Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
156/21.9NJLSB-A.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CIBERCRIME
APREENSÃO DE MENSAGENS
INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
TUTELA JURISDICIONAL
COMPETÊNCIA DO JIC
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Conforme resulta da remissão do artigo 17.º da Lei do Cibercrime para o artigo 179.º Código de Processo Penal, a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante só deverá ocorrer se existirem fundadas razões para crer que as mesmas se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
II. Não é por acaso que a Lei do Cibercrime reserva este juízo ao juiz de instrução criminal na fase preliminar do processo penal (no inquérito).

III. Porque há direitos fundamentais carecidos de tutela jurisdicional antecipada, entre eles se contando a devassa da intimidade da vida privada das pessoas (artigo 26.º da Constituição), sem motivo bastante, conforme expressamente prevê o § 3.º do artigo 16.º da Lei do Cibercrime. E só ao juiz se pode cometer essa tutela, não apenas pelo seu estatuto de independência, mas também por se encontrar descomprometido com a investigação, impregnando a neutralidade que é suposta.

IV. Na tutela de tais direitos e pelas razões expressamente indicadas no despacho recorrido, não se autorizou a apreensão das mensagens que o Ministério Público pretendia integrar no inquérito, porquanto as mesmas se cingem à vida privada, à confiança e à intimidade da relação entre o arguido e sua ex-namorada/companheira, num período posterior à relação amorosa que mantiveram. Dali nada relevando – mesmo remotamente - para a criminalidade investiganda (incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas).

Decisão Texto Integral: -I – Relatório
1. Nos autos de inquérito que correm termos no DIAP de …, da Procuradoria da República da comarca de …, investiga-se a prática por AA de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto no artigo 272º, § 1.º, al. a) do Código Penal (CP).

A dado passo da investigação o Ministério Público (MP), ao abrigo do disposto nos artigos 11.º, § 1.º, al. c), 15.º, § 1.º, 2.º, 6.º e 16.º § 1.º da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (Lei do Cibercrime - LC) determinou a apreensão de mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e …, as quais na sequência de pesquisa informática foram integradas no Apenso I.

Remetendo posteriormente ao Juiz de Instrução Criminal (J…) para ponderar a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto (artigo 16.º, § 3.º LC), uma vez que ali se continham dados cujo conteúdo é suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular e de terceiro.

Nessa sequência o JI proferiu o seguinte despacho:

«Pesquisa informática aos suportes técnicos de fls. 418 e 421 e auto de visualização, relatório de visualização de fls. 503 a 507 e Apenso I:

Os elementos constantes do Apenso I reportam-se a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e …, enviadas entre o arguido e a ofendida, no período que mediou o fim do namoro e o dia posterior aos factos, e servem para enquadrar a prática de um crime de violação de domicílio e perturbação da vida privada previsto no art.º 190º, do Cód. Penal. Sucede, porém, que se trata de crime semipúblico em relação ao qual não foi apresentada queixa. Por isso não existe procedibilidade por factos que as mensagens podem relevar nem grande interesse para a descoberta da verdade material.

Nestes termos e ao abrigo do art.º 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime, não apreendo o conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I e ordeno a sua destruição, após o trânsito em julgado.

Notifique o Ministério Público e o defensor.

Devolva o inquérito.»

2. Inconformado com o assim decidido apresentou o MP o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões (transcrição integral):

«i. Nos presentes autos, investiga-se a prática, pelo arguido, AA, em autoria material e na forma consumada, de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. e p. pelo artigo 272º, nº 1, al. a) do Código Penal.

ii. A fls. 537, o Mmº JIC proferiu o seguinte despacho: “Pesquisa informática aos suportes técnicos de fls. 418 e 421 e auto de visualização e relatório de visualização de fls. 503 a 507:

Os elementos apresentados reportam-se a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e … examinado e são de grande interesse para a descoberta da verdade material relacionando-se com os factos investigados, designadamente o dia 25/12/2021.

Nestes termos e ao abrigo do art.º 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime, apreendo todo o conteúdo de folhas 7029 e 7030 do Exame n.º 80/22 realizado pela Secção de Recolha de Prova Digital da Repartição de Perícias Digitais e Forenses da DIC/Guarda Nacional Republicana, constante do DVD, a fls. 421.”

iii. Nessa sequência, de fls. 550 a fls. 553, foi junto o “APENSO I”, onde constam as mensagens telefónicas trocadas entre o arguido AA e BB no período compreendido entre 31-10-2021 e o dia 26-12-2021.

iv. O Ministério Público promoveu ao Mmº JIC a apreensão das mensagens que integram o Apenso I, nos termos do artº 17º, da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro.

v. Todavia, o Mmº JIC proferiu o despacho recorrido, no qual decide não apreender o conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I e ordena a sua destruição, após o trânsito em julgado, com fundamento no facto de os elementos constantes do Apenso I se reportarem a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e …, enviadas entre o arguido e a ofendida, no período que mediou o fim do namoro e o dia posterior aos factos, e servem para enquadrar a prática de um crime de violação de domicílio e perturbação da vida privada previsto no art.º 190º, do Cód. Penal, que é um crime semipúblico em relação ao qual não foi apresentada queixa.

vi. E acrescenta, “não existe procedibilidade por factos que as mensagens podem relevar nem grande interesse para a descoberta da verdade material.”

vii. No despacho recorrido o Mmº JIC contradiz o douto despacho proferido por si a fls. 537, já transitado em julgado, no qual ali refere que as mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e … são de grande interesse para a descoberta da verdade material relacionando-se com os factos investigados, designadamente o dia 25/12/2021.

viii. O despacho recorrido viola o caso julgado formal (art.º 620.°, nº 1, 625.° nº 1, e nº 2, e 628.° do CPC, ex vi art° 4.° do CPP).

ix. Esse despacho não pode subsistir.

x. Porque violado o caso julgado, deve esse despacho ser revogado e substituído por outro que apreenda o conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I que se reporta a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e …, enviadas entre o arguido e a ofendida, no período que mediou o fim do namoro e o dia posterior aos factos.

xi. O despacho recorrido enferma de lapso, que é manifesto, porque neste processo o que se investiga desde o primeiro momento, é a prática, pelo arguido, de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. e p. pelo artigo 272º, nº 1, al. a) do Código Penal.

xii. Pelo exposto, o Tribunal a quo pode corrigir esse despacho, se assim entender, nos termos do artº 380º, nº 1, alínea b), por referência ao nº 2, do mesmo artigo, porque a correção não importa modificação essencial.

xiii. Finalmente, o despacho recorrido é nulo, porque não determina diligências de prova essenciais para a descoberta da verdade (ex vi artº 120º, nº 2, alínea d) e nº 3, alínea c), do C.P.P.).

xiv. O despacho recorrido viola os artigos 620°, nº 1, 625.° nº 1, e nº 2, e 628.°todos do CPC, com referência ao art° 4.° do CPP, e é nulo, nos termos do art.120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, porque nele se indeferiu uma diligência de prova que se reputa essencial para a descoberta da verdade.

Pelo exposto, o Ministério Público requer que o Mmª Juíz a quo corrija o douto despacho recorrido, ou seja, que determine a apreensão do conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I, por se reportar a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e … examinado, enviadas entre o arguido e a ofendida, no período que mediou o fim do namoro e o dia posterior aos factos, por serem de grande interesse para a descoberta da verdade material relacionando-se com os factos investigados, designadamente o dia 25/12/2021.

Se assim não entender, devem V. Exas, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora julgar o presente recurso totalmente procedente, por provado, e em consequência,

1.º devem revogar o despacho recorrido, porque violou o caso julgado formal, e em consequência devem substitui-lo por outro que determine a apreensão do conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I, por se reportar a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e … examinado, enviadas entre o arguido e a ofendida, no período que mediou o fim do namoro e o dia posterior aos factos, por serem de grande interesse para a descoberta da verdade material relacionando-se com os factos investigados, designadamente o dia 25/12/2021,

2.º se assim não for entendido, devem declarar a nulidade desse despacho, porque não determina diligências de prova essenciais para a descoberta da verdade.»

3. O JI sustentou a decisão recorrida, dizendo:

«Os autos de inquérito em que está fortemente indiciado o crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. e p. pelo artigo 272º, nº 1, al. a) do Código Penal foram remetidos pelo Ministério Público ao Juiz de Instrução Criminal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 16.º, n.º 3 e 17.º da Lei do Cibercrime.

Com conclusão no processo, pelo Tribunal foi determinada a apreensão de todo o conteúdo de folhas 7029 e 7030 do Exame n.º 80/22 realizado pela Secção de Recolha de Prova Digital da Repartição de Perícias Digitais e Forenses da DIC/Guarda Nacional Republicana, constante do DVD, a fls. 421, por despacho de 23/06/2022, tendo-se consignado “Os elementos apresentados reportam-se a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e … examinado e são de grande interesse para a descoberta da verdade material relacionando-se com os factos investigados, designadamente o dia 25/12/2021.».

Foram apreendidas as folhas do ficheiro em formato *pdf referentes ao dia 25/12/2021, em conformidade com a fundamentação apresentada.

*

Não obstante, em 13-01-2023, o Ministério Público pede nova apreensão.

Essa apreensão foi indeferida por despacho de 19-01-2023, o Ministério Público não se conforma e recorre de tal decisão.

*

Não existe violação do caso julgado formal porque o Ministério Público pretende a apreensão de outras mensagens que não aquelas que foram apreendidas no despacho de 23/06/2022.

Não há elemento probatório que inquine o fundamento da não apreensão (falta de procedibilidade).

As mensagens a apreender foram apreendidas nos termos gizados em 23-06-2021 (as que tinham grande interesse para a descoberta da verdade material), e não outras por qualquer crime do qual o Ministério Público não tem legitimidade.

A violação do caso julgado formal ocorre na determinação da apreensão em fraude ao despacho de 23/06/2022.

Inexistem nulidade a suprir ou diligências indispensáveis à descoberta da verdade material a realizar.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no art.º 414.º, n.º 4, do Cód. Processo Penal, mantenho o despacho recorrido e indefiro a requerida rectificação.

Notifique.»

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público pronunciou-se secundando a posição assumida pelo mesmo órgão do Estado na 1.ª instância.

Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos aos vistos e depois à conferência.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Vindo neste caso suscitadas duas questões: i) violação do caso julgado (formal); ii) as provas cuja apreensão se requer são essenciais para a descoberta da verdade.

B. Apreciando

B.1 Da violação do caso julgado

O primeiro dos fundamentos alegados pelo recorrente foi a violação, pelo despacho recorrido, do caso julgado formal, porquanto a decisão de recusa nele tomada fora já anteriormente autorizada! O que logo suscita a questão de saber se estando já autorizada se requereu novamente!

Atentemos, para colocar alguma luz sobre a sombra que se alega. Quer o caso julgado formal quer o caso julgado material, visam evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão, traduzindo o caso julgado formal a força obrigatória dentro do processo (1) (contrariamente ao que sucede no caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida).

Nos presentes autos investiga-se a prática, por AA, de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto no artigo 272.º, § 1.º, al. a) CP. O recorrente considera que o despacho judicial proferido a 19/1/2023 (ora sob recurso), sequente a requerimento do MP, para que fosse determinada a apreensão das mensagens que integram o Apenso I, nos termos do artigo 17.º, da LC, é violador do caso julgado (formal), porquanto já em despacho anterior (de 23/6/2023) o JI havia determinado a sua apreensão, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º, § 3.º e 17.º da LC! Se assim é, questiona-se então: por que razão o Ministério Público requereu novamente ao JI uma apreensão que já fora judicialmente efetuada por despacho transitado em julgado? E por que razão pretende, subsidiariamente, que este Tribunal da Relação, a determine? Pois se a autorização já existe e está transitada! A resposta a tais interrogações é simples e evidente, estando cristalinamente explicada logo no despacho sustentador da decisão recorrida, ali referendo o Mm.o Juiz recorrido que:

«Não existe violação do caso julgado formal porque o Ministério Público pretende a apreensão de outras mensagens que não aquelas que foram apreendidas no despacho de 23/06/2022.» E assim é. Efetivamente. O despacho judicial de 23/6/2022 tem o seguinte teor:

Pesquisa informática aos suportes técnicos de fls. 418 e 421 e auto de visualização e relatório de visualização de fls. 503 a 507:

Os elementos apresentados reportam-se a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e … examinado e são de grande interesse para a descoberta da verdade material relacionando-se com os factos investigados, designadamente o dia 25/12/2021.

Nestes termos e ao abrigo do art.º 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime, apreendo todo o conteúdo de folhas 7029 e 7030 do Exame n.º 80/22 realizado pela Secção de Recolha de Prova Digital da Repartição de Perícias Digitais e Forenses da DIC/Guarda Nacional Republicana, constante do DVD, a fls. 421.»

E no despacho de 19/1/2023 decidiu-se que:

«Pesquisa informática aos suportes técnicos de fls. 418 e 421 e auto de visualização, relatório de visualização de fls. 503 a 507 e Apenso I:

Os elementos constantes do Apenso I reportam-se a mensagens escritas constantes do telemóvel de marca … com o IMEI … e …, enviadas entre o arguido e a ofendida, no período que mediou o fim do namoro e o dia posterior aos factos, e servem para enquadrar a prática de um crime de violação de domicílio e perturbação da vida privada previsto no art.º 190º, do Cód. Penal. Sucede, porém, que se trata de crime semipúblico em relação ao qual não foi apresentada queixa. Por isso não existe procedibilidade por factos que as mensagens podem relevar nem grande interesse para a descoberta da verdade material.

Nestes termos e ao abrigo do art.º 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime, não apreendo o conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I e ordeno a sua destruição, após o trânsito em julgado.

Notifique o Ministério Público e o defensor.

Devolva o inquérito.»

No primeiro despacho apreendeu-se «todo o conteúdo de folhas 7029 e 7030 do Exame n.º 80/22 realizado pela Secção de Recolha de Prova Digital da Repartição de Perícias Digitais e Forenses da DIC/Guarda Nacional Republicana, constante do DVD, a fls. 421».

E no segundo despacho decidiu-se não apreender «o conteúdo de folhas 3 a 502 do Apenso I»

Não há, pois, qualquer erro ou lapso no despacho recorrido, nem sobreposição de objetos, entre este e o proferido nestes mesmos autos a 23/6/2023.

E isso é o bastante para arredar o esgrimido e preconizado caso julgado formal. Que não existe.

B.2 As provas cuja apreensão se requer são essenciais para a descoberta da verdade

O recorrente pretende que este tribunal conheça subsidiariamente do mérito do despacho recorrido, isto é, que determine a apreensão que foi requerida.

Mas não adianta rigorosamente nenhuma razão que abale o juízo feito pelo JI!

E tinha de o fazer, porquanto o JI explicou, no despacho recorrido, os motivos pelos quais não ordenava a apreensão das mensagens requeridas.

Pois bem. Vejamos, então com mais algum detalhe.

Resulta da remissão do artigo 17.º da LC para o artigo 179.º CPP, que a apreensão só deverá ocorrer se existirem fundadas razões para crer que a mesma se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. (2)

E não é decerto por acaso que a LC reserva este juízo ao JI, nesta fase preliminar do processo penal (no inquérito), que está a cargo do Ministério Público.

É assim porque há direitos fundamentais carecidos de tutela jurisdicional antecipada, entre eles se contando a devassa da intimidade da vida privada das pessoas (artigo 26.º da Constituição), sem motivo bastante, conforme expressamente refere o § 3.º do artigo 16.º da LC. E só ao juiz se pode cometer essa tutela, não apenas pelo seu estatuto de independência, mas também por se encontrar descomprometido com a investigação, impregnando por isso a neutralidade que é suposta (3).

É este também o entendimento, aliás constante, do Tribunal Constitucional, como (por todos) se refere no ainda recente acórdão n.º 121/21 (4), de 9 de fevereiro: «a exigência de intervenção judicial no inquérito em relação a atos que afetem direitos fundamentais institui-se, pois, como pilar da arquitetura sistémica que se foi construindo para o processo penal português.» (5)

O JI interveio na tutela daqueles direitos e pelos motivos (claros) que indicou não autorizou a apreensão das mensagens que o requerente se pretendia integrar no inquérito.

O recorrente não se conforma com a decisão tomada, mas não indica as razões pelas quais considera serem tais mensagens «essenciais» para a investigação em curso (crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto no artigo 272º, § 1.º, al. a) CP)

Ora, o recurso para o Tribunal da Relação não é uma nova oportunidade para o recorrente requerer (novamente) a mesma coisa, mas agora perante outro órgão jurisdicional (de hierarquia superior). Ém antes - e apenas - o instrumento processual que possibilita a correção de concretos erros in procedendo ou in judicando. Isto é, remediar o que de errado ocorreu na 1.ª instância. (6)

Ficamos, enfim, sem saber quais são as razões que o recorrente quer contrapor ao decidido!

E isso seria o bastante para julgar não provido o recurso, por falta de fundamento bastante (artigo 412.º CPP).

Mas ainda que assim não fora, a verdade é que vistas (lidas) as mensagens (com muita dificuldade embora - dada a má qualidade das cópias efetuada para este recurso em separado - mas ainda assim compreensíveis), nelas se não surpreende nenhuma razão para não subscrever, integralmente, o juízo que vem impugnado.

E assim, porquanto, as mensagens transcritas se cingem à vida privada, à confiança e à intimidade da relação entre o arguido e sua ex-namorada/companheira, num período posterior à relação amorosa que mantiveram. Nada dali relevando – mesmo remotamente - para a criminalidade investiganda (incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas - artigo 272.º, § 1.º, al. a) CP)!

Fica, pois, por compreender a razão pela qual o recorrente vê interesse em mensagens de conteúdo iminentemente pessoal, arredias do temário sob investigação!

O recurso não é merecedor de provimento.

III – Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) julgar não provido o recurso interposto pelo Ministério Público;

b) sem custas (uma vez que o recorrente delas está isento – artigo 523.º, § 1.º CPP); c) Notifique.

Évora, 25 de maio de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 Direito Processual Civil, vol. III, AAFDL, 1980, p. 276.

2 Neste sentido cf. Duarte Rodrigues Nunes, Os meios de obtenção de prova na Lei do Cibercrime, 2018, Gestlegal, p. 148.

3 Sobre a distinção da função jurisdicional relativamente a outras funções do Estado, cf. Maria de Fátima Mata-Mouros, Juiz das liberdades – Desconstrução de um mito do processo penal, Almedina, 2011, pp. 65 ss.

4 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210121.html

5 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 121/21, de 9fev2021, Cons. Mariana Canotilho.

6 Neste sentido cf. na doutrina Cf. Germano Marques da Silva, conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, p. 65; Germano Marques da Silva. Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra Editora, 2001; Germano Marques da Silva, Forum Justitiae, maio de 1999, p. 21; Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, JULGAR, n.º 10, 2010, p. 22. Na jurisprudência cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/2/2015, proc. 131/11.1TASLV.S1, Cons. Isabel Pais Martins; e acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 56/2006, de 18/1/2006, Cons. Fernanda Palma, DR, II, de 14abr2006; acórdão do TRÉvora, de 26abr2022, proc. 10/19.4GAGDL.E1, Desemb. Gomes de Sousa.