Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
467/21.3T8TVR.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: VONTADE DOS CONTRAENTES
ERRO
DOAÇÃO MODAL
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Sempre que o declaratário conhecer a vontade real do declarante, o pensamento que o mesmo pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com essa vontade que o negócio deverá valer (artigo 236.º/2, do CC).
2 - No artigo 236.º/2, do Código Civil está consagrada a regra falsa demonstratio non noncet: o erro no uso de uma expressão, quando conhecido pela outra parte, não prejudica, desde que haja acordo quanto ao fundo, isto é, desde que a vontade real seja conhecida e concorde. O que aqui está em causa é uma vontade real concordante das partes, não bastando um conhecimento da vontade real da contraparte.
3 – Tendo resultado das circunstâncias que antecederam a celebração do negócio e contemporâneas, bem como da correspondência trocada entre as partes após a conclusão do negócio jurídico da doação, que o fim mediato que animou ambos os outorgantes do contrato (doadores e donatária) de doação foi a construção no terreno doado de uma delegação/polo da Associação Raríssimas, no Algarve, deverá ser de acordo com essa vontade (real) que deve ser interpretado o contrato de doação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 467/21.3T8TVR.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…)-Associação (…), ré na ação na ação declarativa de condenação que lhe foi movida por (…) e sua mulher (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Tavira, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, na parte em que aquele:
1 - Julgou procedente a ação no que concerne à fixação à ré dos seguintes prazos para implementação de uma delegação da Ré no Algarve, no terreno que lhe foi doado pelos autores:
- no prazo máximo de 300 dias a ré dar início à construção de uma delegação da Associação no Algarve e no prédio urbano doado em causa nos autos, obrigando-se a comunicar aos autores tal facto, juntando documentação;
- no prazo máximo de 300 dias após o prazo referido supra, a dita construção de uma delegação da Associação no Algarve no prédio urbano doado ser concluída, obrigando-se a comunicar aos autores tal facto, juntando documentação;
- no prazo máximo de 300 dias após o prazo referido supra, ser a delegação da Associação no Algarve, construída no prédio doado, aberta às populações que a ré estatutariamente se obrigou a apoiar, obrigando-se a comunicar aos autores tal facto, juntando documentação.
2 – E condenou a ré no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no montante diário de € 50,00 (cinquenta) por cada dia de atraso no cumprimento dos prazos fixados em (1).

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. A Sentença de que se recorre errou ao concluir que a Ré aceitou a doação do terreno
com o ónus de construção, pelo que deve ser revogada, absolvendo-se integralmente a Ré do pedido.
2. A conclusão do Tribunal assenta numa errada interpretação da (i) letra da escritura de doação, na parte em que se refere que “os segundos outorgantes [declaram] (...) que para a associação sua representada aceitam esta doação nos termos exarados, a qual serve a prossecução dos respetivos fins, concretamente para a implementação de uma delegação da Associação no Algarve conforme reunião da Direção do dia 20/07/2015”; da (ii) ata da reunião da direção da Associação do dia 28/07/2015; e da (iii) carta enviada pela Ré a 12.07.2021, elementos manifestamente insuficientes para o efeito.
3. A interpretação acolhida pelo tribunal contraria expressamente o estipulado, de forma
inequívoca, por ambas as partes no contrato de doação, contrato formal, de onde consta que “(...) pelos Primeiros Outorgantes foi declarado: Que, pela presente, sem quaisquer encargos, doam à Associação representada pelos segundos outorgantes, o seguinte imóvel (...)” (enfâse nossa).
4. Ademais, o tribunal não podia afastar a letra do contrato de doação, sem mais, já que nos termos do disposto no art. 238.º do CC, “[n]os negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, nada apontando no sentido de uma expressão imperfeita das partes.
5. O processo de apreciação dos documentos efetuado pelo Tribunal a quo e o raciocínio que, com base naqueles, é realizado encontram-se viciados pela sobrevalorização – injustificada – de certas secções do contrato de doação e da ata n.º 91, face à estipulação expressa, constante do contrato, de que a doação é realizada sem quaisquer encargos.
6. O facto de na escritura de doação a Ré ter declarado que “para a associação sua representada aceitam esta doação nos termos exarados, a qual serve a prossecução dos respetivos fins, concretamente para a implementação de uma delegação da Associação no Algarve conforme reunião da Direção do dia 20/07/2015”, em termos idênticos ao que consta da ata n.º 91 da Direção, resulta tão somente da necessidade de fundamentar a aceitação da doação pela Associação, uma vez que os representantes da Associação encontram-se limitados nos seus poderes de atuação, devendo justificar a aceitação da doação, inserindo-a, desde logo, no âmbito do objeto associativo, e demonstrando que a mesma é “necessária ou conveniente à prossecução dos seus fins”, em obediência ao disposto no n.º 1 do artigo 160.º do CC.
7. Ao contrário do que afirma o Tribunal, a declaração emitida pela Ré no contrato de doação, de que aceita a doação para a implementação de uma delegação no Algarve, não se confunde, pois, com a aceitação de um dever de prestar, traduzido na obrigação de construção de uma delegação no Algarve, no imóvel doado.
8. A assunção de uma obrigação de proceder a um investimento da ordem de grandeza que a construção de uma delegação da Associação implica – seguramente de muitas centenas de milhares de euros, ou mais –, sempre careceria, aliás, de uma deliberação da Direção da Associação especifica para o efeito, com discriminação concreta do valor a investir, formas de financiamento, prazos, etc.
9. Por outro lado, há que salientar a alta improbabilidade, recorrendo a regras de experiência comum, de assunção de uma obrigação deste teor, que implica um investimento financeiro significativo, sem que houvesse a fixação de qualquer prazo, permitindo assim que o credor pudesse, a qualquer momento, exigir o seu cumprimento.
10. Face ao exposto, impõe-se pela conclusão da inexistência de um encargo associado à doação realizada pelos Autores.
11. Subsidiariamente, os prazos que foram concedidos pela Sentença, para início da construção, conclusão e abertura da delegação, são desproporcionais por manifestamente exíguos, colocando a Ré numa posição de impossibilidade de cumprimento da obrigação por causa que não lhe é imputável, devendo, pois, em caso de manutenção da condenação (que não se admite), ser concedido à Ré prazo não inferior a três anos para cada uma das duas primeiras etapas fixadas pelo Tribunal (ou seja, 6 anos até à finalização da construção).
Assim decidindo, Venerandos Desembargadores, uma vez mais se fará a costumada e esperada
JUSTIÇA!»

I.3.
Na sua resposta às alegações de recurso, os apelados defenderam a improcedência do recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
No caso a única questão que importa apurar é saber se ocorre erro de julgamento, isto é, se deve ser alterada a decisão de mérito.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
1. A Ré é uma associação que tem por objeto a prestação de serviços de saúde a utentes com deficiências mentais raras, sendo sua missão e fins os de implementar, administrar e gerir lares e/ou residências para apoio a jovens e/ou adultos com doenças raras e deficiência mental.
2. Por escritura pública de doação lavrada no dia 29/07/2015, os Autores doaram à Ré o prédio urbano, composto por parcela de terreno para utilização coletiva, sito em (…), União de Freguesias de Tavira (Santa Maria e Santiago) Concelho de Tavira, descrito na CRP de Tavira sob o n.º (…), e inscrito na matriz com sob o artigo (…), para construção de equipamento de utilização coletiva.

3. A génese deste negócio remonta a anos anteriores, quando a Autora (que sempre esteve ligada ao associativismo e hoje é presidente da … – Associação para a …) providenciou ao (…), filho do (…) estadia em campo de férias.

4. O referido filho do (…) é portador de uma deficiência.

5. O (…) era colaborador da Ré, que apenas providenciava uma semana por ano de campo de férias na Casa dos (…), por ser uma valência muito concorrida.

6. Campos de férias adaptados a deficiência carecem de especiais recursos humanos e condições.

7. O (…) já tinha conversado com a então presidente da R. (…) para estudarem a possibilidade de abrirem o dito polo da R. no Algarve.
8. Neste sentido o (…) falou com os AA acerca da possibilidade de doarem o terreno referido em 2 à Ré, para construção de um polo da R destinado a propiciar às populações do Algarve as condições da Casa dos (…), de que estes careciam.
9. Consta da escritura pública referida em 2. o seguinte: “E pelos PRIMEIROS OUTORGANTES foi declarado: Que, pela presente, sem quaisquer encargos, DOAM à Associação (…) o seguinte imóvel (…)”.

10. Tendo a Ré, conforme consta da referida escritura, declarado “Que para a associação sua representada aceitam esta doação nos termos exarados, a qual serve a prossecução dos respetivos fins, concretamente para a implementação de uma delegação da Associação no Algarve conforme reunião da direção do dia 20/07/2015”.

11. Da escritura não consta um prazo para o cumprimento do referido no facto supra.

12. Não tendo sido introduzida qualquer cláusula de reversão na escritura.

13. Os AA e a Ré tiveram reuniões com o então presidente da Câmara Municipal de (…), que mostrou o interesse do município em colaborar com a concretização de uma valência que de a região carecia.

14. O chamado “(…)”, amplamente divulgado na comunicação social em meados de 2017, e ainda a correr nos Tribunais, onde estava em causa a denúncia que a (…) faria um uso para fins pessoais dos recursos da Ré, teve um impacto negativo perante a opinião pública e os mecenas financiadores da Ré.

15. Em dezembro de 2017 a Ré atravessou uma crise de gestão derivada da situação referida em 14, que afetou a imagem da instituição, levando ao afastamento da presidente da Direção, (…),

16. Tendo também provocado retração dos patrocínios dos mecenas dos quais a Ré dependia.

17. O escândalo que envolveu a Ré levou a Autora mulher a demarcar-se de qualquer colaboração com esta, e fundar uma Associação com o mesmo fim, a (…) – Associação para a (…).

18. O projeto de implementação de uma delegação da Ré no Algarve ficou sem rumo e assim continua.

19. A Autora contactou com a Ré no sentido de reaver o imóvel.

20. Em 15.06.21 foi a R. notificada da hora e data da escritura de revogação.

21. Notificação que mereceu a seguinte resposta da Ré: “(…) informamos que a (…) não deixou de vislumbrar interesse efetivo em realizar as finalidades subjacentes ao ato de doação do terreno, inexistindo pois quaisquer condições, à luz dos termos de tal doação, para legitimar a revogação ou reversão legalmente sustentada.”
22. Não tendo comparecido no dia marcado da escritura.

II.2.2.
O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:

i. A Ré nunca teve intenção de construir qualquer delegação no Algarve.

ii. A ata junta aos autos apenas foi elaborada para ludibriar os AA.

iii. A presidente tinha a intenção de urbanizar para outro fim, designadamente lotear e vender lotes.

iv. Emitiu a declaração negocial (aceitação da doação para construção) com o intuito de enganar os AA.

v. A Ré tem como objetivo executar a obra.

vi. A Ré não teve oportunidade de promover a obra por razões de indisponibilidade financeira.

vii. A atual Direção encontra-se a praticar todas as ações necessárias a fim de reabilitar a imagem e a capacidade financeira da instituição, a fim de ultrapassar a crise que herdou dos últimos 3 anos, e com vista a assegurar a continuação do tratamento dos cerca de 100 utentes que dependem quase exclusivamente da instituição.

II.3.
Apreciação do objeto do recurso
No caso sub judice está em causa a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância na parte em que julgou procedente a ação no que concerne à fixação à ré de prazos para implementação de uma delegação da Ré no Algarve no terreno que lhe foi doado pelos autores.
Insurge-se a recorrente contra o referido segmento decisório que tem subjacente o entendimento de que o contrato de doação em causa nos autos contem uma cláusula modal que onera a ré/apelante com a obrigação de implementar no terreno doado uma Delegação da Associação (…).
Subsidiariamente, a apelante requer um alargamento dos prazos fixados pelo tribunal a quo para a conclusão da referida implementação de uma delegação da Ré no Algarve.
Apreciando.
No presente recurso não vem posto em causa que entre as partes foi celebrado um contrato de doação, o qual é definido no artigo 940.º do Código Civil como «o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente».
Em face deste preceito legal os elementos constitutivos do contrato de doação são os seguintes: (a) uma atribuição patrimonial geradora de enriquecimento; (b) uma diminuição do património do doador; e (c) espírito de liberalidade – Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, 6.ª Edição, Almedina, pp. 174 e ss.
Detendo-nos sobre este último requisito – espírito de liberalidade – há que referir que este elemento subjetivo consiste numa intenção de atribuir o correspondente benefício a outrem, provocando o seu enriquecimento – Menezes Leitão, ob. cit., pág. 176 – sendo, portanto, algo de distinto e independente dos «motivos do doador», que podem ser os mais variados (vg. altruísmo, gratidão). Elemento subjetivo que, refira-se, não se presume, pelo que não poderá ser deduzido da ausência de contrapartida (gratuitidade do ato).
Segundo o artigo 950.º/1 do Código Civil podem receber por doação todos os que não estão especialmente inibidos de as aceitar por disposição da lei. A lei exclui apenas os casos em que seja estabelecida uma inibição especial para a aceitação de doações, mas tal apenas se encontra prevista para a indisponibilidade relativa nas doações (artigos 953.º e 2192.º e ss. do Código Civil), o que corresponde, não a uma situação de incapacidade, mas antes a proibições específicas de doações entre pessoas determinadas.
No caso sub judice a donatária é uma pessoa coletiva, concretamente, uma associação (cfr. artigos 157.º e ss. do Código Civil) que tem capacidade jurídica para receber liberalidades, quer por doação, quer por testamento, devendo a respetiva aceitação (da doação), quando necessária, ser expressa perante o doador pelo representante da associação (cfr. artigo 163.º do Código Civil).
A lei admite a possibilidade de as doações serem oneradas com encargos.
Dispõe o artigo 963.º do Código Civil, epigrafado de Cláusulas modais, que:
«1 – As doações podem ser oneradas com encargos.
2 – O donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado».
O “modo” ou “encargo” consiste numa restrição imposta ao beneficiário da liberalidade que o obriga à realização de determinada prestação no interesse do autor da liberalidade, de terceiro ou do próprio beneficiário, podendo, por isso, e consoante os casos, revestir tanto a natureza de uma obrigação em sentido técnico, como a de um mero ónus jurídico – assim, Menezes Leitão, ob. cit., págs. 204-205.
A liberalidade (seja em vida, seja por morte) tem como causa-função uma atribuição patrimonial feita a outrem, traduzida num benefício ao qual não corresponde um sacrifício patrimonial do beneficiário. Por força da cláusula modal dá-se expressão e relevo, no conteúdo do negócio, a um motivo individual – o fim mediato ou um dos fins mediatos que animam o autor da liberalidade e que tendem a diminuir ou moderar o significado do benefício[1].
Note-se que o “encargo” não é perspetivado como uma contrapartida da vantagem patrimonial recebida pelo donatário, sendo antes uma restrição à sua liberdade de atuação: o donatário fica vinculado a um comportamento ativo ou omissivo e o encargo não pode superar o valor da doação. Como referem Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pp. 289-290, «(…) nos contratos gratuitos os encargos (modo) impostos ao beneficiário, sendo meras cláusulas acessórias, funcionam como simples limitações ou restrições à prestação do disponente (liberalidade) e não como seu correspetivo. (…) o artigo 963.º, n.º 1, quer precisamente realçar o facto de a atribuição donativa não deixar de ser liberalidade pelo facto de o donatário assumir a obrigação de realizar certa prestação (…)». Acrescentam estes autores que o donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado, uma vez que «a doação modal é sempre uma doação, uma liberalidade, que não pode transformar-se num ato prejudicial para o donatário».
O “modo” ou encargo tem consistência jurídica, constitui uma verdadeira regulamentação de interesses, embora acessória, inspirada no fim ou nos fins mediatos do negócio jurídico e nessa qualidade vincula, requerendo acatamento[2].
Para concluir estas considerações gerais a propósito do contrato de doação diremos que caso o encargo não venha a ser cumprido, quer o doador, quer os seus herdeiros poderão resolver a doação, mas apenas se esse direito lhes for conferido pelo contrato (artigo 966.º do CC).
Descendo agora ao caso concreto, a análise e decisão da pretensão da apelante prende-se com a questão de saber se a doação que foi feita pelos autores à ré/apelante o foi, ou não, com o encargo da implementação, no terreno doado, de uma delegação da Associação (Ré) no Algarve.
Questão essa que não se pode dissociar da interpretação do contrato outorgado entre as partes.
O julgador de primeira instância considerou que: (i) o teor da escritura de doação, na qual os representantes da Associação (…) declararam «que para a associação sua representada aceitam esta doação nos termos exarados, a qual serve a prossecução dos respetivos fins, concretamente para a implementação de uma delegação da Associação no Algarve conforme reunião da direção do dia 20/07/2015», (ii) o teor da ata n.º 91 relativa à reunião da Direção da ré, ocorrida a 28/07/2015, onde foi deliberado aceitar a doação «nos termos propostos», isto é, «para implementação futura da delegação do Algarve», e (iii) o teor da carta enviada pela ré, datada de 12/07/2021, na qual escreveu que «a (...) não deixou de vislumbrar interesse efetivo em realizar as finalidades subjacentes ao ato de doação do terreno (…). Podendo V. Exa. reforçar junto dos doadores a nossa gratidão e a intenção firme de efetivar os objetivos inerentes à liberalidade por eles decidida e formalizada (…)» permitem concluir que «(…) a existência da cláusula modal constitui a interpretação do contrato mais conforme à vontade real das partes, tendo a declaração dos Autores no sentido de doarem o imóvel à Ré “sem quaisquer encargos” um claro erro no modo de expressão” (…)» (negritos nossos).
É consabido que o objeto da interpretação não é a vontade mas a sua expressão: «(…) a vontade é um elemento interno, puramente psicológico, e, como tal, insuscetível de conhecimento. Suscetível de conhecimento é unicamente a manifestação externa a qual permite tirar as conclusões quanto à vontade real, subjacente como elemento psicológico. Não há nenhum dualismo (nenhuma oposição) entre a vontade e declaração (manifestação); o que pode haver é manifestações adequadas, ou não, corretas ou não, equívocas ou unívocas em relação à vontade. Assim, objeto de interpretação é a manifestação da vontade, o elemento externo, a própria declaração negocial. O fim da interpretação é o sentido da mesma. Este sentido não pode deixar de ser sintonizado com a função do negócio jurídico. Função do negócio jurídico é, como sabemos, a autodeterminação da pessoa dentro da sua autonomia privada conforme a sua vontade. Por conseguinte, toda e qualquer interpretação que quer manter funcional o sistema deve procurar averiguar a vontade que está atrás da manifestação, a vontade que se pretendeu declarar» (itálicos nossos) – Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª Reimpressão da edição de 1992, Almedina, pp. 509-510.
A interpretação da declaração negocial está sujeita a um quadro normativo substantivo que se encontra nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil e que cumpre aqui considerar:
- Artigo 236.º, epigrafado de Sentido normal da declaração:

«1 - A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2 - Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».

- Artigo 237.º, epigrafado de Casos Duvidosos:

«Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».

- Artigo 238.º, epigrafado Negócios Formais:

«1 – Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2 – Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade».

O artigo 236.º/1 do Código Civil consagra a chamada teoria da impressão do destinatário, estabelecendo como regra que o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um “declaratário normal”, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, a menos que este não pudesse razoavelmente contar com tal sentido.

Para apurar o “sentido da declaração” nos termos previstos no artigo 236.º/1 relevam todas as circunstâncias que acompanhem a conclusão do contrato e possam, objetivamente, inculcar num declaratário hipotético, razoável e cuidadoso, colocado na posição do declaratário real, um determinado sentido para a declaração, tais como a letra do negócio, os textos circundantes, os antecedentes e a prática negocial, o contexto e o objetivo em jogo – assim, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Almedina, 4.ª Edição reformulada e atualizada, Almedina, pág. 718. Também Adriano Vaz Serra, in RLJ, ano 110, pág. 42, refere que na interpretação da declaração negocial devem ser ponderadas «os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos do declarante (de linguagem ou outros), os usos da prática em matéria terminológica ou de outra natureza que possa interessar, os modos de conduta por que se prestou observância ao negócio concluído», referindo o mesmo autor, in RLJ, ano 104, pág. 63, que as circunstâncias atendíveis na interpretação da declaração negocial são quer as contemporâneas da mesma, quer as anteriores à sua conclusão, quer ainda as posteriores, importando que quer o declaratário quer o declarante ajam de boa fé, o primeiro investigando o que o declarante quis, tendo em consideração todas as circunstâncias por si conhecidas, e o segundo deixando a declaração valer no sentido em que um declaratário mediante uma averiguação cuidadosa tinha de atribuir-lhe.

Porém, sempre que o declaratário conhecer a vontade real do declarante, o pensamento que o mesmo pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com essa vontade que o negócio deverá valer (artigo 236.º/2 do CC). Este n.º 2 do artigo 236.º do CC afasta, por conseguinte, o “declaratário normal” nos casos em que não faz sentido querer vincular declarante e declaratário reais ao entendimento do “declaratário normal” quando este último estiver em perfeita desconformidade com a vontade comum das partes. Trata-se, aqui, designadamente, de situações em que declarante e declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de este entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues (falsa demonstratio). Aqui valerá o princípio de que a vontade real é que conta – assim, Heinrich Ewald Horster, ob. cit., pág. 511.

No artigo 236.º/2 do Código Civil está consagrada a regra falsa demonstratio non noncet: o erro no uso de uma expressão, quando conhecido pela outra parte, não prejudica, desde que haja acordo quanto ao fundo, isto é, desde que a vontade real seja conhecida e concorde. Sublinha-se, todavia, que aqui está em causa uma vontade real concordante das partes, não bastando um conhecimento da vontade real.

Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, isto é, quando não for possível, mediante a aplicação do artigo 236.º do CC, esclarecer o sentido da declaração negocial, vale a regra subsidiária do artigo 237.º: nos negócios gratuitos prevalece o sentido menos gravoso para o disponente e nos onerosos aquele que conduzir ao maior equilíbrio das prestações[3]. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 745, defende que o princípio do equilíbrio das prestações subjacente ao referido artigo 237.º deve ser temperado pelo fim do negócio: «na dúvida, deve-se reintroduzir o sentido mais consentâneo com o objetivo do contrato. Este elemento, já presente no horizonte do declaratário, reaparece aqui com manifesta utilidade. A interpretação é hoje dominada pelo facto teleológico. Também nos negócios assim será. Nenhum negócio existe por si: como foi dito, todos eles são instrumentos usados pelas partes, para prosseguir certos fins. Quando eles sejam cognoscíveis e, juridicamente, imputáveis aos contratos considerados, temos um poderoso fator de modelação das diversas cláusulas. Ele não introduz qualquer fator externo novo de interpretação;(…)».

Tratando-se, porém, de um negócio formal (ou seja, sujeito por lei a forma especial), a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, a menos que esse sentido (sem um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento) corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade (artigo 238.º).

Do cotejo das normas supra transcritas resulta, por conseguinte, o seguinte regime:

- Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (artigo 236.º/2);

- Quanto a negócios formais, o sentido a atribuir à declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º/1), não se aplicando tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (artigo 238.º/2);

- Não se conhecendo a vontade real dos declarantes, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, atribua à declaração (artigo 236.º/1);

- Em caso de dúvida, se se trata de negócio oneroso, prevalece o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações e se se tratar de negócio gratuito o sentido que for menos gravoso para o disponente (artigo 237.º).

Defende a apelante que o tribunal realizou uma interpretação «contra a letra do contrato» na medida em que do texto do contrato consta que a doação «é realizada sem quaisquer encargos», nada apontando «no sentido de uma expressão imperfeita das partes» e que em face do disposto no artigo 238.º do CC está vedado ao tribunal a faculdade de «afastar a letra do contrato de doação sem mais».

Que dizer?

É um facto incontornável que consta do texto do contrato que os Primeiros Outorgantes, isto é, os doadores, declararam que «Que pela presente, sem quaisquer encargos, DOAM à Associação (…) o seguinte imóvel (…)».

Porém, até a mais clara das letras não pode deixar de ser interpretada, e, no caso, julgamos que aquele segmento do contrato é contraditado pela chamada “globalidade do negócio”, concretamente pelas circunstâncias que antecederam a conclusão do contrato de doação, pelo documento para o qual o texto do contrato remete, a saber, a ata n.º 91 relativa à reunião da Direção da Ré e, ainda, pelo que sucedeu posteriormente à conclusão do contrato, tudo elementos que revelam o fim (mediato) que animou ambas as partes a outorgar o contrato de doação em causa nos autos.

Explicando: das circunstâncias que precederam a celebração do negócio e contemporâneas desta resulta que os doadores pretendiam que o terreno de que eram proprietários e que foi objeto do contrato de doação fosse afeto a um determinado fim, concretamente, à construção no mesmo de uma delegação/polo da Associação (…), no Algarve, a qual poderia propiciar às populações do Algarve as condições da “Casa dos (…)”, instituição que providenciava estadias no seu campo de férias a jovens e/ou adultos portadores de deficiência), motivação/vontade essa (a dos doadores) que não só era conhecida da ré/apelante como era uma vontade partilhada por esta última. Com efeito, provou-se que:

- a Ré é uma associação que tem por objeto a prestação de serviços de saúde a utentes com deficiências mentais raras, sendo a sua missão e fins os de implementar, administrar e gerir lares e/ou residências para apoio a jovens e/ou adultos com doenças raras e deficiência mental (facto provado n.º 1);

- a génese do negócio de doação remonta a anos anteriores, quando a autora – que sempre esteve ligada ao associativismo e hoje é presidente da … – Associação para a …) providenciou ao filho de (…), este último então funcionário da (…), uma estadia num campo de férias adaptado a pessoas com deficiências (factos provados n.ºs 3, 5 e 6);

- o referido (…), cujo filho é portador de uma deficiência, já tinha conversado com a então presidente da (…), (…), para estudarem a possibilidade de abrirem um polo da ré no Algarve (cfr. facto provado n.º 7) e neste sentido, o referido (…) falou com os autores acerca da possibilidade de doarem o terreno em causa nos autos para a construção de um polo da ré destinado a propiciar às populações do Algarve as condições da “Casa dos (…)” de que estes careciam (cfr. facto provado n.º 8); “Casa dos (…)” que é uma valência com especiais recursos humanos e condições para pessoas com deficiências (cfr. facto provado n.º 6);

- os autores e a ré tiveram reuniões com o então Presidente da Câmara Municipal de (…), o qual mostrou o interesse do Município em colaborar com a concretização de uma valência de que a região carecia (cfr. facto provado n.º 13).

O “fim “da atribuição do prédio à Raríssimas – a implementação no mesmo de uma Delegação da Ré – é também revelado pelo próprio texto do contrato quando complementado com a ata n.º 91 referente à reunião da Direção da Ré realizada na data de 28 de julho de 2015. Com efeito lê-se na escritura de doação que «Declararam os SEGUNDOS OUTORGANTES: que para a associação aceitam esta doação nos termos exarados, a qual serve para a prossecução dos respetivos fins, concretamente para a implementação de uma delegação da Associação no Algarve, conforme reunião da direção do dia vinte do corrente mês, cuja ata se arquiva ao presente ato».

Por sua vez, a ata n.º 91 tem o seguinte teor:

«(…)

Ponto único: deliberação sobre a aceitação de doação de terreno para a criação da Delegação Algarve

Aberta a reunião, foi explicada pela vogal (...) que, no seguimento da já anterior identificada necessidade da criação de representações institucionais no sentido de alargar o âmbito de representatividade da (…) a nível nacional, vulgo Delegações, que seria imperioso e benéfico aceitar a doação de um imóvel, correspondente a prédio urbano, (…), para implementação futura da Delegação Algarve.

A Direção deliberou pela aceitação da doação nos termos propostos por voto unânime» (negritos nossos).

Resulta por conseguinte da conjugação do texto da escritura pública de doação com a ata onde foi deliberada a aceitação da doação pela Associação (…) que aquele negócio jurídico teve um concreto fim que animou ambos os outorgantes: afetar o terreno doado à implementação futura de uma delegação da ré no Algarve.

Finalmente, a correspondência trocada entre as partes após a conclusão do negócio jurídico da doação, concretamente o email de 18 de novembro de 2020, enviado pela autora à vice presidente da ré, a carta registada de 14 de junho de 2021 e a resposta da ré, datada de 9 de julho de 2021, demonstram, também elas, que a finalidade subjacente à doação do terreno sempre foi a construção no mesmo de uma valência destinada a pessoas com deficiência, finalidade que correspondia a uma vontade real e comum a ambos os outorgantes, doadores e donatária.

Desta feita sendo a vontade dos doadores e da donatária que o terreno doado fosse afeto à construção de uma delegação da Associação ré, é de acordo com essa vontade (real) que deve ser interpretado o contrato, ou seja, que estamos perante uma doação com o encargo de a donatária implementar no terreno doado um polo/delegação da (…). Interpretação que tem apoio no texto do contrato pois que, como supra assinalámos, resulta do teor do mesmo conjugado com a ata n.º 91 da Direção da Ré (para a qual o contrato expressamente remete) que ré expressou no próprio contrato a sua aceitação da doação para implementar no terreno doado um polo/delegação da (…). Por conseguinte, bem andou o julgador a quo ao concluir que os doadores “se exprimiram mal” quando declararam que a doação era “realizada sem encargos” e que o contrato deve ser interpretado como contendo uma cláusula modal, ou seja, que ao aceitar a doação a ré vinculou-se a implementar no terreno doado uma delegação da (…). Esta é, efetivamente, a interpretação das declarações negociais no seu contexto global, a interpretação que razoavelmente corresponde ao que as partes outorgantes entenderam ser a vinculação da ré em face da doação de que foi beneficiária. E, assim sendo, improcede o segmento do recurso na parte em que a apelante pretende a revogação da sentença no segmento em que se considerou existir um encargo associado à doação realizada pelos autores.

Subsidiariamente, a apelante defende que os prazos fixados pelo tribunal recorrido para início de construção, conclusão e abertura da delegação da (…) «são desproporcionais por manifestamente exíguos, colocando a ré numa posição de impossibilidade de cumprimento da obrigação por causa que não lhe é imputável, devendo, pois, em caso de manutenção da condenação, ser concedido à ré prazo não inferior a três anos para cada uma das duas primeiras etapas fixadas pelo Tribunal, ou seja, 6 anos até à finalização da construção».

Para tal desiderato a apelante alegou que: a) «um prazo inferior a um ano para início da construção, com a necessidade de obter financiamento para o efeito, executar todo o procedimento de licenciamento, nomeadamente pedidos de informação prévia à Câmara Municipal local, levantamentos topográficos, projetos de arquitetura, projetos de especialidade, etc., bem como a obtenção de orçamentos e escolha de empreiteiro, é inteiramente irrealista», b) «as delegações da (...), por serem frequentadas por pessoas com os mais diferentes tipos de deficiências, têm que estar dotadas de infraestruturas especiais para acolher essas pessoas, nomeadamente ao nível de acessos, salas de tratamento médico e fisioterapia, cantinas, equipamentos especiais para quartos e zonas comuns, bem como todo um conjunto de regras de segurança adicionais, etc., o que implica igualmente a realização de projetos de arquitetura e especialidades mais complexos e morosos, com regras muito mais apertadas em termos de licenciamento» e c) «o tempo médio no Algarve para obter o licenciamento para construção de uma moradia é nunca inferior a um ano».

Que dizer?

Os fundamentos agora invocados pela apelante para sustentar uma pretensa “exiguidade” do prazo para a implementação da delegação da Ré no terreno que lhe foi doado pelos autores não foram invocados pela ré perante a primeira instância (de facto, aquela centrou toda a sua defesa na alegação de que a doação em causa nos autos é uma doação pura, isto é, sem encargos para ela-donatária). O facto é que o próprio tribunal recorrido, oficiosamente, conheceu de tal questão, tendo considerado que o prazo proposto pelos autores «se afigurava muito curto para o cumprimento do encargo por parte da ré», porquanto «estamos perante a construção de um imóvel que está sujeito à observância de determinadas burocracias, cujo controlo não está na total disponibilidade da ré, designadamente através de licenciamentos, contratação de empreiteiros, arquitetos, (…)» e que hoje se enfrentam quebras na cadeia de fornecimento de matérias-primas para a construção civil em resultado da pandemia e da guerra da Ucrânia, tornando mais moroso todo o processo de conclusão de obras de construção civil.

Na sua decisão quanto à fixação do prazo para implementação da Delegação da Ré no terreno que lhe foi doado o tribunal a quo considerou algumas das circunstâncias aqui invocadas pela apelante (e ainda outras: quebras na cadeia de fornecimento de materiais de construção civil por força da pandemia e da guerra da Ucrânia). Embora conste da motivação da sentença recorrida que houve testemunhas que em audiência final declararam que «se perspetivava que a obra ficasse concluída no prazo de cinco anos após a doação» tal matéria não foi transposta para o elenco da factualidade provada. Da dita “delegação” da ré apenas se sabe que se destinará a propiciar às populações do Algarve «as condições da casa dos … », sendo esta uma valência adaptada para pessoas com deficiências (cfr. factos provados n.ºs 8, 5 e 6). Facto que é manifestamente insuficiente para alterar o prazo fixado pela primeira instância.

Em face de todo o exposto, considerando que a ré não alegou perante a primeira instância quaisquer factos de que resultasse uma suposta insuficiência do prazo proposto pela autora para a conclusão da infra estrutura a implantar no terreno doado e que da factualidade julgada provada pela primeira instância também não constam factos que eventualmente tivessem resultado da instrução da causa e que permitissem a este tribunal de segunda instância alterar o prazo fixado pelo tribunal recorrido, julgamos não poder proceder a pretensão da apelante no sentido de alargamento do prazo fixado pela primeira instância.

Sumário: (…)


III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo integralmente a sentença recorrida.
As custas de parte são da responsabilidade da apelante.

Notifique.
DN.

Évora, 20 de abril de 2023

Cristina Dá Mesquita
Rui Machado e Moura
(1.º Adjunto)
Eduarda Branquinho
(2.ª Adjunta)



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[1] Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Atualizado, 2002, Coimbra Editora, pág. 283.
[2] Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Atualizado, 2002, Coimbra Editora, pág. 284.
[3] Este normativo apenas se aplica nas situações em que o sentido da declaração não pode ser captado por via do artigo 236.º do CC. Assim, o artigo 237.º vale unicamente para os casos em que a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação segundo as regras do artigo 236.º ainda apresenta ou comporta dois ou mais sentidos, sendo estes baseados em razões de igual força. A “dúvida” a que este normativo legal alude não é a que a declaração possa suscitar antes de esgotadas as regras da sua interpretação, mas aquela em que o intérprete razoavelmente se deva sentir depois de ter tentado, sem êxito, dar à declaração um sentido único. Se não for possível atribuir sentido algum, a declaração é ineficaz.