Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1533/17.5T8PTM.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: DIREITO REAL
PRESCRIÇÃO ORDINÁRIA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As obrigações resultantes de relações propter rem não se extinguem por prescrição.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1533/17.5T8PTM.E1


Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) e mulher, (…) propuseram a presente acção contra Condomínio Sítio do (…), pedindo que seja
a) o réu condenado a reconhecer os danos no prédio do autor;
b) a reconhecer que tais danos se devem a infiltrações provenientes do terraço/cobertura, e zona comum do prédio;
c) o Réu condenado a proceder á reparação dos danos no prédio dos Autores ou, a pagar a estes a quantia de € 14.243,61.
d) o Réu condenado a indemnizar os Autores pela privação de ocupação e exploração economia do seu prédio, a liquidar em execução de sentença.
Alegaram ser donos de uma fracção autónoma designada pela letra J que sofreu os danos que elencam em diversos compartimentos, por via de infiltrações de água provenientes do terraço/cobertura do prédio e que conheciam tais danos desde 2010.
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O R. invocou a prescrição.
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Os AA. responderam alegando que houve reconhecimento do direito por parte do R..
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No despacho saneador foi julgada procedente a excepção de prescrição e foi o R. absolvido do pedido.
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Deste despacho recorrem os AA. alegando que a obrigação de manutenção do edifício é uma obrigação propter rem e que, como tal, não está sujeita a prescrição. Mesmo que assim se não considere, a responsabilidade é de natureza contratual pelo que o prazo é de 20 anos.
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Foram colhidos os vistos.
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Na sentença discorre-se desta maneira:
«(…) conforme se extrai da petição inicial (cfr. fls. 4 e ss.) os Autores alegam que são donos de uma fracção autónoma designada pela letra J que sofreu os danos que elencam em diversos compartimentos, por via de infiltrações de água provenientes do terraço/cobertura do prédio.
«Ora, tal situação adscreve-se a uma situação de responsabilidade civil extracontratual (cfr. arts. 483.º e ss. do CC), já que o Réu terá deixado que o edifício se degradasse até permitir as ditas infiltrações que provocaram os danos invocados pelos Autores, o que convoca o prazo prescricional previsto no art. 498.º do CC (de 3 anos), que já decorreram.
«Com efeito, se se pode afirmar que os Autores, pelo menos desde Fevereiro de 2010, conheceriam os elementos necessários ao exercício dos direitos decorrentes das infiltrações (cfr. art. 10.º da petição inicial) na sua fracção, desde tal ano até ao momento em que a acção foi proposta (no ano de 2017) já decorreram bem mais de 3 anos».
A sentença parte, pois, do princípio de que estamos perante um caso de responsabilidade extracontratual e aplica, em função disso, o prazo estabelecido no artigo 498.º do Cód. Civil.
Não concordamos.
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O caso de que aqui se trata diz respeito às relações propter rem, isto é, àquelas relações que resultam da titularidade de direitos reais e que têm na sua base um conflito de direitos reais: um dos titulares da situação jurídica é determinado mediatamente pela titularidade de um direito real (Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1993; cfr., também do mesmo autor, As Relações Jurídicas Reais, Liv. Morais Editora, Lisboa, 1962, p. 115). É indiferente que seja este A. em concreto o titular ou outra pessoa qualquer; o que é fundamental é que seja alguém que se identifica pela titularidade do direito real, neste caso, de um direito de condomínio.
Neste caso, temos o direito do A. em usufruir de modo pleno a sua fracção autónoma (art.º 1305.º), isto é, de modo íntegro. O A. tem direito a que a sua fracção não seja danificada, seja por terceiros (caso típico de violação do direito de propriedade) seja por outros condóminos ou por quem está encarregado de manter em bom estado as partes comuns do edifício.
Assim, o direito do A. não deriva logo do dano que lhe foi causado; deriva do simples facto de ser titular de um dado direito real.
As obrigações que derivam deste estatuto não são obrigações que tenham na sua fonte um contrato ou um acto ilícito; elas derivam do estatuto de titular de um direito real. assim, não surpreende que o seu regime não seja igual ao das demais obrigações.
Dois desvios a este regime geral dizem respeito à transmissão do direito real e seu reflexo na titularidade dos respectivos direitos e à prescrição.
Na primeira situação, «o problema da sucessão na obrigação propter rem — de origem legal ou negocial, pouco importa — apenas surge quando, verificados os pressupostos que no estatuto do direito real se mencionem e constituída, assim, a relação obrigacional, ocorra um acto translativo do direito real antes do cumprimento da obrigação» (Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1990, p. 315). Daí que existam obrigações cuja transmissão se impõe para o novo titular do direito real a par de outras em que tal ambulatoriedade não acontece (p. 323). Ou, como escreve Oliveira Ascensão (As Relações Jurídicas Reais, cit., p. 431), a relação propter rem «transmite-se automaticamente a todo o novo titular do direito real» e «é insusceptível de transmissão independente do direito real a que se refere».
Na segunda situação, também o regime da prescrição não é idêntico; pelo contrário, pode dizer-se que é radicalmente diferente.
Citando de novo Manuel Henrique Mesquita, no seu livro citado (e não Antunes Varela em Das Obrigações em Geral, como erradamente diz o recorrente na pág. 5 das alegações):
«Outro importante desvio [o primeiro é a questão da transmissibilidade do direito real] à disciplina geral dos vínculos de natureza creditória é não estarem as obrigações propter rem sujeitas à prescrição. Enquanto, por exemplo, o usufrutuário não efectuar as reparações ordinárias de que o objecto do usufruto careça (cfr. o art.º 1472.º), ou enquanto o proprietário do prédio serviente não realizar, nas obras necessárias ao exercício da servidão, os actos conservatórios de que necessitem e que no título constitutivo desta tenham ficado a seu cargo (cfr. o art.º 1567.º, n.º 4), a obrigação propter rem não se extingue. A obrigação nasce por mero efeito do estatuto de um direito real, apenas se verifiquem determinados pressupostos, que se traduzem, em regra, numa situação material relativa ao objecto desse direito. Mantendo-se estes pressupostos (nos dois exemplos que referimos, a necessidade das reparações no objecto o usufruto e nas obras indispensáveis ao exercício da servidão), a obrigação como que se renova a cada instante e, por conseguinte, a cada instante se renova também o prazo em que pode ser exigido o respectivo cumprimento» (p. 351).
No ac. desta Relação, de 30 de Novembro de 2016, decidiu-se expressamente que as obrigações desta natureza não estão sujeitas ao prazo da prescrição previsto no art.º 498.º mas sim ao prazo ordinário fixado no art.º 309.º. Uma vez que o que aqui está em questão é só saber se o prazo do art.º 498.º se aplica ou não ao caso (e já não saber se estão sujeitas a algum prazo e, então, a qual), e tendo em conta as considerações feitas, temos de concluir que a obrigação cujo cumprimento o A. exige [pagamento de despesas para reparação dos danos da fracção causados pela violação de uma obrigação (legal) que lhes advém em decorrência da titularidade de um direito real (a dita obrigação propter rem), conforme se escreve no dito acórdão] não prescreve no prazo de 3 anos.
Sendo assim, procede o recurso.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso em função do que se revoga o despacho recorrido.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 8 de Novembro de 2018
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos