Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1382/14.2TBLLE-A.E1
Relator: SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: DEFICIÊNCIAS DA GRAVAÇÃO DA PROVA
PRAZO DE ARGUIÇÃO DA NULIDADE
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.
2 – Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1382/14.2TBLLE-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Cível de Loulé – Juiz 1

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
Relatório

(…) propôs a presente acção declarativa comum contra (…) Seguros Gerais, SA, pedindo a condenação desta última a pagar-lhe determinadas quantias, que discriminou.
A ré contestou, concluindo no sentido da improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da ré do pedido.
Após a prolação da sentença, o autor requereu a entrega, à sua advogada, da gravação da prova produzida nos autos.
A secretaria entregou cópia da gravação à advogada do autor.
O autor apresentou requerimento invocando a deficiência da gravação e arguindo a nulidade da prova produzida em julgamento.
O autor interpôs recurso da sentença.
O tribunal recorrido proferiu despacho mediante o qual indeferiu, por extemporaneidade, o requerimento em que o autor invocou a deficiência da gravação e arguiu a nulidade da prova produzida em julgamento.
Foi deste despacho que o autor interpôs o presente recurso, admitido, que subiu imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
As alegações do recorrente contêm as seguintes conclusões:

A) Não pode o recorrente conformar-se com o douto despacho que indeferiu, por extemporâneo, o seu requerimento de arguição da nulidade da gravação dos depoimentos prestados na sessão de audiência de julgamento de 10/12/2015;
B) A disponibilização da gravação deve ser feita pela secretaria no prazo de dois dias a contar do respectivo acto;
C) Não depende de requerimento ou despacho;
D) O prazo para a arguição da nulidade da gravação conta-se da data da sua efectiva disponibilização;
E) A gravação dos depoimentos prestados foi disponibilizada ao autor, ora recorrente, em 30 de Setembro de 2016, na sequência de requerimento seu;
F) O requerimento de arguição da respectiva nulidade foi apresentado via plataforma Citius em 12/10/2016, ao abrigo do disposto nos artigos 155.º, n.º 4 e 195.º, n.º 1 e mediante o pagamento da multa prevista na alínea b) do n.º 5 do artigo 139.º, todos do CPC;
G) Pelo que foi tempestivamente apresentado;
H) Os depoimentos constantes das gravações inaudíveis/imperceptíveis foram determinantes para a prolação da sentença de que se apresentou já recurso, tendo entre mais por fim a reapreciação da prova gravada, e são essenciais para a reapreciação da matéria de facto;
I) Apenas com recurso a notas recolhidas pelos presentes na sessão de julgamento é possível reconstituir minimamente os depoimentos cuja gravação se revela inaudível e/ou imperceptível;
J) A insuficiência/inaudibilidade da gravação impede uma justa reapreciação da matéria de facto e limita inadmissivelmente as garantas de defesa do autor, ora recorrente;
K) Decidindo pelo indeferimento do requerimento de arguição de nulidade da gravação, por extemporaneidade, fez o tribunal a quo errada interpretação das normas contidas nos artigos 115.º, n.ºs 3 e 4, 195.º, n.º 1, e 199.º, n.º 1, todos do CPC;
L) Pelo que deve o douto despacho recorrido ser revogado, ser declarada a nulidade da gravação dos depoimentos prestados na sessão de julgamento de 10/12/2015 e prosseguir a acção os seus ulteriores termos com a repetição dos referidos depoimentos e subsequente prolação de nova sentença.
A ré contra-alegou.
Foram observados os vistos legais.
Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A questão a decidir resume-se a saber a partir de quando se conta o prazo de 10 dias que o artigo 155.º, n.º 4, do CPC, estabelece para a invocação da falta ou deficiência da gravação da audiência final.
Factualidade relevante para a decisão do recurso

Com relevo para a decisão do recurso, resultam dos autos os seguintes factos:
1 – A audiência final desdobrou-se em três sessões, que tiveram lugar nos dias 10.12.2015, 08.01.2016 e 22.01.2016 (fls. 340-344 e 350-358);
2 – A sentença foi registada e notificada às partes no dia 01.09.2016 (fls. 371, 384 e 397);
3 – No dia 27.09.2016, o recorrente requereu a entrega, à sua advogada, da gravação da prova produzida nos autos, a fim de apresentar recurso da sentença; para o efeito, o recorrente requereu que a sua advogada fosse informada da data em que a cópia da gravação poderia ser levantada na secretaria judicial, com entrega do CD necessário para o efeito no acto de levantamento (fls. 410-412);
4 – No dia 29.09.2016, a secretaria judicial notificou a advogada do recorrente de que o CD se encontrava gravado e ficava à sua disposição para o poder levantar, sendo que, na altura, a segunda deveria levar CD virgem, após o que lhe seria entregue o CD gravado (fls. 413);
5 – No dia 30.09.2016, a secretaria judicial entregou cópia da gravação da prova à advogada do recorrente (fls. 414);
6 – No dia 12.10.2016, o recorrente apresentou requerimento no qual invocou a deficiência da gravação dos seus próprios depoimento de parte e declarações de parte, bem como dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…), prestados na sessão realizada em 10.12.2015, e arguiu a nulidade dessa prova, nos termos dos artigos 155.º, n.º 4, e 195.º, n.º 1, do CPC; tal requerimento foi acompanhado por documento comprovativo do pagamento da multa a que se refere a al. b) do n.º 5 do artigo 139.º do CPC (fls. 419-426);
7 – O requerimento referido em 6 foi indeferido, por extemporaneidade (fls. 480-483).
Fundamentação

O n.º 3 do artigo 155.º do CPC estabelece que a gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, obrigatória nos termos do n.º 1, deve ser disponibilizada às partes no prazo de 2 dias a contar do respectivo acto. Dispõe o n.º 4 do mesmo artigo que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.
Importa saber a partir de quando se conta este último prazo, o que redunda em apurar o que significa “disponibilizar” para o efeito previsto nas duas citadas normas.
Na tese do recorrente, “decorre da Lei que a disponibilização da gravação deve ser notificada às partes pela secretaria independentemente de requerimento”. Ou seja, após a audiência, a secretaria judicial teria o dever de notificar as partes de que a gravação se encontra ao dispor destas. Na lógica desta tese, parece que o prazo de 10 dias previsto no n.º 4 do artigo 155.º se contaria a partir da referida notificação. Contudo, o recorrente vai mais longe, sustentando que “o prazo para a arguição da nulidade da gravação da prova só começa a contar da data da sua efectiva entrega”, a que, na alínea D) das suas conclusões, chama “efectiva disponibilização”. Ou seja, nas suas alegações, o recorrente acaba por propor duas teses diferentes sobre o que seja “disponibilizar”: na primeira tese, disponibilizar equivale à realização, pela secretaria judicial, da notificação das partes de que a gravação está ao dispor destas; na segunda tese, ainda mais exigente que a primeira, disponibilizar é sinónimo de entregar às partes o suporte digital da gravação.
Porém, nenhuma destas teses encontra sustentação nos n.ºs 3 e 4 do artigo 155.º do CPC.
Por um lado, em parte alguma a lei impõe que a secretaria realize a notificação referida pelo recorrente. Além de resolver as dúvidas que o regime anterior suscitava, foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido com rapidez, no tribunal de primeira instância. Se fosse intenção do legislador que a secretaria notificasse as partes de que a gravação está disponível, certamente o teria estabelecido expressamente. Todavia, não é, manifestamente, isso que o n.º 3 do artigo 151.º faz.
Por outro lado, disponibilizar não é entregar o suporte digital da gravação às partes. Desde logo, porque, na língua portuguesa, estas duas palavras não são sinónimas. Disponibilizar é colocar algo à disposição de outrem, ainda que o terceiro assuma uma atitude de inércia e não aproveite tal disponibilidade. Entregar é mais que isso, é transferir algo para o poder, para as mãos de outrem. Na hermenêutica jurídica, tem de se partir do princípio de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (Código Civil, artigo 9.º, n.º 3, in fine), pelo que o verbo “disponibilizar” deve ser interpretado em sentido próprio e não como sinónimo de “entregar”. A tese do recorrente parte do princípio de que o legislador não se exprimiu adequadamente, utilizando o verbo “disponibilizar” quando queria dizer “entregar”. Ora, tal desconformidade entre a intenção do legislador e a forma como este se exprimiu não está demonstrada. Pelo contrário, a ponderação do resultado a que conduziria a interpretação proposta pelo recorrente confirma que o legislador se exprimiu correctamente ao utilizar o verbo “disponibilizar”. Como bem nota a decisão recorrida, se a contagem do prazo fixado no n.º 4 do artigo 155.º do CPC só se iniciasse a partir da entrega da gravação à parte, tal início ficaria na dependência do arbítrio desta. Bastaria que a parte não solicitasse a entrega da gravação ou, fazendo-o, não diligenciasse, depois, no sentido de ir recebê-la, para que aquela contagem não se iniciasse. Dessa forma, ficaria, na prática, a parte com a possibilidade de invocar a falta ou deficiência da gravação quando lhe aprouvesse, até à interposição de recurso da sentença. Ora, não foi, seguramente, isto que o legislador quis ao estabelecer os apertados prazos que as normas que vimos analisando estabelecem. Convém, a propósito, lembrar novamente o disposto no citado artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil: O intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas. Atento o resultado a que conduz, a segunda tese que o recorrente propõe é tudo menos acertada.
Não se objecte com o argumento de que, na hipótese de a secretaria não disponibilizar (em sentido próprio) a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, as partes ficariam injustamente penalizadas por verem comprimido o prazo para a reclamação prevista no n.º 4. Nessa hipótese, a parte terá o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão. Caso se confirme o incumprimento do prazo do n.º 3, o prazo do n.º 4 só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes. É isto que decorre do n.º 4, ao estabelecer que o prazo de 10 dias para a arguição da nulidade decorrente da falta ou deficiência da gravação começa a contar-se no “momento em que a gravação é disponibilizada”. Veja-se, neste sentido, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2015 (processo n.º 8/13.6TCFUN.L1-2), o qual, além do mais, enfatiza, bem, o dever das partes de cooperarem com o tribunal no sentido de eventuais irregularidades da gravação que possam comprometer a desejável celeridade no andamento dos autos serem remediadas o mais cedo possível.
Estamos, portanto, perante um regime que, visando resolver eventuais situações de falta ou insuficiência da gravação com celeridade e de forma a evitar, em toda a medida do possível, a anulação de actos processuais subsequentes, é, ainda assim, equilibrado, na medida em que, através do n.º 4, salvaguarda as partes quando a secretaria não cumpra o prazo fixado no n.º 3.
No caso dos autos, a audiência final prolongou-se por três sessões, que decorreram nos dias 10.12.2015, 08.01.2016 e 22.01.2016. A alegada deficiência da gravação ocorreu na primeira sessão. Sendo assim, o prazo do n.º 3 terminou em 14.12.2015 (12 e 13.12 foram fim-de-semana) e o do n.º 4 em 06.01.2016.
Porém, apenas no dia 27.09.2016, após ser notificado da sentença, o recorrente requereu a entrega, à sua advogada, da gravação da prova produzida nos autos, e apenas no dia 12.10.2016 o recorrente apresentou o requerimento mediante o qual invocou a deficiência da gravação. É evidente que, em qualquer destas duas datas, o prazo previsto no n.º 4 do artigo 155.º do CPC já tinha decorrido, com a consequente sanação da eventual nulidade decorrente de uma deficiente gravação. Donde se conclui, à semelhança do que fez a decisão recorrida, que o requerimento apresentado pelo recorrente em 12.10.2016 é extemporâneo.
Consequentemente, o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.
Sumário

1 – A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.

2 – Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.

3 – A contagem do prazo fixado no n.º 4 do mesmo artigo para invocar a falta ou deficiência da gravação inicia-se após o decurso do prazo fixado no n.º 3.

4 – Porém, se a secretaria não cumprir o prazo fixado no n.º 3 para a disponibilização da gravação, a contagem do prazo fixado no n.º 4 apenas se iniciará quando tal disponibilização ocorrer.


Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.

Évora, 12.10.2017

Vítor Sequinho dos Santos (Relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura