Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
81/10.9EAFAR.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
MODALIDADE AFIM
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 03/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. A questão de saber se a máquina de jogos que foi apreendida nestes autos e aquela que esteve na base do acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/10, de 4 de Fevereiro, tem características idênticas é questão normativa a decidir com base nos factos que integram o objeto do processo, sendo, nesta fase, a acusação que o fixa, independentemente do meio de prova que fundamenta a respetiva indiciação.

2. Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto -Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redação do Decreto -Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador se limita a introduzir a moeda, o prémio depende essencialmente da sorte e consiste no direito a uma quantia em dinheiro (ou objeto) se o número ou combinação de números contida na cápsula plástica coincidir com número ou combinação pré-determinada e publicitada junto à máquina.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no 2º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, o MP deduziu acusação contra Carlos A e João G, a quem imputa a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos artigos 1º, 3º, n.º 1, 4º, n.º 1, alínea f), e 108º, todos do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro.

2. – Distribuídos os autos para julgamento, a senhora juiz a quo rejeitou a acusação no despacho a que se reporta o art.º 311º do CPP, cuja cópia integral é do seguinte teor:

« CONCLUSÃO - 30-05-2011

(Termo electrónico elaborado por Escrivão de Direito ---)

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Registe e autue como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.
*
O Tribunal é o competente.
O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.
Não existem excepções ou nulidades que obstem à apreciação do mérito da causa
e que cumpra, neste momento, conhecer.
*
A fls. 185 a 192 foi deduzida acusação contra os arguidos Carlos A.. e João G.., a quem foi imputada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos artigos 1º, 3º, n.º 1, 4º, n.º 1, alínea f), e 108º, todos do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro.

Os factos praticados pelos arguidos, tal como se encontram descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, consistiram no fornecimento e exploração de uma máquina de jogo cuja existência foi detectada no estabelecimento comercial identificado nos autos.

Com efeito, resulta do teor do despacho de acusação deduzido nestes autos que a referida máquina continha a indicação “1 moeda 1€” e um número indeterminado de cápsulas ovais de plástico no seu interior, cada uma das quais continha, por sua vez, três senhas.

Acresce que, junto da referida máquina e associado à mesma, estava um cartaz com um plano de prémios com a seguinte estrutura: 1 prémio de 60 Euros; 2 prémios de 50

Euros; 5 prémios de 25 Euros; 5 prémios de 20 Euros; 7 prémios de 10 Euros; 30 prémios de 5 Euros.

Acontece que, para activar o jogo a que se tem vindo a aludir, o jogador introduz uma moeda de € 1,00 no moedeiro existente para o efeito na parte frontal da máquina e, em seguida, ao rodar o manípulo, recebe uma das cápsulas ovais de plástico transparente que se encontram no interior da máquina.

Ora, em conformidade com a descrição efectuada no despacho de acusação deduzido nestes autos, duas das três senhas que se encontram no interior de cada cápsula contêm um desenho na parte superior e um texto na parte inferior, enquanto a terceira senha contém a referência a um número de série na parte superior e um número constituído por três dígitos na parte inferior.

Abertas as senhas, existem três resultados ou combinações possíveis, na medida em que se a senha tiver apenas um desenho e um pequeno texto, sem qualquer referência à série e sem qualquer numeração composta pelos três dígitos a que se aludiu, apenas resta ao jogador tentar novamente a sua sorte, adquirindo outra cápsula oval pelo valor de € 1,00.

Se a senha contiver a referência a um número de série e, na base, um número constituído por três dígitos que não coincida com nenhum dos 50 números constantes do quadro de prémios, o jogador também não terá direito a qualquer prémio, apenas lhe restando tentar novamente a sua sorte, adquirindo outra cápsula pelo valor de € 1,00.

Ao invés, se a senha contiver a referência a um número de série e, na parte inferior, um número constituído por três dígitos que coincida com um dos 50 números constantes do quadro de prémios, retira-se o losango do cartaz que deixa a descoberto o prémio monetário ganho pelo jogador, o qual pode variar entre o mínimo de € 5,00 e o máximo de € 60,00.

Antes de mais, impõe-se atender às normas que, em conformidade com o teor do despacho de acusação deduzido nestes autos, prevêem e punem o ilícito criminal imputado aos arguidos.

Como decorre da definição constante do artigo 1º do diploma legal já citado, “jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”.

Já o artigo 3º, n.º 1, do mesmo diploma, estatui que “a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6º a 8º”.

Acresce que, em conformidade com o preceituado no artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, “nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar: (...) f) jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas”.

Por último, resulta do disposto no artigo 108º, n.º 1, do Decreto-Lei a que se tem vindo a aludir, que “quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois anos e multa até 200 dias”, acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito legal que “será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora”.

Mas, para além da legislação aplicável, é também relevante atender à Jurisprudência já uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça a propósito da qualificação da exploração de jogos como consubstanciando a prática de um crime ou de uma contraordenação.

Na verdade, em conformidade com o preceituado no artigo 445º, n.º 3, do CPP, “a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”.

Ora, como é sabido, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 4/2010, proferido a 4 de Fevereiro de 2010 e publicado no Diário da República n.º 46, 1ª Série, de 8 de Março de 2010, pág. 672, resolveu já um conflito surgido a propósito da natureza de jogo de fortuna ou azar ou de modalidade afim de um jogo em tudo idêntico àquele a que se reporta o despacho de acusação deduzido nestes autos.

Na verdade, também o mencionado Acórdão diz respeito a máquinas que, de acordo com a síntese aí efectuada, revestem as seguintes características essenciais: «máquinas de jogos constituídas por um expositor, com estrutura metálica e plástica, contendo no seu interior centenas de bolas de forma oval em plástico, cada uma com três senhas, e cuja parte inferior é dotada de um dispositivo que efectua a troca mecânica de uma moeda de 100$ ou de 50 cêntimos, por uma bola plástica; um cartaz tendo, para além do mais, a legenda ‘sorteio dos bons chocolates’ (ou outro de natureza equivalente), um plano de prémios convencionado (de 500$ ou € 2,50 a 10 000$ ou € 50); em todas as máquinas, a única actuação desenvolvida pelo jogador consiste na introdução de uma moeda de 100$ ou de 50 cêntimos na máquina; a introdução da moeda faz sair da máquina, seleccionada de forma totalmente aleatória, uma cápsula de plástico, ficando o jogador na expectativa de receber um prémio em dinheiro caso as três senhas contidas no interior da cápsula, uma ou mais, tenha escrito um número que seja coincidente com outro inscrito no cartaz; nas situações em que a numeração constante da senha não coincidia com as existentes no cartaz, o jogador não tinha direito a qualquer prémio.”.

Antecipando, desde já, conclusões, dir-se-á que, no Acórdão de fixação de Jurisprudência citado, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que os jogos a que se tem vindo a aludir constituem modalidades afins, podendo, portanto, constituir fundamento de responsabilidade contra-ordenacional dos infractores, e não jogos de fortuna ou azar que possam fazer incorrer os mesmos em responsabilidade criminal.

Na verdade, em conformidade com a Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, “constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público”. De facto, sustenta o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão citado, que os jogos atrás identificados não se encontram abrangidos por nenhuma das alíneas do n.º 1, do artigo 4º, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro.

Citando novamente o Acórdão de Fixação de Jurisprudência a que se tem vindo a aludir, importa referir que “os jogos nas máquinas automáticas em causa nos acórdãos em conflito (...) se apresentavam resultados que dependiam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não desenvolviam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas. Por conseguinte, não podiam ser enquadradas em qualquer dos tipos de jogos de fortuna ou azar praticados em máquinas automáticas, tal como descritos nas referidas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, revertendo, antes, para as modalidades afins referidas no artigo 159.º, pois constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas. É certo que os referidos jogos proporcionavam também prémios em coisas com valor económico e em dinheiro, ou só em dinheiro, mas tal circunstância, se não é permitida pelo artigo 161.º, n.º 3, do referido diploma legal, também não é suficiente, por si só, para integrar a «específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar», como se diz no acórdão fundamento. (...) o tipo legal de crime é dotado de uma certa rigidez, que o constitui como tipo de garantia, sendo essa precisamente uma das manifestações do princípio da legalidade. Assim, aquela circunstância não retira aos jogos em causa a natureza de modalidade afim. Acresce que a tutela penal adscrita à proibição dos jogos de fortuna ou azar fora dos locais autorizados encontra fundamento, como se viu (...), em valores de relevante ressonância ético-social, nomeadamente pelos efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial mas também de carácter pessoal (vida, integridade física, ameaça, coacção) que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de descontrolo pode acarretar. Tal não sucede relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente.”.

A ser assim, e não se vislumbrando qualquer fundamento para divergir da Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não poderá deixar de se concluir que o jogo que se encontra descrito na acusação deduzida no âmbito dos presentes autos é susceptível de consubstanciar apenas uma modalidade afim, e não um jogo de fortuna ou azar.

Nestes termos, como já foi dito e decorre do disposto nos artigos 159º, n.º 1, 161º, n.º 1, e 163º, n.º 1, 3 e 4, do Decreto-Lei atrás citado, os factos imputados aos arguidos são susceptíveis de consubstanciar, em abstracto, a prática de um ilícito de natureza contraordenacional e não de qualquer crime.

Como decorre do preceituado no artigo 311º, n.º 2, do CPP, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.

Por seu turno, conforme esclarece o n.º 3 do mesmo preceito do CPP, “para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

(...) d) se os factos não constituírem crime”.

Assim, por considerar que os factos imputados aos arguidos nestes autos não consubstanciam a prática do crime de exploração de jogo de fortuna ou azar, p. e p. pelos artigos 1º, 3º, n.º 1, 4º, n.º 1, alínea f), e 108º, todos do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, que lhes foi imputado, nem de qualquer outro ilícito de natureza criminal, decido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 185 a 192.

Em face do exposto, e atentos os motivos indicados, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos Carlos A.. e João G... e, em consequência, declaro extinto o procedimento criminal contra os mesmos instaurado.

Notifique.
*
Após trânsito em julgado do despacho que antecede, extraia certidão de todo o processado e remeta a mesma à ASAE, a fim de, enquanto entidade autuante e aproveitando os actos já praticados, desencadear o competente procedimento contra-ordenacional.
(…)

Albufeira, 22/07/2011 »

3. - Daquele despacho vem interposto o presente recurso pelo MP, que extrai da sua motivação as seguintes

« conclusões:

1) Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos, imputando-lhes a prática de factos susceptíveis de integrar o cometimento de um crime de a prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelos artigos 1º, 3º n.º1, 4º n.º1 f) e 108, todos do Decreto-lei n.º422/89, de 2/12.

2) Distribuídos ao 2º Juízo deste Tribunal, foram os autos conclusos à Mª Juíza que, decidiu rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, uma vez que os factos constantes na mesma não constituíam crime.

3) Baseia tal interpretação com a fixação de jurisprudência determinada pelo Ac. n.º4/2010 do STJ, no qual é dito que constitui modalidade afim e não jogo de fortuna ou azar a situação de jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso do número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.

4) Não terá, contudo, razão a Mma. Juíza, salvo o devido respeito.

5) De facto, desde logo porque nos autos temos um relatório pericial a material de jogo onde são relatadas características da máquina susceptíveis de a poder denominar como de jogo de fortuna e azar e não de modalidades afins, relatório pericial esse que não foi colocado em causa.

6) Depois, porque não se pode considerar que a situação dos autos se refira a uma máquina como as descritas no douto Ac. do STJ n.º4/2010 sem que se proceda a audiência de discussão e julgamento, onde seja analisado o relatório pericial e feita a prova apresentada no despacho de acusação.

7) Ora, mesmo respeitando a leitura jurídica do douto despacho a quo, alegadamente resultante de Jurisprudência fixada, entendemos, no entanto, que tal não era motivo suficiente para rejeição da acusação.

8) Com efeito, tem sido entendido que a acusação só pode ser rejeitada por manifestamente infundada, desde que, por forma clara, flagrante e para além de qualquer dúvida razoável, seja desprovida de fundamento, ou por ausência de factos que a sustentem ou porque os factos nela descritos não integram qualquer norma jurídico-legal, constituindo a realização de julgamento evidente violência desnecessária para o arguido.

9) Havendo dúvidas se os factos descritos na acusação constituem crime, dado que tal subsunção à norma jurídica violada é objecto de debate e de discórdia jurisprudencial, tal dúvida deverá aproveitar à continuação da acção penal, já que a putativa inexistência de crime não é algo pacífico e manifesto, como exige o corpo do artigo 311º, nº 2, al. a) ao integrar a expressão “manifestamente infundada”.

10) Os factos vertidos na acusação constituem inexoravelmente crime, sendo certo que dessa peça processual constam todos os demais requisitos previstos no nº 3 do artigo 311º, do Código de Processo Penal.

11) Mesmo que a subsunção de tais factos ao cometimento do crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelos artigos 1º, 3º n.º1, 4º n.º1 f) e 108, todos do Decreto-lei n.º422/89, de 2/12, possa ser objecto de controvérsia jurisprudencial, a mera defesa da tese que nega tal subsunção, não pode conduzir à automática rejeição da acusação, nos termos do artigo 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do CPP..

12) Ao não receber a acusação, a Mmª Juíza “a quo” violou o disposto nos artigos 1º, 3º n.º1, 4º n.º1 f) e 108, todos do Decreto-lei n.º422/89, de 2/12 e o disposto no artigo 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do CPP.

13) Deve, pois, o douto despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido e que designe data para julgamento do mesmo pela autoria material do crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelos artigos 1º, 3º n.º1, 4º n.º1 f) e 108, todos do Decreto-lei n.º422/89, de 2/12.

TERMOS EM QUE, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE O DOUTO DESPACHO ORA RECORRIDO, SUBSTITUINDO-SE POR OUTRO ONDE SE RECEBA A ACUSAÇÃO NOS SEUS EXACTOS TERMOS FACTUAIS E NORMATIVOS E ONDE SE DESIGNE DATA PARA A REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO.»

4. Notificado da interposição do recurso, o arguido nada disse.

5. Nesta Relação, o senhor Procurador Geral Adjunto, limitou-se a apor o seu visto. No entanto, por lapso, foi por nós ordenado e cumprido o disposto no art. 417º nº2 CPP.

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são, essencialmente, duas:

- Saber se a máquina apreendida nos autos é idêntica à considerada no acórdão de fixação de jurisprudência (AFJ) do STJ nº 4/2010, com vista a decidir se a questão jurídico-penal objeto do despacho recorrido e do presente recurso é a mesma que foi decidida naquele AFJ;

- Subsidiariamente, entende o MP recorrente que não devia ter sido rejeitada a acusação, porquanto a subsunção dos factos à norma alegadamente violada é objeto de debate e discórdia jurisprudencial, pelo que tal dúvida deve aproveitar à continuação da ação penal.

2. Decidindo

2.1. – A questão jurídico-penal objeto do despacho recorrido e do presente recurso é a mesma que foi decidida no AFJ nº 4/2010 do STJ?

Nesta sede acrescenta o MP recorrente que não pode decidir-se se a situação dos autos se refere a uma máquina como as descritas no douto Ac. do STJ n.º4/2010 sem que se proceda a audiência de discussão e julgamento, onde seja analisado o relatório pericial e feita a prova apresentada no despacho de acusação.

2.2.1. - Começando por esta última questão, é manifesta a falta de razão do recorrente, porquanto a perícia à máquina não é posta em causa no despacho recorrido, que apenas se atém à narração e descrição dos factos feita pelo MP na acusação, com base na qual é feita a imputação ao arguido do tipo penal indicado naquela mesma acusação. A questão de saber se a máquina tem características idênticas em ambos os processos é questão normativa a decidir com base nos factos que integram o objeto do processo, sendo nesta fase a acusação que o fixa, independentemente do meio de prova que fundamenta a respetiva indiciação.

2.1.2. - Quanto à identidade da questão jurídica decidida afirmativamente no despacho recorrido e no AFJ 4/2010, o MP recorrente qualifica tal conclusão de duvidosa porque, conforme diz, nos autos temos um relatório pericial a material de jogo onde são relatadas características da máquina suscetíveis de a poder denominar como de jogo de fortuna e azar e não de modalidades afins, relatório pericial esse que não foi colocado em causa.

Não indica, porém, que caraterísticas são essas e a verdade é que não se vislumbra diferença relevante entre a descrição da máquina objeto dos presentes autos e a que se descreve no processo onde foi proferido o AFJ 4/2010, de tal forma que pudéssemos afirmar não estar perante a mesma questão de direito em ambos os processos.

Vejamos:

No processo recorrido considerado no AFJ 4/2010 estavam em causa máquinas de jogo que, na síntese feita no acórdão que decidiu a questão preliminar colocada naquele mesmo AFJ, tinham as seguintes características essenciais:

«Máquinas de jogos constituídas por um expositor, com estrutura metálica e plástica, contendo no seu interior centenas de bolas de forma oval em plástico, cada uma com três senhas, e cuja parte inferior é dotada de um dispositivo que efectua a troca mecânica de uma moeda de 100$ ou de 50 cêntimos, por uma bola plástica;

Um cartaz tendo, para além do mais, a legenda ‘sorteio dos bons chocolates’ (ou outro de natureza equivalente), um plano de prémios convencionado (de 500$ ou € 2,50 a 10 000$ ou € 50);

Em todas as máquinas, a única actuação desenvolvida pelo jogador consiste na introdução de uma moeda de 100$ ou de 50 cêntimos na máquina;

A introdução da moeda faz sair da máquina, seleccionada de forma totalmente aleatória, uma cápsula de plástico, ficando o jogador na expectativa de receber um prémio em dinheiro caso as três senhas contidas no interior da cápsula, uma ou mais, tenha escrito um número que seja coincidente com outro inscrito no cartaz;

Nas situações em que a numeração constante da senha não coincidia com as existentes no cartaz, o jogador não tinha direito a qualquer prémio

Por sua vez a máquina em causa nos presentes autos é descrita na acusação e parcialmente transcrita no despacho recorrido, nos seguintes termos:

- «… a referida máquina continha a indicação “1 moeda 1€” e um número indeterminado de cápsulas ovais de plástico no seu interior, cada uma das quais continha, por sua vez, três senhas.

Junto da referida máquina e associado à mesma, estava um cartaz com um plano de prémios denominado As Grandes Catástrofes com a seguinte estrutura: 1 prémio de 60 Euros; 2 prémios de 50 Euros; 5 prémios de 25 Euros; 5 prémios de 20 Euros; 7 prémios de 10 Euros; 30 prémios de 5 Euros.

Para activar o jogo o jogador introduz uma moeda de € 1,00 no moedeiro existente para o efeito na parte frontal da máquina e, em seguida, ao rodar o manípulo, recebe uma das cápsulas ovais de plástico transparente que se encontram no interior da máquina.

Dessas senhas duas apresentam um desenho (em cima) e um texto na base e um número constituído por três dígitos.

(…) Se este número coincide com um dos 50 números constantes do quadro de prémios, retira-se o losango que cobre o prémio monetário ganho pelo jogador e que pode variar entre o mínimo de 5 euros e o máximo de 60 euros.».

Conforme se explicita na acusação, as demais combinações possíveis não dão direito a qualquer prémio.

Resulta igualmente da descrição do modo de funcionamento da máquina que a única atuação desenvolvida pelo jogador consiste na introdução de uma moeda de 1 € na mesma máquina.

Cotejando ambas as descrições, não restam dúvidas de que as máquinas são idênticas nos aspetos relevantes, nomeadamente à luz da fundamentação do citado AFJ 4/2010, tal como nesse acórdão se julgaram idênticas as máquinas em causa no acórdão recorrido (do STJ) e no acórdão fundamento (R. Lisboa).

Em ambos os tipos de máquina o jogador limita-se a introduzir a moeda, o prémio depende essencialmente da sorte e consiste no direito a uma quantia em dinheiro (ou objeto) se o número ou combinação de números contida na cápsula plástica coincidir com número ou combinação pré-determinada e publicitada junto à máquina.

Ora, com base em factualidade em tudo semelhante à que está em causa nestes autos, decidiu o citado AFJ que “Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto -Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto -Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.».

Bem andou, pois, a sentença recorrida ao concluir pela identidade de situações, no plano dos factos e do direito, entre o caso dos presentes autos e o que fundamentou o citado AFJ 4/2011, bem como no entendimento de que (não havendo fundamento para divergir da jurisprudência fixada pelo STJ - cfr art. 445º nº 3 do CPP), o jogo que se encontra descrito na acusação deduzida no âmbito dos presentes autos é suscetível de constituir apenas uma modalidade afim, e não um jogo de fortuna ou azar, pelo que os factos imputados aos arguidos são suscetíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática de um ilícito de natureza contraordenacional e não de qualquer crime, tal como naquele AFJ se decidiu perante a mesma questão jurídico-penal, com os fundamentos aí longamente expostos e para os quais se remete.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

2.3. – Não obstante, o tribunal recorrido não devia ter rejeitado a acusação com fundamento no disposto na al. d) do nº3 do art. 311º do CPP porque a questão é debatida e controvertida na jurisprudência, conforme é entendimento do MP recorrente? – Também a este respeito entendemos que não tem razão o recorrente, por duas ordens de razões.

2.3.1. - Em primeiro lugar, porque no caso presente não estamos perante questão que divide a jurisprudência no sentido em que, pensamos, o MP recorrente coloca a questão. Na verdade, tendo sido proferido AFJ sobre a questão de direito controvertida, a regra é a de que os tribunais seguirão o entendimento que no STJ fez vencimento, pois só desse modo os acórdãos fixadores ou uniformizadores de jurisprudência podem desempenhar eficazmente a relevante função que desempenham no nosso sistema processual, onde a divergência jurisprudencial tem sempre o sentido de um desvio – ainda que inevitável – ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e os tribunais.

A uniformidade de jurisprudência declarada dentro do condicionalismo processualmente previsto é, no nosso sistema jurídico, um valor a preservar, conforme decorre da parte final do nº3 do art. 445º do CPP, segundo o qual os tribunais devem fundamentar especialmente as divergências relativas à jurisprudência fixada, o que não se confunde com a mera adesão à posição vencida no AFJ. A divergência relevante ocorrerá, antes, em casos de nova argumentação não considerada no AFJ, nomeadamente fruto de evolução da doutrina ou jurisprudência após a prolação do acórdão ou quando alterações significativas na composição do STJ implique que uma nova maioria deixou de defender a posição que fizera vencimento[1]. A abertura da lei de processo a decisões divergentes visa evitar a rigidez jurisprudencial, valorizando as ideias de independência dos tribunais e de igualdade dos cidadãos perante a lei[2], e não manter em aberto indefinidamente a divergência jurisprudencial que deu origem à intervenção uniformizadora do STJ.

2.3.2. – Em segundo lugar, porque o entendimento segundo o qual o juiz presidente não deve rejeitar a acusação nos termos do art. 311º nº3 d) quando se verifique divergência jurisprudencial (ou também doutrinária?) sobre a qualificação dos factos como crime, carece de fundamento legal, tanto em face do texto da lei, que não distingue, quer, sobretudo, em atenção à natureza e função do despacho a que se reporta o art. 311º do CPP.

Trata-se de despacho judicial de saneamento do processo, que visa na maioria das situações nele previstas, nomeadamente nos casos de rejeição com fundamento na al. d) do seu nº3, evitar que continue para julgamento processo cuja improcedência é já certa, evitando-se desse modo sujeitar o arguido a audiência desnecessária, bem como a prática de atos inúteis, com o que se violaria, para além de direitos do arguido, o princípio da economia processual.

Optando o nosso processo penal por manter um despacho de saneamento no início da fase de julgamento e atribuindo ao juiz presidente os poderes-deveres enumerados no art. 311º, a este compete decidir as questões que se colocam de acordo com a interpretação que faz do direito aplicável, ficando o seu entendimento sujeito ao escrutínio do tribunal superior, por via de recurso. Sendo confirmada aquela decisão (ou transitando a mesma, em qualquer caso), pôs-se termo ao processo por decisão judicial de quem tinha competência para o efeito, evitando-se o prosseguimento inútil dos autos e cumprindo-se assim a razão de ser do despacho de saneamento do art. 311º em casos como o presente. Ponto é que se trate de alguma das questões que nos termos do nº1 ou da al. d) do nº3 do art. 311º ponha termo ao processo ou que, em todo o caso, possa ser definitivamente decidida, como se verifica no caso sub judice.

2.4. – Concluímos, pois, pela total improcedência do recurso, mantendo integralmente o despacho recorrido.

III. – Dispositivo:

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo MP decidindo, em consequência, confirmar integralmente o despacho recorrido.

Sem custas

Évora, 20.03.2012

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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Carlos Jorge Berguete

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[1] Vd, em termos semelhantes, Vinício Ribeiro, CPP. Notas e comentários, 2ª ed. p. 1435

[2] Cf. Exposição de motivos da Proposta de lei 157/VII que deu origem à revisão do CPP de 1998.