Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
186/20.8T8TVR-A.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Por força do disposto no art. 1105º, n.º 2, do CPC, havendo reclamação contra a relação de bens e resposta a essa reclamação as provas respectivas são indicadas juntamente com esses articulados.
2 – Requerendo a questão controvertida mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pode ser objeto de suficiente indagação no processo de inventário, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns, que oferecem garantias processuais acrescidas.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

1 – RELATÓRIO
A – Nos presentes autos a requerente AA instaurou processo de inventário, para partilha da herança deixada por óbito do casal que foi formado por BB e CC, seus avós maternos, falecidos respectivamente em .../.../2005 e em .../.../2008.
Alegou, em suma, que os inventariados não deixaram testamento, tendo-lhes sucedido os filhos DD e CC, ora requerido. Por seu turno, DD faleceu em .../.../2017, sucedendo-lhe apenas a representá-la a requerente, sua filha.
Uma vez citado, veio o cabeça de casal CC apresentar relação de bens, relacionando a existência de activo (bens imóveis) e de passivo (contributos financeiros do próprio cabeça de casal para aumentar o património dos inventariados).
Notificada, a requerente apresentou reclamação à relação de bens, pretendendo ver relacionado mais um prédio urbano, sito em ... - ..., Conceição de Tavira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o nº ...02 e inscrito na matriz sob o artigo ...07, da freguesia da Conceição e Cabanas de Tavira.
E nessa reclamação a requerente impugnou a totalidade do passivo apresentado pelo cabeça de casal na relação de bens.
O cabeça de casal respondeu à reclamação (ref.ª 39916829) e, após prorrogação do prazo, apresentou nova relação de bens (ref.ª 40323242), na qual integrou como activo da herança o bem imóvel que a Requerente pretendia ver relacionado e manteve o que considerou como passivo.
Em face da posição da Requerente, o cabeça de casal apresentou novo requerimento, pretendendo a produção de prova adicional sobre o passivo que defende existir a seu favor.
Todavia, saneando o processo, o julgador, declarou por um lado que por via da nova relação de bens apresentada não mais existe litígio quanto ao activo da herança, mas no referente ao seu passivo veio a decidir indeferir o requerimento de prova adicional do cabeça de casal e não reconhecer duas das parcelas do passivo que este pretendia ver reconhecido.
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B – Concretamente, foi decidido no despacho que veio a ser o recorrido, e no que a esta apelação releva, o seguinte:
“(…) no que respeita ao requerimento de prova testemunhal apresentado pelo cabeça de casal, cumpre referir que, nos termos do art. 1105.º, n.º 2 do C.P.C., as provas são oferecidas nos articulados.
Ora, o cabeça de casal respondeu à reclamação (ref.ª 39916829) e, após prorrogação do prazo, apresentou nova relação de bens (ref.ª 40323242). Em ambos os requerimentos foi requerida a prova que se considerou conveniente. Deste modo, o requerimento agora apresentado (ref.ª 41325058) seria sempre extemporâneo, importando o seu indeferimento.
Acresce que, dispõe o art. 1106.º, n.º 3 do C.P.C. que se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
O que releva nesta análise é, pois, se a prova documental junta aos autos é suficiente para demonstrar a existência da dívida. Pese embora o art. 1105.º, n.º 3 do C.P.C. admita a produção de prova adicional, a mesma deverá ter em vista complementar a referida prova documental e que tenham um mínimo de idoneidade e validade legal para suportar o passivo que se pretende ver reconhecido.
(…)
Ora, compulsados os autos, resulta evidente que nenhuma da dívida foi reconhecida pela Requerente.
Cumprirá, assim, apurar se os documentos juntos aos autos se revelam idóneos para demonstrar a existência do passivo, ainda que mediante a produção de prova suplementar, mais concretamente, e no que se pretende, declarações e depoimento de parte e prova testemunhal.
E julga-se que tal não sucede, dado não ter sido carreada para os autos qualquer prova documental que suporte a existência de passivo da herança.
Nos termos do art. 2068.º do C.C. a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados.
Assim, e para o que ora importa, o passivo da herança é constituído pelas dívidas dos de cujus à data do respectivo falecimento.
In casu, o cabeça de casal pretende ser ressarcido da quantia de €498.797,40, relativa a despesas de construção, licenciamento, investimento e contributos financeiros efectuados pelo próprio, nos prédios relacionados sob os n.ºs 3 a 9.
Como é bom de ver, tal quantia não corresponde a qualquer dívida vencida à data do óbito dos inventariados.
A mesma poderá, quando muito, vir a ser considerada um crédito que o cabeça de casal tem sobre a herança, o qual terá, porém, de ser judicialmente reconhecido, noutro processo (e pelos meios comuns) que não o inventário. Aliás, se bem analisarmos a relação de bens apresentada, é como crédito que tal quantia se apresenta e não como passivo da herança. Porém, ao invés do que dali resulta, o processo de inventário não é o meio processual adequado para exigir tal pagamento. Do mesmo passo que um terceiro não pode vir aos autos de inventário reclamar um crédito a seu favor, também o não pode fazer o herdeiro.
Deste modo, e sem necessidade de quaisquer considerações, não se reconhece (nesta sede) o crédito que o cabeça de casal invoca ter sobre a herança, na quantia de €498.797,40.
O mesmo se diga da invocada quantia de €28.458,18, a qual respeita a facturas emitidas pela FAROEQUIPA, LDA a favor da POLAKOS CLUB – ACT. HOT. E ESPECT. AO VIVO, LDA e à declaração de quitação por aquela emitida.
Os documentos juntos aos autos a este respeito não só datam de 28.11.2011 (factura n.º ...85) e de 30.08.2011 (factura n.º ...09), ou seja, de data posterior ao óbito dos inventariados, como nem sequer se encontram emitidas a favor dos inventariados, nem do próprio cabeça de casal.
Deste modo, é igualmente manifesto que tal quantia não pode ser considerada como passivo da herança.”
Concluindo, termina o despacho em questão decidindo, além do mais:
“(ii) Não reconhecer (nesta sede) os créditos de €498.797,40 e de €28.458,18 que o cabeça de casal invoca ter sobre a herança e a que os pontos 2 a 9 e 14 e 15 do requerimento com a ref.ª 40323242 fazem referência;”
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2 – DA APELAÇÃO
Em face do decidido, veio o cabeça de casal interpor o presente recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1) O presente recurso tem por objeto o Despacho Saneador proferido em 16 de fevereiro de 2022 pelo Juízo de Competência Genérica de Tavira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, no âmbito de processo de inventário para partilha da Herança deixada por óbito de BB e de CC, falecidos em 2005 e em 2008;
2) Pelo Despacho Saneador, o Tribunal a quo (i) rejeitou meios de prova apresentados e requeridos pelo cabeça-de casal para prova do passivo da Herança, e (ii) decidiu (parcialmente) do mérito da causa, ao não reconhecer um conjunto de dívidas da Herança relacionadas pelo cabeça-de-casal, ordenando o seguimento do processo de inventário para a fase da conferência de interessados, subtraídas as verbas do passivo e encargos da Herança correspondentes a essas dívidas não reconhecidas;
3) No que respeita à decisão de rejeição de meios de prova, em causa está o impedimento à prova de passivo da Herança correspondente a dívidas que ascendem a €498.797,40, conforme relacionado pelo cabeça-de-casal (Doc. 2.A e Doc. 2.B);
4) As provas que não foram admitidas pelo Tribunal a quo no Despacho Saneador referem-se à prova testemunhal e à prova documental apresentadas e requeridas pelo cabeça-de-casal no seu requerimento de 14-02-2022 (Doc. 4);
5) Esta não admissão impossibilitou a produção de prova sobre os factos relevantes para a consideração do passivo da Herança;
6) Em consequência, o Tribunal a quo declarou não reconhecer, para efeitos de verificação do passivo, as dívidas de €498.797,40. Mais declarou não reconhecer, para efeitos de verificação dos encargos, as benfeitorias realizadas por terceiro sobre prédio da Herança, no valor de €28.458,18, tal como relacionadas pelo cabeça-de-casal;
7) O recurso de apelação interposto está objetivamente delimitado à parte do Despacho Saneador respeitante às decisões descritas no seu ponto III e no seu ponto (ii) da parte dispositiva (artigo 635.º, n.º 2, do CPC);
8)Relevam, aqui, dois complexos de dívidas da Herança: o primeiro, de constituição anterior ao óbito dos inventariados (passivo); o segundo, de constituição posterior (encargos);
9) No primeiro caso, estão em causa dívidas relacionadas com despesas com a construção e licenciamento do prédio identificado nas verbas 3 a 9 do ativo da Herança (cfr. relação de bens – Doc. 2), em valor que ascende a cem milhões de escudos, quantia atualmente equivalente a €498.797,40, referentes aos anos 1999 a 2001;
10) Foram despesas suportadas pelo cabeça-de-casal, em vida dos inventariados, num concreto contexto familiar, em que se visou evitar que os inventariados incumprissem perante terceiros as obrigações emergentes da realização dessas despesas;
11) O que levou o cabeça-de-casal a assumir individualmente o risco de cumprir pontualmente e por sua própria conta os encargos dessa construção – assim justificando que tenha sido parte no contrato de empreitada (Doc. 2. A);
12) Não foi acordado entre os inventariados e o cabeça-de-casal qualquer prazo fixo para a restituição dos pagamentos assumidos pelo cabeça-de-casal ao empreiteiro e a outros terceiros, estipulando-se apenas que os inventariados restituiriam essas quantias ao cabeça-de-casal assim que pudessem, ou quando este assim futuramente lhes exigisse;
13) Não estavam, porém, em causa, por parte do cabeça-de-casal, quaisquer doações ou em qualquer outra modalidade de negócio gratuito ou de favor que beneficiasse com espírito de liberalidade os inventariados, ou mesmo qualquer obrigação natural;
14) Esta suportação de despesas pelo cabeça-de-casal assentou na celebração de um contrato de mandato entre os inventariados e o cabeça-de-casal, por forma verbal – não padecendo este contrato de qualquer vício de forma;
15) Este Venerando Tribunal não é, contudo, chamado a pronunciar-se sobre a qualificação dos negócios que tenham sido celebrados nas relações internas (inventariados e cabeça-de-casal);
16) No segundo caso, estão em causa dívidas relacionadas com as obras de beneficiação do prédio identificado na verba 11 do ativo da Herança (cfr. relação de bens – Doc. 2.B), em valor que ascende a €28.458,18, referentes a benfeitorias realizadas por terceiro entre 2010 e 2011;
17) Obras em prédio que, à data, já integrava a Herança, e que foram suportadas pela sociedade Polakos Club – Actividades Hoteleiras e Espectáculos ao Vivo, Lda., que as pagou à Faroequipa – Equipamentos Hoteleiros, Lda.;
18) Trata-se esta de uma sociedade unipessoal por quotas detida integralmente pelo cabeça-de-casal;
19) As obras de beneficiação suportadas por esta sociedade corresponderam a benfeitorias úteis e voluptuárias sobre o dito prédio integrante da Herança, tal como ficou explícito na relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, observando o disposto do artigo 1098.º, n.º 7, do CPC (Doc. 2);
20) Tendo sido produzida a correspondente prova documental: duas faturas e documento de quitação;
21) Tendo o cabeça-de-casal relacionado o passivo da Herança e apresentado os meios de prova possíveis, àquela data, sobre o passivo e encargos da herança, veio a interessada AA impugnar, em requerimento próprio, a existência de tais dívidas, alegando que os documentos «juntos aos autos pelo cabeça de casal não fazem prova dos alegados pagamentos por si feitos»;
22) Sob pena de indefesa e de correspondente violação do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva, tal levou o cabeça-de-casal a apresentar e a requerer, através do seu requerimento de 14-02-2022 (Doc. 4), prova complementar da prova já apresentada na relação de bens – maxime, prova testemunhal e prova documental, para prova desses pagamentos e, se necessário, da relação a eles subjacente;
23) O Tribunal a quo, no seu Despacho Saneador (Doc. 1), rejeitou, porém, a prova complementar assim apresentada e requerida pelo cabeça-de-casal: quanto à prova testemunhal, porque «nos termos do art. 1105.º, n.º 2 do C.P.C., as provas são oferecidas nos articulados»; quanto à prova documental, porque o requerimento de 14-02-2022 do cabeça-de-casal «seria sempre extemporâneo, importando o seu indeferimento»;
24) Contudo, o artigo 1105.º, n.º 2, do CPC, não limita a apresentação de prova ao primeiro requerimento, pois geralmente estão em causa créditos e obrigações constituídos há largos anos (o que dificulta a recolha, em tempo, desses elementos), e porque, muitas vezes, tal decorre num contexto puramente familiar, encontrando-se os seus membros animados pela ideia de que entre família não se guarda contabilidade;
25) A ideia, expressa no Despacho Saneador, de que «nos termos do art. 1105.º,n.º 2 do C.P.C., as provas são oferecidas nos articulados» não tem, salvo o devido respeito, que é muito, correspondência com o texto desse preceito, por apelar a uma preclusão quanto a apresentação da prova que não resulta desse enunciado normativo;
26) Não percebe o Apelante qual o critério legal de temporalidade utilizado pelo Tribunal a quo para decidir que «o requerimento agora apresentado (ref.ª 41325058) seria sempre extemporâneo»;
27) O facto objeto de prova complementar, rejeitada pelo Tribunal a quo no Despacho Saneador, é o pagamento pelo cabeça-de-casal das dívidas associadas a despesas com o prédio identificado nas verbas 3 a 9 do ativo da Herança;
28) Sendo o pagamento um facto extintivo de obrigações, considerou o cabeça-de-casal, atento o disposto no artigo 395.º do Código Civil, que a prova testemunhal não seria admitida pelo Tribunal a quo, por ter juntado, na relação de bens, documentos (em particular, os cheques) que titulam as dívidas da Herança e que visariam provar plenamente essas dívidas;
29) Confrontado com a impugnação da herdeira-interessada, que alegou não estar provado o pagamento, o cabeça-de-casal mais não fez do que lançar mão do disposto no artigo 393.º, n.º 2, do Código Civil (ex vi artigo 395.º do mesmo Código);
30) A prova complementar requerida pelo cabeça-de-casal, rejeitada pelo Tribunal a quo, deveria ser considerada “diligências probatórias necessárias”, para efeitos do disposto no artigo 1105.º, n.º 3, do CPC;
31) O Tribunal a quo aplicou expressamente ao caso o artigo 1106.º, n.º 3, do CPC, e considerou que a dívida relacionada pelo cabeça-de-casal «não corresponde a qualquer dívida vencida à data do óbito dos Inventariados».
32) Contudo, mal andou o Tribunal a quo ao aplicar o artigo 1106.º, n.º 3, do CPC, ao caso: o cabeça-de-casal, também «interessado» nesta lide, não se opôs ao reconhecimento de nenhuma das dívidas relacionadas, pelo que o inventário deveria ter seguido para a fase da conferência de interessados nos estritos termos do artigo 1106.º, n.º 4, do CPC, aí se discutindo o passivo (artigo 1111.º, n.º 3, do CPC);
33) Mesmo que se entendesse que o artigo 1106.º, n.º 3, do CPC, era aplicável ao caso, não poderia o Tribunal a quo decidir no sentido da inexistência do passivo, pois a questão da existência ou inexistência das dívidas não poderia ser «resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados»;
34) Em situações duvidosas – mormente, situações de non liquet – não é aplicável este preceito;
35) Face à prova documental apresentada pelo cabeça-de-casal na relação de bens e em requerimento subsequente (Doc. 2 e Doc. 3), não se estaria na presença de documentos que com segurança apontassem no sentido da inexistência das dívidas relacionadas pelo cabeça-de-casal. O que impediria a aplicação, ao caso, do artigo 1106.º, n.º 3, do CPC;
36) Confrontado com alguma dúvida, por mínima que fosse, quanto à prova produzida, estava o Tribunal a quo obrigado a seguir uma de duas vias: (i) no âmbito dos seus poderes de boa gestão processual (artigo 6.º do CPC), e como decorrência do princípio do inquisitório (artigo 411.º do CPC), a observar a incumbência de, dirigindo ativamente o processo, determinar a produção de prova complementar da prova documental apresentada pelo cabeça-de-casal, e relegar para a fase da conferência de interessados a verificação destas dívidas (artigo 1111.º, n.º 3, do CPC), ou (ii) suspender a instância, para decisão sobre o reconhecimento das dívidas impugnadas pela interessada, como questão prejudicial com extrema «relevância para a definição de direitos de interessados diretos na partilha» (artigo 1092.º, n.º 1, alínea b), do CPC);
37) As dívidas da Herança associadas a despesas com o prédio identificado nas verbas 3 a 9 do ativo da Herança (de constituição anterior à morte dos inventariados) encontram-se, na presente data, vencidas, ao abrigo do disposto no artigo 778.º, n.º 1, do Código Civil.
38) As obras de beneficiação do prédio identificado na verba 11 do ativo da Herança (cfr. relação de bens – Doc. 2.B), em valor que ascende a €28.458,18, não é por terem sido realizadas após a morte dos inventariados que deixam de relevar como dívida da Herança (artigo 1098.º, n.º 7, do CPC).
Termos em que, e nos demais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Ex.as, Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação e revogada a decisão recorrida:
- na parte em que rejeita a prova do pagamento, pelo cabeça-de-casal, das dívidas da Herança no montante de €498.797,40 (passivo), conforme apresentada e requerida pelo cabeça-de-casal no seu requerimento de 14-02-2022, e
- na parte em que (parcialmente) decide do mérito da causa, não reconhecendo as dívidas da Herança no montante de €498.797,40 (passivo) e de €28.458,18 (encargos).
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Pela requerente não foi apresentada resposta às alegações do recorrente.
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3 – O OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso podem sintetizar-se em duas: saber por um lado da admissibilidade da prova adicional indicada pelo cabeça de casal no seu requerimento de 14-02-2022; e de seguida do acerto da decisão de excluir nesta sede processual as duas verbas relacionadas pelo cabeça de casal como passivo da herança e que são contestadas pela requerente.
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4 – DA FACTUALIDADE A CONSIDERAR
Vistos os autos, são os seguintes os dados processuais que se afiguram relevantes para a decisão a proferir:
a) Em 02-07-2021 conforme REFª: 39348686 o cabeça de casal apresentou relação de bens.
b) Nessa relação de bens, a título de passivo, o cabeça de casal incluiu “a favor do Cabeça-de-Casal um crédito sobre a herança no montante de pelo menos €498.797,40 (quatrocentos e noventa e oito mil setecentos e noventa e sete euros e quarenta cêntimos)” alegando que “investiu na construção do prédio elencado nos números 3 a 9 do artigo 1.º deste Requerimento a quantia de cem milhões de escudos (quantia actualmente equivalente a €498.797,40, i.e., quatrocentos e noventa e oito mil setecentos e noventa e sete euros e quarenta cêntimos), tendo suportado directamente as despesas de construção e licenciamento do prédio”.
c) Juntou nessa data diversa prova documental para comprovar o alegado crédito.
d) Logo a 21-09-2021, conforme REFª: 39904826, a requerente, tendo conhecimento da relação de bens, apresentou reclamação contra a mesma, pedindo o aditamento ao activo de um prédio que identificou e ainda a exclusão do passivo indicado pelo cabeça de casal, impugnando a sua existência e impugnando também os documentos por ele apresentados.
e) Diz a requerente que “No que concerne à alegada dívida da herança ao cabeça de casal a interessada impugna-a. De facto, é falso o que se diz nos artigos 3º a 7º do requerimento apresentado pelo cabeça de casal. A construção do prédio referido no artigo 4º, foi levada a cabo pelos inventariados com recurso a um empréstimo bancário e a dinheiro seu.
f) A 22-09-2021, conforme REFª: 39916829, o cabeça de casal deu entrada a novo requerimento, referindo que “em complemento do Requerimento apresentado a 02.07.2021” reitera a existência do alegado “crédito sobre a herança no montante de pelo menos €498.797,40” e acrescenta ainda que suportou “despesa de €32.261,60 (trinta e dois mil duzentos e sessenta e um euros e sessenta cêntimos) em impostos devidos pelos imóveis da herança, os quais peticiona como créditos que lhe são devidos.”
g) Neste requerimento declara ainda que em face da posição da requerente do inventário sobre a relação de bens requeria um prazo de mais 30 dias para responder ao referido requerimento, dado que os dez dias do prazo normal não eram suficientes para tal.
h) Na sequência, a 28-09-2021, foi proferido despacho no qual foi admitida a junção aos autos dos requerimentos apresentados pelo Cabeça de Casal, assim como da relação de bens, dos documentos e do compromisso de honra, e bem assim foi determinado, atenta a posição da requerente e o requerido pelo cabeça de casal, conceder a este o prazo adicional requerido: “a fim de que os autos possam prosseguir com todos os elementos necessários à apreciação do activo e do passivo da herança, concede-se ao Cabeça de Casal a requerida prorrogação do prazo, pelo período de 30 dias, para responder à reclamação de bens e juntar aos autos todos os documentos relevantes”.
i) Em 02-11-2021 o cabeça de casal deu entrada a novo requerimento (REFª: 40323242) no qual declara vir em cumprimento do despacho anterior apresentar nova relação de bens, na qual incluiu no activo o prédio reclamado pela requerente e no referente ao passivo manteve o que constava da versão anterior e acrescentou ainda (artigos 14 e 15) que “a sociedade Polakos Club – Actividades Hoteleiras e Espectáculos ao Vivo, Lda. realizou obras de beneficiação no imóvel listado com o número 11 do activo da herança, quantificadas em €28.458,18 (vinte e oito mil, quatrocentos e cinquenta e oito euros e dezoito cêntimos)” e que tal valor “constitui, na parte que corresponda a benfeitorias úteis que não se possam levantar, crédito da sociedade sobre a herança, e como tal terá de ser quantificado.
j) Com esse requerimento o cabeça de casal juntou mais documentos, para prova do que alegou.
k) A 26-11-2021 (REFª: 40589437) o cabeça de casal juntou mais dois documentos, dizendo fazê-lo “em cumprimento do douto despacho da M. Juiz de 28.09.2021” e para prova do “art. 14.º do requerimento apresentado em juízo pelo Cabeça-de-Casal em 2.11.2021”.
l) Prosseguindo os autos, foi proferido despacho a 18-01-2022 no qual foi considerado que “cumprido o disposto nos arts. 1104.º e 1105.º, n.º 1 do C.P.C., importará dar seguimento ao processo – instrução e decisão sobre a reclamação à relação de bens” e ordenada a notificação da requerente para informar se mantinha o requerimento probatório oportunamente apresentado (ref.ª 39904826) e, em caso negativo, “indicar a prova que pretende produzir sobre o actual objecto do litígio – passivo da herança”, e ainda para “querendo, exercer contraditório sobre os documentos ora juntos pelo Cabeça de Casal.
m) Respondendo a essa notificação, a requerente declarou por requerimento de 31-01-2022 que mantinha “o requerimento probatório que apresentou, porquanto a prova aí oferecida destina-se a fazer contraprova do passivo da herança relacionado pelo cabeça de casal, que a requerente impugnou” e “no que tange aos documentos ora juntos aos autos pelo cabeça de casal, os mesmos não fazem prova dos alegados pagamentos por si feitos.
n) Por seu turno, o cabeça de casal veio novamente aos autos, por requerimento de 14-02-2022 (REFª: 41325058) dizer que requeria a produção de prova adicional, concretamente a inquirição de 5 testemunhas que indicou, e a junção de mais documentos que protestou apresentar posteriormente, declarando que “tem presente o teor do despacho c/ a ref.ª 121584134, de 28.09.2021” mas que a prova requerida se tornou necessária em face da posição da requerente, “sob pena de indefesa e de correspondente violação do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva”.
o) Foi então proferido, a 16-02-2022, o despacho aqui recorrido, indeferindo o requerimento probatório adicional do cabeça de casal e rejeitando o reconhecimento (“nesta sede”) dos alegados créditos incluídos pela cabeça de casal na relação de bens e impugnados pela requerente.
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5 – APRECIANDO E DECIDINDO
Tendo presentes os elementos supra expostos, resta-nos apreciar e decidir sobre as questões colocada a este tribunal de segunda instância.
Antes do mais, importa recordar que os presentes autos de inventário regem-se pelas pertinentes normas do Código de Processo Civil na versão agora em vigor, introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.
Assim, tendo o inventário sido requerido por uma interessada a quem não incumbia o cabeçalato, foi o recorrente nomeado cabeça de casal e no seguimento da sua citação coube-lhe apresentar a relação de bens (cfr. art. 1102º e 1098º, ambos do CPC).
Da relação de bens devem constar, indicadas de forma separada, as dívidas da herança, incluindo as benfeitorias realizadas por terceiro, constituindo tudo passivo da herança (cfr. art. 1098º, n.ºs 3 e 7).
Em face da relação de bens, podem os interessados deduzir a oposição que tiverem, nomeadamente apresentando reclamação contra essa relação, v. g. por omissão de bens no activo, ou impugnando as dívidas da herança (cfr. art. 1104º, n.º 1, als. d) e e) do CPC).
Assim procedeu a requerente dos autos, e única interessada para além do cabeça de casal, seu tio – notificada da relação de bens veio reclamar por falta de relacionamento de um imóvel que no seu entender deveria estar relacionado e impugnou também a existência do passivo mencionado pelo cabeça de casal, impugnando ainda os documentos juntos para suportar a sua existência.
Recorde-se que a relação de bens em causa deu entrada a 02-07-2021 e a reclamação referida foi apresentada a 21-09-2021.
Logo a 22-09-2021, tendo conhecimento da posição da requerente, o cabeça de casal juntou novo requerimento, no qual manteve o conteúdo do anterior e requereu prazo de 30 dias para responder à reclamação, alegando que 10 dias não bastavam, dada a complexidade da questão.
Essa pretensão foi satisfeita, sendo concedido o prazo pedido – “a fim de que os autos possam prosseguir com todos os elementos necessários à apreciação do activo e do passivo da herança”.
Posteriormente, já a 02-11-2021, o cabeça de casal veio então apresentar o seu requerimento de resposta, com a relação de bens revista, na qual incluiu entre o activo o imóvel que tinha sido alvo da reclamação por omissão (o que levou depois o tribunal a considerar que sobre o activo já não subsistia litígio) mas mantendo a sua posição sobre o passivo, a que acrescentou a referência às benfeitorias controvertidas, e juntando ainda mais documentos.
E outra vez a 26-11-2021 o cabeça de casal veio aos autos com outro requerimento probatório, juntando mais documentos.
Foi nesta sequência que foi proferido despacho a 18-01-2022 onde o tribunal, considerando cumprido o disposto nos arts. 1104º e 1105º do CPC, ordenou a notificação da requerente para exercer o contraditório, esclarecendo a sua posição sobre o teor da relação de bens revista e sobre os documentos entretanto juntos pelo cabeça de casal (o que a requerente efectivamente fez, mantendo a sua posição quanto ao passivo).
Deste despacho foi o cabeça de casal notificado, na mesma data, sem que tenha então apresentado qualquer reclamação ou feito qualquer reparo.
Veio, no entanto, a 14-02-2022, apresentar o requerimento sobre o qual recaiu despacho de indeferimento, indicando prova testemunhal e protestando juntar mais documentos, com vista a comprovar a existência do discutido passivo.
Este requerimento foi indeferido, em síntese, por se considerar que havendo reclamação contra a relação de bens no processamento desta “as provas são indicadas com os requerimentos e respostas” (cfr. o n.º 2 do art. 1105º do CPC).
Efectivamente, visto o articulado legal, conclui-se que havendo reclamação contra a relação de bens ou impugnação do passivo está previsto que seja assegurado o contraditório, primeiro através da possibilidade de reclamação e depois através da resposta à reclamação deduzida - mas o incidente não se prolonga em mais articulados.
E na contraposição de afirmações entre requerente e cabeça de casal têm eles o ónus de indicarem as respectivas provas, devendo fazê-lo com o requerimento e com a resposta.
Ou seja, com a requerimento de reclamação apresentado contra a relação de bens deve o reclamante indicar ou oferecer, desde logo, os meios de prova que entenda serem necessários para fazer valer a sua pretensão e o mesmo deve fazer o cabeça-de-casal na sua resposta, no caso de manter a sua posição quanto ao objecto da reclamação.
As provas devem ser apresentadas com os requerimentos e respostas, ou seja, a reclamante tinha que apresentar os seus meios de prova com a sua reclamação e o cabeça de casal reclamado com a respetiva resposta, sob pena de precludir a possibilidade de o fazer posteriormente (cfr. Ac. do STJ, de 9/2/1998, Col. Jur. Ac. STJ, T-I, Ano 1998, pág. 54, e Acórdão da Relação do Porto de 15.06.2000, in www.dgsi.pt).
Ora, como se constata pela descrição da sequência cronológica das vicissitudes processuais ocorridas, o cabeça de casal agora recorrente já tinha exercido a sua faculdade de responder, a 02-11-2021, beneficiando até de prazo acrescido para isso, como requereu.
E com a sua resposta estava obrigado a indicar a prova que tivesse para sustentar a sua posição, por força do disposto no citado art. 1105º, n.º 2, do CPC - “as provas são indicadas com os requerimentos e respostas”.
Recorde-se que posteriormente a esse requerimento de resposta o cabeça de casal ainda juntou mais documentos, a 26-11-2021, alegando complementar dessa forma o requerimento de 02-11-2021.
Mas posteriormente, a 18-01-2022, o despacho ordenatório proferido deu por encerrada essa fase processual, referindo expressamente os arts. 1104º e 1105º, mandando notificar apenas a requerente para se pronunciar sobre os documentos entretanto juntos e esclarecer se mantinha a sua posição sobre a matéria controvertida (o que se compreende porque a relação de bens tinha sido modificada).
Sendo inegável que tinha de ser dado cumprimento ao princípio do contraditório de modo a facultar à interessada o direito de se pronunciar sobre a alteração verificada, não parece sustentável defender que em matéria de provas ainda se mantinha a faculdade do cabeça de casal vir indicar novos meios probatórios.
Quando a 14-02-2022 o cabeça de casal apresentou novo requerimento, com a indicação de prova testemunhal a produzir e protestando juntar ainda mais prova documental, estava efectivamente precludida a possibilidade de o fazer.
Devia ter indicado a prova que pretendia no próprio articulado de resposta à reclamação deduzida, tal como nesta teria que ser indicada a prova destinada a demonstrar a factualidade aí alegada. Assim o entendeu o tribunal recorrido ao falar em extemporaneidade, expressão que o recorrente nas suas alegações declara não compreender.
Todavia, é bem claro o disposto no art. 1105º, n.º 2, do CPC.
A verdade é que a lei que regulamenta o processo de inventário instituiu uma regulamentação que visa assegurar quanto possível eficácia e celeridade processuais, consagrando um princípio de concentração associado a um princípio de preclusão. Como é óbvio, tal implica um acentuar da auto-responsabilização das partes na própria condução do processo.
Por outras palavras, resulta do regime estabelecido nos arts. 1104.º e 1105º do CPC um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, que se estende também à indicação das provas por parte dos litigantes.
Como diz Lopes do Rego, (Revista Julgar online, Dezembro de 2019, pág. 13), “qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão.
Nessa lógica vem a imposição contida no n.º 2 do art. 1105º, de que toda a prova seja indicada com os requerimentos e respostas, que não é afinal diferente da prevista para o processo comum, onde por regra os meios de prova são indicados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (cfr. art. 423º, n.º 1, do CPC).
Concluindo, julgamos não merecer censura a decisão tomada a este respeito pelo tribunal recorrido, por ser efectivamente a que decorre da lei, impondo-se a sua confirmação.
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O recorrente impugna ainda, e cremos que principalmente, o segmento decisório que decidiu “Não reconhecer (nesta sede) os créditos de €498.797,40 e de €28.458,18 que o cabeça de casal invoca ter sobre a herança e a que os pontos 2 a 9 e 14 e 15 do requerimento com a ref.ª 40323242 fazem referência”.
Dizendo de outro modo, a primeira instância acabou desta forma por remeter para os meios comuns a discussão sobre este eventual passivo, de modo a que o processo prosseguisse os seus termos sem essa polémica (como permite o art. 1105º, n.º 5, do CPC).
Com efeito, o cabeça de casal incluiu na relação de bens a sua pretensão de ser ressarcido pela herança da quantia de €498.797,40, que diz ser relativa a despesas de construção, licenciamento, investimento e contributos financeiros efectuados pelo próprio, nos prédios relacionados sob os n.ºs 3 a 9.
E por outro lado também incluiu como dívida da herança a quantia de €28.458,18, correspondente a benfeitorias realizadas no prédio n.º 11 da relação de bens que foram pagas por meio de cheques emitidos pela POLAKOS CLUB – ACT. HOT. E ESPECT. AO VIVO, LDA (sociedade unipessoal por quotas detida integralmente pelo cabeça-de-casal) para pagar à FAROEQUIPA, LDA, que terá realizado essas benfeitorias.
Segundo o cabeça de casal, a primeira dívida constituiu-se nos anos 1999 a 2001, ainda em vida dos inventariados, e a segunda nasceu já depois da morte destes, entre 2010 e 2011.
A decisão recorrida julgou que, considerando a impugnação da requerente, e examinada a prova junta aos autos a este respeito, prova documental apresentada pelo cabeça de casal, não era possível concluir com segurança pela existência de tais dívidas (e só a essa prova era possível atender, conforme explanado anteriormente).
No respeitante à verificação do passivo relacionado, rege o art. 1106.º do CPC, o qual estabelece, nomeadamente, que as dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas (n.º 1), impondo assim um efeito cominatório para a falta de impugnação atempada, e dispõe no n.º 3 que “se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados”.
Julgamos aplicar-se plenamente a disposição do n.º 3 do art. 1106º, uma vez que a única interessada em face da pretensão do cabeça de casal, que relacionou essas dívidas e pugna pelo seu reconhecimento, veio deduzir oposição a esse reconhecimento.
Por conseguinte, o juiz só podia julgar verificada a existência e montante dessas alegadas dívidas caso pudesse resolver a questão “com segurança pelo exame dos documentos apresentados”.
Compreende-se o sistema legal se pensarmos nas consequências do reconhecimento nesta fase do processo, que implicariam a consideração desse passivo já em sede de conferência de interessados, e nas consequências do não reconhecimento, que não preclude os eventuais direitos, apenas significa a remessa do seu reconhecimento para outra instância, onde possa ser decidida de forma mais rigorosa e segura, considerando a natureza sumária da prova compatível com a marcha do processo de inventário.
Ou seja, tem-se por certo que “No âmbito do processo de inventário, o princípio que vigora é o de que devem ser decididas definitivamente no seu âmbito todas as questões de facto de que a partilha dependa, salvo se essa decisão se não conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir uma ampla discussão no quadro do processo comum” (Ac. TRE de 2015-05-28, recurso n.º 75/10.4TBNIS.E1, relatora Conceição Ferreira, in www.dgsi.pt).
Porém, deparando o julgador com questões cuja complexidade exija mais aturada discussão e maiores exigências de prova, pode e deve remeter os interessados para os meios comuns, até para evitar “que no inventário se resolvam questões de alta indagação” (Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais, vol. I, 539).
Portanto, a tendencial universalidade do inventário não exclui que o juiz possa excepcionalmente, em caso de particular complexidade, e para evitar redução das normais garantias das partes, lançar mão da possibilidade de remessa para os meios comuns.
Idêntica orientação se encontra nomeadamente no Acordão do TRE de 2016-10-20, no processo n.º 1752/10.5TBVNO-A.E1, relatado por Tomé Ramião, disponível em www.dgsi.pt, onde se explica que se justifica a remessa para os meios comuns no âmbito do processo de inventário quando se constata, em sede de incidente de reclamação da relação de bens, que a sua apreciação requer aturada e complexa indagação e produção de prova, não se conformando com a estrutura sumária do incidente e implicar redução das garantias das partes.
Como de forma lapidar se decidiu no Ac. TRP de 15-12-2021, no processo n.º 69/20.1T8VLC-A.P1, relatora Eugénia Cunha, também na mesma base de dados:
“Requerendo a questão mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pôde ser objeto de suficiente indagação incidental no processo de inventário, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns, que oferecem garantias processuais acrescidas, permitindo-se às partes, de modo mais ativo e eficaz influenciar a decisão - quer ao nível da alegação fáctica e contradição, quer ao nível das provas quer ao do enquadramento jurídico - nos moldes consagrados para as ações declarativas comuns, não balizadas pelos termos simplificados do incidente, e, assim, ser alcançada uma solução mais justa, por fruto da comparticipação colaborante de todos os interessados.”
E a “remessa para os meios comuns supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efectiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência de julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as acções declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental” (Ac. RL de 2/5/2017, processo n.º 848/15.1T8VFX.L1-7, relator Luís Espírito Santo).
No caso vertente, pretendendo o cabeça de casal incluir as dívidas em causa na relação de bens por via do art. 2068º do Código Civil, quando este se refere a dívidas dos falecidos, ou por via do art. 1098.º, n.º 7, do CPC, quando este se refere a benfeitorias, competia-lhe demonstrar a sua existência e o seu montante (cfr. art. 2106º, n.º 3, supra citado, e art. 342º, n.º 1, do Código Civil).
Todavia, a prova documental que juntou, aliás impugnada, não tem a virtualidade de demonstrar essa existência e montante.
As facturas emitidas pela FAROEQUIPA, LDA a favor da POLAKOS CLUB – ACT. HOT. E ESPECT. AO VIVO, LDA (de 28.11.2011 e de 30.08.2011, bem como a declaração de quitação por aquela emitida são meros documentos particulares que não bastam para demonstrar a existência e o valor das benfeitorias mencionadas pelo cabeça de casal. E muito menos se essas benfeitorias são úteis ou não, ou se podem ser levantadas ou não.
Por seu lado, os documentos relativos à empreitada e restantes despesas que o cabeça de casal alega ter suportado em vida dos inventariados nos prédios da herança sofrem de igual deficiência.
Recorde-se que só gozam da força probatória que lhes confere o nº 2 do artigo 376º do Código Civil os documentos particulares não impugnados cuja letra ou cuja assinatura, ou ambas em conjunto, sejam atribuídas a uma das partes pela outra, o que não é obviamente o caso.
Os documentos particulares escritos ou assinados por terceiros, como é o caso, não têm sequer essa força probatória, sendo de apreciação livre pelo tribunal, conforme prevê o artigo 366º do Código Civil.
Na situação presente, o conjunto de documentos apresentado, logo impugnados pela contraparte, não é susceptível de provar a realidade alegada pelo cabeça de casal para fundamentar a inclusão das “dívidas” em questão.
A verdade é que, tanto em consequência do tempo decorrido (os factos que estarão na génese das faladas “dívidas” terão ocorrido num caso entre 1999 a 2001 e no outro entre 2010 e 2011) quer atendendo ao contexto familiar em que terão ocorrido, como alude o recorrente, a comprovação exigível se mostra complexa e difícil. O próprio recorrente assim o reconhece, designadamente ao requerer prazo adicional para responder à impugnação da requerente, e ao tentar sucessivamente introduzir no processo mais e mais prova.
Por conseguinte, entendemos que decidiu bem o despacho recorrido, impondo-se a confirmação do decidido, e a prossecução dos termos do inventário quanto ao restante, não afectado pela presente discussão.
Terminamos, pois, com a conclusão da improcedência do recurso em avaliação, por todas as razões que foram expostas.
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6 - DECISÃO
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante, dado o decaimento (cfr. art. 527º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi art. 1130º, n.º 4, do mesmo diploma).
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Évora, 11 de Maio de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier