Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
139/14.5TBENT.E1
Relator: ABRANTES MENDES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 05/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A aplicação da lei nova, sem mais, aos títulos executivos formados ao abrigo da lei anterior e ainda subsistentes lesa direitos adquiridos dos credores que apenas a prossecução de um elevado interesse público poderia derrogar.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 139/14.5TBENT.E1 (2.ª Secção)



Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

Nos autos de execução pendentes na comarca de Santarém (Entroncamento – Inst. Central – Sec. Execução – J2), em que é exequente CAIXA DE CREDITO AGRÍCOLA MUTUO (…) e executados (…) e (…), veio o exequente interpor recurso da decisão constante de fls. 19 a 22 dos autos, através da qual, se considerou a inexistência de título executivo (não subsunção à previsão legal constante da alínea d) do n.º 1 do art. 703.º do Novo Código de Processo Civil – NCPC) razão porque se indeferiu liminarmente o requerimento executivo.
Sustentam o recorrente, em síntese, nas conclusões das doutas alegações apresentadas:
1 - Os documentos particulares de reconhecimento de dívida, meramente assinados pelo devedor, cujo montante é determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, apenas foram admitidos como título executivo pela lei processual civil desde a revisão operada no CP.C em 1995.
2 - Já em data anterior a 1995 o RJCAM previa a executoriedade dos documentos particulares, em execuções instauradas pelas caixas agrícolas.
3 - O art. 33° do RJCAM já provém do anterior regime jurídico do crédito agrícola mútuo que foi revogado pelo DL n. 24/90 de 11 de Janeiro de 1991, sendo o art. 38.° do DL 231/82 de 17 de Junho; desde 1982 que o regime jurídico do crédito agrícola mútuo prevê, sem alterações, que para efeito de cobrança coerciva de empréstimos vencidos e não pagos, seja qual for o seu montante, servem de prova e título executivo as escrituras, os títulos particulares, as letras, as livranças e os documentos congéneres apresentados pela caixa agrícola exequente, desde que assinados por aquele contra quem a acção é proposta, nos termos previstos no CPC.
4 - O mesmo ocorre com as letras e livranças, que desde a entrada em vigor do DL 231/82 de 17 de Junho (RJCAM) que servem de título executivo nas execuções instauradas pelas caixas agrícolas, no entanto, em 1982 a lei processual civil, no seu art. 51.° previa a obrigatoriedade de reconhecimento de assinatura nas letras, livranças e cheques de montante superior à alçada da relação para poderem ser considerados títulos executivos.
5 - O art. 33.° do RjCAM é, assim, disposição especial face ao Código de Processo Civil, não tendo sofrido com a alteração operada pela Lei 47/2013 de 26 de junho; sendo disposição especial que confere a força de título executivo, o mesmo cai no âmbito da aI. d), do n.º 1 do art. 703.° do atual CPC.
6 - O documento particular que a Recorrente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…) apresenta à execução, consubstancia-se num Contrato de Mútuo denominado "Crédito a Particulares" datado de 30/12/2008, assinado pelos executados, pelo que é manifesto que o Contrato em causa é título executivo, em conjugação do art. 33° do RjCAM com o art. 703.°, n.º 1, aI. d), do CPC.
7 - O documento particular dado à execução, é, igualmente, título executivo, em virtude de ter sido celebrado ao abrigo de lei que previa a sua executoriedade.
8 - O art. 12° do C.C. dispõe expressamente que quando a lei dispõe sobre a validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, aqui se entendendo, igualmente, os efeitos processuais de atribuição de força executiva, a lei só visa os factos novos.
9 - Não fosse esta interpretação a fazer, estaria a colocar-se em causa a segurança jurídica, dado que as pessoas agiram, negociaram e formalizaram contratos na convicção que estavam munidos de título executivo, dado que estavam a respeitar o disposto na lei então em vigor.
10 - Impedir a Recorrente de executar um documento que, à data da sua celebração, era título executivo tendo sido celebrado expressamente com esse intuito - com o fundamento da lei ter sido alterada quatro anos depois da sua celebração, é desvirtuar a segurança jurídica que deve imperar.
11 - A interpretação das normas do art. 703° do novo CPC e 6° n.3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46° n01 c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do princípio da segurança jurídica e do princípio da protecção da confiança legítima, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, a que se refere o artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa que determina que as autoridades públicas não devem contrariar ou afectar com os seus actos as expectativas legítimas dos particulares, a não ser que um interesse de peso superior justifique essa afectação.
Termos em que deve ser proferido acórdão que revogue a douta decisão da 1 a instância, que violou as normas jurídicas citadas nestas alegações, ordenando-se o prosseguimento da execução.

Não houve contra alegações.
Tudo visto, cumpre decidir:
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelos recorrentes (art.635.º n.4 e 639.º todos do Código de Processo Civil), da leitura das mesmas resulta que a questão essencial a dirimir prende-se em saber se, face ao teor do requerimento executivo e demais documentação ao mesmo junta, se poderá considerar ou não a existência de título executivo, reconduzível ao preceituado no art. 703.º n. 1 alínea d) do CPCivil (aprovado pelo Lei n. 41/2013 de 26 de Junho).

Vejamos, antes de mais, o que dispõe este preceito legal:
"1 - À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
2 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante."

Segundo o requerimento executivo inicial, o título executivo é constituído por um escrito particular, assinado pelos devedores/executados em 30 de Setembro de 2008, relativo à concessão de um crédito no valor de € 23.750,00, verificando-se, segundo o petitório, que o incumprimento por parte dos devedores teve o seu início em 29.10.2012, portanto, antes da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Nos termos do n.º 1 do artigo 33.° do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo - RGCAM (Decreto-Lei n." 24/91 de 11.01, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n." 142/2009 de 16.06): "para efeitos de cobrança coerciva de empréstimos vencidos e não pagos, seja qual for o seu montante, servem de prova e título executivo, as escrituras, os títulos particulares, as letras, as Iivranças e os documentos congéneres apresentados pela caixa agrícola exequente, desde que assinados por aquele contra quem a acção é proposta, nos termos previstos no Código de Processo Civil."
Dispondo o n.º 3 do art. 7.° do Código Civil que "a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador", e não obstante o legislador não haver manifestado, em termos inequívocos, o propósito do revogar o acima transcrito art. 33.º n. 1 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo - RGCAM, entendeu a Senhora Juiz “a quo”, não obstante, que da exposição de motivos da Proposta de Lei n. 113/xii de 22.11.20121 resultava que o legislador não pretendia privilegiar alguns credores em detrimento de outros, razão porque se concluiu pela existência de uma intenção em revogar também tal norma.
Salvo o devido respeito, parece-nos que tal entendimento não é o que melhor se adequa à ideia de justa composição do litígio em termos de segurança jurídica e salvaguarda da confiança e legítimas expectativas das pessoas singulares e colectivas.

Com efeito, há que reconhecer que a Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (que aprovou o novo Código de Processo Civil) contém uma norma transitória dirigida à “Acção executiva” (art.º 6b, n.º 1) que prevê a aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, acrescentando o n.º 3 que “O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.

Porém, um tal aspecto não permite, sem mais, que a exposição de motivos aludida leve à conclusão plasmada na douta decisão recorrida já que, em termos de técnica legislativa, devia ter existido uma inequívoca afirmação de que os regimes especiais anteriormente vigentes para os escritos particulares se achavam revogados com a publicação da nova lei. É que «o princípio da protecção da confiança exprime uma ideia de justiça que aprofunda o Estado de direito democrático. Segundo ela, o Estado não pode legislar alterando as expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas, a não ser que razões ponderosas o ditem. Prevalecem, neste último caso, a necessidade e o valor dos fins almejados, perante a segurança e a solidez das expectativas. Mas tal sacrifício das expectativas deve ser previsível para os cidadãos atingidos e não desproporcional à lesão dos interesses subjacentes ou, dito de outro modo, exigível (cfr. Acórdão nº 287/90, D.R., II, de 20 de Fevereiro de 1991).

No caso concreto, o que se verifica é uma inequívoca afectação das expectativas geradas para o credor uma vez que, já depois de constituído o direito que agora se pretende fazer valer, ocorreu uma inesperada mutação da ordem jurídica que afecta unilateralmente o equilíbrio jurídico decorrente do acordo de vontades que foi estabelecido ainda antes das alterações legislativas. Daí que perfilhemos o entendimento de Maria João Galvão Teles (“A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos” - Revista Jurídica Julgar Online, n.º 13, Setembro 2013, disponível em http://julgar.pt/), no sentido de que “(...) que a disposição que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, quando conjugada com o n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, e se interpretada no sentido de se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da entrada em vigor da lei e ao abrigo do disposto na antiga alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança ínsito no artigo 2.º da CRP.

Quer se queira quer não, o facto de o documento dado à execução revestir a forma de título executivo pode ter sido essencial para a formação da vontade dos credores aquando da celebração daquele negócio jurídico ou da constituição daquela relação jurídica em particular. E assim sendo, dúvidas algumas subsistem de que as expectativas e os direitos adquiridos por uma tal relação jurídica foram seriamente afectados, situação passível de gerar desconfiança na ordem jurídica.

A aplicação da lei nova, sem mais, aos títulos executivos formados ao abrigo da lei anterior e ainda subsistentes lesa direitos adquiridos dos credores que apenas a prossecução de um elevado interesse público poderia derrogar.

Em face do exposto e sem necessidade de quaisquer outros considerandos, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da acção executiva.


Custas pela parte vencida a final.
Notifique e Registe.
Évora, 14 de Maio de 2015
António Sérgio Abrantes Mendes
Luís Manuel da Mata Ribeiro
Sílvio José Teixeira de Sousa