Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | PAULA DO PAÇO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO OBJECTO DO PROCESSO VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO CASO JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I- A ação especial de acidente de trabalho estrutura-se em duas fases: a conciliatória e a contenciosa. II- A primeira é dirigida pelo Ministério Público e a segunda é dirigida pelo Juiz de Direito, mas apenas terá lugar na eventualidade de não se obter um acordo total na fase conciliatória. III- Não sendo possível o acordo total, o conteúdo do auto de conciliação destina-se a delimitar o objeto do litígio, a dirimir na fase contenciosa. IV- Deste modo, não é possível a posterior discussão de questões acordadas no auto de conciliação, nem é possível o posterior conhecimento de questões não apreciadas ou referidas nesse auto. V- Se, na tentativa de conciliação, ocorrida na fase conciliatória, jamais foi apreciada ou referida a questão da eventual ocorrência do acidente por falta de observação das regras de segurança ou saúde no trabalho pela entidade empregadora ou pela empresa utilizadora de mão de obra, ficou precludida a possibilidade de a mesma ser invocada e debatida na fase contenciosa do processo, por não integrar o objeto do litígio delimitado pela não conciliação. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1] I. Relatório AA deu início à fase contenciosa da presente ação especial de acidente de trabalho, por via da apresentação da petição inicial, deduzida contra “Generali Seguros, S.A.” e “Synergie – Empresa de Trabalho Temporário, S.A.”. A Ré seguradora, na sua contestação, requereu a intervenção principal provocada da empresa utilizadora “Amorim Cork, S.A.”. Por despacho prolatado em 29/09/2022, foi admitida a requerida intervenção principal provocada. A interveniente veio apresentar o seu articulado, no qual alegou que na fase conciliatória do processo nunca foi suscitada a questão da violação das regras de segurança pela empregadora, ou por terceiro utilizador, pelo que a questão ficou fechada por confissão e por preclusão, não podendo a mesma ser suscitada na fase contenciosa. Concluiu que, por tal razão, se verifica uma exceção perentória inominada que implica a sua absolvição do pedido. Em 22/11/2022, foi proferido despacho saneador. Para o que aqui interessa, transcreve-se o seguinte segmento deste despacho: «Da exceção perentória inominada: Veio a ré empresa utilizadora chamada aos autos invocar uma exceção perentória inominada, pugnado pela absolvição do pedido, porquanto entende que, como a ré seguradora não se pronunciou pela existência de violação de regras de segurança, por parte da empresa utilizadora, em sede de tentativa de conciliação, tal faculdade encontra-se precludida, não podendo ser exercida nesta fase do processo. Analisando o teor do auto de não conciliação verifica-se que não foi consignado o acordo da seguradora relativamente factos que excluam a responsabilidade da ré empresa utilizadora. Foi consignado que: “na posse dos elementos apurados, declina a responsabilidade no presente acidente, uma vez que o mesmo resultou da violação das normas de segurança por parte do sinistrado.” Ou seja, o que foi consignado foram apenas conclusões e conceitos jurídicos, e ainda assim, com a salvaguarda dos elementos que havia apurado, dos quais não constava o inquérito ao acidente elaborado pela ACT. Deste modo, entende-se que a seguradora, em sede de tentativa de conciliação, não acordou na inexistência de responsabilidade da empresa utilizadora. Desta forma, improcede a invocada exceção, o que se decide. Notifique.(…)». - A interveniente veio interpor recurso desta decisão, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:«1ª A recorrente foi chamada ao processo na qualidade de empresa utilizadora de trabalho temporário, do sinistrado. 2ª Em sede de tentativa de conciliação a seguradora Generali declarou declinar a responsabilidade pelo AT, porque apurou que resultou da violação das regras de segurança por parte do sinistrado. 3ª A empregadora (empresa de trabalho temporário) Synergie declarou que participou o AT à seguradora, mas que não se pronunciava pela descaracterização do acidente, por não possuir dados. 4ª Em momento algum foi suscitada a questão da violação das regras de segurança pela empregadora, ou por terceiro utilizador: Assim, essa questão, a da entidade responsável pelo AT, devia ter ficado fechada, nessa sede, e assente, por confissão e por preclusão, não podendo ser suscitada na fase contenciosa. 5ª Nessa medida, verifica-se uma exceção perentória inominada, que importa a absolvição do pedido, quanto à interveniente, empresa utilizadora. 6ª Com o devido respeito, a decisão recorrida andou mal, ao entender que não foi consignado o acordo da seguradora relativamente a factos que excluam a responsabilidade da recorrente, mas apenas conclusões e conceitos jurídicos e com salvaguarda dos elementos que havia apurado, dos quais não constava o inquérito da ACT, e que a seguradora não acordou na inexistência de responsabilidade da empresa utilizadora. 7ª Desde logo é infundamentado que a seguradora tenha de alguma forma salvaguardado melhor apuramento de factos e que do que apurou não constava o inquérito da ACT: Nada disse a esse propósito; a decisão produziu afirmações que não têm qualquer sustento. 8ª Mas a verdade é que a seguradora fez o inquérito que quis e o apuramento dos factos que entendeu e fez consignar apenas que «declina a responsabilidade no presente acidente, uma vez que o mesmo resultou da violação das regras de segurança por parte do sinistrado», o que é incompatível com a posição de o AT ter resultado da violação de regras de segurança pelo utilizador. 9ª Não se diga que esta afirmação da seguradora encerra meras conclusões ou conceitos jurídicos, pois que o que lei exige no artº 112º, nº 1, do CPT, é que fique consignado se houve ou não acordo acerca da entidade responsável («Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respetivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída») e isso ficou clara e expressamente referido, em cumprimento dessa norma legal: Ficou consignado que não houve acordo quanto à entidade responsável, porque a seguradora entendeu que a responsabilidade pelo AT cabia ao sinistrado por ter violado regras de segurança, sendo ele a entidade responsável - e não outrem, nomeadamente o utilizador, o que é incongruente com a posição alegada na contestação. 10ª Sendo na fase conciliatória que se definem as posições das partes, nomeadamente quanto à entidade responsável, nos termos acabados de referir, a verdade é que em lado algum a seguradora ressalvou a eventualidade de a empresa utilizadora do trabalho temporário do sinistrado ter violado condições de segurança ou reservou melhor averiguação desse tema, o que mesmo sucedendo, aliás, com a própria empresa de trabalho temporário, que nada referiu sobre essa questão. 11ª Tudo permite concluir que as questões que não foram suscitadas na fase conciliatória ficaram precludidas, fechadas, não podendo ser suscitadas ex-novo na fase contenciosa, como é jurisprudência pacífica, de há muitos anos. NESTES TERMOS, - DEVE O RECURSO MERECER PROVIMENTO, COM AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, NOMEADAMENTE DE A AÇÃO IMPROCEDER QUANTO À INTERVENIENTE EMPRESA UTILIZADORA.». - Contra-alegou a seguradora, pugnando pela improcedência do recurso.- A 1.ª instância admitiu o recurso com subida em separado e efeito meramente devolutivo.Foi fixado o valor da ação em € 5.000,01. - O apenso do recurso subiu à Relação e foi observado o estatuído no artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer favorável à manutenção do despacho recorrido. A Apelante respondeu, reiterando a posição que assumiu no recurso. O recurso foi mantido e foram colhidos os vistos legais. Cumpre apreciar e decidir. * II. Objeto do RecursoÉ consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho). Em função destas premissas, importa analisar e decidir se a exceção perentória inominada invocada no articulado apresentado pela Apelante deveria ter sido julgada procedente. * III. Matéria de FactoA matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para o qual remetemos, sem necessidade da sua repetição, atendendo-se, ainda, aos demais elementos que constam dos autos que sejam relevantes para a apreciação da questão sub judice. * IV. Enquadramento jurídicoO “thema decidendum” resume-se à seguinte questão: saber se em função do ocorrido na fase conciliatória da presente ação de acidente de trabalho ficou precludida a possibilidade de debater, na fase contenciosa da ação, a existência de responsabilidade da empresa utilizadora de mão de obra (a ora Apelante), por violação de normas de segurança no trabalho. Analisemos, pois. É consabido que a ação especial de acidente de trabalho visa efetivar os direitos resultantes de acidente de trabalho e mostra-se regulada nos artigos 99.º a 150.º do Código de Processo do Trabalho. Neste processo especial, mostram-se previstas duas fases: a conciliatória e a contenciosa. A primeira é dirigida pelo Ministério Público e a segunda é dirigida pelo Juiz de Direito, mas apenas terá lugar na eventualidade de não se obter um acordo total na fase conciliatória. A fase conciliatória termina com a realização de uma tentativa de conciliação, à qual são chamadas, para além do sinistrado ou dos seus beneficiários legais, todas as entidades que, em função da averiguação do acidente efetivada nesta fase, possam ser responsabilizadas pela reparação do mesmo – artigo 108.º do Código de Processo do Trabalho. Na tentativa de conciliação, o Ministério Público promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo – artigo 109.º do referido compêndio legal. Nos autos de acordo constam, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhe são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações – artigo 111.º do Código de Processo de Trabalho. Na falta de acordo, são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo – artigo 112.º – prosseguindo o processo para a fase contenciosa para resolução das questões sobre as quais não foi possível formular acordo. Deste modo, não é possível a posterior discussão de questões acordadas no auto de conciliação, nem é possível o posterior conhecimento de questões não apreciadas ou referidas nesse auto.[2] Não sendo possível o acordo total, o auto de conciliação destina-se, pois, a delimitar o objeto do litígio, a dirimir na fase contenciosa.[3] Posto isto, analisemos o que se passou na tentativa de conciliação ocorrida nos presentes autos. Do teor do auto de conciliação, com interesse, resulta o seguinte: «Após ter-se certificado da identidade dos presentes e da sua capacidade e legitimidade para intervirem neste ato, foi dada a palavra ao(à) sinistrado(a), e pelo(a) qual foi dito que foi vítima em 24-11-2020, pelas 22:45 horas em Coruche de um acidente de trabalho. Tal acidente verificou-se quando o(a) sinistrado(a) prestava o seu trabalho de operário fabril ao serviço da entidade empregadora "Synergie - Empresa de Trabalho Temporário, S.A.”, em execução de contrato de trabalho com esta celebrada e mediante a remuneração de (….). O acidente consistiu no seguinte: o(a) sinistrado(a) ao proceder à limpeza do sector nas instalações da Amorim Cork, S.A., verificou a paragem da "girafa" (tapete rolante) com a qual habitualmente trabalha. Ao procurar colocar a mesma em movimento, foi atingido no 2.º dedo da mão esquerda, de que lhe resultaram as lesões constantes dos autos. (…) Peto(a) Legal Representante da Generali Companhia de Seguros, S.A., foi dito que aceita a existência do evento no Tempo e Local. Todavia não aceita a sua caracterização como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões apresentadas. (…) Mais disse que da posse dos elementos apurados, declina a responsabilidade no presente acidente, uma vez que o mesmo resultou da violação das normas de segurança por parte do sinistrado. Não aceita o resultado da perícia médica efetuada ao sinistrado pelo Exmo. Perito Médico do GML de Santarém. Pelo que esta seguradora declina toda e qualquer responsabilidade emergente da ocorrência dos Autos, pelo que SE NÃO CONCILIA. Pelo(a) Legal Representante da Entidade Empregadora, foi dito (…) Confirmamos que participamos uma ocorrência à seguradora ocorrida no tempo e local supra mencionados, Não nos pronunciamos sobre a descaracterização do acidente. por não possuirmos dados para nos pronunciarmos. Não aceita o resultado da perícia médica efetuada ao sinistrado pelo Exmo. Perito Médico do Tribunal, quanto aos períodos de ITA. nem à IPP atribuída. Não aceita pagar qualquer quantia ao sinistrado, por entender que tinha a responsabilidade de seguros de acidentes de trabalho, totalmente transferida para a seguradora, pelo que NÃO SE C0NCILIA.» Do transcrito infere-se que a seguradora não aceitou conciliar-se, nomeadamente, por entender que o acidente ocorreu por violação das normas de segurança por parte do sinistrado[4]. Na tentativa de conciliação jamais foi apreciada ou referida a questão da eventual ocorrência do acidente por falta de observação das regras de segurança ou saúde no trabalho pela entidade empregadora ou pela empresa utilizadora de mão de obra – cfr. artigo 18.º da LAT.[5] [6] Ora, não tendo tal questão sido apreciada ou referida naquela diligência, ficou precludida a possibilidade de a mesma ser invocada e debatida na fase contenciosa do processo, por não integrar o objeto do litígio delimitado pela não conciliação. Como tal, a exceção perentória invocada pela Apelante no articulado que apresentou deve proceder, porque se verifica um facto impeditivo para a sua responsabilização pela reparação do acidente. A consequência de tal procedência é a absolvição do pedido – artigo 576.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Destarte, impõe-se a revogação do despacho recorrido, em face de todo o exposto. Consequentemente, o recurso terá de proceder, sendo as custas do mesmo suportadas pela Apelada seguradora. * V. DecisãoNestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, e, em consequência, revogam a decisão recorrida, declarando -se procedente a exceção perentória inominada invocada pela empresa utilizadora (a ora Apelante), com a consequente absolvição do pedido. Custas pela Apelada seguradora. Notifique. ------------------------------------------------------------------------------- Évora, 14 de setembro de 2023 Paula do Paço (Relatora) Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta) Mário Branco Coelho (2.º Adjunto) __________________________________________________ [1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho [2] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/1989, prolatado no Proc. n.º 8279/88; o Acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2019, proferido no Proc. n.º 5068/17.8T8LRA-A.C1; o Acórdão da Relação do Porto de 20/01/2003, referente ao Proc. n.º 0241019; e o Acórdão da relação de Évora de 13/10/2022, relativo ao Proc. n.º 2008/19.3T8PTM.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt [3] Cfr. Acórdãos da Relação de Évora, de 26/10/2017 e de 04/04/2018, respetivamente, prolatados nos Procs. n.º 176/14.0TTLRA.E1 e n.º 1713/15.8T8STR.E1; e Acórdão da Relação de Guimarães de 30/11/2022, respeitante ao Proc. n.º 2173/18.7GMR.G1, todos publicados em www.dgsi.pt. [4] Deixaremos de parte, porque não interessa para o “thema decidendum” a discordância manifestada quanto às incapacidades atribuídas pelo exame médico realizado na fase conciliatória. [5] Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro. [6] Salienta-se que a invocação de tal matéria não estava dependente de qualquer notificação de Relatório de Averiguação do Acidente feito pela ACT. |