Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1592/11.4TBSSB-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: MORA DO DEVEDOR
INTERPELAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 02/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A obrigação de juros é exigível desde a data da constituição em mora.
A interpelação do credor não é necessária, para o início da mora, quando a obrigação tem prazo certo.
Existe litigância de má-fé no caso em que o embargante alega nada dever por ter já pago a dívida quando se demonstra que a dívida se mantém.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:

Os Apelantes/Exequentes AA, BB e CC vêm interpor recurso da douta sentença que foi proferida a 01 de Junho de 2015 (ora a fls. 123 a 134) no Tribunal Judicial, nestes autos de oposição à execução, que aí lhes haviam instaurado os Apelados/Executados DD e EE [correndo a execução pelo valor de € 81.565,84 (oitenta e um mil, quinhentos e sessenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos) e juros, e tendo como título executivo escritura pública de mútuo com hipoteca, celebrada em 29 de Outubro de 2008] – decisão aquela que, julgando em parte procedente a oposição, para lá de absolver ambas as partes duma condenação por litigância de má-fé, veio ainda a determinar “que à quantia exequenda sejam descontados os montantes reclamados a título de juros à taxa de 10%, e se proceda à contabilização do capital em dívida acrescido de juros de mora à taxa de 4%, vencidos desde a data da citação” (com o fundamento que aí é aduzido de queé por demais evidente que tal alegado pagamento foi efabulado, sublinhando que provado está nos autos que os pagamentos efectuados pelos executados se destinaram à amortização do empréstimo a que se alude na alínea g) da matéria de facto provada”; queapenas é exigível aos executados o pagamento do capital em dívida, acrescido de juros de mora à taxa de 4%, vencidos desde a data da citação, e não desde 29 de Abril de 2009, porquanto os executados contestam o incumprimento da obrigação”; e quenão demonstrando os autos, de forma manifesta e inequívoca, que as partes tenham litigado com dolo ou negligência grave, devem as mesmas ser absolvidas do pedido de condenação como litigantes de má-fé”) –, intentando ver agora revogada essa decisão da 1ª instância, alegando, para tanto e em síntese, que discordam apenas da fixação do termo inicial dos juros de mora na data da citação, porquanto a obrigação era de prazo certo e nele não foi cumprida, assim se tendo os devedores constituído em mora desde tal data (pois que “nada justifica que se premeie o devedor pelo atraso no cumprimento da obrigação”, aduzem). Depois, deverão os executados vir ainda a ser condenados como litigantes de má-fé, pois “com o seu articulado de oposição, alteram intencionalmente a verdade dos factos”, tendo em conta o que vieram alegar e o que, afinal, se provou. São, assim, termos em que, remata, deverá a douta sentença recorrida vir a ser alterada nessas partes.
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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Vêm dados por provados os seguintes factos:

a) AA, BB e CC instauraram acção executiva para pagamento de quantia certa, contra DD e EE, para obter o pagamento coercivo de € 81.565,84 (oitenta e um mil, quinhentos e sessenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
b) À execução serve de base a escritura pública de mútuo com hipoteca, celebrada no dia 29 de Outubro de 2008, constante de fls. 6 a 9 dos autos de execução e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.
c) Nos termos desse referido mútuo, FF concedeu aos executados um empréstimo de € 64.890,00 (sessenta e quatro mil e oitocentos e noventa euros) e juros, para fazer face a problemas financeiros e de liquidez da sociedade “GG, Lda.”.
d) O valor supra mencionado (que os executados declararam ter recebido e do qual se confessaram devedores) foi concedido através da entrega de cheque (n.º 5100000125), sacado sobre o “Banco”, num valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), datado de 28 de Outubro de 2008, e ao qual acresceu o valor de € 10.000,00 (dez mil euros) que a mãe dos exequentes havia emprestado aos executados em 30 de Junho de 2006.
e) O empréstimo seria reembolsado no prazo de seis meses, a contar da data da celebração da dita escritura, tendo as partes acordado entre si que sobre o valor do empréstimo acresceriam juros à taxa de 10% (dez por cento) em caso de não pagamento na data de vencimento e contados sobre esta.
f) Para garantia do pagamento das responsabilidades emergentes do empréstimo em apreço, foi constituída, a favor da mutuante, hipoteca sobre o prédio urbano descrito a fls. 8 dos autos de execução.
g) Para além do empréstimo aludido em b), em 14 de Novembro de 2008, a mãe dos exequentes, a pedido dos executados, concedeu à ‘GG, Lda.’ um outro empréstimo num valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), através da entrega do cheque n.º 1500000129, sacado sobre o “Banco”, no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
h) Os executados comprometeram-se a pagar o sobredito empréstimo até ao dia 30 de Setembro de 2009, tendo sido acordado que, sobre esse valor, se venceriam juros à taxa de 10% (dez por cento) num valor de € 4.166,70 (quatro mil, cento e sessenta e seis euros e setenta cêntimos).
i) Para garantia do empréstimo aludido em g), a “GG, Lda.” emitiu uma letra no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a favor da mãe dos exequentes, avalizada por todos os sócios da sociedade e respectivos cônjuges.
j) Mais foi convencionado que os pagamentos que fossem efectuados seriam para amortizar o empréstimo referido supra em g), e só após a sua total liquidação, se passaria a amortizar o empréstimo aludido supra em b).
k) Para pagamento dos empréstimos que foram concedidos, quer aos executados a título pessoal, quer à “GG, Lda.”, e respectivos juros, no valor global de € 119.056,70 (cento e dezanove mil, cinquenta e seis euros e setenta cêntimos), os executados entregaram à mãe dos exequentes, 11 (onze) cheques: cheque no valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos e quinze euros), datado de Novembro de 2008; cheque no valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos quinze euros), datado de Dezembro de 2008; cheque no valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos e quinze euros), datado de Janeiro de 2009; cheque num valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos e quinze euros), datado de Fevereiro de 2009; cheque no valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos e quinze euros), datado de Março de 2009; cheque num valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos e quinze euros), datado de 30 de Abril de 2009; cheque no valor de € 10.833,34 (dez mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos), datado de 30 de Maio de 2009; cheque no valor de € 10.833,34 (dez mil, oitocentos trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos), datado de 30 de Junho de 2009; cheque no valor de € 10.833,34 (dez mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos), datado de 30 de Julho de 2009; cheque num valor de € 10.833,34 (dez mil e oitocentos e trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos), datado de Agosto de 2009; e cheque no valor de € 10.833,34 (dez mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos), datado de 30 de Setembro de 2009.
l) O cheque datado de 12 de Novembro de 2008, passado à ordem da mutuante com o nº 00909719, no valor de € 1.424,00 (mil, quatrocentos vinte e quatro euros) foi descontado a 18 de Novembro de 2008 e utilizado para pagar os juros que a mãe dos exequentes deixou de receber em virtude de ter tido necessidade de mobilizar aplicações para poder corresponder à urgência do empréstimo de que os executados necessitavam.
m) O cheque datado de 30 de Novembro de 2008, passado à ordem da mutuante e com o n.º 00909468, num valor de € 10.815,00 (dez mil e oitocentos e quinze euros) foi descontado a 03 de Dezembro de 2008 e utilizado para amortizar o empréstimo concedido à “GG, Lda.”.
n) O cheque datado de 30 de Dezembro de 2008, passado à ordem da mutuante e com o n.º 00909476, num valor de € 10.815,00 (dez mil e oitocentos e quinze euros) foi descontado em 07 de Janeiro de 2009, e utilizado para amortizar o empréstimo concedido à “GG, Lda.”.
o) O cheque datado de 31 de Janeiro de 2009, passado à ordem da mutuante e com o n.º 00909506, num valor de € 10.815,00 (dez mil e oitocentos e quinze euros) foi descontado a 23 de Fevereiro de 2009, e utilizado para amortizar o empréstimo concedido à “GG, Lda.”.
p) O cheque passado em Março de 2009, num valor de € 10.815,00 (dez mil, oitocentos e quinze euros), foi devolvido por falta de provisão e substituído por um novo cheque, no mesmo valor, datado de 30 de Novembro de 2009.
q) Em Abril de 2009, a aludida sociedade e os executados, devido a circunstancialismos de ordem financeira e a compromissos assumidos com fornecedores, Finanças e Segurança Social, e após terem contactado a mutuante FF, acordaram protelar o pagamento da quantia em débito mediante o pagamento dos juros respeitantes ao protelamento requerido.
r) O cheque datado de 03 de Abril de 2009, passado à ordem da mutuante e com o n.º 9266547628, num valor de € 865,00 (oitocentos e sessenta e cinco euros), foi descontado no dia 06 de Abril de 2009, e utilizado para pagamento dos juros referidos supra em q).
s) O cheque datado de 28 de Abril de 2009, passado à ordem da mutuante e com o n.º 9266550829, num valor de € 815,00 (oitocentos e quinze euros), foi descontado no dia 30 de Abril de 2009, e utilizado para pagamento dos juros referidos supra em q).
t) No dia 07 de Agosto de 2009, os executados entregaram à mãe dos exequentes a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), para pagamento parcial do cheque que se havia vencido em 31 de Julho de 2009, tendo ficado por liquidar o montante de € 2.833,34 (dois mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos), relativamente a esse cheque.
u) Em Agosto de 2009 o cheque passado no valor de € 10.833,34 (dez mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e quatro cêntimos) foi devolvido por falta de provisão, tendo sido regularizado a 15 de Dezembro de 2009, mediante transferência bancária.
v) A 15 de Dezembro de 2009 foi feita uma transferência bancária a favor da mutuante, no valor de € 4.050,69 (quatro mil e cinquenta euros e sessenta e nove cêntimos), para regularização do remanescente do cheque datado de 30 de Agosto de 2009, devolvido por falta de provisão, e para pagamento dos juros que se haviam vencido até 18 de Setembro de 2009 sobre os cheques datados de 30 de Abril de 2009, 30 de Maio de 2009, 30 de Junho de 2009 e 31 de Julho de 2009, que não haviam sido pagos.
w) O cheque datado de Fevereiro de 2009 foi devolvido por falta de provisão, tendo os executados acordado com a mãe dos exequentes substituí-lo por um novo cheque, no mesmo valor, datado de 30 de Outubro de 2009.
x) Em 31 de Março de 2011, a executada, em correio electrónico enviado ao mandatário dos exequentes, reconheceu que existe a dívida em crise nos autos e comprometeu-se a liquidá-la durante o ano de 2011.
y) Os pagamentos efectuados pelos executados não foram suficientes para pagar a totalidade do empréstimo concedido à “GG, Lda.”, tendo os exequentes instaurado acção executiva, a qual corre os seus termos na comarca de Loures, com o nº 841/12.6TCLRS, contra a dita sociedade e avalistas da letra aludida em i), para a cobrança do remanescente do valor de tal empréstimo que se encontra por liquidar.
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Ora, as questões que demandam apreciação e decisão da parte do tribunal ad quem são as de saber do termo inicial do prazo de exigibilidade da obrigação de juros – se desde 29 de Abril de 2009, se desde a citação – e duma pretendida condenação dos oponentes/executados/recorridos como litigantes de má-fé. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado [pois é de notar que os apelantes agora expressamente vêm aceitar o demais em que decaíram, designadamente quanto à própria redução da taxa de juros encetada na douta decisão recorrida, de 10% para 4% ao ano].

Mas adiantando, desde já, razões, e salva melhor opinião, se constata que, afinal, a douta sentença impugnada não decidiu acertadamente as problemáticas que ora vêm colocadas e são objecto do recurso, porquanto tanto a obrigação de juros é exigível desde a data da constituição em mora, como, ainda, sobressai a total alteração da factualidade, por parte dos oponentes, ao dizerem na oposição que a dívida executada se achava paga, quando se veio a apurar que não estava.
Com efeito, nos termos do artigo 804º, nº 2, do Código Civil, “O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido”; por seu turno, o nº 1 do artigo seguinte, estabelece que “O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”; mas importa atentar a que “Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo” (seu nº 2, alínea a)). Por último, “Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora” (vide o seu artigo 806º, nº 1).

Ora, verifica-se, no caso sub judicio, que estava prevista a data de 29 de Abril de 2009 como a do vencimento dos empréstimos, isto é, transcorridos que fossem seis meses sobre a data da escritura pública de mútuo com hipoteca que titulou os créditos e serviu de base à execução de que os presentes são apenso – celebrada, recorde-se, no dia 29 de Outubro de 2008 (vide os factos provados).
Consequentemente, de acordo com aqueles dispositivos legais citados, os devedores constituíram-se aí em mora, independentemente de interpelação para pagarem, pois já sabiam que tinham que pagar naquela data. Logo, ao contrário do que decidiu a douta sentença, não releva o facto de os executados virem a contestar o incumprimento da obrigação que lhes é imputado: isso só revelaria, naturalmente, se lhes tivesse sido dada razão (e aí, nem sequer tinham que pagar quaisquer juros, pois teriam cumprido e nada estaria em dívida, pelo que aquela sua contestação não tem nenhuma relevância para esta questão do termo inicial da sua obrigação de juros).

Quanto à problemática da litigância de má-fé – de que os Apelados foram absolvidos na 1ª instância e de que os Apelantes também recorrem –, estamos em crer que lhes assistirá razão no inconformismo que manifestam em relação à decisão tomada, salva naturalmente melhor opinião que a nossa.
Não que perfilhemos, aqui, qualquer visão mais cerceadora dos direitos de que dispõem as partes nos processos jurisdicionais (que não defendemos), o que poderia conduzir a que a parte que não provasse a versão dos factos que aduzisse, caía logo sob alçada da litigância de má-fé. Nada disso, consabidas as vicissitudes que estão por detrás da actividade probatória nos processos e que a verdade formal que neles se alcança poderá estar, muitas vezes, bem distante da realidade subjacente, assim já não bastando à parte ter que aceitar a injustiça duma factualidade provada não condizente com a realidade, como ainda ter que arcar com os custos e o labéu da condenação por litigância de má-fé. Para além de que importará sempre conceder-lhes a maior liberdade de alegação e prova, para defesa plena dos direitos, sob pena de se passar a colocar mesmo em causa o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais e acabando por inibir os cidadãos de se defenderem livre e plenamente, somente pelo receio de logo incorrerem na condenação por litigância de má-fé.
E uma tal atitude cautelosa dos Tribunais, nesta matéria, não deixa de ter arrimo na lei – artigo 542º do Código de Processo Civil –, quando estabelece a necessidade do dolo ou culpa grave nos comportamentos para tal elegíveis.

Porém, não podem subsistir dúvidas de que, em casos como o presente, a atitude da parte é perfeitamente passível de integrar a previsão da lei podendo eleger-se para um juízo de censura que conduzirá à condenação por litigância de má-fé, designadamente por saberem os oponentes que estavam a apresentar uma versão factual totalmente desfasada da realidade, para assim alcançarem finalidades que não podem ser branqueadas. Pois que vêm afirmar terem pago a totalidade da dívida objecto da execução, quando se demonstra exactamente o contrário. E trata-se de factualidade pessoal de que não podiam deixar de saber.

Pelo que, ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.º 1 e 543.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se julga adequado condenar os oponentes na multa de três UCs., bem assim como na peticionada indemnização de € 6.000,00 à parte contrária – que, recorde-se, também os Apelados consideravam adequada para vir a aplicar aos próprios Apelantes, mas do que a douta sentença impugnada a todos veio a absolver.

Razões para que, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se deva, ainda, vir a retirar na ordem jurídica – nos segmentos impugnadas no recurso – a douta sentença da 1ª instância que assim veio a decidir, e vindo a proceder o presente recurso de Apelação.

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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao recurso, e revogar a douta sentença recorrida nas partes impugnadas – passando os juros a ser contabilizados de 29 de Abril de 2009 em diante, até integral pagamento, e os oponentes condenados, como litigantes de má-fé, em conjunto, numa multa de três UCs., e na indemnização de € 6.000,00 (seis mil euros) à parte contrária.
Custas pelos Apelados.
Registe e notifique.
Évora, 4 de fevereiro de 2016

Canelas Brás

Jaime Pestana

Paulo Amaral