Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
342/17.6IDSTB.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:


1 - O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
2 - Todavia, a alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.

3 - No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do art. 311º, nº2, al. a) e nº3, al. d) , do CPP, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será discutida e debatida.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC nº342/17.6IDSTB foi, em 28.10.2019, proferido o seguinte despacho (transcrição):

“Lida a acusação deduzida nos presentes autos constato que aos arguidos é imputada a prática de um crime de fraude fiscal qualificada do artigo 104.°, nº 2, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Dispõe o artigo 311.°, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, que o juiz rejeita a acusação na eventualidade de a considerar manifestamente infundada, sendo que os casos em que tal ocorre resultam especificados nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo ora em menção, as quais dispõem, respectivamente, que a acusação é manifestamente infundada "quando não contenha a identificação do arguido"; "quando não contenha a narração dos factos", "se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam"; ou "se os factos não constituírem crime".

No caso vertente, afigura-se e ressalvado diverso entendimento, que não é identificado o quadro legal aplicável aos factos descritos na acusação, pois somente é feita alusão à agravação a que respeita a alínea b) do nº 2 do artigo 104.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, o qual dispõe «a mesma pena é aplicável quando A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000», mas sem que se aluda concretamente a qualquer alínea do nº 1, e, em especial, não se aludindo ao artigo 103.° do mesmo diploma legal e a qualquer uma das suas alíneas, faltando, pois, a menção concreta à disposição legal atinente ao tipo de crime imputado, somente resultando efectivada, reitera-se, a menção isolada à agravação.

Ademais e mais uma vez ressalvada diferente análise, afigura-se-me que os factos que constam da acusação, por si só, não configuram a prática de um crime, mormente um crime de fraude fiscal.

Dispõe o artigo 103.°, nº 1, alíneas a) a d), do Regime Geral das Infracções Tributárias, que «constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias», concretizando-se que a fraude fiscal pode ter lugar através da «ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável; ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária»; e «celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas».

No caso vertente menciona-se na acusação que os arguidos - sociedade arguida e legal representante - procederam ao preenchimento e entrega, na parte relevante, das declarações de IVA respeitantes ao primeiro e segundo trimestres, identificando enquanto IVA dedutível, respectivamente, os montantes de € 68.766,04 e de € 31.765,63, referindo-se adicionalmente que foi realizada uma inspecção no âmbito da qual aqueles não apresentaram documentos contabilísticos, nem documentos de suporte à aquisição de bens e serviços, não tendo sido encontrados na respectiva contabilidade suporte de aquisições de bens e serviços declarados, concluindo-se assim que o montante de € 100.531,67 não lhes era devido e, bem assim, que subsistiu diminuição das receitas tributárias.

Importa, pois, considerar que não se alega na acusação o elemento objectivo do crime de fraude fiscal, mais concretamente não se consignando factualidade em tal peça processual da qual se possa extrair "ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável", "Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária" e "celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas", aferindo-se que não é bastante alegar que não foram entregues e/ou encontrados documentos contabilísticos, antes se reputando como necessário, entre o mais, mencionar que o IV A dedutível declarado não se referia a operações de aquisição de bens e/ou serviços efectivamente realizadas por banda do sujeito passivo.

Prosseguindo, é ainda de considerar que se alude a IVA dedutível, o qual, salvo o devido respeito, nunca seria de per se a vantagem patrimonial, pois que o mesmo simplesmente se repercute no IVA a entregar ao Estado por banda do contribuinte, isto é, o IVA dedutível, como o próprio nome indica, respeita a uma operação de subtracção. Afigura-se, pois, que seria necessária, por um lado, a indicação do IVA declarado pelo sujeito passivo e, por outro, a menção do IVA dedutível, só assim se logrando aferir da efectiva vantagem fiscal que o actor criminis visava. O que se acaba de referir é, aliás, evidenciado pelo artigo 19.°, n.º1, alínea a), do Código da IV A, quando aí se menciona que «para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos», tal como é no artigo 22.°, n.º 1, do mesmo diploma legal, aí se referindo «o direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível (. . .) efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período».

Em síntese, não bastará alegar o montante de IVA dedutível, sendo igualmente imprescindível identificado o montante global do imposto devido, só assim se logrando concluir se o sujeito passivo visava uma vantagem tributária e em que montante a visava, o que não é de todo indiferente, pois que se a vantagem patrimonial não for igualou superior a € 15.000 a conduta é penalmente atípica e se não for superior a € 50.000 não há lugar à agravação a que se reporta o artigo 104.°, n.º 2, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias. De resto, o que se vem dizendo adensa-se por via do que surge alegado no artigo 9.° da acusação, aí se aludindo a uma correcção efectivada por banda autoridade tributária ao IVA dedutível, mas sem resulta inequívoco em que moldes foi realizada, nomeadamente se os montantes de € 5.743,91 e de € 382,13 aí identificados correspondem, afinal, a IVA dedutível erradamente mencionado pelos arguidos.

No caso vertente, insiste-se, não é assim aludida a concreta vantagem tributária visada pelos arguidos e, assim e também por esta razão, impõe-se considerar que a alegação fáctica é insuficiente para se extrair da mesma a prática de um crime, mormente de fraude fiscal. É que não havendo vantagem ilegítima descrita, não há diminuição da receita tributária e, não resulta esta narrada, não resulta contextualizada a prática de um crime de fraude fiscal por banda dos arguidos.

Concluindo, a factualidade identificada no despacho de acusação, tal como aí alegada, não corporiza, ressalvada diversa análise, o cometimento de um crime por banda dos arguidos Assim sendo e nos termos do artigo 311.°, n.os 2, alínea a), e 3, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal, rejeito a acusação pública.

Notifique. “


*

Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

- Por despacho proferido em 28-102019, aqui dado por integralmente reproduzido, o Tribunal a quo rejeitou a acusação pública deduzida nos autos contra a sociedade arguida (…) Lda e o arguido (…), pela prática, em co¬autoria, de um crime de crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7º e 104.° nº 2 aI. b) do RGIT, por a considerar manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311°, nºs 2, aI. a), e 3, ais c) e d), do Código de Processo Penal, alegando que não foram indicadas as disposições legais aplicáveis à factualidade imputada aos arguidos e que "(. . .) que a factualidade identificada no despacho de acusação, tal como aí alegada, não corporiza, ressalvada diversa análise, o cometimento de um crime por banda dos arguidos" (sic).

- Salvo o devido respeito, a solução preconizada no referido despacho não pode ser acolhida, porquanto a mesma traduz uma incorrecta interpretação do disposto no nº 2, aI. a), e nº 3, ais c) e d) do referido artigo 311º e no artigo 104° do RGIT, com violação do princípio do acusatório, plasmado no artigo 32°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, só podendo se dever, em última análise, à equívoca com que o Tribunal a quo encara as finalidades do despacho saneador, previsto no sobredito artigo 311°.

Efectivamente,

- Contrariamente ao defendido no despacho recorrido, ao indicar o artigo 104°, nº 2, aI. b) do RGIT para identificar o quadro legal aplicável à factualidade imputada aos arguidos, a acusação dos autos não padece do vício previsto no artigo 311°, nº 3, aI. c) do Código de Processo Penal, porquanto o mencionado artigo 104°, sobre a epígrafe "Fraude fiscal qualificada", prevê e pune as condutas do tipo-base previstas no artigo anterior - que nele vão pressupostas - acrescida das várias circunstâncias previstas nas suas alíneas. Essa foi a técnica que o legislador entendeu adoptar no actual RGIT, em detrimento da mera aposição de circunstâncias agravantes ao tipo-base.

- Sem prejuízo do referido supra, resulta da acusação dos autos que as disposições legais aplicáveis não foram omitidas, não se verificando qualquer falta, lacuna ou vazio no que às disposições legais aplicáveis diz respeito, e que poderia dar lugar a um julgamento sem incriminação, sendo só essa situação extrema que o artigo 311º, nº 3, al. c) do Código de Processo Penal visa evitar, fulminando a sua ocorrência com a rejeição do libelo acusatório, por manifestamente infundado.

- O entendimento contrário ao explanado nas conclusões 3 e 4 antecedentes, defendido pelo despacho recorrido, viola o disposto no nº 2, aI. a), e nº 3, als c) do artigo 311º do Código de Processo Penal, bem como o disposto no artigo 104º do RGIT.

- Salvo melhor entendimento, os factos descritos na acusação dos autos, nomeadamente, nos artigos 3° a 9º, aqui dados por inteiramente reproduzidos, concretizam, sem recurso aos conceitos jurídicos referidos na previsão da conduta ilícita típica, a "ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável", a "Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária" e a obtenção de vantagem patrimonial de valor superior a (euro) 50000", enquanto elementos objectivos do crime de fraude fiscal qualificada em apreço;

- Não resultando evidente que os referidos não preenchem qualquer tipo legal de crime, nomeadamente, o de fraude fiscal qualificada imputada aos arguidos.

- Só e apenas quando de forma inequívoca os factos constantes da acusação não constituam crime é que o Tribunal pode declarar o libelo acusatório manifestamente infundado e rejeitá-lo. Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho do artigo 311° do Código de Processo Penal não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente, porque só em sede de julgamento deve ser ponderado o entendimento a seguir.

- Ao rejeitar a acusação, com fundamento na inexistência de factos que consubstanciam crime, alegando, para tanto, uma posição/solução jurídica possível entre outras igualmente defensáveis, o Tribunal a quo interpretou erroneamente e violou o disposto no artigo 311°, nºs 2 e 3, aI. d) do Código Penal, pondo em causa o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 312º do Código de Processo Penal, devendo o processo seguir os seus ulteriores termos, até final.


*

O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

*

No Tribunal da Relação o Exmº Magistrado do Ministério Público emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.

*

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.


*

Os autos foram os autos à conferência.

*

Cumpre decidir

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 312º do Código de Processo Penal.


*

Apreciando

É do seguinte teor a acusação deduzida nos autos (transcrição):

“=CLS=

Declaro encerrado o inquérito - artigo 276° Código de Processo Penal.

***

I - DA NÃO DEDUÇÃO DE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO

Consigno que atenta posição manifestada pela AT, não se procede à dedução de Pedido de Indemnização Civil.

II - DA APLICAÇÃO DE FORMAS ESPECIAIS DO PROCESSO

Considerando o teor dos autos e CRC dos arguidos consideramos que não é legalmente possível aplicar aos mesmos formas especiais de processo

III - DEFENSOR

Através do sistema "SINOA" (do programa "Citius/Habilus") diligencie-se informaticamente à Ordem dos Advogados pela indicação de defensor aos arguidos. Ao abrigo do disposto pelo nº 3 do artigo 64.° do Código de Processo Penal desde já se nomeia como defensor desse arguido o advogado que for designado.

*

Proceda à advertência ao arguido de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário e que pode proceder à substituição desse defensor mediante a constituição de advogado - cfr. artigo 64.° nº 4 Código de Processo Penal.

IV - DA ACUSAÇÃO PÚBLICA

o Ministério Público junto deste Tribunal ACUSA, nos termos do art. 283° nº 1, 2, 3 e 4 do CPP, para julgamento em processo comum e por Tribunal de estrutura singular,

(…) LDA, sociedade portadora do NIPC (…), com domicílio fiscal em na (…)

(…), divorciado, empresário, residente na (…)

Porquanto:

1. Os arguidos (…) LDA e (…) exercem a actividade de exploração florestal, sendo o segundo gerente da primeira, exercendo a sua actividade em nome desta, no seu interesse e representação.

2. A arguida (…) é portadora do NIPC (…), com domicílio fiscal em (…), estando colectada em IRC, pelo exercício da actividade de exploração (…) (CAE … e, enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade trimestral.

3. Em 09.08.2013, 10.05.2013 17.11.2014, os arguidos preencheram e entregar as respectivas declarações de IV A, declarando para o efeito os seguintes valores de IV A dedutível (imposto a favor do sujeito passivo):

Período Imposto

2013/03T € 68.766,04

2013/06T € 31.765,63

4. Quanto ao período 2014/09T não declararam qualquer valor.

5. Efectuada a respectiva inspecção, os arguidos não apresentaram quaisquer documentos contabilísticos nem documentos de suporte à aquisição dos bens e serviços.

6. Nem foram encontrados na respectiva contabilidade os documentos (facturas e/ou facturas simplificadas) suporte das aquisições de bens e serviços declarados.

7. Os arguidos procederam ao preenchimento das referidas declarações de IV A nas quais apuseram que teriam direito à dedução do valor de IV A no montante total de €100.531,67.

8.Tal montante não lhes era devido.

9. Perante tal foram efetuaram as seguintes correcções pela Autoridade Tributária:

Correções ao IV A dedutível

Período Exist. Tx. Normal OBS Total

201303T 63.022,13 5.743,91 68.766,04

201306T 31.383,50 382,13 31.765,63

10. Com a conduta descrita os arguidos, conhecedores de tais procedimentos preencheram as declarações de IV A referidas declarando custos que não se encontravam comprovados documentalmente e não entregando ao Estado as quantias acima descritas.

11. O que acarretou a diminuição das receitas tributárias no montante de €100.531,67 (cem mil quinhentos e trinta e um euros e sessenta e sete cêntimos).

12. Fizeram os arguidos sua a referida quantia de €100.531,67 (cem mil quinhentos e trinta e um euros e sessenta e sete cêntimos), dela dispondo como se sua fosse embora sabendo que lhes não pertencia e que agiam em manifesto desrespeito à lei e em prejuízo do património do Estado.

13. Os arguidos agiram de modo consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas e tinha a liberdade necessária para se conformar com essa actuação.

Pelo exposto, constituiu-se o arguido (…) autor material de:

- 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104.° nº 2 aI. B) do RGIT.

A sociedade comercial (…), LDA incorreu na prática, em co-autoria, de um crime de crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.° e 104.° nº 2 aI. b) do RGIT.

A sociedade arguida é solidariamente responsável pelo pagamento de multas em que o arguido vier a ser condenado, de acordo com os artigos 7.°, 8.° e 12.° do RGIT.

- Da indicação dos meios de prova: a constante nos autos, nomeadamente,

1 - Documental:

- Auto de Noticia, fls. 1, 62;

- prints do Sistema informático da AT;

- certidão de registo comercial, fls. 4 e ss;

- informação de fls. 28 e ss;

- relato de diligência externa, fls. 50 e ss

- elementos fls. 81 e ss, 90 a 115, 117 a 142;

- declaração fls. 116

2- Testemunhal:

- (…), Inspector Tributário;

- (…), id. a fls. 181;

ESTATUTO PROCESSUAL:

Na medida em que não ocorreram quaisquer alterações, de facto ou de direito, nada temos a promover em alteração à medida de coacção aplicada em fase de inquérito, devendo os arguidos aguardar os ulteriores termos do processo na situação em que se encontram (sujeição a T.I.R).

Cumpra o art.° 283° n.º 5 e 6, do CPP.

*

Comunique à AT, nos termos do disposto no artigo 50.°, nº 2 do RGIT.

Comunique superiormente - Ordem de Serviço nº 6/2015.

*

No caso de nada ser junto ou requerido após o decurso do prazo a que alude o nº1 do artigo 287° do Código de Processo Penal, remeta os autos para julgamento. “

_

Vejamos:

Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:

1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(...)

5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.

Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.

"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.

O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).

Nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º do CPP a acusação contem, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.

Desta forma, são lógicas as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima referidos, na medida em que são impostas pela evidente premência, naquele contexto, de demarcar os factos concretos suscetíveis de integrar o ilícito de cuja prática estão os arguidos acusados.

“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objectivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).

Revertendo ao caso dos autos, e no que concerne à alegada não identificação do “quadro legal aplicável aos factos descritos na acusação” dir-se-á que, efetivamente, por força do nº3 do artº 285º do CPP, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis. No entanto, importa distinguir entre a total falta de indicação das disposições legais aplicáveis e a sua deficiente indicação. A indicação deficiente das disposições legais aplicáveis não deve gerar a rejeição da acusação, ou, se outro for o momento processual, a declaração da sua nulidade em sede de julgamento (cfr. neste sentido, Acs do TRL de 10-02-2010, do TRG de 7/3/2005, e do TRP de 18/10/2006, acessíveis in dgsp.pt).

E, como bem refere o recorrente, ao indicar o artigo 104°, nº 2, aI. b) do RGIT para identificar o quadro legal aplicável à factualidade imputada aos arguidos, a acusação dos autos não padece do vício previsto no artigo 311°, nº 3, aI. c) do Código de Processo Penal, porquanto o mencionado artigo 104°, sobre a epígrafe "Fraude fiscal qualificada", prevê e pune as condutas do tipo-base previstas no artigo anterior - que nele vão pressupostas - acrescida das várias circunstâncias previstas nas suas alíneas. Essa foi a técnica que o legislador entendeu adoptar no actual RGIT, em detrimento da mera aposição de circunstâncias agravantes ao tipo-base.”

E, relativamente à alegada não corporização da factualidade identificada no despacho de acusação, tal como aí alegada, do “cometimento de um crime por banda dos arguidos” dir-se-á que só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

Com efeito, os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.

Mas, se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311º do CPP não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente infundada.

O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.

Todavia, a alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.

Se os factos narrados realizam crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada.

Na verdade, no caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do art.311º, nº2, al. a) e nº3, al. d) , do CPP, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será discutida e debatida (cfr., neste sentido, Ac. TRE de 3-12-2013 e Ac. TRP de 21-10-2015, acessíveis in dgsi.pt).

E tal é a situação no caso sub judice.

Termos em que procede o recurso.


*

Decisão

Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar a substituição por outro que admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento.

- Sem custas.


*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 23 de junho de 2020

--------------------------------------------

Laura Goulart Maurício

--------------------------------------------

Maria Filomena Soares