Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7/10.0IDFAR.E2
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: INCAPACIDADE DE FACTO
ARGUIDO
INCAPACIDADE PARA ESTAR EM JUÍZO
JULGAMENTO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Perante uma incapacidade de facto, grave, total e permanente da arguida – posterior à prática dos factos, mas sem se enquadrar na previsão do art. 105º do C. Penal - os autos não podem prosseguir para julgamento, na parte que lhe respeita, devendo suspender-se o procedimento criminal a partir da data em que se adquiriu o conhecimento de tal incapacidade.
II. Faltando esse pressuposto processual - que a representação por advogado constituído ou defensor oficioso não colmata na medida em que o tipo de representação que oferece não pode suprir a capacidade judiciária -, enquanto susceptibilidade de um arguido estar por si, em juízo, tudo se passa como se a recorrente “não estivesse em juízo” quando foi submetida a julgamento.
III. O que implica a inobservância dos seus direitos de defesa, com garantia constitucional, e, nomeadamente o de poder estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, enumerado no art. 61º do C.P.P.
IV. Não tendo a recorrente estado presente em juízo no julgamento – e essa ausência não se confunde com o simples facto de não ter comparecido a julgamento nem com o de este ter sido realizado na sua ausência, de acordo com o que a lei permite em determinado condicionalismo – foi praticada a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119º do C.P.P., cuja consequência é a invalidade, em relação à arguida, do julgamento e da sentença proferida, bem como de todo o processado subsequente, de acordo com o disposto no art. 122º do C.P.P.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1.Relatório
No juízo local criminal de Loulé – Juiz 1, do Tribunal Judicial da comarca de Faro, em processo comum com intervenção de tribunal singular, foi submetida a julgamento, além de outros,[1] a arguida AA, devidamente identificada nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condená-la, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º e 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e 30º nº 2 do C. Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 2 €.
Mais foi condenada, juntamente com os demais arguidos, também demandados, no pagamento solidário à Fazenda Nacional do montante de 59.403,87 €, acrescidos de juros moratórios e compensatórios, à taxa legal, desde a data limite de entrega das quantias devidas e até integral pagamento.
Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso a arguida, pretendendo que seja revogada e substituída por decisão que declare prescrito o procedimento criminal em relação a ela ou, assim se não entendendo, que declare nula e de nenhum efeito a sentença na parte em que a condenou ou, pelo menos, que a absolva do crime de abuso de confiança e, bem assim, do pedido de indemnização em que foi condenada, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1) A arguida encontra-se acusada da prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, por omissão de entrega do IVA retido relativamente ao ano de 2006 e primeiro trimestre de 2007.
2) A prescrição do procedimento criminal do crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, nos termos do artigo 21.º, n.º 1 do RGIT o prazo é de 5 anos, sendo
que tal prazo corre desde o dia em que o facto se tiver consumado (Cfr. Artigo 119.º, n.º1 C.Penal.)
3) O prazo começou a correr desde o dia 15.05.2007, termo do prazo para a entrega do imposto relativo ao primeiro trimestre de 2007(art.º 41.º n.º 1 alínea B) do CIVA
4)-A arguida foi notificada da acusação contra si deduzida a 12.10.2010.
5)Verifica-se a ausência nos autos de quaisquer outras causas de interrupção da prescrição (para além da notificação da acusação a 12.10.2010) ou suspensão.
6) Em 12.10.2015 prescreveu o procedimento criminal contra a arguida.
7) Tendo o prazo de prescrição se iniciado em 15.05.2007, até à presente data decorreram 14 anos, 8 meses, pelo que nos termos do artigo 121.º n.º 3 do C.Penal, independentemente de qualquer causa de interrupção e ressalvado qualquer suspensão(que não existe até á data da sentença), o procedimento criminal encontra-se extinto por prescrição.
8)-Devendo ser declarado a prescrição do procedimento criminal relativamente à arguida, com todas as consequências legais.
Ou se assim não se entender
9) Em face do relatório pericial constata-se que durante o decurso do presente processo penal a arguida apresentava uma incapacidade de facto.
10)-Em face dessa incapacidade de facto e não existindo representante geral do incapacitado, caberia ao Juiz da causa a nomeação de curador especial ou provisório, suspendendo-se os termos do processo(Cfr Acordão do Tribunal da Relação de Évora de 28/11/2006, processo 1256/06-1).
11)-Apenas por sentença proferida em 17/06/2019e transitada em 06/09/2019 no processo nº441/18.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ..., foi nomeado Representante Geral.
12)- Tendo sido verificada a incapacidade de facto da arguida e não tendo sido nomeado um curador provisório, fica sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a falta se deu ou a irregularidade foi cometida (Cfr Acordão do Tribunal da Relação de Évora de 28/11/2006, processo 1256/06-1).
13)-Devendo ser nula e de nenhum efeito a sentença proferida, ora em recurso, na parte em que condenou a arguida.
14)-O que se invoca, com todos os efeitos legais que isso acarreta.
Ou se assim não se entender
15-)A douta sentença de que ora se recorre, entre outros e com interesse para a decisão da causa deu como provado no ponto 24 dos factos provados o seguinte” Da perícia médica realizada à arguida AA resultou que o estado mental da mesma em 2006 e 2007 não apresentaria as alterações do foro mental e cognitivo que apresenta no momento, pela que estaria intacta a capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/licito, querer/poder e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação.”
16)-E deu esse facto como provado com base no exame pericial junto aos autos.
17)-Do exame pericial junto aos autos, não resulta a conclusão extraída pelo Tribunal “A quo” e que motivou o facto provado nº24º
18-)O Relatório da perícia médica que foi realizada à arguida, não refere clara e objetivamente qual seria o estado mental da arguida em 2006 e 2007.
19)-Referindo concretamente que “Ainda que não seja possível aferir qual seria o estado mental da arguida em 2006 e 2007”
20)-Em face do Relatório pericial existe dúvidas qual seria o estado mental da arguida em 2006 e 2007.
21) O princípio in dúbio pró reo, é um princípio de prova, que significa que perante factos incertos a dúvida favorece o Arguido.
22)-Não pode por isso o Tribunal “a quo” dar como provado que” Da perícia médica realizada à arguida AA resultou que o estado mental da mesma em 2006 e 2007 não apresentaria as alterações do foro mental e cognitivo que apresenta no momento, pela que estaria intacta a capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/licito, querer/poder e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação”
23)-Devendo por isso o facto 24º dos factos provados, dar-se como não provado.
24)-E dar-se como não provado que a arguida à data da prática dos factos estaria em condições e capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/licito, querer/poder e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação.
25)-Devendo a arguida ser absolvida do crime que abuso de confiança fiscal na forma continuada bem com no pedido de indemnização civil em que foi condenada.

O recurso foi admitido.
Na resposta, o MºPº defendeu a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, concluindo como segue:

1º. A arguida AA interpôs recurso da sentença proferida nos presentes autos, na qual foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
2º. Da sua motivação extraímos as seguintes conclusões, que se sintetizam: i) Prescrição do procedimento criminal; ii) Nulidade de actos processuais e erro na apreciação da matéria de facto.
3º. O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado – artigo 119º, n.º 1 do Código Penal -, sendo certo que o facto se considera praticado no momento em que o agente atuou ou deixou de atuar – artigo 3º do Código Penal.
4º. No caso de infração contínua sucessiva, como é o caso dos autos, o momento relevante será aquele em que é executado o último ato que integra a infração.
5º. Ora, são imputados factos quanto a omissão de pagamentos referentes a IVA respeitantes aos períodos tributários 0603T, 0606T, 0609T, 0612T e 0703T.
6º. Actualmente, o artigo 21º do RGIT sob a epígrafe “Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal” dispõe, por sua vez o seguinte: “1. O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos 5 anos. 2. O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a 5 anos. 3. O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo da caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação. 4. O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no nº 2 do art. 42º e no art. 47º”.
7º. Dito isto, cumpre então verificar se o prazo de 5 anos está decorrido, ou ainda não, designadamente por efeitos de causas de interrupção e/ou de suspensão.
8º. Como causas interruptivas da prescrição temos, segundo a regra geral do artigo 121º do Código Penal e que determinam reinício do prazo: a) a constituição de arguido; b) a notificação da acusação, ou não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo; c) a declaração de contumácia; d) a notificação do despacho que designa dia para audiência de julgamento na ausência do arguido.
9º. Estabelece ainda o respetivo nº 3 que “(…) A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade, (…)”. No caso sete anos e seis meses.
10º. No concernente à suspensão do prazo de prescrição, voltando a prescrição a correr, ou seja, o prazo prescricional não corre enquanto durar a mesma, voltando a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão - artigo 120º, n.º 3 do Código Penal: «1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além, dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal; b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo; c) Vigorar a declaração de contumácia; d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado; f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade. 2. No caso previsto na al. b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos. (…) 4. No caso previsto na al. e) do nº 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo.»
11º. A Data da prática dos factos objeto do processo situa-se no período compreendido entre 2006 a 2007 (primeiro trimestre de 2006 ao primeiro trimestre de 2007); assim, o prazo de prescrição do procedimento criminal inicia-se em relação aos factos objeto dos autos no dia 15 de Maio de 2007, o prazo dos 05 anos de prescrição do procedimento criminal, completar-se-ia no dia 15 de Maio de 2012.
12º. Apenas assim não será se intercorrer algum facto interruptivo ou suspensivo da prescrição do procedimento criminal.
13º. A recorrente foi constituída arguida em 29 de Janeiro de 2010.
14º. A acusação pública foi notificada em 12 de Outubro de 2010, voltando-se a interromper a prescrição.
15º. A arguida foi notificada da data da audiência de julgamento por prova de depósito em 28 de Março de 2012.
16º. A sentença foi proferida em 17 de Novembro de 2016, ficando pendente a notificação da mesma à arguida (suspendendo-se o prazo).
17º. A notificação da sentença de condenação em 1ª instância ocorreu em 07 de Dezembro de 2021.
18º. Temos, assim, que se verificam nos autos causas de suspensão e interrupção da prescrição; - a constituição de arguido; - a notificação da acusação; - a notificação da sentença.
19º. No momento em que a arguida foi constituída como tal, ainda só tinham decorrido dois anos, oito meses e duas semanas, momento em que ocorre interrupção da prescrição, pelo que, novo prazo se reiniciou a 29/01/2010.
20º. Em 12/10/10, ocorre a notificação da acusação pública, interrompendo novamente a prescrição, havendo decorrido entre aquela data e esta 8 meses 1 semana e 6 dias, sendo que ocorreu a suspensão da prescrição prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, pelo período de 3 anos.
21º. Conforme resulta da acta de audiência de julgamento de 17 de Novembro de 2016 a arguida foi julgada na ausência.
22º. A sentença proferida em 17 de Novembro de 2016, ficou pendente de notificação à ora arguida.
23º. Ora, ocorreram períodos de contagem da prescrição sem que tivesse decorrido um período seguido de 5 anos, e nunca foi ultrapassado o prazo máximo permitido de 7 anos e seis meses do art. 121º, n º 3 do CPP com as sucessivas interrupções, na medida em que o cômputo total foi de 06 anos, 05 meses e 3 semanas sem prejuízo do período da suspensão.
24º. Pelo exposto, ao contrário do alegado pela Recorrente o procedimento criminal não prescreveu.
25º. Segundo a recorrente a sentença penal é nula, tendo sido incorrectamente julgados os pontos 23.º e 24.º, da matéria de facto dada como provada.
26º. A decisão do Tribunal encontra-se suportada em perícia que, dá conta que a arguida à data dos factos era imputável, independentemente do seu estado de saúde actual.
27º. Apenas no âmbito do processo 441/18.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ..., foi nomeado Representante Geral (acompanhante) à arguida, ou seja, posteriormente à prolação de sentença nos presentes autos, sendo que, só após o decurso dos presentes autos e após a decisão aqui proferida, foram decretadas judicialmente (no âmbito daquele processo civil), medidas de acompanhamento face à incapacidade que, naquela data, a arguida, ora recorrente, apresentava.
28º. Conforme resultou da avaliação clínico-psiquiátrica, a recorrente apresenta sintomatologia enquadrável no diagnóstico de Doença de Huntington, codificado como G10. Apesar de à data dos factos apresentar sintomatologia enquadrável com o diagnóstico daquela doença, “é possível inferir pela natural evolução da doença de Huntington, que nessa altura (dos factos) não apresentara alterações do foro mental que apresenta no momento, pelo que da decorrência desta patologia conseguiria distinguir bem do mal e de se determinar de acordo com essa avaliação”.
29º. O exame realizado, consubstancia um exame pericial, impugnável nos termos do disposto no artigo 163º, do Código de Processo Penal.
30º. Verifica-se, pois, que o recorrente se prevalece do direito de discordar da apreciação efectuada pelo tribunal a quo relativamente à apreciação da matéria de facto, por discordar quanto ao sentido da convicção do tribunal a quo, no que resultou pericialmente confirmado, sendo certo que não se verifica o vício do erro notório na apreciação da prova, no caso dos autos.
31º. Muito embora o recorrente possa, naturalmente, discordar da posição assumida na decisão recorrida quanto à valoração da matéria de facto por não se conformar com o valor do exame pericial junto aos autos, que se presume subtraído à livre apreciação do julgador e pelo que resulta documentalmente comprovado, a verdade, porém, é que tal divergência de opinião não constitui fundamento legal de reexame da matéria de facto que, enquanto tal, é insindicável, já que, no nosso entender, não ocorre nenhum dos vícios a que alude o artigo 410.º, do Código de Processo Penal.
32º. Ora, a sentença recorrida faz uma análise crítica e objectiva dos meios de prova e não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida. Isto é, os factos dados como provados estão, pois suficientemente fundamentados, com expressa referência aos meios de prova, às razões determinantes da convicção do Tribunal, e é esta que conta.
33º. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, afigura-se-nos que a sua discordância assenta na valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova, sendo certo que, quanto à apreciação do exame junto ao autos, inexistiram quaisquer fundamento plausíveis para infirmar as conclusões da perícia.
34º. Por conseguinte também não violou qualquer das normas invocadas pelo recorrente, mormente, os artigos 127.° e 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
35º. Motivo pelo qual, mostra-se, por conseguinte, justa e acertada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, não tendo o Tribunal violado as disposições conjugadas os artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
36º. O recorrente entende que, pela aplicação do princípio in dúbio pro reo, não permitem chegar às conclusões a que chegou o Tribunal, no que concerne à verificação da capacidade da recorrente para entender a ilicitude da sua conduta, no momento da prática dos factos.
37º. Salvo o merecido respeito, também nesta sede não assiste razão à recorrente, que remete a sua alegação para meros juízos conclusivos relativamente à prova.
38º. Na verdade, da análise da sentença recorrida não resulta que aí se tenha decidido, no que tange à matéria de facto, nomeadamente, no que respeita ao julgamento dos factos dados como provados, perante uma qualquer situação de dúvida, de factos incertos ou de non liquet.
39º. No caso em apreço, da leitura da sentença recorrida, facilmente se constata que a prova produzida foi de molde a não criar quaisquer dúvidas no Julgador, antes e pelo contrário, a prova produzida em audiência, conduziu o Tribunal a quo à certeza de que o recorrente praticou os factos que foram dados como assentes.
40º. Não se impunha, assim, aplicar o aludido princípio na justa medida em que o Tribunal a quo proferiu a sentença no pleno convencimento de que os factos ocorreram nos moldes relatados pela assistente e de que o recorrente foi seu autor, por força das provas devidamente valoradas e submetidas ao respectivo exame crítico.
41º. Não tinha, pois, o Tribunal que aplicar o princípio em apreço.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando na íntegra a resposta apresentada pelo MºPº na 1ª instância, também se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
Revestem-se ou podem revestir-se de interesse para a decisão da excepção de prescrição invocada pela recorrente as seguintes ocorrências processuais:
- à arguida, ora recorrente, foi imputada a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6°, e 105° nºs 1 e 2, ambos do RGIT e 30° nº 2 do C. Penal, por, sendo uma das sócias da arguida sociedade, não ter feito entrega de IVA por esta devido num total de 59.403,87 €, respeitante aos períodos de 0603T, 0606T, 0609T, 0612T e 0703T, até ao dia 15 do 2° mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, crime pelo qual veio a ser condenada na sentença recorrida;
- a recorrente foi constituída como arguida em 29/1/2010;
- a recorrente foi notificada da acusação em 12/10/2010;
- foi notificada da data da audiência de julgamento em 28/3/2012, por prova de depósito, na morada do TIR que havia prestado;
- não compareceu no julgamento, que se realizou na sua ausência, ao abrigo do disposto no art. 333º nº 2 do C.P.P.;
- a sentença condenatória sob recurso foi proferida em 17/11/2016 e depositada na mesma data, ficando pendente a sua notificação à recorrente, a qual só veio a ter lugar em 7/12/2021.
*
E, relativamente à nulidade invocada pela recorrente:
- aquando da primeira data designada para a audiência de julgamento ( 7/5/2012 ), o então mandatário da recorrente, alegando que esta já então apresentava aparentes anomalias psíquicas que poderiam impedir a sua percepção dos factos pelos quais ia ser submetida a julgamento e, dessa forma, impedir a sua defesa, requereu que, para além de se indagar junto da Segurança Social dos fundamentos pelos quais lhe havia sido concedida pensão de invalidez absoluta, se determinasse a realização de uma perícia médica do foro psiquiátrico;
- tal requerimento foi deferido e, depois de diversas diligências empreendidas no sentido de conseguir fazer comparecer a recorrente ao exame, veio este a ter lugar no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de ..., no qual foi elaborado o relatório de perícia médico-legal, datado de 18/10/2016, de que se transcrevem, porque de maior relevo para a decisão do recurso, os seguintes segmentos:

III. Avaliação Clínica e Parecer Psiquiátrico-Forense
(…)
a examinada apresenta sintomatologia enquadrável no diagnóstico de Doença de Huntington, codificado como GlO na International Classification ofDiseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
A examinada apresentou-se calma e colaborante.
É seguida em consultas de Neurologia por sintomatologia compatível com Doença de Huntington, com evolução desde há cerca de 10 anos.
No presente momento apresenta-se desorientada no espaço e no tempo, discurso incoerente e inconexo. Apresenta no momento alterações significativas do ponto de vista cognitivo, nomeadamente ao nível do raciocínio e pensamento abstracto. No momento tem pouca ou nenhuma compreensão do que lhe é apresentado. Apresenta ainda limitações evidentes do ponto de vista motor com movimentos atetósico-coreicos.
Ainda que não seja possível aferir pelo relato da examinada, qual seria o seu estado mental em 2006 e 2007, é possível inferir pela natural evolução da doença de Huntington, que nessa altura não apresentaria as alterações do foro mental e cognitivo que apresenta no momento, pelo que, na decorrência desta doença de que padece, não apresentaria distorção da noção da realidade, pelo que estaria intacta a capacidade de distinguir o bem/ mal, lícito/ ilícito, querer/poder, e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação.

IV. Conclusões
1. A examinada apresenta sintomatologia enquadrável no diagnóstico de Doença de Huntington, codificado como Gl0 na International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
2. "1 - se a arguida, à data dos factos, padecia de doença psíquica". Sim a examinada apresenta sintomatologia enquadrável no diagnóstico de Doença de Huntington, codificado como Gl0 na Intemational Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenin Revision (ICD-10).
3. "2- em caso afirmativo, se essa doença a impedia de distinguir o bem do mal e de se determinar de acordo com essa avaliação". Ainda que não seja possível aferir pelo relato da examinada, qual seria o seu estado mental em 2006 e 2007, é possível inferir pela natural evolução da doença de Huntington, que nessa altura não apresentaria as alterações do foro mental que apresenta no momento, pelo que da decorrência desta patologia conseguiria distinguir o bem do mal e de se determinar de acordo com essa avaliação.
4. "3 - ou, em caso de a arguida, à data dos factos, conseguir distinguir o bem do mal se o fazia de forma diminuída". Não.
5. "4 - se a arguida representa perigo para si ou para terceiros". No presente momento a arguida não representa perigo para si ou para terceiros.
6. "5 - se a doença tem carácter permanente". Sim, a doença tem carácter permanente.
7. “6 - se existe a hipótese de melhoria ou de regressão". Não existe a hipótese de melhoria ou de regressão.
8. "7 - se existem razões para recear a prática pela arguida de outros factos da mesma natureza ou de natureza idêntica". No presente momento não existem razões para recear a prática pela arguida de outros factos da mesma natureza ou de natureza idêntica.
9. "8 - se a arguida se encontra em condições de perceber aquilo que lhe é transmitido numa conversa e de responder sabendo e compreendendo o que responde". A arguida não se encontra em condições de perceber aquilo que lhe é transmitido numa conversa e de responder sabendo e compreendendo o que responde.
10. "9 - se a arguida tem consciência do espaço e do tempo". Não, a arguida não tem consciência do espaço e do tempo.
*
Na sentença recorrida foram considerados como provados, na parte que para aqui interessa, os seguintes factos:

1.
A primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas, com sede em ..., que tem por objeto o " fabrico e comercialização de bolos, doces e similares".
2. Eram sócios, exercendo a administração e gerência da referida sociedade, no período a que os factos se reportam, os arguidos BB e AA e exerciam a referida atividade no interesse e por conta daquela.
3. Pelo exercício dessa atividade é a primeira arguida sujeito passivo de imposto sobre o valor acrescentado, enquadrada, à data dos factos que seguem, no regime normal da periodicidade trimestral.
5. Enquanto sujeito passivo de IVA, a primeira arguida, através dos segundos arguidos, seus sócios-gerentes, estava obrigada a cumprir as regras de liquidação deste imposto e a entregar, até ao dia 15 do 2° mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, nos serviços de administração do IVA, uma declaração relativa às operações efetuadas no serviço da sua atividade no decurso desse mês, com a indicação do imposto que liquidou e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo.
6. Estava, ainda, obrigada, com a declaração ora referida, entregar à Direção dos Serviços de Administração do IVA o montante do imposto liquidado e recebido no período a que aquela se reporta.
7. Os arguidos BB e AA, no interesse e por conta da primeira arguida, entre 2006 a 2007, exerceram a atividade supra descrita, e em nome daquela enviaram aos serviços de administração fiscal as declarações periódicas relativas aos períodos 0603T, 0606T, 0609T, 0612T e 0703T.
8. Todavia não efetuaram o respetivo pagamento do imposto, no valor de € 59.403,87 nos períodos e valores infra discriminados:
0603T - € 10.688,53;
0606T - € 12.689,59;
0609T - € 13.070, 13;
0612T-€ 10.031,44;
0703T-€ 12.924,18.
9. Assim, os arguidos não entregaram nos cofres do Estado a quantia de € 59.403,87, que liquidaram e receberam a título de IVA no periodo mencionado.
10. Da mesma forma, os arguidos também não pagaram tais quantias, bem como os respetivos acréscimos legais, incluindo o valor da coima aplicável pela falta de entrega daquela prestação tributária, no prazo de 30 dias que lhes foi dado, através da notificação que receberam para esse efeito.
11. Os arguidos tinham os meios monetários para efetuar o pagamento do imposto, nomeadamente, os valores retidos.
12. Ao atuarem da forma descrita, agiram os arguidos deliberada, livre e conscientemente, na qualidade de sócios gerentes da primeira arguida e no interesse e por conta desta, no intuito que lograram alcançar de não entregar à administração fiscal as quantias de IVA que efetivamente receberam e liquidaram, fazendo-as suas, bem sabendo que pertenciam ao Estado e que, desse modo, diminuíam as respetivas receitas fiscais e património, agindo contra a vontade deste.
13. Os arguidos bem sabiam que a sua conduta é proibida e punida por lei.
14. Durante os períodos mencionados agiram os arguidos de forma homogénea, aproveitando a circunstância de terem a cargo a administração e gerência da sociedade, de nessa qualidade terem acesso às quantias mencionadas e de após a prática dos referidos factos, não terem sido alvo de qualquer fiscalização.
*
2. Mais se provou:
(…)
23. A arguida AA apresenta sintomatologia enquadrável no diagnóstico de doença de Huntington.
24. Da perícia médica realizada à arguida AA resultou que o estado mental da mesma em 2006 e 2007 não apresentaria as alterações do foro mental e cognitivo que apresenta no momento, pelo que na decorrência da doença que lhe foi diagnosticada não apresentaria distorção da realidade, pelo que estaria intacta a capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/licito, querer/poder e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação.

A motivação da decisão da matéria de facto foi explicada, na parte que para aqui interessa, nos termos a seguir transcritos:

(…)
Relativamente aos factos provados sob os incisos 23 e 24, foi relevante o exame pericial junto aos autos, que dá conta que a arguida à data da prática dos factos era imputável, não obstante a sua situação clínica atual.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
- prescrição do procedimento criminal;
- nulidade da sentença;
- erro de julgamento relativamente aos pontos 23º e 24º dos factos considerados como provados.

A ordem de precedência lógica das questões suscitadas pela recorrente determina que, antes de conhecermos da prescrição do procedimento criminal e dados os reflexos que nesta poderá ter a sua eventual procedência, devamos apreciar a invocada verificação da nulidade da sentença – questão que, aliás foi olimpicamente ignorada pelo MºPº em ambas as instâncias…

3.1. O vício invocado pela recorrente prende-se com o facto de não lhe ter sido nomeado curador provisório perante a incapacidade de facto de que já padecia na data em que foi submetida à perícia psiquiátrica médico-legal, tal como vem referida no correspondente relatório, e que inquina todos os subsequentes termos do processo, nomeadamente a sentença condenatória.

Do teor do relatório da perícia psiquiátrica – relativamente ao qual não foram solicitados esclarecimentos, requerida ou ordenada nova perícia nem contrariadas as suas conclusões de forma fundamentada, sequer se vislumbrando qualquer razão para as questionar –, de que acima deixámos transcritos os segmentos mais relevantes, resultam, com o grau de certeza exigível e adequada base factual e científica, duas conclusões essenciais para a apreciação do fundamento do recurso supra enunciado, em concreto que:
i) – à data da prática dos factos a recorrente conseguia distinguir o bem do mal e determinar-se de acordo com essa avaliação;
ii) – à data do exame, a recorrente, devido à doença de carácter permanente e irreversível de que já então padecia, não se encontrava em condições de perceber aquilo que lhe é transmitido numa conversa e de responder sabendo e compreendendo o que responde, não tendo consciência do espaço e do tempo.
Ou seja, a recorrente padece de uma anomalia psíquica grave que sobreveio à data dos factos e que é anterior à data em que foi submetida a julgamento, iniciado em 10/11/16 e ao qual, aliás, não compareceu, tendo-se o mesmo realizado na sua ausência, ao abrigo do disposto no art. 333º nº 2 do C.P.P.
Não se coloca, pois, a questão da imputabilidade da recorrente – que o teor do relatório pericial permite afirmar sem margem para sérias dúvidas -, mas sim a da sua capacidade judiciária, mormente se bastava estar representada em juízo por defensor ou se era também necessária a nomeação de um curador para suprir a sua, aliás evidente, incapacidade de facto.
É facto que, constatada essa incapacidade pelo menos a partir do momento em que o relatório pericial foi junto aos autos, a recorrente foi representada, apenas, por defensor oficioso, não lhe tendo sido nomeado curador provisório.
Facto é, igualmente, que os autos prosseguiram os seus termos, tendo sido realizado o julgamento da recorrente na sua ausência, notificada que havia sido na morada do TIR prestado anos antes.
E veio a ser, já em data muito posterior àquela em que foi proferida a sentença recorrida nomeado, por sentença transitada em 6/9/19, representante geral à aqui recorrente em processo que correu termos no foro cível.
Ora, as escassas respostas que encontrámos na doutrina e na jurisprudência à questão da incapacidade de facto de um dos sujeitos processuais convergem no sentido de não deverem os autos prosseguir sem que tal incapacidade seja revertida ou suprida, como se constata pelos segmentos que a seguir vão transcritos:

V. Não basta, porém, apenas a susceptibilidade de ser arguido. Importa também a capacidade judiciária, ou seja, a susceptibilidade de estar, por si, em juízo (art. 9.º do CPC).
Do estatuto do arguido resultam certos direitos e deveres que implicam a capacidade para o seu exercício e, por isso, o dever de presença e o direito de audiência. Donde que se o arguido estiver incapacitado de exercer os seus direitos, isto é, de participar pessoalmente no processo, este deveria, em regra, ser suspenso, pelo menos a partir do momento em que a liberdade de determinação do arguido seja considerada essencial, como o é para a defesa.
(…)
Cremos que sempre que no processo o arguido deva actuar pessoalmente e não o possa fazer em razão da incapacidade, o processo devia suspender-se, salvo se se tratar de processo para aplicação de medida de segurança cujo pressuposto seja precisamente a anomalia psíquica.
Com efeito, não é razoável prosseguir um processo contra um arguido que se encontra incapaz de entender e querer, pois ele não estará então em condições de organizar a sua defesa em conformidade com os seus interesses.[4]
*
A capacidade judiciária que consiste na susceptibilidade de estar por si em juízo tem por base e por medida a capacidade do exercício de direitos (art.9º do CPC).
Trata-se duma capacidade de exercício de direitos e deveres processuais. Podemos defini-la como a susceptibilidade de a pessoa, por si, pessoal e livremente, decidir sobre a orientação da defesa dos seus interesses em juízo, em aspectos que não são de mera técnica jurídica.
É evidente que nos casos de patrocínio judiciário obrigatório, se verifica em última análise também um fenómeno de incapacidade de exercício, na medida em que a parte só pode estar em juízo representada pelo seu advogado, só que esta representação é limitada à técnica do processo, porém, quanto à política do processo, a parte guarda o seu poder de disposição sobre as grandes linhas de defesa judicial dos seus interesses. Isto pressupõe a sua capacidade judiciária.
A capacidade judiciária anda fortemente ligada à capacidade jurídica enquanto capacidade de exercício de direitos. Não se pode ter personalidade e ser-se inteiramente desprovido de capacidade. Nem o contrário. O que pode é ser mais ou menos circunscrita a capacidade jurídica de uma pessoa.
No que à capacidade de exercício diz respeito ela constitui a idoneidade não só para exercitar direitos ou cumprir obrigações como também para os adquirir ou as assumir e para fazer tudo isto pessoalmente, por acto próprio e exclusivo da pessoa visada, sem haver lugar à intervenção de um representante legal (designado por outro modo que não pelo próprio representado) ou ser necessário o consentimento de outra pessoa.
Trata-se, mais precisamente, da aptidão de um sujeito jurídico para produzir efeitos de direito por mera actuação pessoal; para exercitar actividade jurídica própria; para praticar, por si próprio ou através de um representante voluntário ou procurador, actos jurídicos. Daí chamar-se-lhe, por influência da doutrina alemã, capacidade de agir ou capacidade de acção (Handlungsfähigkeit).
Como diz Ferrara, enquanto a capacidade de direito é uma simples condição de gozo, uma posição estática, a capacidade de agir denota uma actividade dinâmica, o poder de pôr em movimento os direitos, de produzir transformações mediante actuação jurídica própria.
Se a capacidade de direitos não pode faltar de todo a um sujeito jurídico, outro é já o caso da capacidade de exercício. Pode haver pessoas em sentido jurídico destituídas, até por completo, desta capacidade.
A incapacidade de exercício deve ser suprida por meios adequados: o instituto da interdição previsto nos arts.138º e segs. do Código Civil (CC) ou o da inabilitação previsto nos arts.152º e segs. do CC.
Assim, os actos jurídicos que interessam ao incapaz não deixarão de ser praticados pelo facto de os não poder praticar ele próprio e só por si. A sua capacidade de direitos não deixará por isso de ser exercitada, agindo em sua substituição o representante legal, produzindo-se na esfera jurídica daquele os respectivos efeitos jurídicos.
Desta forma, na esteira do que foi dito, o instituto da representação é extensível à incapacidade judiciária que mais não é que uma modalidade da incapacidade de exercício. O incapaz pode fazer valer os seus direitos em juízo por intermédio do seu representante ou autorizado pelo seu curador (art.10º do CPC).
O representante em juízo ou a pessoa a quem a autorização se deve pedir é normalmente o representante geral (na designação do art.11º do CPC) ou legal (na do art.1329ºnº1 do CPC).ou seja, quanto ao interdito o tutor e quanto ao inabilitado o curador.
Porém, quando se está presente perante uma incapacidade de facto, como a do caso dos autos, não pode a pessoa incapacitada ver-se coarctada no exercício dos seus direitos e na assunção dos seus deveres processuais.
Da incapacidade de facto, ocupa-se o art. 11º do CPC, aplicável ao processo penal ex vi do art.4º deste último código.
Verificada que foi a incapacidade da ofendida no decurso do processo e a ausência de representante geral, cabia ao juiz da causa a nomeação de um curador provisório (art.11ºnº3 do CPC). Esta nomeação incidental pode ser promovida pelo MºPº, podendo ser requerida por qualquer parente sucessível (nº4 do art.11º do CPC.) ou oficiosamente e a todo o tempo determinada pelo Juiz de forma a providenciar-se pela regularização da instância penal (art.24ºnº1 do CPC).
Não pode é o Tribunal “a quo” obnubilar esta situação com fundamento que não foi instaurado processo de interdição ou de inabilitação ou com fundamento na existência de mandatário forense.
As funções do advogado constituído estão ligadas ao mandato o qual como qualquer outro contrato pressupõe liberdade contratual e capacidade das partes contratantes não só para o celebrar como para o gerir, manter ou denunciar, coisa que a ofendida neste momento não possui.
Não tendo sido promovida a nomeação de curador “ad litem” quais as consequências processuais decorrentes da ausência de representante geral?
Mais uma vez e perante a lacuna da lei processual penal há que lançar mão do disposto no processo civil por força do invocado art.4º.
O suprimento da incapacidade judiciária, ainda que de facto, ficará sanada mediante a intervenção ou notificação do curador provisório que poderá ratificar os actos anteriormente praticados devendo o processo seguir como se o vício não existisse ou, pelo contrário, não os ratificar, ficando sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a falta se deu ou a irregularidade foi cometida, correndo novamente prazos para a prática dos actos não ratificados (art.23ºns.1 e 2 do CPC).
Assim deverá a Mmª Juiz determinar a notificação de quem deva representar a ofendida no processo para no prazo que lhe for fixado, ratificar, querendo, no todo ou em parte, o processado anterior, suspendendo-se, entretanto a instância, nos termos do art.24ºnº2 do CPC por força do art.4º do CPP.[5]
*
“(…) pode bem suceder que, mercê de anomalia psíquica de que sofra, à data do facto3 ou sobrevinda, o arguido se mostre incapaz de “representar racionalmente os seus interesses, exercer os seus direitos e de conduzir a sua defesa de forma inteligente e inteligível”4. Neste caso, teremos entre mãos toda a agudeza da questão da incapacidade do arguido para estar em juízo que, como logo se vê, difere bem daquela outra a que a prática judiciária e médico-forense está bem mais acostumada, entre nós: a da inimputabilidade em razão da anomalia psíquica. Aqui do que se trata é da questão material da culpa — ausente ou diminuída (artigo 20.º, n.os 1 e 2, do CP); ali do que se cura é da questão processual da capacidade do arguido para o processo ou mesmo para determinado acto processual5.
(…) impõe-se precisar qual o critério, qual o cânone, sobre que havemos de aferir da capacidade do arguido para estar em juízo. Como penso ir já implícito na definição de incapacidade para estar em juízo que acima citei, esse critério só pode ser um: o de estarem ou não reunidas as condições de o arguido exercer pessoalmente a sua defesa. Da mesma forma que, como refracção do direito constitucional à auto-defesa, a quem é arguido é reconhecida, como princípio, a capacidade de praticar todos os actos processuais próprios dessa condição, sem que quem quer que seja o represente em coisa tão decisiva para o seu destino, também onde lhe faltem as condições de saúde mental cuja verificação é pressuposto necessário da organização da própria defesa, nos termos sobreditos, terá de concluir-se que ele não pode ser submetido a julgamento. Breve, ter ou não capacidade para estar em juízo é ter ou não condições para se auto-defender.
(…) manda a nossa Lei Fundamental que o processo penal se estruture como acusatório (artigo 32.º, n.º 5), o que implica (…) que o arguido seja reconhecido como sujeito (e não como objecto) do processo, como alguém que concorre efectiva e autonomamente
para o “dizer” da justiça do caso. Ou seja, ainda na ausência do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, julgo que sempre se teria de deduzir que a defesa técnica (leia-se, a escolha e assistência de defensor), tutelada no n.º 3 da mesma norma, não esgota, não exaure, toda a área do direito de defesa do arguido constitucionalmente reconhecida.
Essa área sempre integraria, como integra — e, na realidade, segundo creio, com precedência à própria defesa técnica, assim instrumentalizada à defesa pessoal —, o direito de o arguido se auto-defender.
De resto, o CPP — de cujo objecto de regulação, o processo penal, soe dizer-se ser “direito constitucional aplicado” — é bem generoso no reconhecimento (e reconhecimento expresso) dos direitos susceptíveis de serem levados à conta de núcleo essencial da auto-defesa, entendida esta como “quociente de contributo pessoal que a parte pode trazer à globalidade do esforço defensivo”8.
(…) a lei prevê como susceptíveis de preencherem o núcleo da defesa pessoal do arguido um compacto conjunto de direitos a exercer pessoalmente por ele, ainda que coadjuvado ou aconselhado por defensor (essencial no que respeita ao estabelecimento tendencial de uma “igualdade de armas” no exercício do contraditório). Exercício que supõe, como logo se alcança, não só a capacidade de compreender a natureza e objecto do processo e as possíveis consequências dele, mas também a capacidade de, de forma racional e efectiva, comunicar e conferenciar com o seu defensor9. avaliar os vários cursos possíveis de acção, de acordo com os seus interesses e possibilidades (…)
De tudo resulta, que “[f]undamental, para efeitos do exercício da autodefesa nas suas diversas manifestações, que implicam contínuas escolhas, é a vontade do arguido”10
(…)
do arguido para estar em juízo é saber se a anomalia psíquica que o afecta é de molde a prejudicar a sua defesa pessoal11. Também já se percebeu — porque implícito na afirmação antecedente — que para o caso de se concluir que o arguido é incapaz para o processo, nos termos sobreditos, o mesmo terá que ficar suspenso12. Porém, dizê-lo assim, sem mais, seria pouco: já porque a lei não estabelece expressamente esse efeito, já porque, como se verá de seguida, aquela suspensão não pode (não deve, ao menos em todos os casos) ser “pura e simples”. O regime dela terá de deduzir-se, terá de ser teleologicamente conformado, em coerência com o que se disse até agora, a partir da necessidade de preservar o núcleo essencial da auto-defesa13.
(…) se o juiz receber acusação para efeitos de designar dia para a audiência já havendo
notícia no processo de que o arguido se acha incapaz de se defender — ou se o juiz tiver razões para suspeitar dessa incapacidade e a confirmar16 — não deve designar essa data e deve suster os termos do processo. Nesta fase, da audiência de julgamento — onde, por excelência, o arguido exerce a sua defesa e expõe os seus argumentos aos perigos e virtudes do contraditório — a suspensão é, por assim dizer, “absoluta”.
(…)
mesmo que o arguido tenha prestado termo de identidade e residência no formulário de estilo nem por isso, apurada a falta de capacidade para intervir de forma inteligente e inteligível no processo, ele deverá ser julgado só porque a carta de notificação foi enviada para a morada constante do termo. Isso só é assim para o arguido com capacidade para participar em juízo e, precisamente, … porque tem essa capacidade e pode decidir por si se ignora ou não a notificação que lhe foi feita com as consequências inerentes.
E assim se vinca a autonomia conceptual e dogmática da capacidade para estar em juízo como verdadeiro pressuposto processual.[6]

Das considerações expendidas na obra, no acórdão e no estudo que acima transcrevemos e que merecem no essencial a nossa concordância, conclui-se que, perante uma incapacidade de facto, grave, total e permanente – posterior à prática dos factos, mas sem se enquadrar na previsão do art. 105º do C. Penal -, que afectava a recorrente, os autos não deviam ter prosseguido para julgamento, na parte que a ela respeita, devendo ter ficado suspensos pelo menos a partir da data em que, com a junção do relatório pericial, se adquiriu nos autos o conhecimento de tal incapacidade.
Faltando esse pressuposto processual, que a representação por advogado constituído ou defensor oficioso não colmata na medida em que o tipo de representação que oferece não pode suprir a capacidade judiciária, enquanto susceptibilidade de um arguido estar por si, em juízo, tudo se passa como se a recorrente “não estivesse em juízo” quando foi submetida a julgamento. O que implica a inobservância dos seus direitos de defesa, com garantia constitucional, e, nomeadamente o de poder estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, enumerado no art. 61º do C.P.P.
Não tendo a recorrente estado presente em juízo no julgamento – e essa ausência não se confunde com o simples facto de não ter comparecido a julgamento nem com o de este ter sido realizado na sua ausência, de acordo com o que a lei permite em determinado condicionalismo – foi praticada a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119º do C.P.P.
Este vício tem como consequência necessária a invalidade, em relação à recorrente, do julgamento e da sentença recorrida, bem como de todo o processado subsequente, de acordo com o disposto no art. 122º do C.P.P
O que aqui desde já se declara.
Questão que se situa a jusante desta é a de saber se a incapacidade de facto do arguido, não sendo caso de dever ser ponderada a aplicação de uma medida de segurança, pode – ou não – ser suprida através da nomeação de curador provisório ou representante geral por aplicação subsidiária das normas do processo civil, a qual nos conduziria à de determinar se os seus direitos de defesa, na parte que respeita à sua auto-defesa, se poderiam considerar como devidamente assegurados por um curador.
Nela não entraremos, porém, na medida em que não se reveste de interesse para a decisão do presente recurso.

3.2. A recorrente sustenta que o procedimento criminal relativamente ao crime pelo qual foi condenada se encontra prescrito na medida em que o correspondente prazo, de 5 anos, que começou a correr a partir de 15/5/2007 ( termo do prazo para a entrega do imposto relativo ao 1º trimestre desse ano ), apenas sofreu uma interrupção, em 12/10/2007 com a notificação da acusação, pelo que, na ausência de quaisquer outras causas de interrupção ou de suspensão, se teria completado em 12/10/2015, data anterior àquela em que foi proferida a sentença recorrida.
Para além disso, o prazo normal de prescrição acrescido de metade já se teria há muito completado, tendo em conta que, desde a data em que iniciou ( 15/5/2007), já haviam decorrido, à data da instauração do recurso, 14 anos e 8 meses e não se verificou qualquer causa de suspensão.

Refira-se, antes de mais, que a procedência do anterior fundamento do recurso tem reflexos decisivos na resposta a dar a esta questão, pois determina que não possamos levar em conta a causa de suspensão contemplada na al. d) do nº 1 do art. 120º do C. Penal[8].
Isto posto, vejamos então como se deve proceder à contagem do prazo prescricional em face dos elementos que constam dos autos e das normas legais[9] que regulam ( e já regulavam ) o instituto da prescrição à data da prática dos factos.
Temos, assim, que:
i) O prazo prescricional, de 5 anos, começou a correr em 15/5/2007;
ii) decorridos 2 anos, 8 meses e 14 dias, foi interrompido em 29/1/2010 com a constituição da recorrente como arguida, iniciando-se nessa data novo prazo ( al. a) do nº 1 e nº 2 do art. 121º );
iii) decorridos 8 meses e 13 dias, foi interrompido com a notificação da acusação à arguida, em 12/10/2010, dando lugar a novo prazo prescricional ( al. b) do nº 1 do art. 121º );
iv) prazo esse que ficou suspenso, com essa notificação, durante 3 anos ( al. b) do nº 1 e nº 2 do art. 120º ), que terminaram em 12/10/2013;
v) a partir de 12/10/2013 começou a correr novo prazo prescricional;
vi) o qual, sem que tenha ocorrido ( validamente ) qualquer outra causa de suspensão ou de interrupção, se veio a completar em 12/10/2018.
Na decorrência, e conforme demonstrado, ainda que de forma não exactamente coincidente com a argumentação expendida pela recorrente, é forçoso concluir pela procedência deste fundamento do recurso, da qual resulta a inutilidade do fundamento sobrante, que queda prejudicado.

4. Decisão
Por todo o exposto, julgam procedente o recurso, declarando extinto, por prescrição, o procedimento criminal contra a recorrente.
Sem tributação.

Évora, 13 de Julho de 2022
Maria Leonor Esteves
Gomes de Sousa
Fernanda Palma

___________________________________
[1] A arguida F... e P..., Lda, e o arguido BB, que foram condenados, a primeira, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 7º e 105º do RGIT e 30º nº 2 do C. Penal, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 5 €, e o segundo, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º e 105º do RGIT e 30º nº 2 do C. Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 4 €.
[2] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[4] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2000, págs.292-293.
[5] Ac. RE 28/11/06, proc. nº 1256/06-1, citado pela recorrente.
[6] Pedro Soares de Albergaria, Anomalia Psíquica e Capacidade do Arguido para estar em Juízo, Revista Julgar, nº 1, ´págs. 173 ss.
[7] Note-se que o aresto da RE de que transcrevemos parte da fundamentação trata de um caso de incapacidade de facto de uma ofendida e, por razões sobejamente sabidas, os direitos dos ofendidos e assistentes não têm nem a mesma extensão nem uma salvaguarda tão intensa como a que é conferida aos do arguido.
[8] Assim não fora e o termo previsível do prazo só ocorreria em 5/6/2023.
[9] Pertencentes ao Código Penal as que a diante serão citadas sem menção especial.