Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1812/21.7T8STR-E.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
PROCESSO PENAL
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A apreensão de bens em processo penal, por via de arresto preventivo, destinada a garantir o pagamento do valor correspondente às vantagens do crime, obsta à apreensão dos bens arrestados para a massa insolvente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1812/21.7T8STR-E.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. No processo especial de insolvência em que foi declarada insolvente Farmácia (…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 1, r/c, Abrantes, veio a Exm.ª Administradora da insolvência informar os autos haver sido notificada, a 31/5/2022, da decisão proferida no procedimento cautelar que, com n.º 685/15.3TELSB-D, corre termos no juízo central criminal, da Comarca de Santarém, “em que foi determinado, a 1 de Março de 2022, o arresto preventivo (artigo 228.º do Código de Processo Penal), de todos os bens que integram a massa insolvente” e solicitar pronúncia “sobre se os autos devem prosseguir para liquidação”.

A comissão de credores, em reunião de 27/7/2022, pronunciou-se, por unanimidade, “pela manutenção da insolvência para liquidação dos bens arrestados no processo crime proc. n.º 685/15.3TELSB-D (arresto preventivo) a correr termos no Juízo Central Criminal de Santarém – juiz 4” [ata de 1/8/2022].

2. Houve lugar ao seguinte despacho:

“Quanto ao prosseguimento ou não para liquidação dos bens arrestados no referido processo crime que corre termos sob o n.º 685/15.3TELSB-D:

Nos termos do disposto no artigo 149.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, proferida a sentença de insolvência procede-se à imediata apreensão dos bens integrantes da massa insolvente, exceto dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social. “a norma supra citada exceciona do regime geral ali previsto (apreensão dos bens integrantes da massa insolvente, ainda que arrestados, penhorados, ou por qualquer forma aprendidos ou detidos) os bens que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de caracter criminal, quer de mera ordenação social, sem fazer qualquer distinção relativamente ao tipo e natureza da apreensão em causa. (…) O legislador referiu-se genericamente a bens apreendidos sem fazer qualquer distinção ou precisão acerca da natureza ou tipo dessa apreensão, exigindo apenas que essa apreensão tenha sido efetuada por virtude de infração, quer de caracter criminal, quer de mera ordenação social e se o legislador não distinguiu também não se justificará que tal distinção seja feita pelo intérprete. Entendemos, portanto, que a ressalva em questão inclui os bens que tenham sido arrestados, desde que o tenham sido por virtude de infração (de carácter criminal ou de mera ordenação social)” – neste sentido, vide Acórdão da Relação de Coimbra, de 09/01/2018, Proc. n.º 110/17.5T8FND-E.C1, disponível em www.dgsi.pt. Como se entendeu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 13/02/2019, Proc. n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt, “Por contraposição aos valores protegidos com o confisco das vantagens do crime, ao processo de insolvência haverá de reconhecer-se apenas o mero papel de gestão funcional de determinado património tendente a satisfazer os interesses dos credores na proporção dos seus créditos, de acordo com as regras de pagamento pré estabelecidas, sem que, para qualquer deles, advenha um prejuízo superior àquele que está implícito pela inexistência de bens suficientes a assegurar o crédito respetivo. Trata-se de uma pura lógica de garantia da “par conditio creditorum”, onde não se vislumbram finalidades que extravasem este legítimo, mas puramente privatístico, interesse. (…) Numa perspetiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que visam as leis que regem o confisco das vantagens e as leis falimentares, o juízo que nos deve orientar é precisamente o da preponderância dos interesses de manifesta relevância pública subjacentes ao confisco das vantagens sobre a tutela dos interesses económicos dos credores que, norteiam a existência do processo de insolvência. (…) Por outro lado, esta preponderância do confisco sobre os interesses particulares da insolvência sempre poderia igualmente deduzir-se do reconhecimento assente que a declaração de insolvência não implica qualquer restrição ou constrangimento à responsabilização penal, quer das pessoas singulares quer coletivas, constituindo, inclusivamente, em determinados casos, uma condição objetiva de punibilidade – cfr. artigos 227.º e 228.º do CP. É precisamente sob esta mesma lógica que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.10.2010, proferido no processo 2463/09.0TBOER.L1-7, numa situação em que estava em causa o prosseguimento de um processo executivo sobre um bem apreendido em processo penal, afirmou que “Sobre o bem penhorado em sede de execução incide uma apreensão penal sendo certo que esta poderá determinar a perda do bem a favor do Estado – artigo 374.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal – quer o bem pertença ao arguido (o aqui Executado), quer a terceiro – artigo 178.º, n.º 7, do Código de Processo Penal. Diga-se, aliás, que a ser decretada essa perda do bem a favor do Estado, não pode a execução prosseguir os seus termos tanto mais que a apreensão penal não pode ser considerada como uma garantia para efeitos quer declarativos, quer executivos. A situação do Exequente, em sede penal, é como a de qualquer outro credor do Executado, sendo irrelevante a existência ou não de uma ou mais garantias sobre o bem penhorado [no caso, as duas hipotecas registadas]. Estas apenas poderão relevar em sede de ressarcimento dos danos sofridos e a operar sobre os bens do Executado, caso o bem em causa seja declarado perdido a favor do Estado. A situação circunscreve-se, no fundo, à apreciação de um risco que corre por conta do Exequente enquanto parte do contrato de mútuo celebrado com o Executado. Pode, porém, tal situação de perda a favor do Estado não se verificar e o Exequente pode ver satisfeito o seu crédito na ação executiva. Para tal, no entanto, há que aguardar pela decisão a ser proferida no processo penal, sobrestando a decisão a proferir no processo executivo, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”. (…) Por outro lado, as vantagens do crime não deixam de o ser, ou seja, não passam a assumir diferente natureza, pelo simples facto ter sido requerida e decretada a declaração de insolvência. (…) Ao permitir que as vantagens geradas pelo crime, diretas ou indiretas, ou o património que com elas se obteve, sejam distribuídas sem mais pelos credores, ainda que os créditos reconhecidos tenham sido gerados em consequência de negócios absolutamente alheios à prática do facto ilícito, estaria o processo de insolvência a promover a realização de todos os elementos do tipo objetivo do crime de branqueamento, na medida em que está a distribuir pelos credores as vantagens de um facto ilícito típico, a coberto, unicamente, do exclusivo interesse de satisfação dos interesses económicos destes.”

Assim sendo, com os fundamentos que antecedem, os bens arrestados no âmbito do processo crime não podem ser apreendidos nos presentes autos nem prosseguir para liquidação.

Notifique, sendo a Sra. AI para, no prazo de 10 dias, proceder ao levantamento da apreensão dos bens que se encontrem arrestados no âmbito do Proc. n.º 685/15.3TELSB-D.

Mais solicite ao referido processo a oportuna remessa de certidão da decisão que decretou o arresto, com nota de trânsito em julgado.”


4. A credora Caixa (…) recorre deste despacho e conclui, assim, a motivação do recurso:
“1. O Tribunal a quo faz interpretação errada do disposto no artigo 149.º/ 1, alínea a), do CIRE ao ordenar o levantamento da apreensão decretada sobre os bens arrestados no processo crime que corre com o n.º 685/15.3TELSB-D, requerido e pendente nos termos do artigo 228.º CPP e para garantia patrimonial do ressarcimento dos prejuízos sofridos em consequência de um facto do foro criminal.

2. Interpretado no seu sentido literal, o preceito prevê a apreensão em processo de insolvência de todos os bens “arrestados” e exclui “apenas” “que hajam sido apreendidos por virtude de infração”.

3. Quer interpretado no sentido de se entender que o arresto preventivo é diverso da apreensão em processo crime, ordenado nos termos do artigo 178.º do CPP.

4. O arresto in casu, visa obter garantia patrimonial para ressarcimento dos prejuízos causados pela pratica do facto ilícito enquanto que a apreensão, prevista no foro criminal, visa conservar a prova, com utilidade para prossecução dos fins do processo criminal.

5. O que torna o arresto preventivo decretado em processo penal em posição de paridade com a apreensão bens decretada em processo de insolvência.

6. Conforme mencionado no douto despacho que decretou o arresto preventivo “os factos indiciados são fortemente indiciadores de uma intenção de subtração do património necessário e imprescindível à garantia da satisfação do prejuízo causado ao Estado, existindo, pois, o perigo de os referidos arguidos virem a delapidar o património ainda visível e existente, impedindo e frustrando a legítima posição do Estado Português”.

7. Pelo que se entenderá que apenas prevalece, sobre o interesse da apreensão em processo de insolvência, o interesse na conservação da prova em processo penal.

8. Assim entende a melhor doutrina, nomeadamente

“Ao distinguir, de forma clara, o âmbito de aplicação destes dois meios processuais, o legislador processual penal confere às expressões “apreensão” e “arresto” um sentido específico, nomeadamente quanto ao objeto de uma e de outro. Não é, por isso, legalmente admissível que se confundam tais meios processuais a partir da verificação de que quer num caso quer noutro os bens são “apreendidos”.

(…)

Voltando à questão posta inicialmente: a ressalva constante do artigo 149.º, n.º 1, alínea a), do CIRE (apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal quer de mera ordenação social) aplica-se também aos bens que tenham sido objeto de um arresto preventivo, ao abrigo do artigo 228.º do CPP, ou apenas aos bens que tenham sido apreendidos, ao abrigo dos artigos 178.º e ss. do mesmo Código?

A resposta só pode ser a de que a ressalva relativamente aos bens “que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal quer de mera ordenação social” não se aplica aos bens que tenham sido objeto de um arresto preventivo ao abrigo do artigo 228.º do CPP. A ressalva apenas diz respeito aos bens que tenham sido apreendidos ao abrigo dos artigos 178.º e ss. do mesmo Código, podendo ser aduzidos vários argumentos além dos que decorrem do que já expusemos – Exma. Senhora Professora Maria João Antunes in “Arresto preventivo e apreensão em processo penal e processo de insolvência”, publicado na CATOLICA LAW REVIEW, disponível em 9551-article-16497-2-10-20210202.pdf.

9. O douto despacho em crise confunde os fundamentos e objetivos de um arresto preventivo, meramente cautelar de garantia patrimonial com vista ao ressarcimento, neste caso, do Estado Português, com a apreensão de bens resultantes de vantagens da realização de práticas criminais, o que in casu, não sucede,

10. Porquanto tal não discorrido do douto despacho que decretou a procedência do arresto, nem do douto requerimento do Ministério Público a peticionar o arresto aludem a que os bens apreendidos o tivessem sido devido a tal.

11. Pelo exposto, deverá alterar-se a sentença recorrida, interpretando o disposto no artigo 149.º/alínea a), do CIRE no sentido em que se devera manter a apreensão de todos os bens no processo de insolvência nos termos em que foi proferida e em toda a linha, fazendo, Excelências, a costumada JUSTIÇA!”

Não houve lugar a resposta.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir: se os bens arrestados preventivamente em processo penal para garantia do pagamento das vantagens do crime podem ser apreendidos para a massa insolvente.

III. Fundamentação
1. Factos
Relevam os factos constantes no relatório supra e o seguinte:

a) No Juízo Central Criminal de Santarém (proc. 685/15.3TELSB-D), o Ministério Público requereu o arresto preventivo de bens, identificados, dos arguidos (…) e da sociedade Farmácia (…), com vista a assegurar o pagamento do valor das vantagens que não possível apropriar em espécie, nos termos do artigo 228.º do Código de Processo Penal, artigos 110.º, nºs 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal e nos artigos 391.º a 393.º do Código de Processo Civil (quanto à perda clássica) para garantia do pagamento do valor de, pelo menos, € 2.116.391,85.

b) Na decisão que decretou o arresto consignou-se, designadamente, o seguinte:

“(…) decide-se:

1. Julgar procedente, por provada, a providência cautelar de arresto preventivo, com vista a assegurar o pagamento do valor das vantagens que não possível apropriar em espécie, nos termos do artigo 228.º do Código de Processo Penal, artigos 110.º, nºs 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal e nos artigos 391.º a 393.º do Código de Processo Civil (quanto à perda clássica) para garantia do pagamento do valor de, pelo menos, € 2.116.391,85, e, subsequentemente, ordenar o arresto nos seguintes bens:

(…)

Em nome da sociedade arguida Farmácia (…), Lda.:

(…)”.

2. Direito

Se os bens arrestados preventivamente em processo penal para garantia do pagamento das vantagens do crime podem ser apreendidos para a massa insolvente

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea g), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE, na sentença que declarar a insolvência o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos.

Esta estatuição é concretizada pelo artigo 149.º do CIRE que alarga a apreensão aos bens que tenham sido objeto de cessão aos credores, nos termos do artigo 831.º do Código Civil, mas ressalva dela os bens apreendidos em virtude de qualquer infração, quer de caráter criminal, quer de mera ordenação social.

O recurso versa sobre o sentido e alcance desta ressalva, uma vez que a decisão recorrida considerou que os “bens arrestados no âmbito do processo crime não podem ser apreendidos nos presentes autos nem prosseguir para liquidação” e a Recorrente considera que “apreensão de bens” e “arresto preventivo”, em processo crime, são figuras jurídicas com significados e campos de aplicação distintos e a ressalva abrange apenas os bens apreendidos, nela não se incluindo os bens arrestados, como no caso se verifica.

O que diz a lei:

Artigo 149.º, n.º 1, alínea a), do CIRE – “apreensão dos bens”:

Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social.

Artigo 178.º do Código de Processo Penal (CPP) – “objeto e pressupostos da apreensão”:

1 - São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.

2 - Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos apreendidos nos termos do número anterior são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil.

3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.

(…)

5 - Os órgãos de polícia criminal podem ainda efetuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de animais, instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.

(…)”

Artigo 227.º do CPP – “caução económica”:

1. O Ministério Público requer prestação de caução económica quando haja fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias:

a) Do pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime;

b) Da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente.

(…)

4 - A caução económica prestada a requerimento do Ministério Público aproveita também ao lesado.

5 - A caução económica mantém-se distinta e autónoma relativamente à caução referida no artigo 197.º e subsiste até à decisão final absolutória ou até à extinção das obrigações. Em caso de condenação, são pagas pelo seu valor, sucessivamente, a multa, a taxa de justiça, as custas do processo, a indemnização e outras obrigações civis e, ainda, o valor correspondente aos instrumentos, produtos e vantagens do crime.

(…)”

Artigo 228.º do CPP – “Arresto preventivo”:

“1 - Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.

(…)

5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta.

(…)”

A lei processual penal distingue a apreensão de bens e o arresto preventivo; grosso modo, a apreensão de bens tem em vista a conservação da prova e a retenção de objetos que, em razão do crime com que estão relacionados, podem ser declarados perdidos a favor do Estado, daqui lhe resultando uma função de conservação da prova e uma outra de garantia da execução da decisão penal quando esta haja de declarar perdidos a favor do Estado instrumentos, produtos e vantagens do crime [artigo 178.º, nºs 1 e 5, do CPP]; o arresto preventivo tem uma função de garantia, destina-se a garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo, de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, do pagamento das vantagens de facto ilícito típico e do valor correspondente às perdas dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico [artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 5, por remissão do artigo 228.º, ambos do CPP].

Tornando à alínea a) do n.º 1 do artigo 149.º do CIRE, é também certo que nela se excluem, dos bens apreendidos para a massa insolvente, os bens apreendidos por virtude de infração criminal ou de mera ordenação social.

A questão está em saber se a apreensão aqui em vista tem o sentido restrito que a Recorrente lhe atribuí, ou seja, o sentido de fazer corresponder “apreensão por virtude de infração criminal” a “apreensão prevista no artigo 178.º do CPP”, ou o sentido ordinário de apreensão que se verifica em qualquer arresto – o arresto consiste, diz a lei processual civil, “numa apreensão judicial de bens” [artigo 391.º, n.º 2, do CPC] – e, assim, no arresto preventivo previsto no artigo 228.º do CPP e, por definição, na apreensão de bens prevista no artigo 178.º do CPP.

Adiantando, perfilhamos este último.

À partida porque não encontramos razões definitivas para excluir da literalidade da norma – com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social – a possibilidade de envolver, para além dos bens apreendidos em processo penal para efeitos de conservação da prova, outros bens arrestados desde que “por virtude de infração criminal”.

A procurar-se apoio no elemento sistemático – como, aliás, faz a Recorrente ao socorrer-se do conceito de apreensão em processo penal – não se evidenciam razões para não se recorrer ao conceito de apreensão formulado na lei processual civil, tanto mais que a lei processual subsidiária a ter em conta é a civil [artigo 17.º do CIRE ] e não a penal.

E, assim, apreensão para efeitos da norma seria a (restrita) apreensão de bens a que se reporta o artigo 178.º do CPP – com causa, por definição, na infração criminal – mas também a apreensão de bens a que se reporta o arresto preventivo do artigo 228.º do CPP desde que, neste último caso, a apreensão tenha causa na infração criminal.

A letra da lei – artigo 149.º, n.º 1, alínea a), do CIRE – não perturba, a nosso ver, este entendimento numa dupla perspetiva: nela não se consagra que a apreensão excludente é a verificada nos termos da lei processual penal ou contraordenacional, diz-se que é a verificada em virtude de infração, penal ou contraordenacional; o sentido de apreensão que dela se extrai (1ª parte) é lato como resulta da conjunção alternativa “ou” – arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos – nada indicando, na sua literalidade, que não seja também este o sentido de apreensão da sua segunda 2ª parte – apreendidos por virtude de infração.

O que parece seguro afirmar é que os bens apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social estão excluídos do âmbito dos bens a apreender para a massa insolvente.

A apreensão excludente há-de ter causa em infração, criminal ou contraordenacional, este o elemento literal claro, seguro e, assim, incontornável; ora, por virtude de infração criminal tanto podem ser apreendidos bens destinados, em primeira linha, à conservação da prova – produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova [artigo 178.º, n.º 1, do CPP] – como podem ser apreendidos bens, por via de arresto preventivo, destinados a garantir a efetiva execução da decisão penal – pagamento da pena pecuniária, das vantagens do facto ilícito ou do valor correspondente e do valor correspondente aos instrumentos e produtos do crime [artigo 227.º, n.º 1, por remissão do artigo 228.º, n.º 1, do CPP].

À semelhança dos instrumentos e produtos do crime (artigo 109.º do C.P.) também as vantagens da prática do crime são declaradas perdidas a favor do Estado (artigo 110.º do C.P.) e no caso de não haverem sido apropriados em espécie a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor (artigos 109.º, n.º 3 e 110.º, n.º 4, do C.P.).

A declaração de perda de bens a favor do Estado envolve a sua ablação do património do autor do crime, o que significa que tais bens – ou o seu valor se não houverem sido apropriados em espécie – não podem haver-se como integrantes do património do devedor insolvente, com vista à repartição pelos credores do produto obtido por eles, na execução universal que a insolvência representa [artigo 1.º, n.º 1, do CIRE] ou, no limite, a beneficiar o agente devedor insolvente [artigo 184.º, n.º 1, do CIRE], assim se justificando que a sua preventiva apreensão ou a apreensão de bens para garantia do pagamento do valor que lhes corresponde, ainda que por via de arresto preventivo [artigos 227.º, n.º 1, alínea b) e 228.º, n.º 1, do CPP], obste à sua apreensão para a massa insolvente.

A tanto se opõem os fins da justiça penal destinada, em última ratio, a assegurar que “o crime não compensa.”

“Com efeito, através da declaração da perda de vantagens, pretende-se fazer crer à sociedade que “o crime não compensa”, almejando-se, deste modo, anular o sentimento de compensação material que o agente possa sentir com o crime, dissuadindo-o da sua prática.”[1]

Mais perto da espécie, o Ac. da Relação de Lisboa de 13/2/2019, citado pela decisão recorrida: “Ao permitir que as vantagens geradas pelo crime, diretas ou indiretas, ou o património que com elas se obteve, sejam distribuídas sem mais pelos credores, ainda que os créditos reconhecidos tenham sido gerados em consequência de negócios absolutamente alheios à prática do facto ilícito, estaria o processo de insolvência a promover a realização de todos os elementos do tipo objetivo do crime de branqueamento, na medida em que está a distribuir pelos credores as vantagens de um facto ilícito típico, a coberto, unicamente, do exclusivo interesse de satisfação dos interesses económicos destes”.[2]

Se bem apreendemos a causa/função do segmento da norma em apreciação – com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social – visa ela não embaraçar a realização da justiça penal (ou contraordenacional) preservando à sua ordem – apreendidos – os bens destinados à conservação da prova e os bens destinados à efetiva execução da decisão penal.

Elemento teleológico de interpretação que também concorre para concluir que a apreensão de bens em processo penal, por via de arresto preventivo, destinada a garantir o pagamento do valor correspondente às vantagens do crime, obstrói a apreensão de tais bens para a massa insolvente.

É o que se decide, sem quebra de respeito por opinião contrária.

No caso, foi decretado o arresto preventivo, em processo criminal, de bens da Insolvente destinados “a assegurar o pagamento do valor das vantagens que não foi possível apropriar em espécie” [cfr. ponto III. 1. al. b), supra], bens excluídos da apreensão para a massa insolvente, atenta a ressalva que consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 149.º do CIRE.

Foi este o sentido da decisão recorrida, resta confirmá-la.

Improcede o recurso.

3. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Recorrente pagar as custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)


IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 16/3/2023
Francisco Matos
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões


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[1] Ana Patrícia Bernardo Cabaço, A Perda de Vantagens do Crime no Código Penal, https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=RIV2GBCZ2B4%3D&portalid=30.
[2] Ac. R.L. de 13/2/2019 (proc. 324/14.0TELSB-CB.L1-3), disponível em www.dgsi.pt.