e maior respeito, não podem os aqui recorrentes conformar-se com a, aliás douta, sentença proferida, senão vejamos:
C. Os aqui arguidos não traçaram qualquer plano para obter para si próprio algum proveito que a dita actividade não lhes proporcionava, tão pouco que vieram a beneficiar individualmente ou para a própria sociedade da conduta por si adoptada.
D. A situação económica da sociedade arguida começou a agravar-se fruto da crise económica e de algumas decisões menos acertadas de direções anteriores
E. Neste sentido, e face às dificuldades enunciadas, os montantes provenientes de prestações, foram utilizados, única e exclusivamente, para o pagamento de salários dos trabalhadores ou de dividas fiscais respeitantes a períodos anteriores aos mencionados nos autos, resultantes da atuação de anteriores administrações que não o aqui arguido, mas que o mesmo se viu obrigado a pagar de forma a conseguir garantir o cumprimento dos requisitos mínimos para a inscrição do Clube na Primeira Liga Profissional de Futebol.
F. Como infra se referirá mais pormenorizadamente, não poderá igualmente ser olvidado que uma boa parte dos montantes efetivamente recebidos foram penhorados pelas entidades públicas para pagamento de dívidas anteriores o que pura e simplesmente impossibilitou os aqui recorrentes de cumprir atempadamente com o cumprimento das suas obrigações fiscais.
G. No âmbito do RGIT, o cnme de abuso de confiança prescinde do elemento apropriação." (Acórdão da Relação do Porto, de 11-5-2005, processo 446321).
H. No entanto, é crível que a apropriação indevida do agente das verbas a entregar ao estado, continua a ser condição para se configurar este tipo legal de crime, já que a punição do agente só fará sentido se este "lucrar" com a "não entrega" a que se refere o supra referido artigo do RGIT.
I. No caso em apreço, estas verbas nunca foram objecto de apropriação pela sociedade arguida ou algum dos seus Administradores, estas verbas foram entregues aos trabalhadores, para pagamento dos seus salários, pelo que o pressuposto da apropriação indevida, não está desde logo preenchido.
J. A ilicitude penal nasce, em primeira mão, da conformação de um facto com um tipo legal incriminador, exprimindo o tipo, por sua vez, um juízo de desvalor jurídico-penal relativamente a uma determinada conduta.
K. Assim sendo, e porque nele se centra a questão em apreço, desde já se considerará o conflito de deveres, previsto no n." I do artigo 36.° daquele diploma legal, que estabelece que «Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas de autoridade, satisfazer dever ou ordem de valor igualou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.»
L. O fundamento primeiro da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres encontra-se na impossibilidade de cumprimento tempestivo ou simultâneo de deveres de agir que se demonstram em conflito -ad impossibilita nemo tenetur- e na consequente necessidade de dar prevalência a um e sacrificar o outro.
M. A controvérsia em volta da possibilidade de exclusão da ilicitude na não entrega da prestação tributária foi já objecto de uma larga polémica, tendente a não admitir as normas permissivas para tanto invocadas: o direito de necessidade e o conflito de deveres, tal como previstos nos artigos 34.° e 36.° do Código Penal, respectivamente.
N. Na medida em que o conflito de deveres se revela uma especialização do direito de necessidade, que o legislador entendeu -pela sua relevância- autonomizar, desde já se considerará a exclusão da ilicitude no comportamento descrito tão-só pela aplicação do artigo 36.°.
O. Cumpre agora, antes de maiores desenvolvimentos, estabelecer uma distinção que parece fundamental.
P. De modo algum se poderá reservar igual tratamento às situações, como a referida, em que o devedor utiliza a prestação tributária para cumprimento dos deveres sociais da sua empresa e as em que, ao revés, as utiliza, como suas, para satisfação de necessidades próprias e com absoluta indiferença por quaisquer preocupações sociais.
Q. Ora, a opção dos aqui recorrentes em utilizar o montante da prestação tributária para cumprimento daqueles deveres sociais, ao invés de as entregar ao estado, poderá, em nossa opinião, e em certos e determinados casos, relevar para efeitos de exclusão da ilicitude, quando neles se coloque uma inextricável colisão de deveres, a cujo cumprimento, simultâneo e tempestivo, aquele se encontra obrigado.
R. E porque não é a própria lei, nesta hipótese, a estabelecer uma hierarquia entre o dever de pagar os impostos e o dever de pagar a retribuição ao trabalhador - tal como acontece no n." 2 do artigo 36.°- os dois deveres deverão ser objecto de avaliação e posterior comparação.
S. A Constituição da República Portuguesa parece tutelar os bens jurídicos referentes a ambos os deveres, pois, se, por um lado, nos seus artigos 103.° e 104.°, estabelece um dever de pagar impostos, também é verdade que nela se determina, por meio do artigo 59.°, que «Todos os trabalhadores [ ... ] têm direito à retribuição do trabalho [ ... ], de forma a garantir uma existência condigna [ ... ]».
T. O bem jurídico protegido por meio dos consagrados direito e dever de retribuição do trabalho prestado é, neste sentido, a dignidade da pessoa humana - na medida em que através deles se pretendem garantir as necessidades, mínimas que sejam, dos trabalhadores e das respectivas famílias, de forma a que ambos possam usufruir de uma existência condigna.
U. Claro que a satisfação das necessidades do Estado corresponde à realização do bem estar social, de forma a garantir a todos uma existência em condições dignas . Mas poder-se-á afirmar que o bem jurídico aí imediatamente consagrado é a dignidade da pessoa humana?
V. Poder-se-á então concluir que o dever de pagar impostos é superior ao dever de retribuir o trabalho prestado?
W. A esta questão responder-se-á -agora seguramente- que não. Aos valores e interesses tutelados pelos deveres jurídicos em questão correspondem valores e interesses, de valor, no mínimo, igual.
X. Ambos os deveres pretendem proteger bens jurídicos de alto valor, bens estes que sempre a Lei pretendeu ver cumpridos, de tal forma que entre os dois não se pode estabelecer uma hierarquia, precisamente por que não é possível afirmar que um se revela mais importante que o outro.
Y. Aliás, também pelo facto de ambos se encontrarem previstos -e protegidos- na Constituição da República Portuguesa, e de, portanto, a ambos corresponder uma concreta disposição constitucional, se percebe não ser possível determinar, sem mais, que o cumprimento de um pode afastar o cumprimento do outro.
z. Quando um devedor, por insuficiência de rendimentos, usa a prestação tributária exclusivamente para pagamento dos salários dos trabalhadores ou em aquisição de bens e serviços que permitam a continuidade da laboração da empresa, com vista à dita manutenção dos postos de trabalho, em vez de proceder ao pagamento de impostos, poderá o mesmo estar perante uma situação de conflito de deveres, tal como prevista no artigo 36.0 do Código Penal, reconhecendo-lhe a lei uma total liberdade de escolha para o cumprimento de um ou outro dever.
AA. De facto, havendo, por um lado, a obrigação de pagar os salários e a obrigação de entregar as prestações retidas à Estado, qualquer delas sujeita a um determinado prazo e a um cumprimento pontual mensal e comprovando-se, por outro lado, a impossibilidade do seu cumprimento simultâneo, isto é, que dada a situação financeira da empresa, o cumprimento pontual de uma daquelas obrigações só poderia ser efectuado à custa do incumprimento pontual da outra, parece encontra-se justificada a conduta típica e ilícita.
BB. Ponto é, então, que ao aqui recorrentes se imponham dois deveres jurídicos de valor, no mínimo, igual - o que, como se referiu, se entende ser o caso- e a cujo cumprimento, simultâneo e pontual, o mesmo se encontra obrigado. Ou seja, tem de existir uma efectiva e definitiva impossibilidade de cumprimento, pontual e simultâneo, dos dois deveres jurídicos em causa: o dever de pagar impostos e o dever de retribuir o trabalho prestado.
Cc. A impossibilidade do cumprimento simultâneo deverá ser verificada, assim e em primeiro lugar, pela comprovação do débil estado financeiro da empresa em questão, pois só isso poderá justificar que o conflito de deveres possa surgir - razão pela qual, além do mais, esse estado financeiro se deverá verificar sempre no momento em que ambas as obrigações devam ser satisfeitas.
DD. Para que haja exclusão da ilicitude a empresa terá, assim, de se encontrar numa situação financeira tal que os rendimentos não lhe permitam suportar o pagamento dos salários aos trabalhadores e, simultaneamente, entregar as prestações retidas à Estado, de forma a que o cumprimento de uma daquelas obrigações só poderá ser efectuado à custa do incumprimento da outra.
EE. Neste sentido, não deverão ser punidos já que a sua ilicitude foi excluída pela ordem jurídica nos termos e por aplicação do art." 36.0 do Código Penal, sob pena de violação, entre outros, do constante nos artigos 31.0 e 36.0 do Código Penal, e art. 59.0 da CRP e ainda do princípio da subsidiariedade do direito penal e do respeito pela ordem axiológica constitucional.
FF. Sem prescindir quanto ao que antecede, é pertinente relembrar que o artigo 350 do Código Penal exime o autor de um ilícito de qualquer inculpação quando, atentas as circunstâncias do caso, não seja legítimo exigir-lhe comportamento diverso.
GG. Ora, os arguidos actuaram com a diligência exigível a quem procura manter, em condições adversas, o funcionamento de uma unidade empresarial, os postos de trabalho e o sustento das suas famílias, sem retirar ou procurar proveito próprio, despido de artifícios, erros ou enganos susceptíveis de conotação dolosa, sequer sob a forma genérica.
HH. Pelo que a conduta que lhes é imputada não se afigura susceptível de reprovação, sequer ao nível da negligência, uma vez que não se traduz na violação de deveres objectivos de cuidado, mas tão-só na adopção de medidas de emergência e reacção a uma crise económica galopante e ameaçadora das condições básicas de sobrevivência.
II. É ética e penalmente exigível que um Estado, que se diz e é de direito e democrático, veja o seu património sacrificado quando estavam em causa valores fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a subsistência económica de tantos agregados familiares.
JJ. Rematando com as palavras de Figueiredo Dias: só um «inadmissível doutrinarismo pretensamente ético», só uma «santificação» do bem jurídico-penal património do Estado pode conduzir à negação da justificação da conduta do arguido com base no art. 34.° do Código Penal.
KK. Se tal não for doutamente entendido, no mínimo deve a pena ser especialmente atenuada nos termos do disposto no n02 do art. 35.° do Código Penal.
LL. Ainda se tal não for doutamente entendido, a aqui recorrente, como de resto consta dos autos, procedeu já ao pagamento de uma parte muito considerável do montante em causa nos presentes autos.
MM. Paralelamente, apresentou a aqui recorrente um processo especial de revitalização que viria a ser aprovado e homologado conforme consta dos autos.
NN. Em sede de tal processo, foram acordados os pagamentos das dívidas existentes, mormente as em causa no presente processo.
00. Sendo que os planos de pagamento acordados se encontram em cumprimento até à presente data.
PP. Enfatizando ainda o facto da dívida estar inclusivamente garantida através de hipoteca voluntária constituída sobre dois imóveis e através de penhor sobre as receitas decorrentes de contrato de transmissão dos direitos de transmissão televisiva dos jogos da equipa profissional de futebol, o qual representa 2.200.000€/ano.
QQ. Ora, não podem os Recorrentes conformar-se com o facto de, mesmo tendo efectuado o pagamento parcial da dívida fiscal e estando o remanescente da mesma em cumprimento por meio de pagamento em prestações nos termos e para os efeitos do artigo 196.° do CPPT deferido pela Administração Tributária em sede do Processo Especial, não ter sido extinta a sua responsabilidade tributária.
RR. Donde resulta que não se verifica a condição de punibilidade enunciada na alínea b) do n04 do artigo ~ 05° do RGIT, extinguindo-se a responsabi lidade penal tributária quanto aos aqui arguidos, na medida em que, como se disse a dívida que originou a responsabilidade criminal aqui em causa se encontra parcialmente paga e a restante em cumprimento no ámbito de plano de pagamentos, estando inclusivamente a mesma garantida, nos termos já supra expostos.
SS. Pelo que, salvo o devido e maior respeito, deveriam os aqui arguidos ter sido absolvidos do crime de abuso de confiança fiscal que lhes é imputado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105.° do RGIT.
TT. Já que, nenhuma atuação ou omissão dos arguidos, aqui recorrentes, permite dar como aferidos os pressupostos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que lhe é imputado, por não verificação da condição de punibilidade a que alude a alínea b) do n04 do art. 105° do RGlT.
UU. Salvo o reiterado respeito não se nos afigura que o legislador quisesse atribuir as mesmas consequências aos agentes que cumprem com as suas obrigações, ainda que em fase posterior ao seu vencimento e os que não cumprem as mesmas, como aparentemente parece resultar da sentença ora em recurso.
VV. Sob pena de deturpação do sistema penal e das finalidades de prevenção associadas ao mesmo.
WW. Neste sentido e não se verificando, à data do julgamento, as dívidas que levaram à instauração do presente processo criminal ou, como em parte no caso dos autos, estando as mesmas abrangidas por plano de pagamentos em cumprimento e garantidas, não deverão ser os arguidos condenados, sob pena de tratamento igual a duas situações manifestamente distintas, os cumpridores e os incumpridores.
XX. Quanto muito, e no máximo, o que poderia atender, seria uma suspensão do próprio processo enquanto durasse o plano de pagamentos em causa de forma a poder-se aferir o total cumprimento do montante em causa e gerador de responsabilidade criminal.
YY. Como se disse e consta expressamente da sentença ora em recurso, o aqui recorrente AA assumiu a Administração da SAD e Direção do Clube num período muito conturbado e de crise profunda.
ZZ. Como foi demonstrado nos autos via prova documental, só à Fazenda Nacional, desde Dezembro de 2014 até Dezembro de 2015 foram pagos valores na ordem dos 2.250.000,00€, não sendo despiciendo referir ainda que à Segurança Social, nos últimos dois anos foram pagos montantes na ordem dos 2.000.000,00€.
AAA. Não negou em sede de julgamento, nem nega, que os montantes em causa nos autos foram efetivamente pagos por quem tinha tal obrigação, no entanto não poderá ser desconsiderado que apesar de pagos, uma parte muito considerável dos mesmos não chegou nunca a ser efetivamente recebido pela aqui recorrente Futebol Clube EE.
BBB. De facto e como consta dos autos, por dívidas anteriores ao período de gestão em causa nos presentes autos, em que a o Clube era administrado por outros que não o aqui arguido, as receitas dos períodos ora em questão foram objeto de sucessivas penhoras para pagamento de tais dívidas, nomeadamente as receitas decorrentes da cessão dos direitos de transmissão televisiva e de outros credores que melhor constam dos autos, o que pura e simplesmente constitui um facto impeditivo dos aqui arguidos puderem cumprir com o pagamento das suas obrigações.
CCc. Sendo que mesmo as quantias que não foram objeto de penhora e foram de facto recebidas pelo Futebol Clube EE, tiveram que ser canalizadas para o pagamento de dívidas fiscais respeitantes a períodos anteriores ao da gestão do arguido AA.
DDD. Sendo que só dessa forma poderia o Futebol Clube cumpnr com os requisitos essenciais para continuar a disputar as Ligas Profissionais de Futebol, sem a qual deixaria obrigatoriamente de existir o Clube e a SAD.
EEE. Donde resulta que a aqui recorrente Futebol Clube EE nem sequer chegou a receber, efetivamente,o valor do imposto, pelo que, e salvo o devido e elevado respeito não se verifica o requisito de recebimento exigido pelo artigo 105.° do RG [1', pelo que inexistiu crime, motivo pelo qual deverão os aqui arguidos ser absolvidos com as demais consequências legais.
FFF. Ainda que não fosse assim entendido e que, apesar de penhorados, os montantes em causa fossem considerados como efetivamente recebidos, o que não se admite e se equaciona por mera hipótese académica, sempre se dirá que, de tais factos resulta inequivocamente uma impossibilidade de cumprimento com o pagamento dos montantes que se iam vencendo por factos não imputáveis aos aqui recorrentes já que, como se disse, decorreram da atuação de anteriores Direções, bem como da própria Administração Tributária que ao penhorar receitas atuais para pagamento de dívidas anteriores teria forçosamente que saber que de tal facto resultaria a impossibilidade dc solver as dívidas que se iam vencendo.
GGG. Nestes termos estamos perante uma causa de exclusão de ilicitude, na medida em que o comportamento da Administração Tributária foi no sentido de ao ordenar e efetivar penhoras sobre as receitas atuais da sociedade para pagamento de dívidas anteriores, automaticamente ter-se-ia que concluir pela impossibilidade de cumprimento com os pagamentos das dívidas que entretanto se venceriam, pelo que se deverá ter por excluída a ilicitude do comportamento dos aqui arguidos.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, serem os aqui recorrentes absolvidos com as demais consequências legais.


*

O Ministério Público junto da comarca apresentou resposta, com as seguintes conclusões:

1. Face às extensas conclusões constantes do recurso interposto, num total de 59 pontos (dando por mais de duas vezes a volta às letras do abecedário), que se espraiam ao longo de sete páginas, ao invés de em síntese, resumirem as razões dos seus pedidos como preceitua o nº 1 do artigo 412º do Código de Processo Penal, devem os arguidos a nosso ver, ser convidados a suprir tal deficiência, de forma a satisfazer os requisitos legais.
2. Para que se tenha por preenchido o crime de abuso de confiança fiscal tipificado no artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, basta que as importâncias não pagas ao Estado (Administração Fiscal) tenham sido deduzidas (nº 1 do artigo 105º do RGIT) ou recebidas (nº 2 do artigo 105º do RGIT), facto que resulta da factualidade dada como assente e que os arguidos não impugnaram, aliás reconheceram na motivação apresentada, deste modo assumindo a prática do crime que lhes é imputado.
3. É irrelevante que os arguidos tenham integrado na sua esfera patrimonial ou pessoal os montantes que deveriam entregar, bastando que lhes tenham dado destino diverso do devido, já que na sua configuração actual, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, tendo a apropriação deixado de integrar o tipo legal, incumbindo ao sujeito passivo que liquida na factura e recebe o IVA, como fiel depositário da prestação, proceder à sua entrega à administração tributária.
4. Ao contrário do pretendido, mostra-se preenchida a condição de punibilidade a que alude o artigo 105º, nº 4, alínea b) do RGIT, conforme nos dá conta também o texto do acórdão recorrido no que tange ao NUIPC nº 175/13.9 IDSTB, sendo certo que o pagamento parcial da dívida pelos arguidos entretanto levada a cabo não afasta o preenchimento da aludida condição objectiva de punibilidade, podendo relevar, como relevou, em sede de determinação da medida concreta da pena.
5. Improcede ainda a nosso ver a pretensão de que, face à impossibilidade de cumprimento simultâneo de ambos os deveres - de entregar ao Estado os montantes das prestações tributárias recebidas e de proceder ao pagamento de salários aos trabalhadores e cumprir os deveres sociais da empresa, se deverá prefigurar uma situação de conflito de deveres prevista no artigo 36º do Código Penal, que excluiria a ilicitude na actuação dos arguidos, já que a obrigação de pagar impostos o Estado situa-se, na hierarquização dos deveres, num patamar superior ao do pagamento das despesas correntes de uma empresa, uma vez que no primeiro caso está em causa uma obrigação legal relativa a um dos mais relevantes interesses do Estado, o da cobrança de impostos; já a obrigação de pagar salários aos trabalhadores ou de pagar as despesas correntes de uma empresa tem natureza meramente contratual.
6. Também se mostra arredada a prefiguração do estado de necessidade desculpante enunciado no artigo 35º do Código Penal que excluiria a culpa na actuação dos arguidos, desde logo porque o nº 1 da citada norma legal apenas se reporta à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais, sendo certo que para que os arguidos pudessem beneficiar da atenuação especial prevista no seu nº 2 (que tutela interesses jurídicos de outra natureza), teriam os mesmos que demonstrar que a conduta adoptada foi a única susceptível de evitar o perigo de encerramento da empresa, não sendo razoavelmente exigível outro comportamento, o que também não sucedeu.
Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto.


*

Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.


******

B - Fundamentação:

B.1.1 – São os seguintes os factos provados:

Do processo nº 98/10.3 IDSTB
1. O arguido Futebol Clube EE é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de futebol profissional, no caso, o Vitória de Setúbal e está colectado pela atividade de "ACTIVIDADES DOS CLUBES DESPORT.", a que corresponde o CAE 093120 que se enquadra no regime normal de IVA de periodicidade mensal, sendo, igualmente, sujeito a IRS não só sobre rendimentos provenientes do trabalho dependente como sobre rendimentos empresariais.
2. De acordo com o registo comercial do FUTEBOL CLUBE EE verifica-se que desde 26-05-2009 (data de deliberação) que seu o Conselho de Administração é formado pelos arguidos BB (Presidente), AA (Vice-Presidente) e CC (Vice-Presidente).
3. Anteriormente àquela data, o Conselho de Administração do FUTEBOL CLUBE EE era formado por outras pessoas que renunciaram às suas funções em 26-­11-2008, tendo esta circunstância sido apenas registada em 28-05-2009.
4. No período compreendido entre 26-11-2008 e 26-05-2009 existiu um vazio diretivo no FUTEBOL CLUBE EE, pois não existiam órgãos sociais que representassem.
5. Todavia, durante nesse período, houve uma comissão de gestão formada pelo menos pelos arguidos FERNANDO OLIVEIRA e VITOR HUGO que se manteve até às eleições dos órgãos sociais em 2009.
6. A 12/04/2012 o arguido BB, renunciou ao exercício das suas funções como Presidente do FUTEBOL CLUBE EE, sendo que no dia 14/05/2012 foi registado a designação de membros de órgãos sociais do Clube passando o seu Conselho de Administração a ser formado pelos arguidos AA (Presidente), DD (Vice Presidente) e CC (Administrador).
7. O arguido Futebol Clube EE, enquanto entidade obrigada a deduzir ou reter sobre rendimentos de trabalho dependente e sobre rendimentos empresariais, procedeu à entrega das guias de retenção na fonte daquele imposto sem que tivesse efectuado o respectivo pagamento nos seguintes períodos: (…)

8. Igualmente por força do exercício da sua atividade e do seu enquadramento legal em sede de IVA, o arguido Vitoria Futebol Clube SAD estava obrigado a determinar mensalmente o imposto devido ao Estado, deduzindo ao imposto por si liquidado, o imposto por si suportado e a entregar à Administração Fiscal o imposto devido.
9. Não obstante, o arguido através do seu representante legal AA, liquidou, recebeu e não entregou ao credor tributário (a Fazenda Pública) o IVA cobrado aos seus clientes pelas vendas /prestações de serviços efectuadas nos períodos de 2010-05, 2010-06, 2010-12,2011-02, 2011-03, 2011-05, 2011-06, 2011-07, 2011-08, 2012-05 e 2012-06 apesar de a isso estar legalmente obrigado.
10. Nomeadamente, nas quantias que se descriminam no seguinte modo: (…)

11. Deste modo. o arguido AA em representação e no interesse do Futebol Clube EE retiveram. a título de IRS, e receberam, a título de IVA as quantias supra descritas, que fizeram suas e utilizaram em proveito próprio e do Clube, não as entregando ao credor tributário. no prazo legal fixado, nem nos 90 dias posteriores.
12. O arguido AA representante do arguido Futebol Clube EE tinha conhecimento do modo de funcionamento e pagamento do IRS e do IVA, sabendo que era sujeito passivo daqueles impostos, pelo que as quantias liquidadas/retidas nessa sede não lhe pertenciam.
13. Não obstante, o arguido AA, agindo em representação e nos interesses do Clube arguido decidiu, no período temporal que decorreu desde Dezembro de 2008 até Junho de 2012, mais concretamente nos períodos descritos. não cumprir as suas obrigações fiscais e, confiando na não atempada fiscalização por parte da administração fiscal, persistiu na sua conduta.
14. Bem sabendo que tais condutas não eram permitidas por lei, o arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente. com intenção de se subtrair ao cumprimento das obrigações fiscais, retendo no seu património, e em seu benefício, as quantias de imposto pertencentes à Administração Fiscal e consequentemente ao Estado.
Do processo nº 175/13.9 IDSTB
15. A sociedade/arguida"FUTEBOL CLUBE EE" tem por objecto social o desenvolvimento de "Atividades dos Clubes Desportivos", a que corresponde o CAE 093120.
16. Os arguidos AA, BB, CC e DD, exerceram nos anos de 2011 e 2012, as funções de sócios e gerentes da sociedade arguida, com poderes para a obrigar.
17. Durante esse período, toda a gestão da sociedade arguida, nomeadamente a iniciativa e a total responsabilidade pelas decisões concernentes à gestão financeira da sociedade, cabiam ao arguido AA.
18. Em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado ( I.V.A ), a sociedade arguida, desde o início da atividade ( 7.08.1997), encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
19. No exercício da sua atividade, os arguidos AA e Fut. Clube estavam obrigados a fazer a entrega à Fazenda Nacional das quantias cobradas a título de Imposto Sobre o Valor Acrescentado e ainda das quantias contabilizadas nas retenções na fonte de a titulo de IRS efetuadas aos seus trabalhadores e fornecedores no ano de 2012, com referência às categorias" A" e "B'·.
QUANTO AO IVA
20. Em sede de IVA a sociedade arguida não procedeu à entrega das respetivas declarações periódicas no que respeita aos períodos que se discriminam: (…)

21. Contribuíram para a formação do valor declarado de IVA liquidado (209.083,02 €) do período de 2012-01, o liquidado nas faturas emitidas pela sociedade arguida nesse período, conforme se discrimina (cfr. fls. 427 e 428 e cópia de faturas a fls. 435 e 436 verso):
22. Contribuíram para a formação do valor declarado de IVA liquidado (110.807,10 €) do período de 2012-02, o liquidado nas faturas emitidas pela sociedade arguida nesse período cujas cópias constam de fls. 437, 438 e 439 que nesta sede se dão por reproduzidas, conforme se discrimina: (…)

23. Contribuíram para a formação do valor declarado de IVA liquidado (117.717,45 €) do período de 2012-07, o liquidado nas faturas emitidas pela sociedade arguida nesse período, cujas cópias constam de fls. 445 a 447 que nesta sede se dão por reproduzidas, conforme se discrimina: (…)

24. Em 10-10-2012, a sociedade arguida entregou (dentro do prazo legal para o efeito) a declaração periódica de IVA do período de 2010-08, na qual mencionou em suma o seguinte:
• Base Tributável das prestações de serviço e serviços: 93.988,41 €;
• IVA liquidado nas prestações de serviço e serviços: 21.617,34 €;
• Imposto a favor do Sujeito Passivo: 10.055,00 €;
• IVA a pagar ao Estado: 12.786,30 €.
25. No que se refere a este período, a sociedade arguida, pese embora tenha enviado a respetiva declaração periódica, não entregou, juntamente com a mesma, o imposto exigível no montante e no prazo seguinte: (…)

26. Com a declaração periódica de IVA a sociedade arguida não entregou qualquer meio de pagamento, nem até à data limite de pagamento (10-10-2012), nem nos 90 dias subsequentes.
27. Concorreram para a formação do valor declarado de IV A liquidado (21.617,34 €), o valor contabilizado nas contas 24.3.3. (IVA liquidado) referenciado a fls. 568 e que corresponde ao somatório do IVA liquidado nas faturas emitidas pela sociedade arguida nesse período, cujas cópias constam de fls. 572 a 579, conforme se discrimina: (…)

28. Portanto, os montantes do IVA liquidado declarados pela sociedade arguida correspondem aos montantes que por ela própria foram contabilizados.
29. Os proveitos (valor base) foram registados contabilisticamente da seguinte forma: (…)

30. Por força do exercício da sua atividade e do seu enquadramento legal em sede de IV A, a sociedade arguida estava obrigada a determinar mensalmente o imposto devido ao Estado no ano de 2012, deduzindo ao imposto por si liquidado, o imposto por si suportado nas prestações de serviço, e entregar à Administração Fiscal, juntamente com as declarações periódicas, o imposto devido, nos termos dos artigos 29.°, n." 1, alínea a), 36.° e 37.°, nºs 1 e 2 do Código do IVA.
31. Assim, tendo sido efetivamente recebido o imposto ora exigido, o mesmo não foi entregue nos cofres do Estado.
QUANTO AO IRS
32. A sociedade arguida, procedeu à contabilização das retenções na fonte de IRS efetuadas aos seus trabalhadores no ano de 2012 (com referência às categorias de rendimento •. A" e "B"), ) sendo que, não procedeu à entrega das respetivas guias de retenção na fonte e, consequentemente, não entregou o respetivo imposto ao Estado.
33. Acresce que, a sociedade arguida pagou as remunerações dos seus trabalhadores com atraso pelo que o montante das retenções na fonte mensalmente efetuadas não coincidiram com o montante das retenções na fonte mensalmente contabilizadas, dado este registo ser efetuado de acordo com o processamento mensal dos salários.
34. Os valores de retenções na fonte contabilizados, efetuadas pela sociedade arguida sobre rendimentos de Categoria A (trabalho dependente) registados na conta 2421 e Categoria B (trabalho independente) registados na conta 2422, foram os seguintes, conforme melhor se retira de fls. 17, 18 e 19 dos autos que nesta sede se dão por reproduzidas: (…)

35. Os valores de retenções na fonte efetuadas sobre valores de ordenados pagos pela sociedade arguida sobre rendimentos de Categoria A (trabalho dependente) e Categoria B (trabalho independente) foram os seguintes: (…)

36. Quanto às retenções relativas à categoria A de IRS, verificou-se que a sociedade arguida pagou a todos os seus funcionários os vencimentos cujas retenções de IRS foram efetuadas nos períodos em referência, sendo que a falta é relativa ao mês (período de imposto) em que ocorreu o pagamento.
37. Quanto às retenções relativas à categoria B de IRS, verifica-se que a sociedade arguida pagou a todos os seus prestadores de serviços os honorários relativos aos períodos supra referenciados, já que nos montantes contabilizados estão incluídos valores suportados por documentos emitidos em período anterior ao do registo.
38. Assim sendo, a sociedade arguida não comunicou nem entregou ao Estado os montantes de IRS (retido na fonte), conforme se discrimina: (…)

39. Verifica-se que a sociedade arguida ao pagar os salários aos seus trabalhadores e os honorários aos seus prestadores de serviço, acabou por efetivamente descontar nesses mesmos rendimentos o montante de IRS retido, pelo que as quantias pecuniárias declaradas por esta sociedade como retidas por conta do IRS ficaram à sua disposição e para sua fruição.
40. As quantias retidas a titulo de IRS tinham que ser entregues ao Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que toram deduzidas, nos termos do disposto no art." 98°, 99° e 101° do Código de IRS.
41. Porém, o arguido AA, com o mesmo inicial e comum propósito, apesar de ter procedido a retenções na fonte em nome da sua representada, a 1ª arguida nos salários dos seus trabalhadores e honorários dos seus prestadores de serviços, não entregou ao Estado as quantias retidas, antes delas se apropriando, para si ou para a sua representada, bem sabendo que lhes não pertenciam, passando a fruí-las como bem entendeu, assim prejudicando o Estado no referido montante de 569.684,09 Euros.
42. O arguido AA agiu voluntária e conscientemente, aproveitando-se da posição de recebedores do IRS, no âmbito do mecanismo da "substituição tributária" e da relação triangular subjacente, estabelecida entre a 1ª arguida, o Estado e os substituídos - que são os empregados ou prestadores de serviços independentes -, bem sabendo ser proibida a sua conduta.
43. O arguido bem sabia que no exercício da sua atividade estava obrigado a entregar nos Cofres do Estado as quantias supra referidas, conhecendo os prazos legais em que o deveriam fazer.
44. Todavia, passados que foram ( 90 ) dias sobre as datas limite, o arguido não procedeu à devida entrega de tais montantes à Fazenda Nacional, fazendo-os reverter para si, utilizando-os para outros fins e integrando-os, por essa via, na sua esfera patrimonial.
45. Tendo o arguido sido notificados para no prazo máximo de 30 dias proceder, querendo, ao pagamento das quantias aludidas, acrescidas de juros e do valor das coimas aplicáveis ( cfr. art." 105°, n.? 4, aI. b) do RGIT ), veio a constatar-se que não o fez.
46. Agiu o arguido AA, no interesse e por conta da arguida" FUTEBOL CLUBE EE", com o reiterado propósito de fazer coisa sua os montantes supra descritos, como efetivamente ocorreu, bem sabendo que os mesmos constituíam quantias devidas a título de IVA e de IRS e que, por isso, não podia delas dispor, antes tendo de as entregar ao Estado.
47. Atuou de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas e eram punidas por lei.
Do processo nº 184/13.8 IDSTB
48. O arguido Futebol Clube é uma Pessoa Colectiva de Utilidade Pública, está enquadrado em IVA no regime normal de periodicidade trimestral, pela atividade de outras atividades desportivas a que corresponde o CAE 093192, com sede na Rua Bocage n.o4, 1, em Setúbal.
49. O arguido AA assume o cargo de Presidente do Clube assumindo a administração efetiva no âmbito das obrigações fiscais, nomeadamente, no que se refere ao pagamento de impostos, cabendo-lhe exclusivamente a si tal decisão no âmbito do IRS.
50. Com efeito, assumindo o Clube a posição de entidade patronal de diversas pessoas singulares, e estando as mesmas sujeitas a IRS porque residem em território nacional e/ou aqui obtém rendimentos, é da sua responsabilidade a retenção de uma percentagem previamente determinada do vencimento desses trabalhadores e posterior entrega da mesma à Administração Fiscal.
51. No âmbito destas obrigações, os arguidos deduziram e retiveram dos vencimentos e respectivos subsídios de Natal dos trabalhadores da Sala de Bingo e do bar do Bingo as seguintes quantias no período 2012-12: (…)

52. No dia 15-01-2013, o CLUBE submeteu à autoridade fiscal a guia para pagamento das retenções na fonte supra descriminadas no valor de global de 9.884,00 € (sendo que 8.294,00 € dizem respeito a IRS retido na fonte sobre rendimentos de trabalho dependente da Sala do Bingo e 1.590,00 € dizem respeito a IRS retido na fonte sobre rendimentos de trabalho dependente da Bar do Bingo), mas não juntou o meio de pagamento do imposto nela apurado.
53. Os arguidos não entregaram naquela data nos serviços fiscais competentes as quantias em divida e que efetivamente deduziram dos vencimentos dos trabalhadores, não o fizeram nos 90 dias sobre o termo legal e, igualmente, não o fizeram após os 30 dias concedidos pela notificação da autoridade fiscal efectuada em Junho de 2013.
54. Os arguidos agiram voluntária e conscientemente e com intenção concretizada de não entregarem à administração tributária os montantes de IRS deduzidos dos rendimentos dos trabalhadores e colaboradores, fazendo-os seus, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
55. Mais se apurou que:
56. O Futebol Clube, EE, representado por AA, celebrou acordo com a entidade fiscal para pagamento das quantias em dívida, acordo esse que tem estado a ser cumprido, tendo os arguidos procedido ao pagamento de diversas quantias em divida, designadamente, consoante Mapa constante da decisão recorrida.
Mais se apurou que :
57. O arguido AA é oriundo de uma família operária, de baixa condição socioeconómica, cuja subsistência foi assegurada pelos rendimentos de trabalho dos progenitores, o pai numa fábrica de calçado e a mãe operária numa companhia de tabaco.
58. O processo de desenvolvimento do arguido, o mais velho de três irmãos, decorreu numa freguesia, em situação de pobreza, tendo andado descalço até aos 10 anos, idade em que concluiu o 4° ano de escolaridade, numa escola católica para crianças pobres, onde foi o melhor aluno.
59. Posteriormente AA frequentou a escola comercial e industrial local, concluindo o 6° ano de escolaridade, começando a trabalhar aos 13 anos numa oficina de radiadores de carros, ocupação que conciliou com o ensino noturno.
60. A prática de futebol, inicialmente descalço e com os amigos do bairro, foi assumindo uma progressiva centralidade na sua vida, transitando posteriormente dos clubes regionais para a profissionalização aos 21 anos, no Club, ocorrendo dois anos depois o casamento com a mãe dos seus filhos, nascidos em 1964 e 1974
61. Em 1964 aceitou a oportunidade de jogar no Grupo Desportivo onde se fixou com a família, iniciando nesta fase os investimentos em oficinas de automóveis e numa bomba de gasolina, que começou a explorar.
62. Após dez anos como jogador, AA, na época 1974/1975, passou a treinador da mesma equipa, coincidindo com o período revolucionário e com a nacionalização, inviabilizando o contexto político que se verificava a continuação do projeto em que se tinha envolvido.
63. Em termos profissionais a vida de AA prosseguiu no setor da construção civil e da venda de carros, sofrendo uma primeira crise financeira em 1983/1984, de que posteriormente veio a recuperar.
64. Decorrente da sua ligação Futebol Clube, AA assume a Vice-presidência na época 1984/1985, retomando em 1987, numa fase crítica do clube, mantendo-se em funções de direção até ao final da época 1991/1992.
65. No plano familiar verificou-se a separação do arguido em 1999, encontrando-se os seus filhos já autónomos e os seus negócios e investimentos em crise, culminando na penhora de bens, optando o arguido, em 2002, por se reformar.
66. AA reorganizou a sua vida afetiva, encontrando-se casado desde 2006, residindo com os sogros e a cônjuge, na moradia desta última, assegurando a manutenção familiar através da sua reforma, parcialmente penhorada, e dos rendimentos pessoais da cônjuge.
67. O seu retomo ao Futebol Clube verificou-se em 2009, num período em que a continuidade do clube se encontrava ameaçada e onde há vários meses não se pagavam salários, tendo os seus contactos e diligências financeiras junto do meio empresarial permitido salvar a época desportiva.
68. Na constituição do Futebol Clube - EE, AA veio a assumir a função de ~ Vice-presidente, sendo os restantes membros da direção figuras que lhe eram muito próximas e de confiança, a quem estava ligado por laços de amizade.
69. À data em que começaram a ocorrer os acontecimentos que dão origem à instauração do presente processo, designadamente em Maio de 2009, AA sentiu-se mobilizado para intervir na situação de crise que o Futebol Clube estava a atravessar, tendo conseguido, através dos contactos privilegiados junto do meio empresarial, manter os patrocinadores.
70. Confrontado com a necessidade de fazer opções na gestão financeira do clube , priorizou o pagamento dos salários em detrimento das obrigações fiscais e à segurança social.
71. AA assumiu as funções de presidente, responsabilidade que mantém até ao presente, sendo em torno da gestão do clube que o seu quotidiano se desenvolve, estando a decorrer um processo de revitalização financeira, proporcionado pelo Estado, o qual tem como objetivo superar os constrangimentos e a instabilidade que se tem verificado.
72. O arguido BB é o mais novo dos dois filhos resultantes da relação de casamento entre os pais, tratando-se de uma família que manteve ao longo do tempo uma situação financeira que foi situada no estrato sócio económico médio-alto.
73. O ambiente familiar em que cresceu era coeso e estável, alicerçado em fortes vínculos familiares, organizando-se a família de modo tradicional. Deste modo, o pai foi sempre o elemento laboralmente ativo, assumindo a mãe a responsabilidade doméstica.
74. Quando tinha cerca de 8 meses de idade a família fixou-se em Angola, onde viveu até aos 4 anos de idade. Na sequência do início da Guerra Colonial retomou com a progenitora e irmã para zona de origem da família, onde permaneceu até ao final da escola primária, regressando novamente a Angola, onde permaneceu até aos 17 anos.
75. Ao longo deste período o seu quotidiano esteve centrado em tomo da escola, onde teve bons resultados, manifestando forte interesse pelas atividades desportivas, praticando assim várias modalidades como basquetebol, andebol e futebol, com grande ligação ao Futebol Clube, cujo percurso desportivo sempre acompanhou de modo próximo. Convivia com outros jovens de várias etnias, residindo a família num bairro de estrato socioeconómico médio-alto.
76. Nas férias escolares vinha com regularidade, situação que foi permitindo manter laços com a família de origem, passando também alguns períodos em Luanda.
77. Deste modo e na sequência do processo de descolonização, a família retomou em 1974, tendo integrado o agregado de uns tios paternos e onde se mantiveram alguns anos. Através dos primos e das ligações que mantinha da escola primária, viria a refazer a sua rede de amizades, aspeto que facilitou a sua reintegração no tecido social e escolar, tendo concluído nesse ano letivo o antigo 7° ano dos Liceus.
78. Nesta fase viria a conhecer FF com quem, após um namoro de 9 anos, viria a casar. Terminado o Liceu iniciou o percurso universitário, tendo concluído o curso de Direito dentro do prazo normal, iniciando posteriormente o respetivo estágio profissional, que conjugou com a sua primeira experiência de trabalho tendo lecionado no ensino secundário.
79. Assim, cerca dos 25 anos de idade, abriu conjuntamente com um colega de curso e amigo um escritório de advocacia, atividade que vem desempenhando desde então.
80. Aos 27 anos casou e autonomizou-se, tendo desta relação três filhos com idades compreendidas entre os 27 e os 20 anos. Inicialmente a esposa ainda trabalhou, atividade que abdicou há cerca de 20 anos para se poder dedicar mais exclusivamente à educação dos filhos e porque os rendimentos de trabalho de BB assim o permitiam.
81. O arguido exerceu inicialmente advocacia em várias áreas, vindo, há cerca de 18 anos atrás (década de 90 do século passado) a contactar com área do direito comercial, quando foi contratado por AA para exercer esta atividade ligado às suas empresas. Na sequência destas funções viria a conhecer outros empresários e deste modo trabalhar fundamentalmente nesta área do Direito, que lhe permitiu obter uma boa situação financeira, mantendo no entanto o seu escritório de advocacia.
82. A relação com AA e com a família deste foi-se aprofundando vindo a registar-se um relacionamento quase familiar), com convívio entre os dois agregados.
83. À data da instauração do presente processo (2009-2012), BB vivia na morada constante nos autos, onde se mantém, sendo o agregado de origem composto pelo próprio, a esposa e três filhos, todos já maiores de idade. Apesar dos dois mais velhos já terem terminado os respetivos cursos superiores, ambos na área de direito, ainda não integraram o mercado de trabalho.
84. É, assim, o arguido é o único elemento ativo do agregado, trabalhando na área da advocacia, e mais concretamente do direito comercial, para várias empresas, mantendo uma ligação de longa data com AA, decorrente da atividade de jurista que desempenhou para o próprio e empresas dos filhos. A situação financeira tem-se mantido estável, situando-se num estrato socioeconómico médio-alto.
85. Mantendo uma grande ligação ao Futebol Clube, em 2009 BB foi convidado por AA e mais um conjunto para discutir o futuro do clube, que atravessava uma fase de grande fragilidade diretiva e financeira, vindo na sequência desta discussão a surgir uma lista, tendo o arguido sido candidato à presidência da Sociedade Anónima Desportiva (SAD) que veio a ganhar as eleições em 2009.
86. Embora tendo sido eleito presidente da SAD, BB, na prática e em termos executivos, o cargo foi sempre exercido por AA.
87. Ao longo do referido período o quotidiano do arguido esteve basicamente centrado no seu desempenho profissional como advogado por conta própria e paralelamente como elemento da direção do Futebol Clube, sobretudo no que concerne a aspectos jurídicos, que na fase inicial da gestão eram em grande número, atendendo à frágil situação financeira do clube.
88. A vida social de BB esteve, ao longo do tempo, organizada em tomo das relações com familiares e amigos, sendo usual receber e visitarem-se mutuamente. Acompanhando regularmente os jogos de futebol do Vitória Futebol Clube, neste período, de modo mais acentuado, decorrente das funções desempenhadas, o arguido manteve ainda uma ligação mais forte, registando-se nos fins-de-semana de jogos deslocações com o clube, que muitas das vezes eram efetuadas com a esposa e filhos.
89. O arguido CC cresceu junto dos pais e 4 irmãos. Aos 11 anos o agregado familiar emigrou para França, onde residiram cerca de 15 anos.
90. Em França, CC estudou até ao 11.º ano e integrou o futebol federado, em equipas francesas, onde contactou pela primeira vez com o Clube Futebol no âmbito de um campeonato europeu. Em 1983, aos 25 anos, foi contratado, como atleta, por este clube, tendo desenvolvido a carreira futebolística até aos 36 anos, maioritariamente no Clube e depois em vários outros clubes nacionais.
91. Casou com GG aos 23 anos de idade, igualmente originária da região e emigrada em França. mulher com quem tem partilhado toda a sua vida, através de um relacionamento descrito como satisfatório e equilibrado, tendo em conta as necessidades e os interesses do casal. Têm em comum uma filha, de 28 anos, a qual é jornalista de profissão, tendo completado os seus estudos superiores em 2006/07, na Universidade, autonomizada do agregado familiar. atualmente
92. Em 1986, o casal adquiriu a habitação onde atualmente residem, estando esta totalmente paga desde 1989/90, com os rendimentos auferidos durante a carreira futebolística do arguido.
93. Uma vez terminada a carreira no futebol foi convidado para trabalhar na empresa, como vendedor desta marca automóvel, profissão que desenvolveu com um bom desempenho profissional até 2013, ano em que foi dispensado dos quadros da empesa, no âmbito de uma política geral de redução de custos, passando à condição desempregado.
94. No contexto laboral CC foi destacado, alguns anos, por ter sido líder de vendas, assim como referenciado como profissional sério e respeitador das políticas e normas em vigor, exigente na relação com os outros numa perspetiva de lealdade e inter-correspondência nas expetativas e compromissos assumidos.
95. À data dos factos que originaram o presente processo o arguido trabalhava como vendedor automóvel, residindo com a sua família, no apartamento onde sempre viveram, num padrão de vida modesto, ajustado aos rendimentos auferidos. O seu quotidiano desenvolvia-se em torno das atividades profissionais e das vivências familiares.
96. A família constitui uma forte referência afetiva e moral para o arguido, tanto no que se refere à sua ligação com a família de origem, como também o projeto familiar que desenvolveu com a mulher e a filha, a salientar a valorização dos afetos, a aceitação e o respeito pelo outro, a proximidade e a projeção do futuro. O arguido manteve ao longo do tempo forte proximidade aos seus familiares de origem, cuidando das necessidades dos seus progenitores apesar da distância a que se encontrava, assim como investiu na prestação dos cuidados primários à filha e no acompanhamento da sua educação quotidiana, verificando-se entre todos sentimentos de orgulho, admiração e preocupação.
97. Em 2009, integrou a direção do FC, como Diretor Desportivo, e de vice-presidente do FC ­SAD, a convite do então futuro presidente e coarguido no processo, tendo-lhe sido atribuídas funções de foro técnico, relacionadas com a modalidade do futebol.
98. A esposa trabalhou diversos anos na área educativa, como monitora de ATL, tendo ficado desempregada em 2003. Nesta sequência foi convidada a trabalhar na loja do Clube e posteriormente nos serviços administrativos - gestão de sócios.
99. O quotidiano de CC desenvolve-se atualmente em torno das responsabilidades no clube, dedicando uma parte significativa do seu tempo nas atividades do clube e das equipas, incluindo a manutenção das próprias instalações, sendo que tais funções não são remuneradas. A vivência social do arguido está centrada no convívio com outros sócios do clube e na sua rede familiar.
100. Com o objetivo de alterar a sua condição de desempregado, tem desenvolvido estratégias de procura ativa de trabalho, quer na área desportiva quer comercial, colocando mesmo como alternativa a possibilidade de trabalhar no estrangeiro.
101. Não lhes são conhecidos antecedentes criminais.

*

B.1.2 - Factos não provados:

a) Os arguidos BBE, CC e DD, em representação e nos interesse Futebol Clube EE retiveram. a título de IRS, e a título de IVA receberam as quantias supra descritas, que fizeram suas e utilizaram em proveito próprio e do Clube, não as entregando ao credor tributário. no prazo legal fixado, nem nos 90 dias posteriores.
b) Os arguidos representantes do arguido Futebol Clube EE tinham conhecimento do modo de funcionamento e pagamento do IRS e do IVA, sabendo que eram sujeito passivo daqueles impostos, pelo que as quantias liquidadas/retidas nessa sede não lhe pertenciam.
c) Não obstante, os arguidos, agindo em representação e nos interesses do Clube arguido decidiram, no período temporal que decorreu desde Dezembro de 2008 até Junho de 2012,. não cumprir as suas obrigações fiscais e, confiando na não atempada fiscalização por parte da administração fiscal, persistiram na sua conduta.
d) Bem sabendo que tais condutas não eram permitidas por lei, os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente. com intenção de se subtrair ao cumprimento das obrigações fiscais, retendo no seu património, e em seu benefício, as quantias de imposto pertencentes à Administração Fiscal e consequentemente ao Estado.


*

B.1.3 – O tribunal recorrido apresentou os seguintes considerandos de motivação factual:

«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, aliada às regras de experiência comum.
Baseou-se, assim, o Tribunal na análise crítica dos documentos constantes dos autos, designadamente:
Processo penal tributário de fls. 106 a 2181 e parecer de fls. 2184 a 2267, bem como anexos de fls. 2268 a 2360 (processo principal),
Contas de fls. 70 e ss.; Processamento contabilístico de fls. 79 e ss.; - Declarações de Retenções de fls. 122 a 156; Docs. de fls. 157 a 454; Docs. de fls. 498 a 568; Docs. de fls. 572 e ss; Docs. de fls. 689 a 776; Docs. de fls. 783 e ss (Proc. nº175/13.9 IDSTB)
Docs. de fls. 8 a 20: Processo Penal Tributário de fls. 26 a 219 e Parecer de fls. 220 a 23 7 (reproduzindo integralmente toda a prova nele indicada) e CRC'S constantes dos autos. (Proc. nº 184/13.8 IDSTB ).
Docºs de fls. 2643 a 2712, 2733 a 2745 e de fls. 2826 e sgs.
O Tribunal tomou ainda em consideração as declarações prestadas pelos arguidos.
AA prestou declarações, confessando que o FC não cumpriu com as suas responsabilidades fiscais. Prestou declarações quanto à situação financeira em que encontrou o clube quando assumiu a sua direção, dizendo que havia atrasos no cumprimento de responsabilidades várias, designadamente atrasos no pagamento dos vencimentos dos funcionários. havendo alguns casos de a mesma família estar dependente do vencimento a pagar pelo Vitória. Afirmou que decidiram mudar a trajetória do clube, designadamente ao nível do futebol, passando a investir mais na formação em vez de na aquisição de jogadores. Falou da importância social do clube na cidade. Teceu considerações várias acerca da dificuldade de obtenção de receitas, dizendo que as principais são provenientes das transmissões televisivas e que quando assumiu a direção do clube, as receitas futuras daí provenientes já estavam afetas a pagamentos de compromissos anteriormente assumidos.
Afirmou que celebrou acordos vários com vista à sanação da situação financeira, designadamente com o fisco e com a segurança social, acordos esses que estão a ser cumpridos, tendo já pago à Seg. Social mais de 4 milhões de euros e ao Fisco mais de 2 milhões nos últimos 10 meses. Disse que estão a cumprir "religiosamente" os acordos que celebraram.
Disse que na sua qualidade de Presidente do clube e da sua situação de reformado que foi delegado em si pelos outros arguidos a responsabilidade pela gestão do clube e pelas decisões, o que o declarante fez. Afirmou que falavam sobre os assuntos, mas quem decidia tudo era o declarante. Falou quanto às tarefas que os coarguidos desempenhavam no clube, dizendo que falava todos os dias com o arguido BB mas quem decidia tudo era o declarante, dizendo que o arguido CC desenvolvia unicamente a sua atividade no plano futebolístico e que o arguido DD era um apoiante da atividade do arguido Aparício
Reafirmou ter recebido uma herança muito pesada quando assumiu a direção do clube e que havia o risco da baixa de divisão, o que implicaria consequências negativas elevadas para o clube.
BB prestou declarações, corroborando as declarações prestadas pelo arguido AA. Disse que foi para a SAD do clube a pedido dele, que tinha autonomia na gestão jurídica, mas que as decisões financeiras era da responsabilidade do arguido AA
CC e DD prestaram declarações confirmando as declarações prestadas pelo arguido AA.
Tendo em consideração a prova produzida em audiência de julgamento o Tribunal, como já referiu, deu provados os factos. Na realidade a prova documental é suficientemente elucidativa quanto à prática dos factos.
No que diz respeito à responsabilidade dos arguidos, o Tribunal acreditou nas declarações prestadas pelos arguidos, designadamente nas declarações prestadas pelo arguido AA. Na realidade, atentas também as regras da conhecimento geral, é manifesta a relevância que os Presidentes assumem nos clubes desportivos da dimensão do Futebol Clube, pelo que se apresentaram como verosímeis as declarações prestadas por todos os arguidos quanto à exclusiva responsabilidade daquele na prática dos factos.
O Tribunal fundou ainda a sua convicção relativamente à situação pessoal dos arguidos nos relatórios sociais de fls. 2540 e sgs., 2549 e sgs e 2577 e sgs.
Quanto à ausência de antecedentes criminais baseou-se o Tribunal nos c.r.cs de fls. 2979 e sgs.»

*

Cumpre conhecer

B.2.1 – Questão prévia.

Suscita a Digna magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido a questão prévia da prolixidade das conclusões.

E, de facto, 59 conclusões é obra quando as “questões” sucitadas pelos recorrentes se cifram em 5:

a) – da não verificação do crime de abuso de confiança fiscal por inexistência de pressupostos;

b) – da exclusão da ilicitude;

c) – do estado de necessidade desculpante;

d) - do pagamento parcial e acordos de pagamento;

e) – da impossibilidade de cumprimento por motivos não imputáveis aos arguidos.

Isto dito pelos próprios recorrentes que, nas suas motivações, subdividem a sua insatisfação nesses exactos temas, com variada argumentação.

Daí que a conclusão se imponha: quatro são as grandes questões sucitadas pelos recorrentes por entre 59 argumentos que foram transformados em conclusões.

É claro que um convite à correcção das conclusões se imporia, não fora ocorrerem duas circunstâncias que tornam despiciendo tal convite. De um lado a simplicidade de interpretação das pretensões dos recorrentes, tal como exposta supra. De outro a circunstância de as pretensões concretas do recurso assentarem num equívoco, a pretensão factual infundada, a analisar infra.


*

B.2.2 – É um dado assente que os recorrentes apenas recorrem de direito.

Isso é manifesto pela positiva, isto é, pela indicação das normas violadas feita pelos recorrentes, designadamente os artigos 59º, 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa, 31º, 34º, 35º e 36º do Código Penal, 105º do RGIT e 196º do CPPT.

E pela negativa pois que nem invocados são vícios factuais de conhecimento oficioso nem erros de julgamento na matéria factual.

Por outro lado, não estando o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nsº 2 e 3 do Código de Processo Penal desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, nenhum deles ressalta do texto da decisão recorrida.

Assim, o âmbito do recurso restringe-se a apurar se os arguidos cometeram um crime de abuso de confiança fiscal e, se for o caso, se há conflito de deveres, se ocorreu consumação criminosa e se o pagamento parcial impede a inserção no tipo penal.

Ora, sendo assim, uma perplexidade ressalta: os recorrentes olvidaram que a matéria de facto provada, aquilo que é o objecto do processo em termos de facto, é aquela que foi dada como provada pelo tribunal recorrido.

Aquilo que os recorrentes fazem, pretendendo fazer passar a ideia de que o relevante é o seu entendimento de qual seja a matéria de facto que interessa aos autos, não pode ser atendido no recurso. Ou seja, os recorrentes aproveitaram o recurso para alegarem matéria de facto que em lado algum se mostra provada.

Não se mostrando provada pelo tribunal recorrido nem tendo sido objecto de recurso de facto, não existe.

Assim e das motivações dos recorrentes:

3. Ora salvo o devido e maior respeito, os aqui arguidos não traçaram qualquer plano para obter para si próprio algum proveito que a dita actividade não lhes proporcionava, tão pouco que vieram a beneficiar individualmente (no caso do recorrente AA) ou da sociedade (no caso da Futebol Clube EE) da conduta por si adoptada.

5. A situação económica da sociedade arguida começou a agravar-se fruto da crise económica e de algumas decisões menos acertadas de direções anteriores

6. Neste sentido, e face às dificuldades enunciadas, os montantes provenientes de prestações, foram utilizados, única e exclusivamente, para o pagamento de salários dos trabalhadores ou de dívidas fiscais respeitantes a períodos anteriores aos mencionados nos autos, resultantes da atuação de anteriores administrações que não o aqui arguido, mas que o mesmo se viu obrigado a pagar de forma a conseguir garantir o cumprimento

14. No entanto, estas verbas nunca foram objecto de apropriação pela sociedade arguida ou algum dos seus Gerentes, estas verbas foram entregues aos trabalhadores, para pagamento dos seus salários, pelo que o pressuposto da apropriação indevida, não está desde logo preenchido.

88. Ora, os arguidos actuaram com a diligência exigível a quem procura manter, em condições adversas, o funcionamento de uma unidade empresarial, os postos de trabalho e o sustento das suas famílias, sem retirar ou procurar proveito próprio, despido de artifícios, erros ou enganos susceptíveis de conotação dolosa, sequer sob a forma genérica.

107. Neste sentido e não se verificando, à data do julgamento, as dívidas que levaram à instauração do presente processo criminal ou, como em parte no caso dos autos, estando as mesmas abrangidas por plano de pagamentos em cumprimento e garantidas, não deverão ser os arguidos condenados, sob pena de tratamento igual a duas situações manifestamente distintas, os cumpridores e os incumpridores.

109. Como se disse e consta expressamente da sentença ora em recurso, o aqui recorrente AA assumiu a Administração da SAD e Direção do Clube num período muito conturbado e de crise profunda.

110. Como foi demonstrado nos autos via prova documental, só à Fazenda Nacional, desde Dezembro de 2014 até Dezembro de 2015 foram pagos valores na ordem dos 2.250.000,OO€, nãc sendo despiciendo referir ainda que à Segurança Social, nos últimos dois anos foram pagos montantes na ordem dos 2.000.000,OO€.

111. Não negou em sede de julgamento, nem nega, que os montantes em causa nos autos foram efetivarnente pagos por quem tinha tal obrigação, no entanto não poderá ser desconsiderado que apesar de pagos, uma parte muito considerável dos mesmos não chegou nunca a ser efetivamente recebido pela aqui recorrente Futebol Clube SAD.

112. De facto e como consta dos autos, por dívidas anteriores ao período de gestão em causa nos presentes autos, em que a o Clube era administrado por outros que não o aqui arguido, as receitas dos períodos ora em questão foram objeto de sucessivas penhoras para pagamento de tais dívidas, nomeadamente as receitas decorrentes da cessão dos direitos de transmissão televisiva e de outros credores que melhor constam dos autos, o que pura e simplesmente constitui um facto impeditivo dos aqui arguidos puderem cumprir com o pagamento das suas obrigações.

113. Sendo que mesmo as quantias que não foram objeto de penhora e foram de facto recebidas pelo Futebol Clube EE tiveram que ser canalizadas para o pagamento de dívidas fiscais respeitantes a períodos anteriores ao da gestão do arguido AA.

114. Sendo que só dessa forma poderia o a Futebol Clube cumprir com os requisitos essenciais para continuar a disputar as Ligas Profissionais de Futebol, sem a qual deixaria obrigatoriamente de existir o Clube e a SAD.

115. Donde resulta que a aqui recorrente Futebol Clube SAD nem sequer chegou a receber, efetivamente,o valor do imposto, pelo que, e salvo o devido e elevado respeito não se verifica o requisito de recebimento exigido pelo artigo 105.0 do RGIT, pelo que inexistiu crime, motivo pelo qual deverão os aqui arguidos ser absolvidos com as demais consequências legais.

Quando é certo que a matéria de facto provada e relevante é a que resulta dos seguintes factos provados:

56. O Futebol Clube, EE, representado por AA, celebrou acordo com a entidade fiscal para pagamento das quantias em dívida, acordo esse que tem estado a ser cumprido, tendo os arguidos procedido ao pagamento de diversas quantias em divida (…)
64. Decorrente da sua ligação ao Futebol Clube, AA assume a Vice-presidência na época 1984/1985, retomando em 1987, numa fase crítica do clube, mantendo-se em funções de direcção até ao final da época 1991/1992.
67. O seu retomo ao Futebol Clube verificou-se em 2009, num período em que a continuidade do clube se encontrava ameaçada e onde há vários meses não se pagavam salários, tendo os seus contactos e diligências financeiras junto do meio empresarial permitido salvar a época desportiva.
68. Na constituição do Futebol Clube - EE, AA veio a assumir a função de ~ Vice-presidente, sendo os restantes membros da direcção figuras que lhe eram muito próximas e de confiança, a quem estava ligado por laços de amizade.
69. À data em que começaram a ocorrer os acontecimentos que dão origem à instauração do presente processo, designadamente em Maio de 2009, AA sentiu-se mobilizado para intervir na situação de crise que o Futebol Clube estava a atravessar, tendo conseguido, através dos contactos privilegiados junto do meio empresarial, manter os patrocinadores.
70. Confrontado com a necessidade de fazer opções na gestão financeira do clube, priorizou o pagamento dos salários em detrimento das obrigações fiscais e à segurança social.
71. Fernando Oliveira assumiu as funções de presidente, responsabilidade que mantém até ao presente, sendo em torno da gestão do clube que o seu quotidiano se desenvolve, estando a decorrer um processo de revitalização financeira, proporcionado pelo Estado, o qual tem como objetivo superar os constrangimentos e a instabilidade que se tem verificado.

Por isso que se deve atender a estes factos, que não àqueles nem à interpretação factual efectuada pelo recorrente.

De qualquer forma os factos provados em 56), 67), 69), 70) e 71) apresentam uma coloração positiva para os arguidos recorrentes, que não de exculpação da sua conduta, já que claramente optou pelo incumprimento das obrigações fiscais.


*

B.2.3 – E aqui se impõe realçar algo que parece ter ficado olvidado: não estamos a tratar da responsabilidade criminal e civil individual do recorrente EE, sim da responsabilidade da pessoa colectiva “Futebol Club – EE” sem prejuízo de a responsabilidade da pessoa colectiva não afastar a responsabilização individual, nos termos do nº 7 do preceito (“7 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes”).

E as pessoas colectivas, nos termos do nº 2 do artigo 11º do Código Penal, “são responsáveis pelos crimes (…) quando cometidos (a) em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança”, entendendo-se que “ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade” (nº 4 do preceito).

E, é certo, o arguido recorrente agiu em nome e no interesse da sociedade arguida.

E isto independentemente das equipas dirigentes que se sucedem como responsáveis da direcção e gestão, isto no sentido de se afirmar que a situação de facto negativa para o património da sociedade criada por anteriores responsáveis não excluir a ilicitude e culpa dos novos responsáveis pela gestão, mesmo que isentos de responsabilidade na anterior má gestão.

Por isso alegar que ocorreu a penhora de valores por actos imputáveis a anteriores gestões é olvidar que a responsabilidade da pessoa colectiva em nada se altera, arrastando a das suas equipes directivas.

E aqueles considerandos factuais – responsabilidade dos actuais e anteriores dirigentes – foram devidamente atendidos pelo tribunal recorrido ao nível da pena, de uma desusada mas justificada tolerância.


*

B.3 – Mas antes de abordar a questão do conflito de deveres impõe-se afirmar a existência do tipo de ilícito contido no 105º do RGIT, posta em causa pelos recorrentes.

Dispunha o artigo 24º, nº 1 do RJIFNA (na redacção dada pelo Dec-Lei nº 394/93, de 24-11):

“Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei ...”;

Dispõe o actual artigo 105º do RGIT:

“Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei ...”.

Como se pode verificar, o anterior tipo exigia, de forma expressa, a “apropriação” como elemento do tipo de ilícito. O actual tipo penal parece prescindir (pelo menos literalmente) dessa apropriação, bastando-se com a “não entrega” de prestação tributária.

Ou, dizendo mais, se os anteriores tipos penais (incluindo o abuso contra a Segurança Social) – à luz do regime instituído pelo Dec-Lei nº 394/93, de 24-11 - se construíram à imagem do crime “clássico” do abuso de confiança, os actuais tipos penais fiscais parecem afastar-se declaradamente daquela figura clássica, pelo menos literalmente, parecendo prescindir da dita apropriação.

Partindo de duas previsões legais (obrigação de dedução e obrigação de entrega) constrói-se o tipo de ilícito e parte-se para a presunção, pela não entrega, da existência da posse e inversão do título (ou prescinde-se mesmo da sua existência factual, leitura que será permitida). De forma linear: quem tem a obrigação de deduzir e não entregou praticou um crime, independentemente da posse e apropriação.

Ora, permitir que tal ocorra é objectivar a responsabilidade criminal é, depois disso, abrir a porta ao ónus da prova e sua inversão. É permitir presumir factos e culpa. É não distinguir crime de contra-ordenação (v. g. artigo 114º do RGIT). Obviamente tal leitura contraria os mais elementares princípios de direito penal e atenta contra o edifício constitucional.

Assim, uma leitura da letra do artigo 105º do RGIT que prescinda da detenção e não entrega indevida reconduzir-nos-ia à afirmação da sua inconstitucionalidade material. Daí que se concorde com o expendido por Jorge Manuel Monteiro Pereira de que o tipo incriminador não abrange a “não dedução”, a “não liquidação e “o não recebimento por parte do agente”. [1] No mesmo sentido Isabel Marques da Silva na afirmação de que a prévia dedução ou cobrança da prestação tributária constitui um pressuposto do tipo. [2]

Isto é, o tipo exige a detenção e não entrega. Não exige a “apropriação” com o sentido de inversão com intuito de apropriação pessoal, para acréscimo do seu património. Se se preferir e à imagem da burla tributária, o tipo não exige um “enriquecimento” do agente e/ou de terceiros.

Ou seja, a leitura feita pelos recorrentes não é permitida. O novo tipo penal não exige – não é elemento do tipo – a “apropriação” no sentido de exigir a prova de que a pessoa colectiva ou seus representantes tiveram um acréscimo no seu património por via de uma integração de valores não pagos à administração fiscal. Basta-se com a não entrega, sabida a detenção.

Daí que o teor da conclusão I) dos recorrentes (I. No caso em apreço, estas verbas nunca foram objecto de apropriação pela sociedade arguida ou algum dos seus Administradores, estas verbas foram entregues aos trabalhadores, para pagamento dos seus salários, pelo que o pressuposto da apropriação indevida, não está desde logo preenchido.), assentando a argumentação na exigência de uma “apropriação” que não faz parte do tipo, contenha uma confissão da detenção e não entrega.

Assim o tipo de ilícito criminal imputado ao arguido deve ser entendido como tipo doloso, com a exigência da possibilidade de reprovação da sua conduta a título doloso, tendo por base omissão ou omissões reprováveis por o arguido não ter agido, conhecendo e querendo, em conformidade com o dever jurídico, não procedendo à entrega de prestação recebida e que tinha a obrigação de entregar à administração fiscal.

Da jurisprudência do Tribunal Constitucional que materialmente tem procurado suster a preponderância de argumentos a favor da inconstitucionalidade do artigo 105º do RGIT e que surge como legitimação material do citado preceito, podem retirar-se os seguintes elementos úteis para uma leitura materialmente constitucional do tipo penal em presença [Tomando como modelo o Ac. 640/03 do TC de 20-01-2004 (relator Cons. Mota Pinto), onde está em causa o IVA cobrado, enumeram-se os elementos do tipo, a saber (naquilo que nos interessa)]:

Ø A existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária;

Ø A existência de uma prestação tributária deduzida (nos termos legais);

Ø A falta dolosa dessa entrega;

Ø A exclusão do dolo específico e da punibilidade da negligência;

Manifesta é, desde logo, a ausência – enquanto elemento objectivo do tipo – de qualquer benefício ou prejuízo e, enquanto elemento subjectivo, de intenção correspondente.

Assim, não a “apropriação” indevida, sim a “detenção” prévia do quantum da prestação é elemento que continua a fazer parte do tipo de ilícito, pois que o agente comporta-se relativamente à prestação uti dominus, havendo um momento de inversão do título de posse, sendo a não entrega a manifestação exterior desse momento subjectivo.

Este o sentido material que pode ser dado ao tipo penal em análise face à constante jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da constitucionalidade do tipo, não obstante a crítica acerba de que foi alvo. [3]

Serão, assim, elementos do tipo de ilícito em presença: a existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária; a existência de uma prestação tributária efectivamente deduzida ou cobrada (nos termos legais); a falta dolosa dessa entrega.

Tais elementos verificam-se no caso em apreciação. E verificam-se na medida em que, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, o facto encontra-se provado de forma indubitável. Aliás, a propria assunção de que se não procedeu ao pagamento para suprir outras obrigações é bem reflexo disso.

De onde decorre, naturalmente, a inviabilidade da primeira pretensão do recorrente, a alegada inexistência de preenchimento do tipo contido no artigo 105º do RGIT.

Convém repisar, a finalizar, que é irrelevante o destino do dinheiro em termos de apropriação pessoal pelos arguidos pessoas singulares ou pela arguida pessoa colectiva, na medida em que elemento essencial do tipo é a não entrega da prestação e não a sua apropriação pessoal. – v.g. acórdão desta Relação de 2013/10/15 (proc. 33/10.9IDEVR.E1, rel. Desemb. Alberto Borges): “IV. A existência do crime de abuso de confiança fiscal não exige, actualmente, como elemento constitutivo, que o agente se aproprie, em proveito próprio, das quantias recebidas, bastando que, tendo-as recebido, não as tenha entregue ao Estado, nos termos legais”.


*

B.4.1 – Invocam os recorrentes a existência de um conflito de deveres, o de pagar impostos e o de pagar salários, daqui pretendendo fazer decorrer a existência de um conflito de deveres a inserir na previsão do artigo 36º do Código Penal, invocando uma causa de exclusão da ilicitude ou, ao menos, de atenuação especial.

Como bem afirmam os recorrentes, é praticamente unânime a posição de rejeição jurisprudencial de tal tese, como aliás se dá conta em variadíssimos acórdãos de todas as Relações. E se acaba de decidir no acõrdão desta Relação de 26-04-2016 (no proc. n.º 20/12.2IDSTR.E1), em que o ora relator foi adjunto, para o qual se remete para suporte lógico e indicações jurisprudenciais.

Mas, note-se. No essencial a posição jurisprudencial maioritária assenta na aceitação de que esse conflito de deveres existe e que prevalece a obrigação fiscal.

É disso exemplo o acórdão da Relação de Guimarães de 04-02-2013 (proc. 285/11.7IDBRG.G1, sendo rel. a desemb. Maria Luísa Arantes): [4]

I – Em caso de conflito de deveres (art. 36 do Cod. Penal), sendo possível hierarquizar os que estiverem em confronto, o comportamento só não será ilícito se o agente optar pelo cumprimento do dever mais valioso. Nos casos em que não é possível estabelecer essa hierarquização, o agente pode eleger o cumprimento de qualquer dos deveres.
II – A obrigação de entregar os impostos ao Estado é uma obrigação legal, mais relevante que a obrigação de pagar os salários aos trabalhadores ou que o pagamento das despesas correntes duma empresa.
III –A norma do art. 35 nº 1 do Cod. Penal (estado de necessidade desculpante) reporta-se unicamente à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais. Estando em causa bens ou interesses jurídicos de outra natureza (nº 2), a verificação dos requisitos daquela norma não afasta a culpa do agente, apenas pode constituir uma mera circunstância passível de atenuar especialmente a pena ou, em casos excepcionais, de ser fundamento para que esta seja dispensada.
IV – Ainda assim, em caso de não entrega do IVA, terá de se demonstrar que a conduta adoptada foi a única susceptível de evitar o perigo de encerramento da empresa e que não era razoavelmente exigível outro comportamento.

Cremos, no entanto, que não só não há conflito de deveres relevante, como também se olvidam outros deveres.

Desde logo pretende-se que passe despercebido que os deveres não estão em conflito na estrita medida em que devem ser ambos cumpridos e em simultâneo, o dever de pagar salários e o dever de pagar impostos. Isto é, os deveres incumpridos não se encontram numa posição relativa de incompatibilidade. Devem ambos ser cumpridos e em simultâneo.

Esta é uma suposição da ordem jurídica, a de que uma sociedade comercial, mesmo que desportiva, tenha proventos que sejam superiores às receitas e suficientes para cumprir todos os seus deveres.

Descuida-se, assim, o dever de uma prudente gestão por parte de quem invoca esse conflito, sendo que os autos demonstram que, em concreto, a invocação de um dever assenta no incumprimento desse e de outros deveres, na existência de uma gestão reprovável, mesmo que anterior.

Isto redunda, como não poderia deixar de se apontar, num venire contra factum proprium, pois que se vem invocar um “ético” (!) dever de agir socialmente com base numa nada ética violação da obrigação de uma boa gestão, no que constitui uma acção contra o dever ser social. E essa obrigação de uma boa gestão nem se diga que se confina a dispor de bens de cariz privado, pois que afecta trabalhadores, credores e o comércio em geral, designadamente a concorrência entre sociedades desportivas, que se quer sã e sem regimes de privilégio por incumprimento de obrigações legais.

Daí que pareça ser conveniente deslembrar agora que foi essa má gestão que afectou os trabalhadores, os credores e a propria sociedade recorrente. E descuida-se, também, o dever de apresentação à insolvência da própria sociedade recorrente antes de a situação descambar para a impossibilidade de controlo de gestão e de solvência de dívidas.

Esse dever de apresentação à insolvência está previsto no CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), constante do DL 53/2004, de 18/3 (atualizado por diversa legislação, designadamente os DL 200/2004, de 18/8, 282/2007, de 7/8 Lei 16/2012, de 20/4 e 26/2015, de 6/2).

Como é sabido (artigo 1º, nº 1 do diploma) o processo de insolvência “é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.

Isto porquanto o princípio da confiança em que assenta o comércio jurídico supõe que os devedores em situação económica que lhes não permita solver os seus encargos são suficientemente responsáveis e conscientes para se apresentarem perante os credores o mais rapidamente possível.

E a ordem jurídica claramente confere preferência a uma apresentação prévia à impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.

Essa preferência é claramente assumida no nº 1 do preceito supra citado na medida em que estatui que apenas quando a recuperação da empresa não se afigura possível se passará à “liquidação do património do devedor insolvente e à repartição do produto obtido pelos credores”.

Ou seja, o dever de apresentação à insolvência previsto no artigo 18.º, nº 1 do diploma (“O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la”) acaba por ser uma fase secundária de um dever que se impõe com anterioridade.

Assim, a afirmação constante do nº 2 do artigo 1º do diploma de que estando o devedor em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, “pode” requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I, acaba por ser a consagração de um dever prévio ao dever de apresentação à insolvência, o dever de apresentação aos credores num processo especial de revitalização assim que constate uma “situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação”. Ou seja, antes de cessar pagamentos.

E tal dever destina-se, precisamente, a evitar a degradação da situação tal como pretendido pelo artigo 17.º-A, nº 1 do diploma: “1 - O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”.

Portanto, a uma má gestão da arguida pessoa colectiva, afirmada pelos próprios recorrentes, naturalmente imputável aos seus órgãos (quaisquer que eles fossem), seguiu-se uma tardia apresentação à recuperação, pois que o montante já pago pelos próprios arguidos revelam esse lento agir, a que acrescem seis meses de total ausência de órgãos sociais efectivos, tudo factos imputáveis à arguida pessoa colectiva.

Naturalmente que isso pode não ser imputável na totalidade aos arguidos pessoalmente, mas é-o seguramente à pessoa colectiva que agora dirigem e, por isso, a eles próprios enquanto representantes daquela.

Ou seja, não podem os arguidos invocar e fazer prevalecer a alegação de um dever (de pagar salários) que apenas surge porque a pessoa colectiva não cumpriu esse seu dever por factos que lhe são imputáveis, em breve, por culpa própria.


*

B.4.2 – Acresce que, mesmo a aceitar-se que há um conflito de deveres relevante – o que apenas se configura por necessidade argumentativa - como se refere no acórdão desta Relação de Évora de 15-11-2011 (proc. 120/03.0IDFAR.E1, sendo relator o Desemb. Sérgio Corvacho) o “dever de pagar impostos e o de pagar salários não são, em face da ordem jurídica, qualitativamente equiparáveis, atendendo quer à sua fonte, que é legal, no caso do primeiro, e contratual, no do segundo, quer à natureza dos interesses que têm por função tutelar, que é pública, quanto ao primeiro, e privada, relativamente ao segundo”, com a natural prevalência do primeiro.

E, como muito bem se acentua na terceira proposição desse mesmo acórdão, “o conflito de deveres nem sequer deverá ser colocado, em abstracto, relativamente às quantias recebidas pelo sujeito «interposto», no quadro de uma relação de substituição fiscal. Nesse contexto, o sujeito «interposto» fica investido da disponibilidade fáctica e jurídica dessas importâncias, mas estas não se integram no seu património, pois foram-lhe entregues a título não translativo da propriedade, para a exclusiva finalidade de serem entregues ao Fisco. Assim sendo, as quantias em referência não respondem por outras obrigações pecuniárias a que esteja vinculado o sujeito que as receba, incluindo as que relevem do pagamento de salários”.

Ou seja, voltamos ao mesmo, não há qualquer conflito de deveres.

Nem há qualquer causa de exclusão da ilicitude, seja por via de um hipotético “direito de necessidade”, este a exigir a defesa de valores iminentemente pessoais (Mesmo que assim não ocorresse é bom recordar que a situação de “perigo” foi causada pela recorrente e seus represententes, o que sempre excluiria a operatividade do artigo 31º do Código Penal.).

E não há conflito de deveres na medida em que o dever de que se invoca o cumprimento foi violado pela recorrente pessoa colectiva e seus representantes, os deveres têm natureza e valoração diversos. Ou seja, em linguagem futebolística, conceder a quem viola o dever a possibilidade de afirmar a invocação do dever violado como justificação de violação de deveres, que devem subsistir em simultâneo para manter a igualdade com os concorrentes, é beneficiar o infractor.

Por outro lado, o reconhecimento das pretensões dos recorrentes constituiria, por si só, a violação de outro dever, o dever de acautelar a igualdade de todas as sociedades “desportivas” na sua luta em sã concorrência comercial. De facto, sendo a recorrente pessoa colectiva uma sociedade desportiva, deve cumprir as exigências legais – incluindo as suas obrigações fiscais – sob pena de falsear o comércio inerente a tais sociedades e a “verdade desportiva” concorrencial enquanto objecto de negócio.

E isto leva-nos a recordar que o objecto real da recorrente é uma actividade comercial com intuito lucrativo. É que, face ao artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de Janeiro, o direito subsidiário aplicável às sociedades desportivas são as normas que regulam as sociedades anónimas e por quotas, regime já constante da anterior regulamentação e do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de Abril, com as posteriores alterações de 1999 e de 2006.

E que o não pagamento de impostos é uma forma de falsear a concorrência, para além da verdade “desportiva”. Assim, a pretensão dos recorrentes, antes de ser uma invocação de cariz ético, é uma pretensão a um regime de privilégio, falseador da concorrência e das próprias condições de aceitação na respectiva liga e do seu posicionamento nela.

Não há, pois, causa de exclusão da ilicitude. Nem causa para atenuar especialmente a pena por via de um inexistente estado de necessidade desculpante, à luz do nº 2 do artigo 35º do Código Penal.

Nesta sede, aliás, foi de extrema coloração positiva a ponderação que o tribunal recorrido fez da ilicitude e culpa da arguida, espelhada numa pena tolerante.


*

B.5 – Por outro lado convém frontalmente encarar outra afirmação constante das motivações e conclusões do recurso de forma a não deixar qualquer dúvida sobre a solução jurídica defendida.

Apesar de existir um processo de recuperação e de os arguidos terem procedido ao pagamento parcial da dívida resultante do ilícito criminal, certo é que o crime se verificava já consumado.

De facto, como já afirmámos no acórdão desta Relação de 19-12-2013, de que fomos relator (proc. 388/11.8IDFAR.E1), “(I) o momento da consumação criminosa no crime de abuso de confiança fiscal é o momento em que a prestação tributária deveria ter sido paga” e “(II) o mero pagamento parcial no âmbito da condição da alínea b) do n. 4 do artigo 105º do RGIT não exclui a punibilidade”. Ou seja (III), “consumado o crime, só o pagamento integral das indicadas quantias e no prazo da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT afasta a punibilidade da conduta”.

Isto é, consumado o crime pela não entrega atempada da prestação, o pagamento parcial posterior deverá ser considerado em sede de culpa, que não em sede de exclusão da ilicitude. E o tribunal recorrido claramente atendeu a tal facto nos termos expostos, correctamente, portanto.

Daí que se não possa aceitar a argumentação dos recorrentes de que, existente um processo de recuperação e paga parte da dívida, se deva considerar extinta a responsabilidade tributária por via de uma hipotética operatividade do artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT.

Há em parte desta alegação um outro mal-entendido: o tribunal não conhece – nem o tribunal recorrido conheceu - da responsabilidade tributária.

Aquilo que o tribunal conhece é a responsabilidade criminal por incumprimento atempado de obrigações fiscais e apenas porque isso se encontra devidamente tipificado e a consumação ocorreu.

Por fim resta afirmar que não existe impossibilidade de cumprimento de obrigações fiscais por motivos não imputáveis aos arguidos.

Desde logo porquanto isso não resulta provado mas, principalmente, porque resulta provado precisamente o contrário: os arguidos não cumpriram as suas obrigações fiscais e daqui não deriva que os serviços fiscais fiquem impossibilitados de cobrar as dívidas correspondentes, pois que esse é o cerne da alegação dos recorrentes nesta parte. Ou seja, se houve impossibilidade ela é imputável aos arguidos.

Pelo que ficou dito se conclui pela total improcedência do recurso.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto.

Custas pelos recorrentes com 5 (cinco) Ucs de taxa de justiça.

Notifique.

Évora, 07 de Junho de 2016

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso

__________________________________________________

[1] - In “Despenalização da não entrega da prestação tributária” – O novo nº 4 do artigo 105º do RGIT”. Verbo Jurídico, pag. 5.

[2] - In “Regime Geral das Infracções Tributárias”, pag. 181. Almedina, 2007.

[3] - V. g. Manuel da Costa Andrade, “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, in RLJ, ano 134, pags. 307-325 e “Direito Penal Económico e Europeu: textos doutrinários”, vol. III, pags. 229-253. Coimbra Editora, 2009.

[4] - No mesmo sentido o acórdão da Relação de Coimbra de 28-03-2012 (Proc. 1133/10.0IDLRA.C1, rel. desemb Paulo Guerra).