Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
416/19.9T9VRS.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: INJÚRIA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:

1 - Para que se mostrem cumpridos os elementos objectivos do tipo de ilícito no caso do crime de injúria, é necessário que sejam imputados factos ou proferidas palavras, perante o próprio visado, que sejam ofensivas da sua honra e consideração.

2 - Ao proferir as expressões “vai para a merda”, “vai para o caralho”, repetidamente e no local de trabalho da assistente, o arguido não emitiu qualquer juízo de valor em relação à pessoa desta, ainda que sob a forma de suspeita, e as palavras que lhe dirigiu não são suscetíveis de ofender a honra ou consideração da mesma, pese embora se reconheça a forma grosseira e rude das expressões “vai para a merda”, “vai para o caralho”.

3 - É, assim, de concluir que as expressões utilizadas deixam intocada a honra da assistente, porquanto o bem jurídico tutelado pelo art.181º do Código Penal não é por qualquer forma atingido, sendo certo que o direito penal visa a tutela de bens jurídicos, pelo que qualquer conduta que não os afete é atípica, isto é, não é punível.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC nº416/19.9 T9VRS, por decisão de 20 de abril de 2020, o Exmº Juiz de Instrução Criminal decidiu não pronunciar o arguido pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº1, do Código Penal, determinando o oportuno arquivamento dos autos.

X

Inconformada com a decisão, a assistente (...) interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A) A assistente, na sequência do despacho de não pronúncia que decidiu não pronunciar o arguido (...), pela prática de um crime de injúria p.p pelo artigo 181º, nº.1 do Código Penal e, em consequência determinar o arquivamento dos presentes autos.

B) Ocorre as expressões foram repetidas pelo arguido, tendo sido proferidas no local de trabalho da Assistente.

C) Ao que tais expressões proferidas contra a Assistente, neste caso uma Senhora “ vai para a merda “e vai para o caralho “, no seu local de trabalho apresentam um grau elevado de ofensividade, conjugadas com o referido contexto onde foram proferidas.

D) Ao que aquelas expressões tem uma carga injuriosa, não podendo ser apenas considerada uma mera manifestação de falta de civismo ou educação, pois, trata-se de uma expressão que, no sentir comum da comunidade, e tida como obscena e ofensiva e que atingiu a honra e consideração do assistente, sejam quais forem os respectivos conceitos que se perfilhe.

E) Sendo que existe entendimento jurisprudencial nesse sentido” Tribunal da Relação de Coimbra pelo Acórdão de 02-11-2011.”

F) Razão pela qual deve revogar-se a decisão instrutória e proferir-se decisão de pronúncia, pela prática de um crime de injúria p.p pelo artigo 181º, nº.1 do Código Penal do arguido em conformidade como artigo 308º do Código processo.

ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!

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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.


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O Ministério Público respondeu ao recurso nos seguintes termos:

“A questão controvertida é saber se as expressões “vai para a merda” e “vai para o caralho” ditas de viva voz e com intenção de ofender a honra e a consideração da Assistente constitui um crime de injuria, p. e p.p. art.º 181º, n.º 1 do Código Penal.

A Recorrente entende que tais expressões proferidas no seu local de trabalho apresentam um grau elevado de ofensivamente.

O Tribunal a quo fez um percurso pela doutrina e pela jurisprudência e concluiu que os elementos típicos do crime de injúria não se encontravam indiciariamente preenchidos, porquanto os conceitos de honra e da consideração devem ser interpretados com cautela, pois nem todas as expressões ofensivas merecem relevância jurídico penal.

Concretamente:

• “(…) é certo que as expressões foram repetidas pelo arguido, tendo sido proferidas no local de trabalho da Assistente”.

• “(..) de facto, as expressões em causa, embora certamente geradoras de consternação, não atacaram diretamente a honra e a consideração pessoal da Assistente, pois que não correspondem à imputação de qualquer facto nem apresentar um cariz vexatório”.

O Ministério Público revê-se no teor do despacho em crise, nada mais tendo a acrescentar.

TERMOS EM QUE, deve ser negado provimento ao recurso.” *

O arguido não respondeu ao recurso.

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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador da República emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta ao Parecer.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

Cumpre decidir.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ nº7/95, de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág.335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Reis dos Livros, pág.103; Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág.196.)

No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº1, do Código Penal.


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No Processo acima identificado foi proferida, em 20 de abril de 2020, a seguinte decisão instrutória:

“I – Relatório

Por requerimento de 09/12/2019, a Assistente (...) deduziu acusação particular contra o arguido (...), imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Cód. Penal.

Baseou-se no teor do depoimento da Assistente e das testemunhas (…).

O Digno Magistrado do Ministério Público, por despacho de 10/12/2019, não aderiu à acusação particular.

Inconformado, veio o arguido, em 24/01/2020, requerer a abertura de instrução, negando a prática dos factos e referindo que, mesmo que tais factos se mostrassem indiciados, não consubstanciariam a prática do crime que lhe é imputado.

A requerida abertura de instrução foi deferida por despacho de 17/02/2020.

Houve lugar à realização do debate instrutório, que decorreu sob observância de todo o formalismo legal, como da respectiva acta consta.


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II – Despacho saneador

O Tribunal é o competente.

Não existem nulidades ou questões prévias que importem conhecer.


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III – Das finalidades da instrução

Estabelece o art.º 286.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

Por seu turno, estatui o artigo 308.º que, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Nos termos do n.º 2 do art.º 283.º, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Conforme refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 1993, Verbo, Tomo II, págs. 85 e 86, “a prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa. A natureza indiciária da prova significa que não se exige a prova plena, a «prova», mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal”.

No caso dos autos, importa aferir se se mostram indiciados os factos constantes da acusação.


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IV – Dos factos indiciados na acusação

Com relevo para a decisão, na acusação foram julgados suficientemente indiciados os seguintes factos:

1. No dia 3 de Agosto de 2019, pelas 10h20 horas, quando a Assistente se encontrava no seu local de trabalho, no estabelecimento comercial “mercearia” sita na Rua (…), o arguido, dirigindo-se para dentro do referido estabelecimento, proferiu as seguintes expressões: “vai para a merda”, “vai para o caralho”, referindo ainda que a Assistente tinha ido falar mal do arguido a familiares deste.

2. Tais expressões foram proferidas em voz alta, na presença das pessoas que ali se encontravam.

3. O arguido persistiu em tal conduta, repetindo as expressões, mesmo após a Assistente ter pedido para que o mesmo saísse do estabelecimento.

4. O arguido agiu com o propósito de injuriar a Assistente, sabendo que as expressões eram aptas a ofender a sua honra e a consideração.

5. Agiu, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.


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V – Da análise dos indícios

O arguido requereu a abertura de instrução, negando por um lado a prática dos factos e, por outro, referindo que os factos que lhe são imputados não integram o crime de injúria.

Apreciando.

No que concerne ao crime de injúria, preceitua o art.º 181.º, n.º 1, do Cód. Penal o seguinte:

“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”

A injúria pode definir-se como “a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado” (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, volume II, pág. 317), sendo que a difamação difere de tal crime pelo facto de o mesmo não ser proferido directamente perante a pessoa visada pelas expressões.

O bem jurídico protegido no crime em apreço é a honra e a consideração pessoal.

Para que se mostrem cumpridos os elementos objectivos do tipo de ilícito no caso do crime de injúria, é necessário que sejam imputados factos ou proferidas palavras, perante o próprio visado, que sejam ofensivas da sua honra e consideração do visado.

Os conceitos de honra e consideração devem ser interpretados com um certo grau de cautela, pois nem todas as expressões ofensivas merecem relevância jurídico-penal.

Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 3ª ed., pág. 469, sumariamente, definem honra como sendo a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz, assim, respeito ao património pessoal e interno de cada um. A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva e a forma como a sociedade vê cada cidadão.

Deste modo, apenas as expressões capazes de ferir a dignidade subjectiva da pessoa humana, ou a reputação e estima social, é que são penalmente relevantes, designadamente para efeitos de preenchimento dos elementos típicos do crime de injúria.

No que diz respeito ao tipo subjectivo, estamos perante uma infracção necessariamente dolosa, nos termos do artigo 13º do Código Penal. O elemento subjectivo do tipo traduz-se, assim, na consciência de que a aludida imputação ou palavras são de molde a ofender a pessoa visada na sua honra ou consideração.

No caso em apreço, e sem necessidade de qualquer aprofundamento, o facto do arguido ter mencionado que a Assistente havia ido “falar mal” de si a familiares em nada contende com a honra e a consideração desta. Por via disso, tal expressão não tem qualquer dignidade penal.

Importa, por conseguinte, que nos debrucemos sobre as expressões “vai para a merda” e “vai para o caralho”. Relativamente às mesmas, a jurisprudência não é unânime.

De facto, existe entendimento jurisprudencial que sufraga que as expressões em análise, apesar de grosseiras e indubitavelmente desagradáveis, não são susceptíveis de ferir a dignidade do visado, designadamente na sua honra e consideração pessoal.

Por sua via, Acórdãos há que defendem que as expressões em apreço, pela sua conotação brejeira e negativa, são aptas a ferir a honra do respectivo destinatário.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/01/2017, proc. n.º 427/13.8GAARC.P1-A.S1, disponível in www.dgsi.pt, faz referência detalhada a ambas as posições referidas e, embora não aprecie o mérito da questão, propugna o entendimento que as expressões devem ser casuisticamente analisadas, conjugadas com o respectivo contexto em que foram proferidas.

No caso em análise, é certo que as expressões foram repetidas pelo arguido, tendo sido proferidas no local de trabalho da Assistente. Não obstante, entende o Tribunal que as mesmas não assumem gravidade suficiente para permitir concluir pela imputação do crime pelo qual o arguido se mostra acusado.

De facto, as expressões em causa, embora certamente geradoras de consternação, não atacaram directamente a honra e a consideração pessoal da Assistente, pois que não correspondem à imputação de qualquer facto nem apresentam um cariz vexatório.

Deste modo, e independentemente da concreta análise da verificação dos indícios constantes da acusação particular, considera o Tribunal que a descrição factual constante de tal peça, por si só, não permite concluir pelo preenchimento do crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Cód. Penal.

Por via disso, impõe-se a não pronúncia do arguido.


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VI – Decisão

Face ao supra exposto, o Tribunal decide não pronunciar o arguido (...), pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Cód. Penal e, em consequência, determinar o arquivamento dos presentes autos.


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Custas pela Assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s (devendo ser considerado o valor já pago a título de taxa de justiça devido pela constituição como Assistente).

Notifique.

Oportunamente arquive.”

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Apreciando

A instrução visa, nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do CPP, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A instrução, enquanto fase jurisdicional, compreende a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento, só devendo o juiz pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção no sentido de que há uma possibilidade razoável de o arguido ter cometido o crime objeto de acusação.

Assim, pronuncia o arguido quando “tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (artigo 308º, nº 1 do CPP), sendo a apreciação dos indícios nos termos dos artigos 308º, nº 1 e 283º, nº 2 do CPP feita de acordo com os elementos probatórios apurados, constantes do inquérito e da instrução, exigindo um juízo de prognose do qual resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, pois que «não se basta a lei com um mero juízo subjetivo, mas antes exige um juízo objetivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação» (cfr. Germano Marques da Silva. Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 183).

A instrução configura-se assim como fase processual sempre facultativa destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida e como atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal.

Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de ato processual.

Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como supra referido, na suficiência de indícios.

E, nos termos do n.º 2 do artigo 283.º do CPP “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Assim, para que seja proferida uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final.

Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento, que, porém, só deverá ocorrer quando existam indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.

Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Vejamos

Objeto do recurso interposto é a decisão instrutória e o que se impõe apreciar é se tal decisão deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº1, do Código Penal.

O art 181.º, n.º 1 do Código Penal confere tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e aos seus bom nome e reputação, ao estabelecer que comete o crime de injúria “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.

O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.

Os direitos à integridade moral e ao bom-nome e reputação dispõem de respaldo no texto constitucional e são emanação da base primeira que sustenta e legitima a República: a dignidade da pessoa humana (art. 1.º da Lei Fundamental).

Dispõe efetivamente o n.º 1 do artigo 25.º da Constituição da República que “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”.

E o artigo 26.º estabelece que a “todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Quanto ao elemento subjetivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei (vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2009.10.21, processo n.º 1/08.0TRLSB.S1, sumariado in www.stj.pt). O dolo específico (o chamado «animus injuriandi vel diffamandi», ou seja a intenção concreta de ofender determinada pessoa) não integra o tipo subjetivo, enquanto parte do tipo de ilícito.

Quanto ao elemento objetivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o agente imputa à vítima factos desonrosos ou dirige-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração.

Revertendo ao caso sub judice, dir-se-á :

“ Como se escreveu no Ac. R. Évora de 28.05.2013, a respeito de idêntica expressão, «sendo indiscutivelmente rudes, assumidamente ordinárias, claramente grosseiras, e obviamente deselegantes, que qualificam negativamente quem as profere e que ofendem as normas de convivência social e aquele mínimo de respeito comunitário que é suposto existir, não atingem, contudo, aquele núcleo essencial do conceito de honra e consideração de forma a merecer a tutela penal.

Na verdade, uma coisa é a grosseria, a má educação, a utilização de linguagem desbragada ou obscena e outra, bem diversa, é que tal comportamento, eticamente reprovavelmente e moralmente censurável, traduza um atentado à personalidade moral do interlocutor».

Com efeito, há que ter em consideração que “a ofensa à honra ou consideração não é suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direcionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objeto de sanção penal”.

A jurisprudência tem entendido que a mera verbalização de palavras obscenas, são absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal.” ( cfr. Acs. da Relação do Porto, de 27.04.2016, de 25.06.2003, de 19.04.2016, de 12.06.02 e de 19.12.2007 e da Relação de Coimbra de 06.01.2010, todos disponíveis em www.dgsi.pt.).

E, sufragando, integralmente e com as devidas adaptações, tal entendimento, concluímos não assistir razão à assistente.

Com efeito, ao proferir as expressões “vai para a merda”, “vai para o caralho”, referindo ainda que a Assistente tinha ido falar mal do arguido a familiares deste, o arguido não emitiu qualquer juízo de valor em relação à pessoa da assistente, ainda que sob a forma de suspeita, e as palavras que lhe dirigiu não são suscetíveis de ofender a honra ou consideração da mesma, pese embora se reconheça a forma grosseira e rude das expressões “vai para a merda”, “vai para o caralho”.

É, assim, de concluir que as expressões utilizadas deixam intocada a honra da assistente, porquanto o bem jurídico tutelado pelo art.181º do Código Penal não é por qualquer forma atingido, sendo certo que o direito penal visa a tutela de bens jurídicos, pelo que qualquer conduta que não os afete é atípica, isto é, não é punível.

É que o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito penal seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – (cfr. Ac. da RP de 19.1.2005, in dgsi.pt.) e “ (…) a protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos lesivos desse bens jurídicos só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações, em que, uma vez ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente lesivas da honra e da consideração do lesado” (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 20/03/2006, in www.dgsi.pt).

Termos em que improcede o recurso.


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Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em :

- Negar provimento ao recurso interposto pela assistente, confirmando a decisão recorrida.

- Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 23 de fevereiro de 2021

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Laura Goulart Maurício

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Maria Filomena Soares