Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4029/04.1TBSTB-C.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: HERANÇA INDIVISA
ENCARGO DA HERANÇA
HERDEIRO
ALIENAÇÃO DA HERANÇA
PARTILHA DA HERANÇA
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos encargos da herança.
II. A responsabilidade dos herdeiros está limitada às forças da herança: os herdeiros apenas respondem pelas dívidas do de cujus na medida daquilo que tenham recebido em herança (intra vires hereditatis), e não para além delas (ultra vires) com os seus bens próprios.
III. Cada co-herdeiro pode alienar o seu direito ou fazer cessar a indivisão, após a aceitação e antes da partilha.
IV. Antes da partilha, o adquirente da herança ou do quinhão hereditário sucede nos encargos da herança, mas o alienante responde solidariamente pelos mesmos, sem prejuízo do direito de regresso contra o adquirente.
V. Se a herança for parcialmente partilhada, o alienante do quinhão hereditário mantém a responsabilidade solidária em relação ao acervo hereditário não partilhado. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
Por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa em que é exequente BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. e, inicialmente, executados L…, S… e L…, veio S…, habilitado como herdeiro do executado S… (tal como sucedeu com M…, através de sentença proferida no apenso B), deduzir oposição por embargos.

Fundamentou a sua pretensão alegando o seguinte:
Embora habilitado na qualidade de herdeiro do seu falecido pai, S… cedeu o seu quinhão hereditário a título gratuito a uma das herdeiras, a sua irmã M…, pelo que transmitiu a sua posição jurídica na herança.
A cessionária do quinhão e os demais herdeiros do falecido S… alienaram um dos imóveis, por escritura pública datada de 07-12-2016, e, posteriormente, por escritura pública datada de 24-02-2017, fizeram partilha da herança, sem a sua intervenção (que nada recebeu).
A partilha foi feita com reconhecimento por todos da cessão do quinhão hereditário à irmã a M….
Mais alega que, efetuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança (artigo 2098.º do CC), sendo que as obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores não são solidárias, não sendo ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança.
Na execução movida contra herdeiro só podem penhorar-se bens que ele tenha recebido do autor da herança, pelo que a prossecução da execução contra si é inútil e eventualmente geradora de responsabilidade civil (artigos 744.º, 784.º, n.º 1, c), e 858.º do CPC).
Concluiu pedindo a procedência dos embargos, extinguindo-se a execução, e requereu a suspensão da execução sem prestação de caução, nos termos do artigo 733.º, n.º 1, c) do CPC.

Por decisão proferida em 18-12-2020, foi decidido: «(…) com fundamento na sua manifesta improcedência, indefiro liminarmente os presentes embargos de executado e, consequentemente, julgo improcedente o pedido de condenação deduzido nos termos do art. 858º do CPC, considerando prejudicada a apreciação do requerimento de suspensão da execução sem prestação de caução.»

Inconformado, apelou o embargante, pugnando pela revogação da decisão e pela sua substituição por outra que admita liminarmente os embargos, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. O presente recurso vem interposto da douta sentença de fls, que invocando a irrelevância da celebração das escrituras de cessão gratuita de quinhão hereditário e de partilha da herança, considera manifesta a improcedência dos embargos, indeferindo-os liminarmente, nos termos do artigo 732.º nº 1 al c) do CPC, situação com a qual o embargante/executado, ora apelante, não se conforma, atento o disposto nos artigos 729.º e 731.º do código de processo civil.
II. A falta de apresentação de contestação em incidente de habilitação de herdeiros não equivale à assunção de responsabilidade pelo pagamento das dívidas da herança por parte do executado habilitado (cf. doutrina e jurisprudência dominantes).
III. As escrituras de habilitação de herdeiros, de cessão de quinhão hereditário e de partilha como documentos autênticos que são, cfr. arts. 370.º e ss. do Código Civil, fazem prova de que o apelante não participou na partilha e por isso nada recebeu.
IV. Existem regimes legais diferentes para a liquidação dos encargos da herança, conforme esta se mantenha ainda indivisa ou tenha sido já partilhada.
V. As disposições legais invocadas bem como as considerações tecidas na sentença recorrida sobre a responsabilidade solidária e o direito de regresso do alienante na alienação de quinhão hereditário (art.º 2128.º do C. Civil), não têm aplicabilidade após a partilha da herança quando o alienante do quinhão nada tenha recebido. Caso assim não fosse, deixariam de ter razão de ser ou de fazer qualquer sentido as disposições legais atinentes à partilha de herança, bem como as disposições referentes à penhora de bens, nomeadamente o disposto no artigo 744.º do CPC.
VI. A relevância das escrituras de cessão gratuita de quinhão hereditário e partilha resulta do facto de, em razão da sua celebração, no caso, o embargante nada ter recebido (e do facto de a responsabilidade pelo pagamento da dívida ser limitada aos bens provenientes de herança, cf. artº.s 2068.º a 2071.º do C. Civil).
VII. A herança, nos termos do artigo 2068.º do C. Civil, responde pelas dívidas do falecido – mas por tais dívidas respondem tão só os bens da herança (seja esta aceite a benefício de inventário ou aceite pura e simplesmente, posto que a diferença entre as duas formas de aceitação reside no ónus da prova relativamente à insuficiência dos bens herdados) e não já o património pessoal do herdeiro habilitado.
VIII. A substituição processual, a responsabilidade dos herdeiros pelo pagamento das dívidas do falecido e a qualidade dos bens que respondem pelas dívidas do falecido (artº 784º n.º1 al c) do CPC) são situações diferentes.
IX. Tendo cedido o seu quinhão (a outra herdeira, a título gratuito) e tendo os herdeiros do falecido realizada a partilha dos bens entre eles, não pode o executado habilitado responder pelas forças da herança, se nada recebeu. (artºs 2069.º e 2098.º a contrario, ambos do C. Civil).
X. O facto dos herdeiros já terem partilhado a herança, o embargante não ter participado na mesma, nada tendo recebido, impõem a admissibilidade dos embargos (bem como a sua procedência), por razões de economia processual (em consideração ainda do disposto no artº 130.º do CPC) e de elementar Justiça!
XI. Quando os prazos de apresentação sejam distintos, é em sede de oposição à execução mediante embargos de executado, e não em fase posterior (eventual) de oposição à penhora, que o tribunal deverá averiguar e decidir os termos e âmbito da responsabilidade do executado habilitado, em conformidade com a fundamentação aduzida.
XII. Não faz sentido e é injusto que o apelante tenha de aguardar por eventual penhora de bens pessoais - com os encargos e transtornos inerentes a toda e qualquer penhora - ficando à mercê do exequente, para obter uma decisão sobre o âmbito de uma responsabilidade que é limitada por lei, quando se pode (e deve) alegar e provar previamente (nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 729.º e 731.º do CPC, como fez o embargante) que, apesar de ser parte legítima, não possui os demais requisitos para responder pela dívida do falecido.
XIII. Ao indeferir liminarmente os embargos de executado, com fundamento na sua manifesta improcedência, o tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 729.º,731.º e732.º nº 1 al c) do Código de Processo Civil, bem como do disposto no artigo 744.º do mesmo diploma legal.
XIV. Mostra-se ainda violado, por erro de interpretação, entre outros, o disposto nos artigos 2068.º, 2069.º, 2071.º, 2098º a contrario e o 2128º do Código Civil.
XV. Não tendo o embargante deduzido qualquer pedido de condenação ao abrigo do disposto art.º 858.º do CPC, o qual tem como epígrafe “sanções do exequente”, não tendo reclamado quaisquer danos, nem invocada culpa da exequente, peca a decisão recorrida por excesso, ao julgar “improcedente o pedido de condenação deduzido nos termos do art. 858.º do C.P.C” o que, em qualquer caso, constitui nulidade, cf. al d) do n.º 1 do art.º 615.º do Código de Processo Civil, cuja reparação se requer.»

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Nulidade da decisão
- Responsabilidade do embargante em face da transmissão da sua posição jurídica na herança e posterior partilha da mesma sem a sua intervenção.

B- De Facto
Resulta dos documentos juntos com a petição de embargos, a seguinte factualidade:
1. Por escritura de habilitação dos herdeiros de S…, outorgada em 27-03-2015, L… declarou que eram herdeiros do seu falecido marido (S…), além dela própria, os filhos S… (ora embargante), L… e M….
2. Por escritura de cessão gratuita de quinhão hereditário, celebrada em 06-05-2015, S… doou a M… o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, S…, fazendo parte do acervo hereditário cinco imóveis ali discriminados, nos seguintes termos: (i) «metade do prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo 216 da Secção F, da Quinta do Anjo», (ii) «metade do prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da Quinta do Anjo»; (iii) «metade do prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da Quinta do Anjo»; (iv) «metade do prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da Quinta do Anjo» e (v) «metade do prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da Quinta do Anjo».
3. Em 25-02-2016 foi a escritura referida em 2. retificada no sentido da cessão gratuita também incluir os seguintes bens móveis: (i) «Metade do veículo automóvel de marca “Nissan” e modelo “Vanete Cargo (DVFVLDFC23), com matrícula “…”, com o valor de mil euros»; (ii) «Metade do veículo automóvel de marca “Mercedes Benz”, modelo C250 Turbo Diesel”, com matrícula “…”, com o valor atribuído de três mil euros» e ainda e as seguintes participações sociais: (i) «Metade da quota ou parte na sociedade com o NIPC 503183580, com o valor atribuído de seis mil duzentos e cinquenta euros» e (ii) «Metade da quota ou parte na sociedade com o NIPC 503183580, com o valor atribuído de dezoito mil setecentos e cinquenta euros».
4. Por escritura de compra e venda celebrada em 07-12-2016, L…, L… e M… venderam a T… o prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo 216 da Secção F, da Quinta do Anjo.
5. Por escritura de partilha da herança deixada por S…, celebrada em 24-02-2017, pelos herdeiros L…, L… e M… foram partilhados: Verba Um «prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da Quinta do Anjo» e Verba Dois «prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da Quinta do Anjo», tendo a verba um sido adjudicada a M… e a verba dois a L…, tendo estes pago tornas a L….
6. Não foi apresentada contestação no incidente de habilitação de herdeiros requerido em 15-01-2020.

III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO
Identificadas as questões decidendas, passemos à sua análise.
1. Nulidade da decisão
Alega o apelante na conclusão XV do seguinte modo: «Não tendo o embargante deduzido qualquer pedido de condenação ao abrigo do disposto art.º 858.º do CPC, o qual tem como epígrafe “sanções do exequente”, não tendo reclamado quaisquer danos, nem invocada culpa da exequente, peca a decisão recorrida por excesso, ao julgar “improcedente o pedido de condenação deduzido nos termos do art. 858.º do C.P.C” o que, em qualquer caso, constitui nulidade, cf. al d) do n.º 1 do art.º 615.º do Código de Processo Civil, cuja reparação se requer.»
Na pronúncia sobre a arguida nulidade, ao abrigo do artigo 617.º, n.º 1, do CPC, pronunciou-se o tribunal a quo em sentido negativo, remetendo para o artigo 18.º da petição de embargos, onde foi alegado: « De resto, uma vez que na execução movida contra herdeiro só podem penhorar-se bens que ele tenha recebido do autor da herança, a prossecução da Execução contra o ora Oponente é inútil (cf. artº 744.º e 784.º nº 1 al c) do CPC) e eventualmente geradora de responsabilidade civil (cf. artº 858º do CPC).»
Cumpre apreciar:
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente do excesso de pronúncia (conhecimento «ultra petitum»), que será aquela que estava na mente do apelante, atento o modo como fundamenta a arguição da nulidade, está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao conhecimento das questões não suscetíveis de serem apreciadas na sentença por não poderem ser conhecidas oficiosamente ou por não terem sido suscitadas pelas partes.
As questões em referência, que não meros argumentos ou razões, reportam-se à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa.
Estando em causa oposição à execução mediante embargos, como é o caso, essas questões reportam-se aos fundamentos da oposição previstos no artigo 728.º e seguintes, do CPC.
No caso, afigura-se-nos que o embargante não formulou qualquer pedido de condenação da exequente em termos da mesma incorrer em responsabilidade civil. Limitou-se a aludir a essa «eventual» responsabilidade por via do artigo 858.º do CPC.
Não suscitou, assim, uma questão em sentido técnico jurídico carecida de apreciação jurisdicional.
Por outro lado, a responsabilidade civil prevista no citado artigo 858.º do CPC não é de conhecimento oficioso.
Na decisão recorrida decidiu-se que a improcedência dos embargos «torna evidente a improcedência da pretensão deduzida ao abrigo do art. 858.º do CPC, cujo pressuposto é, desde logo, a procedência da oposição à execução (…)», o que significa, na verdade, que a questão não foi apreciada, por a sua apreciação estar dependente da apreciação dos embargos, ficando a mesma prejudicada pelo indeferimento liminar dos embargos.
Nesse sentido, não existiu qualquer apreciação jurisdicional à qual possa ser aposta a arguida nulidade por excesso de pronúncia.
Nestes termos, improcede este segmento do recurso.

2. Responsabilidade do embargante em face da transmissão da sua posição jurídica na herança e posterior partilha da mesma sem a sua intervenção
Na decisão recorrida, após se enunciar o regime de responsabilidade dos herdeiros pelos encargos da herança e do alienante do quinhão hereditário (artigos 2098.º e 2128.º do Código Civil), referenciando-se, ainda, o regime de penhora de bens movida contra o herdeiro previsto no artigo 744.º do CPC, escreveu-se na mesma o seguinte:
« Decorre do regime legal em apreço que o herdeiro, além de ter de fazer prova que o bem penhorado não proveio da herança, tem de demonstrar que não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros bens foram aplicados em solver os encargos da herança; mas de tal regime não resulta que um herdeiro não suceda nos direitos e obrigações do falecido do autor da herança, mesmo que este não tenha deixado bens, apenas que o herdeiro pode requerer o levantamento da penhora de bens que não tenha recebido do autor da herança.
Parece, pois, que o fundamento em análise apenas terá cabimento em sede de oposição à penhora, no caso de caso virem a ser penhorados bens do embargante, mas que não constitui fundamento que obste à produção dos efeitos do título executivo (…).
E ponto é que o incidente de habilitação de herdeiros foi considerado procedente, julgando-se o embargante habilitado para com ele prosseguirem os demais termos da execução.»
Concluindo do seguinte modo:
«Dito isto se diz, então, que a improcedência dos embargos é manifesta, impondo-se por isso proferir decisão de indeferimento liminar, nos termos do art. 732º, n.º 1, c) do CPC.»
Discorda o apelante, invocando, essencialmente, que não se aplica o disposto no artigo 2128.º do Código Civil, quando o herdeiro cedeu o seu quinhão hereditário e ocorreu partilha da herança nada tendo o alienante recebido.
Cumpre apreciar.
Como prescrevem os artigos 2068.º e 2069.º do Código Civil, a herança (que em sentido técnico-jurídico abrange «um conjunto de bens patrimoniais, activos e passivos, em geral, todos os pertences de certa pessoa falecido no momento da sua morte»[1]), responde pelos encargos da mesma, nos quais se incluem as dívidas do falecido.
É com a abertura da sucessão, no momento da morte do seu autor, que se dá o chamamento dos sucessíveis à titularidade das relações jurídicas do falecido (artigos 2031.º e 2032.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que os efeitos da aceitação retroagem ao momento da abertura da sucessão (artigo 2050.º, n.º 2, do Código Civil), ou seja, considera-se como se sempre tivesse incidido sobre os bens que lhe foram atribuídos.
Os herdeiros, definidos no artigo 2030.º do Código Civil, são os que sucedem na totalidade ou numa quota do património do falecido.
Assim, os herdeiros sucedem no património considerado no seu todo, uno, património como universalidade jurídica de bens. Sendo vários herdeiros, sucedem numa quota parte dele. Mas, sempre, quota parte de uma universalidade.
Os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos encargos da herança (artigo 2097.º do Código Civil).
A responsabilidade dos herdeiros está limitada às forças da herança: os herdeiros apenas respondem pelas dívidas do de cujus na medida daquilo que tenham recebido em herança (intra vires hereditatis), e não para além delas (ultra vires) com os seus bens próprios.

O artigo 2068.º do Código Civil deve ser conjugado com o artigo 2071.º do mesmo diploma, epigrafado «Responsabilidade da herança»:

«1. Sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos efectivos os bens inventariados, salvo se os credores ou legatários provarem a existência de outros bens.

2. Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que, na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos.»

Este artigo regula a questão do ónus da prova quanto à existência de bens: na primeira situação ─ aceitação a benefício do inventário ─ cabe ao credor a prova da existência de outros bens para além daqueles que figuram no inventário; no segundo ─ aceitação pura e simples ─ cabe ao devedor provar que os bens que recebeu são insuficientes, sob pena de eventualmente responder com bens próprios.

No caso de herança indivisa, isto é, antes da partilha, existe uma universalidade composta por património autónomo, de afetação especial. Os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens, mas apenas titulares em comunhão de tal património.[2]

Nessa situação, os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos em conformidade com o disposto no artigo 2091º.

Assim, o credor da herança que pretenda exigir judicialmente o seu crédito apenas poderá fazê-lo contra todos os herdeiros.

Após a partilha da herança, não existe qualquer solidariedade entre os herdeiros para com os credores, passando cada um deles a responder – individual e diretamente, como titular da respetiva universalidade jurídica constituída pelo conjunto de bens que integram a quota hereditária que lhe coube na partilha – pelo pagamento da dívida, mas apenas na proporção da quota que lhe coube na herança, tendo por limite o valor do quinhão recebido (artigos 2098.º e 2071.º) e tendo em atenção que o património pessoal do herdeiro nunca será afetado e não poderá ser penhorado para satisfação desse crédito (artigo 744.º do CPC)[3].

O referido artigo 744.º do CPC regula precisamente a situação da penhora na execução contra o herdeiro, dispondo o n.º 1 do preceito: «Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se bens que ele tenha recebido do autor da herança.». Os números 2 e 3 do mesmo normativo regulam a situação em que a penhora recaia sobre outros bens e modo de reação do herdeiro afetado pela mesma.

Sucede, porém, que cada co-herdeiro pode alienar o seu direito ou fazer cessar a indivisão, requerendo a partilha, sendo esse direito irrenunciável (artigo 2101.º, n.º 1 e 2, do Código Civil).

A alienação da herança encontra-se regulada nos artigos 2124.º e seguintes do Código Civil, estipulando o artigo 2124.º que a alienação da herança ou do quinhão hereditário, em regra, está sujeita às disposições de negócio jurídico que lhe der causa.

Como refere CARVALHO FERNANDES, a alienação da herança ou do quinhão hereditário como resposta a um conjunto de bens, tomados uti universum, «só pode ocorrer após a aceitação e antes da partilha», pois «Previamente àquele acto, só o direito de suceder pode estar em causa; após a partilha, a alienação passa a referir-se aos bens determinados que tenham preenchido a posição do herdeiro.»[4]

A alienação pode ocorrer por via de um ato oneroso ou gratuito. Trata-se de uma situação semelhante à que ocorre na cessão de créditos (artigos 577.º e sgs do Código Civil) em que são admitidas várias causas jurídicas, por exemplo, a compra e venda, a dação em cumprimento, a troca, a doação, etc.

“Pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa, que abrange, v. g., direitos de gestão (art.º 2091.º do CC), direitos à recepção de rendimentos (art.º 2092.º do CC) e direitos de exigir a partilha e de composição da quota (art.º 2101.º do CC).(...).»[5]

Porém, no concernente aos encargos da herança, há que tomar em conta o regime do artigo 2128.º do Código Civil, que estipula do seguinte modo: «O adquirente de herança ou do quinhão hereditário sucede nos encargos respetivos; mas o alienante responde solidariamente por esses encargos, salvo o direito de haver do adquirente o reembolso total do que assim houver despendido.»

Na interpretação deste preceito, refere CARVALHO FERNANDES:

«A regra [que decorre do citado preceito] é a de o adquirente assumir também os encargos, independentemente de a alienação ser a título oneroso ou gratuito (primeira parte do artº 2128.º).

Contudo, o funcionamento pleno desta regra podia acarretar prejuízo para terceiros, nomeadamente para os credores da herança.

Daqui resulta que a segunda parte do preceito determine a responsabilidade solidária do alienante pelos encargos da herança.

Assim, se tutela a posição de terceiros.

Contudo, nas relações internas entre alienante e adquirente, aquele tem o direito de haver deste, a título de regresso, o valor total dos encargos por ele satisfeitos.»[6]

Torna-se compreensível este regime se atentarmos na possibilidade do prejuízo adveniente para terceiros resultar do adquirente da herança, responsável pelos encargos, poder não possuir a mesma solvabilidade patrimonial que o alienante.

Por outro lado, o alienante da herança responde perante os terceiros beneficiários do encargo, não subsidiariamente, não tendo o benefício da excussão, como seria próprio do fiador (artigos 627.º, n.º 2, e 638.º, n.º 1, do Código Civil), mas solidariamente, tal como em princípio responderia, se não tivesse alienado a herança ou o quinhão.[7]

Como refere OLIVEIRA ASCENSÃO, «O herdeiro, dada a sua posição pessoal, continua vinculado pelos encargos, mas os bens mantêm a responsabilidade, não se podendo por negócio jurídico desafectá-los. Por isso o alienante responde solidariamente por esses encargos. Tem, porém, nos termos do artigo 2128.º, o direito ao reembolso total do que houver assim dispendido.»[8]

Assim, a responsabilidade solidária do alienante significa, como decorre do artigo 515.º, n.º 1, do Código Civil, que responde coletivamente pela totalidade da dívida; efetuada a partilha, cada co-herdeiro responde nos termos do artigo 2098.º do mesmo Código, ou seja, na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.

Feita esta breve resenha dos preceitos a convocar para a resolução da questão em análise, verifica-se, então, que o ora apelante, herdeiro do de cujus, antes da partilha do acervo hereditário, procedeu à cessão gratuita do seu quinhão hereditário a outra co-herdeira, sua irmã.

Como decorre do regime supra exposto, o ora apelante tinha o direito de alienar livremente o seu quinhão hereditário, mormente por negócio gratuito, como sucedeu no caso em apreço. O que não prejudicou a indivisão do acervo hereditário, que o impedia de alienar bens determinados.

Até à partilha, a responsabilidade do alienante é solidária com o adquirente em relação aos encargos da herança, ou seja, em relação a dívidas da mesma, sem prejuízo do direito de regresso que se estabelece nas relações internas entre alienante e adquirente.

No caso, o apelante alineou o seu quinhão hereditário antes da partilha e esta veio a ser efetuada posteriormente como decorre dos autos.

Desse modo, a lei determina a cessação da responsabilidade solidária entre alienante e adquirente, não existindo prejuízo para terceiro que pode, então, agir coativamente contra o adquirente para haver dele o valor do seu crédito.

Sucede, porém, que resulta da consulta dos documentos juntos aos autos que a partilha não abrangeu todos os bens que compõem o acervo hereditário e que integravam o quinhão hereditário do alienante.

Efetivamente, a herança é composta por bens imóveis, móveis e participações sociais.

A cessão do quinhão, como decorre do que vem sendo dito, equivale à transmissão do direito sobre todos os bens da herança, o que significa que não podem ser cedidos direitos sobre bens em concreto com exclusão de outros, pois o que se cede é o direito sobre todos os bens.

Do mesmo modo, a cessão do quinhão hereditário do ora apelante abrangeu também as responsabilidades da herança no pagamento de dívidas do falecido, ou seja, foi transmitido para a esfera jurídica da adquirente, irmã do apelante, Maria Dolores Cardoso, esse direito considerado no momento da transmissão como idealmente definido, uma vez que a herança ainda se encontrava ilíquida e indivisa, i.e., sem ainda estar definido os quinhões dos herdeiros.

Posteriormente, veio a verificar-se a partilha.

Todavia, como evidenciam os documentos juntos aos autos, um dos imóveis (o inscrito na matriz 2… secção F) foi vendido antes da partilha a um terceiro, tendo outorgado como vendedores a viúva e os filhos (sem intervenção do ora apelante).

Outros dois imóveis (inscritos, respetivamente, na matriz 1… e 10…), foram objeto de partilha entre a viúva e os dois filhos (sem intervenção do ora apelante).

Os dois imóveis inscritos sobre a matriz 2… e 5…, bem como os móveis e as participações sociais, não foram partilhados.

O que significa que apenas foi realizada uma partilha parcial.

E sendo assim, por via do artigo 2128.º do Código Civil, em relação aos bens que não foram partilhados, o alienante responde solidariamente com a adquirente pelos encargos da herança enquanto não ocorrer a partilha dos mesmos.

Até lá, os bens da herança indivisa, ainda que parcialmente, respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos, respondendo o alienante solidariamente com o adquirente da cessão do quinhão hereditário (artigo. 2068.º, 2071.º, 2091.º, 2098.º, 2124.º e 2128.º do Código Civil).

Resultando dos autos que o alienante/embargante foi julgado habilitado na qualidade de herdeiro do seu falecido pai, para assumir na execução a posição que o mesmo ocupava (de executado), na parte em que a herança se encontra partilhada, as obrigações dos herdeiros da herança em relação aos encargos da herança, e perante os credores, não são solidárias, (respondem apenas na proporção da sua quota, não a excedendo, independentemente dos concretos bens que forem penhorados); enquanto em relação à obrigação dos herdeiros, incluindo o ora apelante, na parte não partilhada, quanto aos encargos da herança, mantêm-se a regra da solidariedade (artigos 512.º, 513.º e 2098.º do Código Civil).

Desde que o artigo 744.º do CPC seja aplicado com estes pressuposto, não existe qualquer violação do regime substantivo da penhora dos bens que integram(vam) a herança do falecido executado.

Em suma, ainda que a decisão recorrida não tenha diferenciado as questões jurídicas efetivamente colocadas na situação em apreço e não tenha retirado da partilha (parcial) os efeitos juridicamente relevantes para a situação em apreço (o que não impede a sua análise nesta sede - artigo 5.º, n.º 3, do CPC), não se pode deixar de corroborar a mesma por centrar a análise dos fundamentos da eventual oposição na concreta penhora que venha a ocorrer nos autos.

E deste modo, em face de todo o exposto, improcede a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.

Évora, 28-10-2021
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] CARVALHO FERNANDES, Lições de Direito das Sucessões, QJ, 2008, p. 348.
[2] CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, II Vol., 1980-82, pp.113 e 114.
[3] RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit., p. 118.
[4] CARVALHO FERNANDES, o. Cit. p. 327-328.
[5] RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit, p. 89 e ss.
[6] CARVALHO FERNANDES, ob. cit., p. 330.
[7] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, 209 (3).
[8] OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Sucessões, Coimbra Editora, p. 456.